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Descarte de bolsas de sangue devido à reatividade para doença de Chagas em um laboratório de triagem sorológica de doadores em Porto Alegre-RS

Disposal of blood units due to reactivity for Chagas' disease in a blood donor serological screening laboratory in Porto Alegre, Brazil

Resumos

A transmissão transfusional (DCT) da doença de Chagas foi aventada nos anos 30 e comprovada nos anos 50. Inicialmente a sorologia pré-transfusional não era obrigatória e nas décadas seguintes os testes foram aperfeiçoados com técnicas mais adaptadas e fidedignas, chegando ao Elisa, mais utilizada atualmente. O presente trabalho se propõe a analisar o perfil sorológico para doença de Chagas dos doadores de sangue oriundos dos bancos de sangue atendidos pelo Laboratório de Sorologia da Universidade Luterana do Brasil - Hospital Independência (Ulbra-HI) em Porto Alegre, RS, Brasil com o objetivo de relacionar os índices encontrados com os disponíveis em nosso país. A população deste estudo foi composta por 36.720 doadores de sangue usuários dos serviços do Laboratório de Sorologia da Ulbra-HI durante o período de março de 2006 a maio de 2008. Foram consideradas sorologicamente inaptas para doença de Chagas 150 doações (0,41% do total). Esta taxa é similar à encontrada na região Sul, indicando que a triagem realizada em nosso laboratório está de acordo com o observado em nosso país.

Doença de Chagas; sorologia; trypanosoma cruzi; hemoterapia; banco de sangue; soroprevalência


Transfusional transmission of Chagas' disease was suggested in the 1930s and proven in the 1950s. Initially pre-transfusion serology tests were not compulsory but in the decades following their introduction, the tests were improved with more suitable and reliable techniques, which culminated with Elisa, currently the most commonly used test. This study aims at examining the serological profile of blood donors of blood banks attended by the serology laboratory of the Universidade Luterana do Brasil - Hospital Independência (Ulbra-HI) in Porto Alegre, Brazil in respect to Chagas' disease, with the aim of comparing the rates of this laboratory with those published for Brazil. The study sample was composed of 36,720 blood donors during the period from March 2006 to May 2008. One hundred and fifty donations (0.41%) were considered serologically unsuitable due to Chagas' disease. This incidence is similar to that found in the southern region of Brazil, indicating that the screening conducted in our laboratory is in line with other laboratories.

Chagas' disease; serology; Trypanosoma cruzi; blood bank; hemoterapy


Descarte de bolsas de sangue devido à reatividade para doença de Chagas em um laboratório de triagem sorológica de doadores em Porto Alegre-RS

Disposal of blood units due to reactivity for Chagas' disease in a blood donor serological screening laboratory in Porto Alegre, Brazil

Douglas B. FitarelliI; Joel F. HornII

IFarmacêutico-Bioquímico – UFRGS. Diretor técnico do Laboratório de Sorologia da Ulbra/RS – Porto Alegre/RS

IIFarmacêutico-Bioquímico – UFRGS – Porto Alegre/RS

Correspondência Correspondência: Douglas Boni Fitarelli Rua Santana nº 313/204 – Santana 90040-372 – Porto Alegre-RS – Brasil E-mail: douglas.fitarelli@ulbra.br

RESUMO

A transmissão transfusional (DCT) da doença de Chagas foi aventada nos anos 30 e comprovada nos anos 50. Inicialmente a sorologia pré-transfusional não era obrigatória e nas décadas seguintes os testes foram aperfeiçoados com técnicas mais adaptadas e fidedignas, chegando ao Elisa, mais utilizada atualmente. O presente trabalho se propõe a analisar o perfil sorológico para doença de Chagas dos doadores de sangue oriundos dos bancos de sangue atendidos pelo Laboratório de Sorologia da Universidade Luterana do Brasil – Hospital Independência (Ulbra-HI) em Porto Alegre, RS, Brasil com o objetivo de relacionar os índices encontrados com os disponíveis em nosso país. A população deste estudo foi composta por 36.720 doadores de sangue usuários dos serviços do Laboratório de Sorologia da Ulbra-HI durante o período de março de 2006 a maio de 2008. Foram consideradas sorologicamente inaptas para doença de Chagas 150 doações (0,41% do total). Esta taxa é similar à encontrada na região Sul, indicando que a triagem realizada em nosso laboratório está de acordo com o observado em nosso país.

Palavras-chave: Doença de Chagas; sorologia; trypanosoma cruzi; hemoterapia; banco de sangue; soroprevalência.

ABSTRACT

Transfusional transmission of Chagas' disease was suggested in the 1930s and proven in the 1950s. Initially pre-transfusion serology tests were not compulsory but in the decades following their introduction, the tests were improved with more suitable and reliable techniques, which culminated with Elisa, currently the most commonly used test. This study aims at examining the serological profile of blood donors of blood banks attended by the serology laboratory of the Universidade Luterana do Brasil - Hospital Independência (Ulbra-HI) in Porto Alegre, Brazil in respect to Chagas' disease, with the aim of comparing the rates of this laboratory with those published for Brazil. The study sample was composed of 36,720 blood donors during the period from March 2006 to May 2008. One hundred and fifty donations (0.41%) were considered serologically unsuitable due to Chagas' disease. This incidence is similar to that found in the southern region of Brazil, indicating that the screening conducted in our laboratory is in line with other laboratories.

Key words: Chagas' disease; serology; Trypanosoma cruzi ; blood bank; hemoterapy.

Introdução

A construção, em 1908, de um trecho da Estrada de Ferro Central do Brasil, na região norte de Minas Gerais, foi que determinou a ida de Carlos Chagas ao lugar onde iria fazer, pouco mais tarde, a grande descoberta que consagrou nosso país em todo o mundo científico. A malária estava causando diversas perdas e foi solicitada a ida, para o local, de um médico especialista em combate àquela doença. Oswaldo Cruz, então diretor do Instituto Manguinhos, designou Carlos Chagas, assistente dele, para ir ao local dirigir o combate à doença que estava impedindo a construção da estrada. Um engenheiro chamou atenção para o fato de que existia na região um inseto chamado "barbeiro" que talvez pudesse ser o causador de muitas moléstias. Contou também que o inseto vivia nas frestas das choupanas e que chupava sangue de gente e de animais. Chagas viu os "barbeiros", dissecou-os e encontrou "flagelados com caracteres de critídias", segundo suas palavras. Enviou alguns insetos para Oswaldo Cruz, que descobriu tripanossomas, até então desconhecidos no sangue periférico de macacos inoculados. Chagas foi informado a respeito e estudou o ciclo evolutivo deste parasita, denominando-o, em homenagem a Cruz, Trypanosoma cruzi. Em março de 1909, após analisar o sangue de uma criança enferma, Carlos Chagas descobriu os agentes causadores (protozoário, flagelado, tripanosoma) e transmissor ("barbeiro", inseto, hematófago) de uma nova doença, a doença de Chagas.1

A transmissão transfusional (DCT) da doença de Chagas foi aventada nos anos 30 por Salvador Mazza2 e comprovada nos anos 50.3 Os primeiros doadores infectados foram descritos no Brasil por Pellegrino,4 e os primeiros casos de DCT brasileiros, por Freitas e colaboradores, em São Paulo.5 Nesta época, até meados dos anos 80, a doença era considerada um grave problema de saúde pública, estimando-se que, na década de 70, de uma incidência calculada de 100 mil novos casos, 20 mil correspondiam à transmissão transfusional. Naquela época, os casos não despertavam maior interesse e frequentemente passavam despercebidos pelos hemoterapeutas. Foi nos anos 50 que começou a crescer o número de inquéritos sorológicos entre doadores em toda a América, inicialmente com muitas dificuldades operacionais, pelos problemas de padronização da sorologia empregada (reação de fixação do complemento) e pela metodologia de transfusão braço a braço. A sorologia pré-transfusional não era obrigatória e somente alguns serviços aplicavam a quimioprofilaxia com violeta genciana, uma droga tripanocida. Nas décadas posteriores, os testes foram aperfeiçoados com técnicas mais adaptadas e fidedignas, como o imunofluorescência, hemaglutinação indireta e, finalmente, a Elisa, mais utilizada atualmente. Todos os problemas citados anteriormente eram agravados pela ausência de controle do inseto vetor e pelo aumento da migração rural-urbana, carreando para as cidades milhares de chagásicos potenciais.6

Devido à articulação da comunidade científica, em meados dos anos 80 surgiram importantes avanços na luta contra a doença de Chagas no Brasil, através da tentativa de eliminação do vetor e por modificações fundamentais nos procedimentos hemoterápicos, como proibição do doador remunerado e obrigatoriedade da seleção sorológica dos candidatos à doação. Com estas medidas, a situação melhorou consideravelmente, e a ocorrência atual de reações sorológicas não negativas para Trypanosoma cruzi é de 0,6%,7 em contraste com o índice de 7,0% dos anos 70.8

Originária da Bolívia, o "barbeiro" (Triatoma infestans) entrou no Brasil pelos estados da região Sul, adaptando-se bem à vegetação. Um estudo de 1970 realizado em algumas cidades da região sul do estado do Rio Grande do Sul indicou uma prevalência para doença de Chagas variando de 13,6% a 44,4% naqueles municípios.9 Outro estudo realizado em 1975 indicou que a prevalência de infecção chagásica na população rural do estado do Rio Grande do Sul era de 8,8%.10 Um inquérito sorológico realizado entre 1987 e 1989 mostrou que, em escolares gaúchos de 7 a 14 anos, 0,7% apresentaram amostras não negativas para doença de Chagas.11 Um estudo realizado na cidade de Porto Alegre, entre 2005 e 2006, indicou uma prevalência sorológica para doença de Chagas em doadores de sangue de 0,5%.11 Os últimos dados disponibilizados pela Anvisa indicam uma retenção sorológica para doença de Chagas em doadores de sangue de 0,85% no RS.12

A transfusão sanguínea é o segundo modo mais importante de transmissão da doença de Chagas na América Latina, depois da vetorial. O risco de infecção via transfusão de sangue contaminado é de 12%-25%, sendo o desafio dos bancos de sangue a identificação e exclusão de portadores assintomáticos e crônicos do parasita.13

O presente trabalho se propõe a analisar o perfil sorológico para doença de Chagas dos doadores de sangue oriundos dos bancos de sangue atendidos pelo Laboratório de Sorologia da Universidade Luterana do Brasil – Hospital Independência (Ulbra-HI) em Porto Alegre, RS, Brasil, com o objetivo de relacionar os índices encontrados com os disponíveis em nosso país.

Casuística e método

A população deste estudo foi composta por 36.720 doadores de sangue usuários dos serviços do Laboratório de Sorologia da Ulbra-HI durante o período de março de 2006 a maio de 2008. Este estudo está registrado no Comitê de Ética em Pesquisa da Ulbra, sob o número de protocolo 2008-544H.

O Laboratório de Sorologia atende a seis bancos de sangue de diferentes municípios do estado do Rio Grande do Sul, Brasil, a saber: Porto Alegre, Tramandaí, Novo Hamburgo, Santa Cruz do Sul, Canguçu e Montenegro.

Os dados foram obtidos a partir do levantamento nos arquivos do laboratório, onde foram coletados tópicos como banco de sangue de origem, total de amostras e resultado sorológico para doença de Chagas.

O método utilizado para triagem das bolsas de sangue foi o Elisa (enzyme linked immunoassay), realizado em um equipamento automatizado, utilizando kits de três marcas diferentes. No ano de 2006 foi utilizado o kit de marca Wiener, Chagatest recombinante v.3.0 (Wiener Lab, Rosário, Argentina), com sensibilidade de 100% e especificidade de 99,5%. Em 2007 (até junho) foi utilizado o kit de marca Abbott Bioschile, Chagas Teste Elisa III (Bioschile Ingenieria Genética S.A., Santiago, Chile), com sensibilidade e especificidade de 100%. De julho de 2007 até maio de 2008 foi utilizado o kit de marca Ebram, Chagas Elisa versão III (Ebram Produtos Laboratoriais Ltda, São Paulo, Brasil), com sensibilidade e especificidade de 100%. A zona cinza (região de resultados inconclusivos) estabelecida em nosso laboratório é de ± 20% o valor do ponto de corte (cut-off). Amostras com absorbância abaixo do limite inferior da zona cinza são consideradas não reativas. Amostras com absorbância acima do limite superior da zona cinza são consideradas reativas. Quando o valor da absorbância da amostra estiver dentro da zona cinza, o resultado é inconclusivo. Segundo a portaria 153/2004 do Ministério da Saúde, para triagem de doença de Chagas em doadores, deverá ser realizado um teste imunoenzimático de alta sensibilidade. No caso de resultado reagente ou inconclusivo, o teste deverá ser repetido em duplicata e, se o resultado for reagente em um ou nos dois testes, deverá ser convocado o doador para a colheita de uma segunda amostra. Se esta amostra apresentar resultado reagente ou inconclusivo, o doador deverá ser encaminhado a um serviço de referência para diagnóstico desta possível enfermidade, pois é facultada à sorologia de bancos de sangue esta função.

Resultados

No período de março de 2006 a maio de 2008, o Laboratório de Sorologia da Ulbra-HI analisou o sangue de 36.720 doadores. Foram consideradas sorologicamente inaptas para doença de Chagas 150 doações (0,41% do total).

Quando separados por ano, os resultados foram os seguintes: no ano de 2006 (março a dezembro) foram analisadas 13.465 amostras; destas, 60 apresentaram sorologia não negativa (reagente ou inconclusiva) para doença de Chagas (0,45%); no ano de 2007 (janeiro a dezembro) analisaram-se 15.792 amostras e 58 apresentaram sorologia alterada para doença de Chagas (0,37%); já no ano de 2008 (janeiro a maio) foram analisadas 7.463 amostras e 32 apresentaram sorologia não negativa para doença de Chagas (0,43%).

Quando estratificadas por ano e banco de sangue de origem, as doações apresentaram o perfil que será descrito a seguir (Tabela 1).

2006 (março a dezembro)

• Banco de Sangue do Hospital Ulbra Independência (HI): neste período foram analisadas 3.360 amostras oriundas deste local. Destas, 13 apresentaram resultado sorológico não negativo para doença de Chagas, perfazendo um percentual de retenção de bolsas de sangue de 0,39%. Foram 11 resultados reagentes e dois inconclusivos.

• Banco de Sangue do Hospital de Tramandaí (HT): foram analisadas 1.327 bolsas de sangue, tendo este banco como origem, sendo que uma apresentou resultado não negativo, gerando um percentual de retenção de 0,07%. Este resultado era inconclusivo.

• Banco de Sangue de Novo Hamburgo (NH): analisaram-se 3.461 amostras vindas deste banco. Destas, 15 apresentaram reatividade para doença de Chagas, totalizando um percentual de retenção de 0,43%. Os 15 resultados foram reagentes.

• Banco de Sangue de Santa Cruz do Sul (SC): foram analisadas 3.301 bolsas de sangue, sendo que 14 apresentaram sorologia alterada para doença de Chagas, fornecendo um percentual de 0,42% de retenção. Destas, dez foram reagentes e quatro inconclusivas.

• Banco de Sangue de Canguçu (HC): neste período foram analisadas 994 amostras. Destas, 13 apresentaram reatividade para Chagas, gerando um percentual de 1,31%. Foram 11 resultados reagentes e dois inconclusivos.

• Banco de Sangue de Montenegro (HM): forneceu neste período 799 bolsas de sangue, sendo que quatro apresentaram resultado não negativo para doença de Chagas, perfazendo um percentual de 0,50% de retenção. Foram três resultados reagentes e um inconclusivo.

2007 (janeiro a dezembro)

• Banco de Sangue do Hospital Ulbra Independência: neste período foram analisadas 3.533 amostras oriundas deste local. Destas, sete apresentaram resultado sorológico não negativo para doença de Chagas, perfazendo um percentual de retenção de bolsas de sangue de 0,20%. Foram seis resultados reagentes e um inconclusivo.

• Banco de Sangue do Hospital de Tramandaí: foram analisadas 1.500 bolsas de sangue, tendo este banco como origem, sendo que seis apresentaram resultado não negativo, gerando um percentual de retenção de 0,4%. Foram cinco resultados reagentes e um inconclusivo.

• Banco de Sangue de Novo Hamburgo: analisaram-se 5.090 amostras vindas deste banco. Destas, 13 apresentaram reatividade para doença de Chagas, totalizando um percentual de retenção de 0,25%. Foram 11 amostras reagentes e duas inconclusivas.

• Banco de Sangue de Santa Cruz do Sul: foram analisadas 4.024 bolsas de sangue, sendo que 15 apresentaram sorologia alterada para doença de Chagas, fornecendo um percentual de 0,37% de retenção. Foram 12 amostras reagentes e três inconclusivas.

• Banco de Sangue de Canguçu: neste período foram analisadas 1.141 amostras. Destas, 16 apresentaram reatividade para Chagas, gerando um percentual de 1,40%. Foram 12 amostras reagentes e quatro inconclusivas.

• Banco de Sangue de Montenegro: forneceu neste período 456 bolsas de sangue, sendo que nenhuma apresentou reatividade para doença de Chagas.

2008 (janeiro a maio)

• Banco de Sangue do Hospital Ulbra Independência: neste período foram analisadas 1.560 amostras oriundas deste local. Destas, cinco apresentaram resultado sorológico não negativo para doença de Chagas, perfazendo um percentual de retenção de bolsas de sangue de 0,32%. Foram quatro amostras reagentes e uma inconclusiva.

• Banco de Sangue do Hospital de Tramandaí: entre as 753 amostras de bolsa recebidas deste local, nenhuma apresentou reatividade para doença de Chagas no período acima descrito.

• Banco de Sangue de Novo Hamburgo: neste período foram analisadas 2.658 amostras. Destas, 12 apresentaram reatividade para Chagas, gerando um percentual de 0,45%. Todas as amostras eram reagentes.

• Banco de Sangue de Santa Cruz do Sul: foram analisadas 1.810 bolsas de sangue, sendo que quatro apresentaram sorologia alterada para doença de Chagas, fornecendo um percentual de 0,22% de retenção. Todas as amostras eram reagentes.

• Banco de Sangue de Canguçu: neste período foram analisadas 490 amostras. Destas, oito apresentaram reatividade para Chagas, gerando um percentual de 1,63%. Foram seis amostras reagentes e duas inconclusivas.

• Banco de Sangue de Montenegro: forneceu neste período 126 bolsas de sangue, sendo que uma apresentou reatividade para doença de Chagas, gerando um percentual de retenção de 0,79%. Esta amostra era inconclusiva.

Discussão

Estima-se que haja cerca de 12 a 14 milhões de pessoas infectadas na América Latina.14 Houve notável esforço para se eliminar a transmissão domiciliar por Triatoma infestans. Com esses resultados e a redução da área onde é encontrado o Triatoma infestans, a Comissão Internacional de Especialistas constituída pela OPAS e pelos países do Cone Sul, com a finalidade de avaliar a situação epidemiológica de cada país, conferiu o certificado de interrupção da transmissão vetorial pelo T. infestans15 a dez estados brasileiros: São Paulo, Rio de Janeiro, Paraíba, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás, Minas Gerais, Pernambuco, Tocantins e Piauí. Os estados do Paraná e Rio Grande do Sul, onde os estudos estão sendo concluídos, serão certificados brevemente. No estado da Bahia, onde existem municípios ainda com infestação pelo T. infestans, vêm sendo intensificado esforços visando a eliminação deste vetor para os próximos anos. Os estados da Região Amazônica não estão incluídos no Plano de Eliminação do T. infestans, por ser considerada área indeme. Nos estados do Maranhão, Ceará, Rio Grande do Norte, Alagoas, Sergipe, Espírito Santo e Santa Catarina, apesar de pertencerem à área endêmica, não existe a espécie T. infestans. Dentre as áreas endêmicas mais destacadas encontram-se o estado de Santa Catarina e, no Rio Grande do Sul, a região de Pelotas. Recentemente ocorreram surtos de doença de Chagas em Santa Catarina com forma aguda e morte por ingestão de formas tripomastigotas dissolvidas em bebidas, como suco de cana e açaí, em que os insetos vetores, silvestres provavelmente, foram triturados durante o preparo ou suas fezes contaminaram o alimento, conforme divulgado amplamente na mídia.

Com a análise dos dados obtidos no presente trabalho, verifica-se que a retenção sorológica manteve-se estável no período, com uma taxa média de 0,41% do total. Dados da Anvisa, de 2002, mostram uma taxa de retenção de 0,85% no RS, 0,45% na região Sul e 0,61% no Brasil. Wendel7 relata retenção de bolsas de sangue por sorologia não negativa para doença de Chagas de 0,6% nos laboratórios de origem e 0,5% em um serviço de referência. A taxa encontrada de 0,41% de retenção é similar à encontrada na região Sul do país e no serviço de referência citado acima, indicando que a triagem realizada em nosso laboratório está de acordo com o observado em nosso país. Um dado interessante obtido com a pesquisa foi a observação de que a taxa de retenção para doença de Chagas nas bolsas oriundas do Hospital de Canguçu é de aproximadamente o dobro dos demais locais. Tal dado confirma que a região de Pelotas, onde está inserida a cidade de Canguçu, é realmente endêmica para doença de Chagas, conforme já mostrava um estudo realizado em 1970, indicando a endemia naquela região.9 Tal estudo apresentou uma prevalência sorológica para doença de Chagas em Canguçu de 23,7%.

Atualmente, os riscos de transmissão da DCT (Doença de Chagas Transfusional) no Brasil são mínimos, tendo sido estimados entre três e vinte ocorrências no contexto de mais de 4 milhões de transfusões anuais, segundo dados discutidos durante o Congresso da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical.16

Está em curso um novo inquérito nacional para indivíduos de 0 a 5 anos de idade, em estudo amostral de cerca de 150 mil brasileiros, contemplando todos os estados da Federação.17 Dados ainda não publicados indicam uma prevalência extremamente baixa, indicando reduzidíssimos graus de transmissão. Resultados preliminares de quase cem mil amostras revelaram apenas 21 casos positivos, ou seja, 0,021% de prevalência, havendo positividade em apenas seis estados até aqui (CE, PB, AL, BA, MG e RS). Um número expressivo de crianças soropositivas antes de 6 meses de vida negativou-se quando a reação foi repetida após os 7 meses, o que evidencia transferência passiva de anticorpos maternos, e também indica um muito baixo nível de transmissão congênita no Brasil (exceção, talvez, para o Rio Grande do Sul). Os resultados negativos para a Região Amazônica revelam, até aqui, ausência ou mínima incidência de transmissão na faixa etária examinada naquela área.

O Ministério da Saúde do Brasil recebeu, em 2006, a certificação Internacional da Transmissão da Doença de Chagas pelo Triatoma infestans, conferida pela Organização Pan-Americana da Saúde.18 Tal certificação não representa o controle efetivo da doença no Brasil, mas somente a eliminação (interrupção momentânea) da transmissão da doença especificamente pelo triatomíneo da espécie T. infestans.

Crê-se que, na próxima década, os percentuais de infecção chagásica entre doadores deverão estar próximos de zero.19 Para tanto, são necessários os esforços de todos os setores envolvidos na área, como vigilâncias sanitárias (nas três esferas de governo), bancos de sangue, laboratórios de sorologia, trabalhando em conjunto para erradicar esta doença e sua transmissão transfusional.

Agradecimentos

Os autores agradecem aos colaboradores do Laboratório de Sorologia Ulbra/HI, pelo trabalho de qualidade, aos bancos de sangue usuários dos nossos serviços, pela confiança e certeza de um trabalho bem conduzido, e às vigilâncias sanitárias do Município de Porto Alegre e do estado do Rio Grande do Sul, pelo auxílio na obtenção de dados estatísticos.

Recebido: 08/12/2008

Aceito após modificações: 20/12/2008

Laboratório de Sorologia, Complexo Hospitalar Ulbra, Hospital Independência – Porto Alegre-RS

Avaliação: Editor e dois revisores externos

Conflito de interesse: sem conflito de interesse

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  • Correspondência:

    Douglas Boni Fitarelli
    Rua Santana nº 313/204 – Santana
    90040-372 – Porto Alegre-RS – Brasil
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Set 2009
    • Data do Fascículo
      2009

    Histórico

    • Recebido
      08 Dez 2008
    • Aceito
      20 Dez 2008
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