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A associação anemia falciforme e hemoglobina fetal

The association: sickle cell disease and fetal hemoglobin

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A associação anemia falciforme e hemoglobina fetal

The association: sickle cell disease and fetal hemoglobin

Sandra F. M. Gualandro

Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, Disciplina de Hematologia e Hemoterapia

Correspondência Correspondência: Sandra Fátima Menosi Gualandro Rua Barão de Boacaina, 112 apto 21 - Higienópolis 01241-02 - São Paulo, SP - Brasil E-mail: sandrafmg@uol.com.br

A anemia falciforme (AF) foi a primeira doença monogênica humana caracterizada a nível molecular. Resulta de uma mutação no gene da β-globina (HBB) que leva à substituição de ácido glutâmico por valina na posição 6 da cadeia da hemoglobina. As manifestações clínicas decorrem da tendência da hemoglobina anormal (HbS) se polimerizar no estado desoxigenado, deformando as células vermelhas, que assumem a característica forma de foice.1 Os eritrócitos com alta concentração de HbS sofrem perda da deformabilidade, com obstrução vascular e isquemia, levando a crises dolorosas, síndrome torácica aguda, asplenia funcional e AVC; sofrem lesão da membrana com hemólise crônica extravascular e intravascular, esta última contribuindo para a redução da disponibilidade de óxido nítrico, aumento do tônus vascular e hipertensão arterial pulmonar; e, finalmente, sofrem anormalidades da superfície celular com aderência aumentada ao endotélio vascular e lesão endotelial, um processo que aumenta a vaso-oclusão aguda e leva à vasculopatia proliferativa envolvendo leucócitos, plaquetas, células musculares lisas, citocinas, fatores de crescimento e proteínas da coagulação.2 A AF tem sido vista, atualmente, no contexto de dois subfenótipos que se superpõem: um relacionado à hemólise, disfunção endotelial e vasculopatia proliferativa e outro relacionado à viscosidade-vaso-oclusão e falcização. No primeiro grupo se encontram a hipertensão pulmonar, o priapismo, a úlcera de perna e o AVC, e no segundo, a crise vaso-oclusiva, a síndrome torácica aguda e a osteonecrose.3

Embora todos os pacientes com anemia falciforme apresentem o mesmo defeito molecular, existe considerável variabilidade fenotípica entre eles, havendo casos de extrema gravidade, com morte precoce na infância e casos com poucas complicações e perspectiva de vida próxima ao normal.1

A diversidade clínica e a possibilidade de instituir medidas distintas de tratamento a estes pacientes têm levado à busca de fatores preditivos e de possíveis modificadores da evolução clínica da doença. Numerosos fatores, certamente, modulam a gravidade clínica da AF. Entre os moduladores genéticos mais conhecidos estão a coexistência com β-talassemia e a concentração de hemoglobina fetal.

A HbF é considerada o mais potente modificador da doença e tem sido o modulador genético mais amplamente estudado na AF. Excluída do polímero, ela age diminuindo a polimerização da desoxiHbS.4

Nesta edição, o artigo de Silva e cols.5 ressalta a importância dos níveis de HbF na evolução clínica da AF e estuda um grupo de pacientes residentes em Fortaleza, Ceará, encontrando menor número de crises vaso-oclusivas e menor prevalência de úlceras de perna em pacientes com maior concentração de HbF.

Elucidar a relação entre anemia falciforme e concentração de HbF é um desafio que se iniciou com a observação da sua relação com características clínicas, culminando com estudos genéticos complexos.

A utilidade de usar a frequência de crises vaso-oclusivas como medida de morbidade e indicador de curso mais grave da doença foi demonstrada por Platt e cols em um estudo colaborativo, multicêntrico, prospectivo englobando 3.578 pacientes. Este estudo mostrou que maior frequência de crises dolorosas se relacionava com hematócrito mais alto e com níveis de HbF mais baixos e que o aumento, mesmo pequeno, na taxa de HbF poderia diminuir o número de crises dolorosas. Estes resultados foram encorajadores para os estudos com hidroxiureia e outros indutores da síntese de HbF.6 Em um estudo subsequente, Platt e cols mostraram também que níveis mais altos de HbF eram associados com maior sobrevida.7

A maioria dos indivíduos normais produz <0,6% de HbF, embora uma pequena proporção de pessoas produza até 5%.1 Entre os pacientes com AF, a concentração de HbF varia de 0,5% a 30%, com uma média de aproximadamente 8%.4 O grau de persistência de HbF varia amplamente entre os adultos e esta variação é geneticamente controlada. Enquanto a persistência de produção de níveis altos de HbF não tem consequências clínicas em indivíduos saudáveis, pode conferir grandes benefícios clínicos a pacientes com doenças falciformes e β-talassemias. As bases moleculares para a persistência de HbF em adultos são extremamente heterogêneas. A identificação dos mecanismos de modulação da HbF envolve não somente a identificação das variantes causais e dos genes cuja expressão elas alteram, mas também das consequências funcionais subsequentes. A definição das variantes funcionalmente implicadas representa um formidável desafio.8 No contexto da anemia falciforme, o gene para HbS é encontrado no background genético de quatro haplótipos do agrupamento gênico da β-globina, que contém elementos regulatórios que afetam a expressão do gene da γ-globina (HGB). Nestes casos, o SNP (single nucleotide polymorphism) Gγ -158 C-T presente nos haplótipos Senegal e Árabe-Indiano está associado a maior produção de células F, maior quantidade de HbF e quadro clínico mais ameno.4 A produção de células F é também regulada por outros loci, chamados de QTL (quantitative trait loci). Embora os genes chave associados com estes QTL não sejam ainda conhecidos, dois mecanismos de ação parecem plausíveis: efeito direto dos produtos do gene (ativação da transcrição ou inibição da repressão do HGB), aumentando a quantidade de HbF por célula, e alteração da cinética de maturação e diferenciação eritroide, mimetizando a situação da eritropoese de stress com liberação acelerada de maior número de progenitores eritroides que produzem predominantemente HbF (células F) e consequente aumento da HbF.8 A compreensão dos mecanismos pelos quais os QTL aumentam a HbF pode propiciar novas abordagens terapêuticas. Outro objetivo muito importante da análise dos QTL é determinar seu valor preditivo na evolução clínica.1

Um estudo recente realizado por Lettre e cols. envolvendo três coortes de pacientes com doença falciforme, sendo uma delas de pacientes brasileiros, confirmou que os mesmos loci que controlam a produção de células F e HbF em indivíduos normais são também importantes determinantes de HbF em pacientes com doença falciforme. Foram identificados cinco polimorfismos nesses loci, associados aos níveis de HbF. Estes SNPs se correlacionaram com a frequência de crises dolorosas e, em combinação, pareceram fornecer informação adicional com relação à simples medida de HbF basal.9

Embora os níveis basais de HbF se correlacionem com a gravidade clínica das doenças falciformes, esta relação não é simples. Alguns pacientes com níveis elevados de HbF apresentam complicações graves, enquanto outros, com níveis baixos, apresentam curso clínico favorável.1

A conclusão de Silva e cols. de que a HbF é um fator importante para o prognóstico, mas que não deve ser a única ferramenta diagnóstica para prever o quadro clínico destes pacientes, é muito apropriada, sendo de consenso geral.

É importante lembrar que níveis elevados de HbF diminuem a incidência de alguns subfenótipos da doença falciforme, como osteonecrose, síndrome torácica aguda e crises dolorosas, mas não têm sido associados à proteção contra hipertensão pulmonar, AVC ou priapismo. Os principais benefícios clínicos da HbF são sobre o fenótipo viscosidade-vaso-oclusão, potencialmente devido ao efeito antifalcizante da HbF.3

Em adição, deve-se considerar as interações de muitos outros modificadores genéticos com a HbF, além dos moduladores adicionais da doença. Estudos de associação fenótipo-genótipo, onde SNPs em genes candidatos são ligados a fenótipos particulares, têm fornecido algumas informações. SNPs em vários genes da superfamília TGF-beta/BMP, e alguns outros genes ligados à função endotelial e à biologia do óxido nítrico são associados com os subfenótipos de AVC, osteonecrose, priapismo, úlcera de perna e hipertensão pulmonar.10 Estudos mais amplos deverão ajudar a confirmar estas observações e também a encontrar moduladores genéticos insuspeitos até agora. Estudos de associação genética, além de ter valor prognóstico imediato, podem ajudar a identificar novas vias fisiopatológicas suscetíveis de modulação, oferecendo novas perspectivas terapêuticas.10

Por fim, os fatores ambientais, por vezes relacionados ao nível socioeconômico e cultural, também interferem no curso clínico da doença.

Assim, a anemia falciforme que parecia ser apenas um modelo resolvido de doença monogênica mendeliana, tem revelado uma incrível complexidade genética, sendo produto da interação de múltiplos fatores, genéticos e ambientais, todos contribuindo para a sua incrível e amplamente conhecida diversidade clínica.níveis de HbF mais baixos e que o aumento, mesmo pequeno, na taxa de HbF poderia diminuir o número de crises dolorosas. Estes resultados foram encorajadores para os estudos com hidroxiureia e outros indutores da síntese de HbF.6 Em um estudo subsequente, Platt e cols mostraram também que níveis mais altos de HbF eram associados com maior sobrevida.7

A maioria dos indivíduos normais produz <0,6% de HbF, embora uma pequena proporção de pessoas produza até 5%.1 Entre os pacientes com AF, a concentração de HbF varia de 0,5% a 30%, com uma média de aproximadamente 8%.4 O grau

Recebido: 03/11/2009

Aceito: 04/11/2009

Avaliação: O tema abordado foi sugerido e avaliado pelo editor.

  • 1. Higgs DR, Wood WG. Genetic complexity in sickle cell disease. Proc Natl Acad Sci USA. 2008;105(33):11595-6
  • 2. Platt OS. Hydroxyurea for the treatment of sickle cell anemia. N Engl J Med. 2008;358(13):1362-9.
  • 3. Kato GJ, Gladwin MT, Steinberg MH. Deconstructing sickle cell disease: Reappraisal of the role of hemolysis in the development of clinical subphenotypes. Blood Rev. 2007;21(1):37-47.
  • 4. Steinberg MH. Predicting clinical severity. Br J Haematol. 2005; 129:465-81.
  • 5. Silva LB, Gonçalves RP, Martins MF. Estudo da correlação entre os níveis de hemoglobina fetal e o prgnóstico dos pacientes com anemia falciforme. Rev. Bras. Hematol. Hemoter. 2009:31(6): 417-20.
  • 6. Platt OS, Thorington BD, Brambilla DJ, Milner PF, Rosse WF, Vichinsky E, et al. Pain in sickle cell disease. Rates and risk factors.N Engl J Med. 1991;325(24):11-6.
  • 7. Platt OS, Brambilla DJ, Rosse WF, Milner PF, Castro O, Steinberg MH, et al Mortality in sickle cell disease - Life expectancy and risk factors for early death. N Engl J Med. 1994;330(23):1639-44.
  • 8. Thein SL, Menzel S. Discovering the genetics underlying foetal haemoglobin production in adults. Br J Haematol. 2009;145(4): 455-67.
  • 9. Lettre G, Sankaran VG, Bezerra MAC, Araújo AS, Uda M, Sanna S, et al. DNA polymorphisms at the BCL11A, HBS1L-MYB, and ß-globin loci associate with fetal hemoglobin levels and pain crises in sickle cell disease. Proc Natl Acad Sci USA. 2008; 105:11869-74.
  • 10. Steinberg MH. Genetic etiologies for phenotypic diversity in sickle cell anemia. Scientific World Journal. 2009; 9:46-67.
  • Correspondência:
    Sandra Fátima Menosi Gualandro
    Rua Barão de Boacaina, 112 apto 21 - Higienópolis
    01241-02 - São Paulo, SP - Brasil
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Fev 2010
    • Data do Fascículo
      2009
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