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Hemolisinas anti-A e anti-B na prática transfusional

Anti-A and anti-B hemolysins in transfusion medicine

EDITORIAIS EDITORIALS

Hemolisinas anti-A e anti-B na prática transfusional

Anti-A and anti-B hemolysins in transfusion medicine

Marcia Cristina Z. Novaretti

Chefe da Divisão de Imunematologia da Fundação Pró-Sangue Hemocentro de São Paulo

Correspondência Correspondência: Marcia Cristina Zago Novaretti Av. Dr. Enéas Carvalho de Aguiar, 155 1º andar - Cerqueira Cesar 05403-000 - São Paulo-SP - Brasil Email: marcia.novaretti@hcnet.usp.br

A primeira descrição sobre o efeito hemolítico da transfusão de plasma de grupo O em receptores de grupo sanguíneo não-O foi feita por Ebert & Emerson em 1946, estudando 265 combatentes da Segunda Grande Guerra. Os autores descreveram que 1,1% dos doadores de sangue daquele estudo apresentaram altos títulos de isoaglutininas (consideraram elevados títulos de anti-A, anti-B >1/500).1 Em 1950, Ervin &Young relataram que puderam detectar anti-A com capacidade para hemolisar hemácias de grupo A em 12% dos doadores; e, posteriormente, Crawford et al. (1952) concluíram que a titulação in vitro de hemolisina anti-A seria um bom indicador para predizer a sua capacidade de destruir hemácias de grupo A in vivo.2

Na prática transfusional, por vezes é necessária transfusão de concentrado de plaquetas de grupo sanguíneo O para receptores não-O, especialmente no suporte transfusional em emergências e urgências, bem como nas situações em que há limitação nos estoques de hemocomponentes. A transfusão de hemocomponentes com incompatibilidade ABO menor (plasma do doador versus hemácias do receptor) é geralmente considerada de baixo risco para reação hemolítica. Entretanto, apesar de incomum, há relatos na literatura de hemólise intravascular após a transfusão de hemocomponentes de grupo O para receptores não-O, pela transferência passiva de anticorpos com significativa morbidade, mesmo quando uma única unidade de concentrado de plaquetas randômica foi transfundida.3

O termo doador de grupo O perigoso foi cunhado por Levine & Mabee em 1923.4 Naquela época, era prática rotineira a transfusão de sangue total e, portanto, grande quantidade de plasma era infundida. Não era incomum a observação de reação hemolítica por incompatibilidade ABO menor. Posteriormente, com o processamento do sangue, a transfusão de sangue total caiu em desuso e com ela essas reações tornaram-se tão infrequentes que a prova cruzada menor foi descontinuada. Nas últimas décadas, o uso crescente de transfusão de plaquetas obtidas por aférese trouxe novamente a preocupação com a concentração de anti-A e anti-B nesse hemocomponente. Diante disso, a titulação de anti-A e anti-B tem sido usada com o intuito de detectar os doadores de grupo O com elevadas concentrações plasmáticas desses anticorpos, também chamados de doadores de grupo O-perigoso.

Não há consenso sobre qual título pode ser considerado crítico, e não há uma uniformização do método ideal para a titulação de anti-A e anti-B. Diversos métodos podem ser utilizados para a detecção de anticorpos anti-A e anti-B, dos quais destaca-se a técnica de aglutinação em tubo, em microplaca ou em gel-teste, o método de Elisa e a citometria de fluxo. Quando da escolha do método para a triagem de hemolisinas, deve-se levar em conta a rapidez, a facilidade com que é feita, a reprodutibilidade, a sensibilidade e, obviamente, o custo.

O termo hemolisina é usado quanto à capacidade de um agente ou anticorpo de causar hemólise pela ligação ao complemento. Anti-A e anti-B tanto IgG como IgM podem causar hemólise. Dentre os fatores conhecidos que podem afetar a hemólise in vitro, ressaltamos o tempo de estocagem do sangue - hemácias estocadas são mais facilmente hemolisadas do que hemácias recentemente coletadas; tempo de coleta do soro a ser testado - a atividade hemolítica diminui progressivamente após coleta do sangue.5

Por tudo isso, até o momento, a frequência de doadores de grupo O perigoso não foi estabelecida. Numerosos estudos compreendendo populações diversas demonstrararm proporções variáveis de doadores de grupo O perigoso (de 3% a 60%), sendo que, na maioria dos estudos, cerca de 10% a 20% dos doadores de grupo O têm altos titulos de anti-A ou anti-B.

No Brasil, há poucas pesquisas em nossa população quanto à frequência de doadores de grupo O perigoso. Nesse número, Fernandes et al6 apresentam interessante estudo restrospectivo realizado nas cidades de Itapeva e Ourinhos (estado de São Paulo), onde encontraram doadores classificados como de grupo O perigoso em 3,8% das amostras testadas. Incidência essa inferior já reportada nacionalmente. Esses achados são instigantes, podendo ser característicos das populações estudadas ou, em parte, estar relacionados com a técnica empregada (microplaca), com o tipo de leitura (se manual ou automatizada), com o tempo decorrido entre a coleta e testagem, com a calibração de pipetas e equipamentos utilizados ou, ainda, com a temperatura de armazenamento das amostras previamente à detecção das hemolisinas.

Quanto às diferenças étnicas observadas na análise da frequência de hemolisinas, os resultados são controversos na literatura internacional. Enquanto em um estudo nos Estados Unidos o anti-A lítico foi mais encontrado em brancos, outros autores relataram que títulos de hemolisinas foram mais elevados em negros e em asiáticos. Publicações em diferentes regiões africanas demonstraram que há também grandes variações na frequência de doadores de grupo O-perigoso entre etnias africanas (de 20,4% até 60,2%).

Fernandes et al.6 detectaram ainda uma diferença na prevalência de doadores de grupo sanguíneo O perigoso entre homens e mulheres nas duas cidades investigadas com risco relativo de 1,82 para o sexo masculino na cidade de Ourinhos, enquanto na cidade de Itapeva foi mais comum em doadores do sexo feminino.

O artigo de Fernandes et al.6 certamente motivará outras pesquisas sobre esse assunto, com grande tamanho amostral, do tipo prospectivo, contemplando populações de regiões outras do país, com os propósitos de determinar a frequência de doadores de grupo O-perigoso e de prevenir reações hemoliticas pós-transfusionais em receptores de grupo não-O, aumentando a segurança transfusional.

Recebido: 20/11/2008

Aceito: 23/11/2008

Avaliação: O tema abordado foi sugerido e avaliado pelo editor.

  • 1. Ebert RV, Emerson CP. A clinical Study of Transfusion reactions: the hemolytic effect of group-O blood and pooled plasma containing incompatible isoagglutinins. J Clin Invest 1946;25 (4):627-38.
  • 2. Crawford H, Falconer H, Cutbush M, Mollison PL. Formation of immune A iso-antibodies, with special reference to heterogenetic stimuli. Lancet. 1952;2(6727):219-23.
  • 3. Fung MK, Downes KA, Shulman IA. Transfusion of Platelets containing ABO-incompatible plasma. - A survey of 3156 North American Laboratories. Arch Pathol Lab Med 2007;131;909-16.
  • 4. Levine P, Mabee JA. Dangerous "universal donor" detected by the indirect matching of bloods. J Immunol 1923; 8:425-31.
  • 5. Klein H, Anstee D. Mollisons Blood Transfusion in Clinical Medicine. 11 ed. 912pg. 2006.
  • 6. Fernandes VC, Borgatto AF, Barberato Filho S, Toledo MI, Lopes LC. Freqüência de hemolisinas anti-A e anti-B em doadores de sangue de Itapeva e Ourinhos. Rev. Bras. Hematol. Hemoter. 2008;30(6):453-6.
  • Correspondência:

    Marcia Cristina Zago Novaretti
    Av. Dr. Enéas Carvalho de Aguiar, 155
    1º andar - Cerqueira Cesar
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Jan 2009
    • Data do Fascículo
      Dez 2008
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