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Protocolo clínico e diretrizes terapêuticas para uso de hidroxiureia na doença falciforme

Clinical protocol and therapeutic guidelines for the use of hydroxyurea in sickle cell disease

Resumos

Hidroxiureia (HU) constitui o avanço mais importante no tratamento de pacientes com doença falciforme (DF). Fortes evidências confirmam a eficácia da HU em pacientes adultos diminuindo os episódios de dor intensa, hospitalização, número de transfusões e síndrome torácica aguda. Embora a evidência da eficácia do tratamento com HU em crianças não seja tão forte, os recentes resultados são encorajadores. Os dados atuais em relação aos riscos a curto e longo prazos da terapia com HU em adultos são aceitáveis comparado aos riscos dos pacientes não tratados com HU. Neste artigo, apresentamos revisão detalhada sobre os principais aspectos quanto à eficácia, efetividade, toxicidade e barreiras ao uso de HU em pacientes com DF e propomos um protocolo clínico e diretrizes terapêuticas para o uso de HU em pacientes com DF.

Doença falciforme; hidroxiureia; protocolo clínico; diretrizes terapêuticas


Hydroxyurea (HU) is an important major advance in the treatment of sickle cell disease (SCD). Strong evidence supports the effectiveness of HU in adults; severe painful episodes, hospitalizations, number of blood transfusions, and acute chest syndrome are reduced. Although the evidence of its effectiveness in the treatment of children is not as strong, the emerging data is encouraging. Current data on the risks of both short- and long-term HU therapy in adults are acceptable when compared to the risks of untreated SCD. In this article, we present a detailed review of the main aspects of the efficacy, effectiveness, toxicity, and barriers to the use of HU for SCD and propose a clinical protocol and therapeutic guidelines for the use of HU in patients with SCD.

Sickle cell disease; hydroxyurea; clinical protocol; therapeutic guidelines


Protocolo clínico e diretrizes terapêuticas para uso de hidroxiureia na doença falciforme

Clinical protocol and therapeutic guidelines for the use of hydroxyurea in sickle cell disease

Rodolfo D. CançadoI; Clarisse LoboII; Ivan L. ÂnguloIII; Paulo I. C. AraújoIV; Joice A. JesusV

IMédico Hematologista, Professor Ajunto da Disciplina de Hematologia e Oncologia da F.C.M. da Santa Casa de São Paulo

IIMédica Hematologista, Diretora Geral do Hemorio – Rio de Janeiro-RJ

IIIAssessor médico da Fundação Hemocentro de Ribeirão Preto, Médico do Centro Regional de Hemoterapia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP

IVMédico Hematologista do Instituto de Puericultura e Pediatria Martagão Gesteira (IPPMG) da UFRJ – Rio de Janeiro-RJ

VMédica Pediatra sanitarista, coordenadora da Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doença Falciforme e outras Hemoglobinopatias do Ministério da Saúde do Brasil

Correspondência Correspondência: Rodolfo Delfini Cançado Rua Marques de Itu, 579 – 3º andar 01223-001 – São Paulo-SP – Brasil E-mail: rdcan@uol.com.br

RESUMO

Hidroxiureia (HU) constitui o avanço mais importante no tratamento de pacientes com doença falciforme (DF). Fortes evidências confirmam a eficácia da HU em pacientes adultos diminuindo os episódios de dor intensa, hospitalização, número de transfusões e síndrome torácica aguda. Embora a evidência da eficácia do tratamento com HU em crianças não seja tão forte, os recentes resultados são encorajadores. Os dados atuais em relação aos riscos a curto e longo prazos da terapia com HU em adultos são aceitáveis comparado aos riscos dos pacientes não tratados com HU. Neste artigo, apresentamos revisão detalhada sobre os principais aspectos quanto à eficácia, efetividade, toxicidade e barreiras ao uso de HU em pacientes com DF e propomos um protocolo clínico e diretrizes terapêuticas para o uso de HU em pacientes com DF. Rev. Bras. Hematol. Hemoter.

Palavras-chave: Doença falciforme; hidroxiureia; protocolo clínico; diretrizes terapêuticas.

ABSTRACT

Hydroxyurea (HU) is an important major advance in the treatment of sickle cell disease (SCD). Strong evidence supports the effectiveness of HU in adults; severe painful episodes, hospitalizations, number of blood transfusions, and acute chest syndrome are reduced. Although the evidence of its effectiveness in the treatment of children is not as strong, the emerging data is encouraging. Current data on the risks of both short- and long-term HU therapy in adults are acceptable when compared to the risks of untreated SCD. In this article, we present a detailed review of the main aspects of the efficacy, effectiveness, toxicity, and barriers to the use of HU for SCD and propose a clinical protocol and therapeutic guidelines for the use of HU in patients with SCD. Rev. Bras. Hematol. Hemoter.

Key words: Sickle cell disease; hydroxyurea; clinical protocol; therapeutic guidelines.

Introdução

Situação atual da doença falciforme

Anemia falciforme (AF) é a doença hereditária monogênica mais comum do Brasil, ocorrendo predominantemente entre afrodescendentes. Distribui-se heterogeneamente, sendo mais frequente nos estados Norte e Nordeste. Estima-se que cerca de 4% da população brasileira e 6% a 10% dos afrodescendentes são portadores do traço falciforme (Hb AS) e que, anualmente, nascem aproximadamente 3 mil crianças portadoras de doença falciforme (DF), número este que corresponde ao nascimento de uma criança doente para cada mil recém-nascidos vivos. Atualmente, estima-se que tenhamos 20 a 30 mil brasileiros portadores da DF.1,2

O evento fisiopatológico básico da AF é a mutação de ponto (GAG por GTC) no gene da globina beta da hemoglobina (Hb), originando a formação da Hb S, que, em situação de desoxigenação, sofre polimerização de suas moléculas, com falcização das hemácias, ocasionando encurtamento da vida média dos glóbulos vermelhos (anemia hemolítica crônica), eventos repetidos de vaso-oclusão, episódios de dor e lesão crônica e progressiva de órgãos, resultando em piora da qualidade de vida e aumento da taxa de mortalidade.3

Até o momento presente, a hidroxiureia (HU) foi o único medicamento que, efetivamente, teve impacto na melhora da qualidade de vida dos pacientes com DF, reduzindo o número de crises vaso-oclusivas, número de hospitalização, tempo de internação, ocorrência de STA e, possivelmente, de eventos neurológicos agudos, além de demonstrar, de maneira contundente, redução da taxa de mortalidade quando comparada à mesma taxa no grupo de pacientes sem HU.4,5

Hidroxiureia (HU)

A HU foi sintetizada, pela primeira vez, na Alemanha, por Dressler e Stein, em 1869.6 Somente um século depois, mais especificamente em 1967, este medicamento foi aprovado pelo FDA norte-americano para tratamento de doenças neoplásicas e, nos anos subsequentes, para o tratamento de pacientes com leucemia mieloide crônica, psoríase e policitemia vera.7

A observação de que valores aumentados de Hb fetal (Hb F) previnem várias complicações da DF conduziu os pesquisadores à busca por fármacos que estimulassem a síntese de cadeias globínicas gama e aumentassem a síntese intraeritrocitária de Hb F.7

A partir de fevereiro de 1998, a HU passou a fazer parte do arsenal terapêutico para pacientes com DF e se tornou, nos anos subsequentes, o primeiro medicamento que comprovadamente previne complicações clínicas, melhora a qualidade de vida e aumenta a sobrevida de pacientes com DF.8-10

Além da vantagem de administração oral, HU é um medicamento seguro, de fácil controle; apresenta poucos efeitos adversos e efeito mielossupressor facilmente detectável e reversível após a suspensão do uso da mesma. Diante da eficácia e efetividade da HU na DF, vários autores têm se manifestado a favor do uso deste medicamento, salientando que os riscos relacionados às complicações secundárias à DF são muito mais elevados e graves que os riscos relacionados aos efeitos adversos da HU.10

O mecanismo de ação da HU não é totalmente conhecido. Ela promove bloqueio da síntese do ácido desoxirribonucleico (DNA) pela inibição da ribonucleotídeo redutase, mantendo as células em fase S do ciclo celular.11

A HU tem vários efeitos diretos no mecanismo fisiopatológico da DF atuando não só no aumento da síntese da Hb F, o que reduz a polimerização intraeritrocitária da Hb S em condições de desoxigenação, como também promove diminuição do número dos neutrófilos, hidratação eritrocitária, redução da expressão de moléculas de adesão dos eritrócitos, aumento da síntese e biodisponibilidade de óxido nítrico pela ativação da guanilil ciclase e consequente aumento da GMP cíclico intraeritrocitária e endotelial. Além do aumento da concentração de Hb F, estes mecanismos conferem benefícios como: supressão da eritropoese endógena, redução da hemólise, diminuição da aderência dos eritrócitos, leucócitos e plaquetas ao endotélio vascular (HU age sobre a membrana dos eritrócitos e plaquetas, reduzindo a exposição da fosfatidilserina, principal determinante da adesão eritrocitária alterada na AF, melhora da reologia com diminuição da viscosidade sanguínea e vasodilatação, contribuindo para a diminuição dos fenômenos inflamatórios e vaso-oclusivos.12-21

Embora estes dados correspondam à eficácia da HU em adultos, os poucos estudos publicados em crianças demonstram eficácia, tolerância e segurança semelhantes aos encontrados no adulto.21-26 Dois importantes estudos, Baby Hug27 envolvendo 200 crianças com DF, randomizadas em HU versus observação, com avaliação da função esplênica e renal; e o Switch,28 envolvendo 130 crianças pós-acidente vascular cerebral, em transfusão regular, randomizadas em HU e flebotomia versus manutenção das transfusões e deferasirox, com avaliação das funções neurológica e cognitiva, trarão contribuição importante do uso de HU em crianças.

A HU administrada por via oral é rapidamente absorvida atingindo nível plasmático máximo entre 20-30 minutos (respondedores rápidos) e 60 minutos (respondedores lentos) após sua administração e meia vida plasmática de três a quatro horas, é metabolizada no fígado e excretada por via renal (80%).29-31 Recomenda-se dose inicial de 15 mg/kg/dia, uma única vez ao dia, e monitoramento da contagem do número de leucócitos e plaquetas (hemograma completo) a cada duas semanas. Esta dose inicial pode ser aumentada de 5 mg/kg/dia a cada oito a 12 semanas, sendo que o objetivo é alcançar a dose máxima tolerada (DMT), isto é, a maior dose capaz de promover melhora o mais proeminente possível do curso clínico e laboratorial da doença, sem a ocorrência de toxicidade hematológica, hepática (definida por aumento de duas vezes o valor referencial máximo das transaminases), renal (elevação da ureia e creatinina) ou gastrointestinal. A DMT não deve ser superior a 35 mg/kg/dia. 29-31

Em adultos portadores de AF, a HU é potencialmente mielossupressora, sendo este efeito dose-dependente. Estudos experimentais em ratos e cães demonstraram a ocorrência de hipoplasia medular de intensidade leve a moderada com o uso de 34 a 60 mg/kg/dia e hipoplasia grave e, por vezes, fatal, com doses superiores a 140 mg/kg/dia. A recuperação medular, nos casos de hipoplasia leve a moderada, é rápida após a suspensão da droga. Também observou-se que a trombocitopenia ocorre mais raramente e é sempre precedida de anemia e leucopenia.

Além da redução do número de crises vaso-oclusivas, o uso crônico de HU teve impacto positivo na qualidade de sobrevida dos pacientes com AF, com redução do número de hospitalização, tempo de internação, menor ocorrência de síndrome torácica aguda e menor necessidade de transfusão de hemácias. Estudos mais recentes têm indicado que o uso da HU tem impacto na redução da mortalidade de até 40% desses pacientes.29-31

No Brasil, a portaria de nº 872 do Ministério da Saúde, de 6 de novembro de 2002, aprovou o uso de HU para pacientes com DF. Nesta portaria, a dispensa desse medicamento passou a ser de incumbência das Secretarias de Saúde dos Estados da União e Distrito Federal.32

Apesar dos vários benefícios anteriormente enumerados com o uso continuado da HU, este medicamento ainda é subutilizado em crianças, mas sobretudo nos adolescentes e adultos com DF. Esta constatação foi feita em pacientes norte-americanos com DF e, com grande certeza, também reflete a nossa realidade brasileira. Nos EUA, apenas 10% a 20% dos pacientes com DF são acompanhados em centros de excelência e, destes, menos da metade recebe HU. Estima-se que, fora dos centros de referência, o uso de HU seja ainda menor.29,30

O item segurança do uso de HU a longo prazo permanece como questão importante, sobretudo quanto à genotoxicidade e lesão celular, e impacto na função de diferentes órgãos (baço, rins, cérebro, pulmões). Desta forma, a realização de novos estudos clínicos são fundamentais e permitirão maior aceitação e uso da HU pelos pacientes e comunidade médica.29-31

Protocolo clínico e diretrizes terapêuticas para uso de hidroxiureia na doença falciforme – versão 2009

Critérios de inclusão

Poderão ser incluídos nesse Protocolo de Tratamento pacientes que preencham todos os critérios abaixo:

• Diagnóstico laboratorial de doença falciforme (HbSS, S/β Talassemia, HbSC, Hb SD)

• Idade superior a 3 anos

• Condições de comparecer às consultas e realizar exames laboratoriais periódicos

• Teste de gravidez (β-HCG sérico) negativo para mulheres sexualmente ativas, lembrando que a anticoncepção é obrigatória enquanto a paciente estiver fazendo uso de HU.

E pelo menos um dos seguintes critérios nos últimos 12 meses:

Critérios clínicos

• Três ou mais episódios de crises de dor com necessidade de atendimento médico hospitalar.

• Síndrome torácica aguda (definida como dor torácica aguda com infiltrado pulmonar "novo", febre (temperatura > 38,5ºC), taquipneia, tosse, sibilos pulmonares): dois ou mais eventos (leve a moderado)/ano ou um evento grave.

• Hipoxemia crônica: saturação de oxigênio persistentemente menor que 94%.

• Déficit pôndero-estatural: peso e crescimento observados menores que 5% a 10% do esperado para a idade.

• Outras situações em que haja comprovação de lesão crônica de órgão (priapismo, necrose óssea, retinopatia proliferativa).

Critérios laboratoriais

• Concentração de Hb persistentemente menor que 7 g/dL.

• Concentração de Hb fetal < 8% após 2 anos de idade

• Contagem de leucócitos 20 x 109/L na ausência de infecção.

• Duas medidas consecutivas do fluxo das artérias cerebrais média ou anterior por Doppler tanscraniano com velocidade entre 170 e 199 cm/s (inclui pacientes com história prévia de isquemia cerebral transitória e/ou acidente vascular cerebral que recusam tratamento transfusional regular ou que apresentam aloimunização com presença de múltiplos alo-anticorpos).

• Desidrogenase láctica maior que duas vezes e três vezes o valor superior de normalidade para crianças e adolescentes e adultos, respectivamente.

Situação especial

Crianças com menos de 3 anos de idade com pelo menos um dos seguintes fatores:

• dactilite (antes do primeiro ano de vida).

• concentração de Hb persistentemente menor que 7 g/dL.

• contagem de leucócitos maior que 20 x 109/L

Critérios de exclusão

Não deverão ser incluídos neste Protocolo de Tratamento pacientes com:

• Hipersensibilidade à HU.

• Presença de pelo menos um dos seguintes ítens relacionados à disfunção da medula óssea: neutrófilos < 2.5 x 109/L, plaquetas < 95 x 109/L, concentração de Hb < 4,5 g/dL ou contagem de reticulócitos < 95 x 109/L.

• Gestação (não há estudos adequados em humanos e há evidência de teratogênese em animais).

• Infecção pelo HIV.

Tratamento

Esquema de administração

A HU está disponível em cápsulas de gel sólido contendo 500 mg do princípio ativo.

Recomenda-se dose inicial de 15 mg/kg/dia, uma única vez ao dia, e monitoramento da contagem do número de leucócitos e plaquetas (hemograma completo) a cada duas semanas. Deve-se considerar o peso real ou ideal, o que for menor. Para crianças, recomenda-se dissolver a cápsula de 500 mg de HU em água destilada, obtendo a concentração de 50 mg/mL, o que facilita a administração da dose correta por kilograma de peso.33

Desde que as contagens celulares estejam dentro dos valores considerados aceitáveis, ou seja, leucócitos > 2.5 x 109/L, plaquetas > 95 x 109/L , concentração de Hb > 5,3 g/dL, ou reticulócitos > 95 x 109/L , se a concentração de Hb for menor que 9 g/dL; esta dose inicial pode ser aumentada de 5 mg/kg/dia a cada 8 a 12 semanas. O objetivo é alcançar a dose máxima tolerada (DMT), isto é, a maior dose capaz de promover melhora mais proeminente possível do curso clínico e laboratorial da doença sem a ocorrência de toxicidade hematológica, hepática (definida por aumento de duas vezes o valor referencial máximo das transaminases), renal (elevação da ureia e creatinina) ou gastrointestinal. A DMT não deve ser superior a 35 mg/kg/dia. 29-31

Uma vez detectada toxicidade hematológica, ou seja, leucócitos < 2.0 x 109/L, plaquetas < 80 x 109/L, concentração de Hb menor que 4,5 g/dL, ou reticulócitos < 80 x 109/L com Hb menor que 9 g/dL, isto é, contagem de reticulócitos corrigida para o valor de Hb; a HU deve ser descontinuada até a recuperação hematológica e, a seguir, reiniciada com dose 2,5 mg/kg menor que a dose que o paciente estava utilizando quando apresentou a intercorrência, seguindo os mesmos critérios de controle até a dose máxima tolerada para cada específico paciente, que pode ser de 20, 25 ou 35 mg/kg/dia.

Duração do tratamento

O tratamento deve ser de, pelo menos, dois anos e mantido por tempo indeterminado de acordo com a resposta laboratorial e evolução clínica do paciente, exceto no período gestacional e puerperal.

É importante lembrar que cerca de 25% dos pacientes não apresentam melhora com HU e, portanto, nestes casos esse tratamento deve ser descontinuado.

Benefícios esperados

Diminuição dos episódios de dor, que podem até mesmo desaparecer; aumento da produção de Hb fetal; aumento, mesmo que discreto, da concentração total da Hb; diminuição dos episódios de síndrome torácica aguda, do número de hospitalizações, do número de transfusões sanguíneas; regressão ou estabilização de danos em órgãos ou tecidos (baço, rins, cérebro, coração, pulmões), melhora do bem-estar e da qualidade de vida e maior sobrevida.

Aumento da Hb fetal e macrocitose são parâmetros laboratoriais úteis na análise de aderência do paciente ao tratamento.

Monitorização laboratorial

Realizar antes de iniciar o tratamento:

• Hemograma com contagem de plaquetas.

• Contagem de reticulócitos.

• Eletroforese de Hb com dosagem de Hb fetal.

• Sorologias: hepatite B e C e HIV.

• Determinação do tempo de protrombina (TP) e dosagem de transaminases (AST, ALT), fosfatase alcalina, gama-GT.

• Determinação do clearance de creatinina.

• Dosagem de ureia, creatinina, sódio, potássio e ácido úrico.

• Dosagem de bilirrubina.

• Dosagem de desidrogenase láctica.

• Dosagem de ferritina.

• Teste de gravidez em mulheres (β-HCG sérico). Devem ser reiterados os riscos em caso de gravidez e as orientações para o uso de métodos contraceptivos durante todo o tratamento.

Hemograma completo e contagem de plaquetas a cada duas semanas até obtenção da dose máxima tolerada. Com relação aos demais exames, estes deverão ser realizados mensalmente nos quatro primeiros meses, a cada três meses nos doze meses subsequentes e a cada três a seis meses nos anos subsequentes, ou de acordo com a necessidade de cada paciente.

Cuidados e precauções, situações especiais

Devido aos possíveis efeitos adversos da droga, a relação entre risco e o benefício deve ser cuidadosamente avaliada nos seguintes casos:

• Amamentação: sabe-se que o fármaco é excretado pelo leite. Não há estudos suficientes para determinar seus efeitos sobre o lactente. Seu uso deve ser evitado ou descontinuado durante a amamentação.

• Uricosúria: o uso de HU pode aumentar os níveis séricos de ácido úrico. Em pacientes com níveis basais acima do limite normal, estes valores devem ser monitorados mensalmente.

• Ácido fólico: o uso de HU produz macrocitose, dificultando o reconhecimento da deficiência de ácido fólico. Desta forma, é recomendado o emprego profilático concomitante de 5 mg/dia de ácido fólico, três vezes por semana.

• Úlcera isquêmica é um possível efeito adverso do uso crônico de HU. Pacientes com história prévia ou atual de úlcera isquêmica, não há contraindicação formal do uso de HU; entretanto, no aparecimento de úlcera isquêmica em pacientes sem história anterior desta complicação, a suspensão da HU deve ser considerada.34

• Interações medicamentosas: não há estudos adequados sobre interação entre HU e outros medicamentos. Portanto, o uso concomitante de outros fármacos, principalmente os que também possam produzir depressão da medula óssea, deve ser cuidadosamente monitorizado.

• Em pacientes com sorologia positiva para HIV, o uso de HU aumenta o risco de neuropatia periférica, pancreatite e insuficiência hepática, principalmente quando associados a antirretrovirais, como didanosina e estavudina. Portanto, nestes casos, a HU deverá ser suspensa e o seu uso contraindicado.

• Pessoas com sorologia positiva para hepatite B e C poderão fazer uso de HU desde que monitorados mensalmente com provas de função hepática.

• Insuficiência renal: embora poucos estudos avaliaram o uso de HU em pacientes com insuficiência renal, recomenda-se o ajuste de dose conforme o valor de depuração da creatinina: 10-50 mL/min, administrar 50% da dose; <10 mL/min, administrar 20% da dose. É recomendável a avaliação em conjunto com o nefrologista. Pacientes em hemodiálise devem receber HU após o procedimento. É recomendável a avaliação em conjunto com o nefrologista.

• Não há dados para orientação do ajuste de dose em pacientes com insuficiência hepática.

Efeitos adversos relacionados ao uso de HU

É importante observar o aparecimento de possíveis efeitos adversos, tais como:

• Neurológico: letargia, cefaleia, tonturas, desorientação e alucinações (raras).

• Gastrintestinal: estomatite, anorexia, náuseas, vômitos, diarreia e constipação.

• Dermatológico: erupção máculo-papular, eritema facial e periférico, alopecia, hiperpigmentação da pele e das unhas, pele seca, ulceração da pele ou agravamento de úlcera já existente.

• Renal: elevação dos níveis séricos de ureia e creatinina.

• Hepático: elevação das aminotransferases (ALT, AST).

• Reprodutivo: oligospermia, azoospermia.

• Mielotoxicidade.

• Efeito teratogênico (confirmado apenas em animais).

• Hiperesplenismo (em crianças).

• Outros: edema, febre, calafrios, mal-estar, astenia.

Qualquer efeito adverso (incluindo alteração laboratorial) deve ser valorizado. No caso de EA de intensidade leve, HU pode ser mantida desde que o paciente seja reavaliado regularmente pelo especialista.

Na vigência de EA moderado ou grave, a administração de HU deve ser suspensa até seu desaparecimento ou normalização laboratorial. A possível reintrodução de HU dependerá do EA e esta conduta deverá ser tomada conjuntamente entre médico e paciente, e individualizada caso a caso.

Causas de falha do tratamento com HU

• má aderência ao tratamento.

• reserva medular inadequada ou insuficiente.

• fatores genéticos associados que possam interferir na resposta à HU (farmacogenômica).

Centros de referência

Conforme já definido na Portaria GM/MS nº 822,35 de 06 de junho de 2001, os serviços de referência em triagem neonatal são os responsáveis pela realização da triagem de hemoglobinopatias de todo recém-nascido no território brasileiro. Todos os demais terão exame de eletroforese de hemoglobina, disponibilizado nas unidades de atenção básica de saúde. O tratamento e acompanhamento dos pacientes com DF deverão ser realizados pelos serviços de referência, que podem ser os hemocentros ou outro centro de atendimento (universitário, hospitalar) que ofereça assistência especializada e integral, e promova prevenção, diagnóstico e tratamento ambulatorial multidisciplinar, assim como tratamento hospitalar, incluindo serviço de emergência, unidade de terapia intensiva e realização de cirurgias eletivas.

Consentimento informado

É obrigatório que o paciente e/ou seu responsável legal estejam cientes dos potenciais riscos e efeitos colaterais relacionados ao uso da HU preconizado neste Protocolo. Para tanto, o consentimento de participação do protocolo deverá ser formalizado por meio da assinatura de Termo de Consentimento Informado.

Recebido: 24/03/2009

Aceito após modificações: 01/07/2009

Disciplina de Hematologia e Oncologia da F. C. M. da Santa Casa de São Paulo – São Paulo-SP.

Avaliação: Editor e dois revisores externos

Conflito de interesse: sem conflito de interesse

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  • Correspondência:

    Rodolfo Delfini Cançado
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Out 2009
    • Data do Fascículo
      2009
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