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A ética médica, a bioética e os procedimentos com células-tronco hematopoéticas

Medical ethics, bioethics and procedures with hematopoietic stem cells

Resumos

A terapia celular vem ganhando cada vez mais espaço nos procedimentos médicos e com resultados satisfatórios, cumprindo, desta forma, com eficiência, a missão confiada aos especialistas em hematologia. Os preceitos morais, aliados às condutas éticas profissionais, cobram novas posturas. A evolução da biotecnologia e da biotecnociência carrega uma dose considerável do saber humano, mas exige, em contrapartida, um desenvolvimento e aperfeiçoamento do pensamento ético, que reúne a aprovação social, na leitura bioética. Mais do que nunca, a conduta médica fica atrelada a uma análise e consideração do paciente ou seu responsável. O objetivo do presente trabalho é justamente buscar as raízes determinantes da ética, desde seu nascedouro, sua transformação no pensamento filosófico, sua adequação no campo profissional, com amaterialização do Código de Ética Médica e o rompimento da nova ciência da vida, batizada por bioética. O entrelaçamento da ética-bioética nas condutas médicas da importante área da hematologia traça um horizonte benéfico, buscando prestigiar a humanidade, preservando sua vocação saudável e, principalmente, sua dignidade. Trata-se, na realidade, de um esforço para reascender princípios éticos pouco valorizados, redimensioná-los no Código de Ética Médica, estatuto que merece uma releitura, e abrir espaço para o pensamento bioético. A bioética surge como ciência de mão dupla, pois envolve o médico, o pesquisador, o paciente e o voluntário. Os objetivos da intervenção médica deverão ser explicitados, discutidos e aprovados pelos interessados. O médico hematologista terá que se avistar com seu paciente, exibir-lhe o quadro clínico, apontar as opções de intervenção e aguardar o seu "placet". Principalmente em área de evolução constante, em razão de uma série infindável de pesquisas desenvolvidas na área da terapia celular. A proposta, portanto, resumidamente, visa encartar o profissional no campo seguro da ética e do pensamento bioético. O comprometimento médico assume uma postura social direcionada para a melhor realização do ser humano, ofertando a ele não só o tratamento adequado, mas contando com sua colaboração para atingir os resultados pretendidos. Uma verdadeira simbiose, que busca a concretização do princípio da dignidade humana.

Bioética; ética; biodireito; biotecnociência; biotecnologia; células-tronco hematopoéticas


Cell therapy has been gaining more and more attention in medical procedures providing acceptable results and thereby efficiently satisfying the mission entrusted by specialists in hematology. The moral principles, together with the professional ethical conduct, demand new positions. The evolution of biotechnology and biotechnoscience carries a considerable amount of human knowledge, but requires the development and refinement of ethical concepts, bringing together social approval and bioethics. More than ever the doctor is geared to conduct an analysis and take into consideration the patient or his guardian. The purpose of this present study is to discuss the main roots of ethics, since its birth, its transformation in philosophical thought, its suitability in the professional field, the materialization of the Code of Medical Ethics and the severance of the new life science, named bioethics. This is in fact an effort to raise undervalued ethical principles again, reassess them in the Code of Medical Ethics, a status it deserves, and open space for bioethical thought. Bioethics emerges as a two-way science, because it involves doctors, researchers, patients and volunteers. The objectives of medical intervention should be explained, discussed and approved by interested parties. The hematologist has to put himself in the shoes of his patient, show him the clinical situation, pointing out the options for conduct and await the "placet". The proposal, therefore, aims to raise the professional to the safety of ethics and bioethical thought. The doctor takes an attitude better targeted at social achievement, offering him not only the appropriate treatment, but counting on his cooperation to achieve the desired results. This is a true symbiosis, which seeks to implement the principle of human dignity.

Bioethics; ethics; biolaw; biotechnoscience; biotechnology; adult stem cells (Hematopoietic)


REVISÃO REVIEW

A ética médica, a bioética e os procedimentos com células-tronco hematopoéticas

Medical ethics, bioethics and procedures with hematopoietic stem cells

Eudes Q. Oliveira Junior

Professor e Advogado. Reitor da Unorp

Correspondência Correspondência: Eudes Quintino de Oliveira Junior Rua Pernambuco - 3159 - Bairro Redentora 15.015-770 São José do Rio Preto-SP - Brasil Tel.: (55 17) 3212-7295 E-mail: eudesojr@hotmail.com

RESUMO

A terapia celular vem ganhando cada vez mais espaço nos procedimentos médicos e com resultados satisfatórios, cumprindo, desta forma, com eficiência, a missão confiada aos especialistas em hematologia. Os preceitos morais, aliados às condutas éticas profissionais, cobram novas posturas. A evolução da biotecnologia e da biotecnociência carrega uma dose considerável do saber humano, mas exige, em contrapartida, um desenvolvimento e aperfeiçoamento do pensamento ético, que reúne a aprovação social, na leitura bioética. Mais do que nunca, a conduta médica fica atrelada a uma análise e consideração do paciente ou seu responsável. O objetivo do presente trabalho é justamente buscar as raízes determinantes da ética, desde seu nascedouro, sua transformação no pensamento filosófico, sua adequação no campo profissional, com amaterialização do Código de Ética Médica e o rompimento da nova ciência da vida, batizada por bioética. O entrelaçamento da ética-bioética nas condutas médicas da importante área da hematologia traça um horizonte benéfico, buscando prestigiar a humanidade, preservando sua vocação saudável e, principalmente, sua dignidade. Trata-se, na realidade, de um esforço para reascender princípios éticos pouco valorizados, redimensioná-los no Código de Ética Médica, estatuto que merece uma releitura, e abrir espaço para o pensamento bioético. A bioética surge como ciência de mão dupla, pois envolve o médico, o pesquisador, o paciente e o voluntário. Os objetivos da intervenção médica deverão ser explicitados, discutidos e aprovados pelos interessados. O médico hematologista terá que se avistar com seu paciente, exibir-lhe o quadro clínico, apontar as opções de intervenção e aguardar o seu "placet". Principalmente em área de evolução constante, em razão de uma série infindável de pesquisas desenvolvidas na área da terapia celular. A proposta, portanto, resumidamente, visa encartar o profissional no campo seguro da ética e do pensamento bioético. O comprometimento médico assume uma postura social direcionada para a melhor realização do ser humano, ofertando a ele não só o tratamento adequado, mas contando com sua colaboração para atingir os resultados pretendidos. Uma verdadeira simbiose, que busca a concretização do princípio da dignidade humana.

Palavras-chave: Bioética; ética; biodireito; biotecnociência; biotecnologia; células-tronco hematopoéticas.

ABSTRACT

Cell therapy has been gaining more and more attention in medical procedures providing acceptable results and thereby efficiently satisfying the mission entrusted by specialists in hematology. The moral principles, together with the professional ethical conduct, demand new positions. The evolution of biotechnology and biotechnoscience carries a considerable amount of human knowledge, but requires the development and refinement of ethical concepts, bringing together social approval and bioethics. More than ever the doctor is geared to conduct an analysis and take into consideration the patient or his guardian. The purpose of this present study is to discuss the main roots of ethics, since its birth, its transformation in philosophical thought, its suitability in the professional field, the materialization of the Code of Medical Ethics and the severance of the new life science, named bioethics. This is in fact an effort to raise undervalued ethical principles again, reassess them in the Code of Medical Ethics, a status it deserves, and open space for bioethical thought. Bioethics emerges as a two-way science, because it involves doctors, researchers, patients and volunteers. The objectives of medical intervention should be explained, discussed and approved by interested parties. The hematologist has to put himself in the shoes of his patient, show him the clinical situation, pointing out the options for conduct and await the "placet". The proposal, therefore, aims to raise the professional to the safety of ethics and bioethical thought. The doctor takes an attitude better targeted at social achievement, offering him not only the appropriate treatment, but counting on his cooperation to achieve the desired results. This is a true symbiosis, which seeks to implement the principle of human dignity.

Key words: Bioethics; ethics; biolaw; biotechnoscience; biotechnology; adult stem cells (Hematopoietic).

É muito difícil e até mesmo impróprio definir a ética, em razão de sua complexidade. Tal tema foi debatido com intensidade na Antiguidade e hoje brota a todo instante nos relacionamentos entre as pessoas, coletiva ou singularmente. Na sua origem grega, ethikós simbolizava o modo de ser, o caráter, a moral, os bons costumes de um indivíduo. Tanto é que, na sua aplicação originária, a ética era exigida daqueles que desenvolviam atividade pública, representativa, dos cuidadores da res publica. Posteriormente, por sua própria característica de idoneidade e bom senso, ampliou-se de modo a integrar atributos positivos da pessoa humana. Entretanto, por sua natureza difusa, a norma ética que rege uma pessoa individualmente nem sempre é a mesma recomendada pelo grupo social ou profissional a que ela pertence.

O êtho, eos-ous, na sua análise estrutural, nada mais era do que o costume, a tradição, ambos voltados para a moral. Seria, num linguajar mais liberal, a regularização moral e correta da conduta humana, passada de geração em geração, sempre procurando atingir os pontos harmônicos daconvivência humana. É a realização espontânea dos bons valores que permanecem como ideal de compartilhamento. A ética não é acabada, é um pensamento em constante evolução, que, com o passar do tempo, vai se aperfeiçoando. A ética não é resultado de condutas codificadas, não se revoga, nem é derrogada. É resultado do próprio pensamento evolutivo do homem, que, na sua essência, busca a felicidade e a perfeição.

Aristóteles, cujo pensamento se torna obrigatório integrar a definição perquirida, assenhorou-se do termo para evidenciar as pesquisas que têm como objeto analisar e aprofundar as qualidades peculiares do ser humano integrando-as em todas as áreas de atuação do homem, quer seja na economia, na política, no ensino, no comércio, somente para exemplificar, além de muitas outras. O pensamento filosófico, desta forma, surge como o grande arquiteto da ética, visando construir os melhores valores de conduta, exibindo como padrão a figura do "homem prudente", que, mais tarde, com a evolução própria no pensamento romano, passou para virtus in medio, ressaltando agora a figura do homo medius. É sempre o mediano o melhor equalizador das regras. Não se encontra nos extremos e exatamente por isso não terá a cautela desguarnecida e também não excederá na sua prudência. In extremis periculosa sunt, advertiam os romanos.

A ética surge com fator essencial para o homem atingir seus objetivos. Num primeiro plano traça o conhecimento da natureza humana em toda sua extensão e, num segundo, os meios para se atingir a realização, ou o Bem Supremo do homem, consistente na busca da própria felicidade, comoacentuou Aristóteles, na "Ética a Nicômaco": "Sendo, pois, de duas espécies a virtude, intelectual e moral, a primeira, por via de regra, gera-se e cresce graças ao ensino - por isso requer experiência e tempo; enquanto a virtude moral é adquirida em resultado do hábito, donde ter se formado o seu nome (etiké) por uma pequena modificação da palavra éthos (hábito). Por tudo isso, evidencia-se também que nenhuma das virtudes morais surge em nós por natureza. Por exemplo, à pedra que por natureza se move para baixo não se pode imprimir o hábito de ir para cima, ainda que tentemos adestrá-la jogando-a dez mil vezes no ar; nem se pode habituar o fogo a dirigir-se para baixo, nem qualquer coisa que por natureza se comporte de certa maneira a comportar-se de outra. Não é, pois, por natureza, nem contrariando a natureza que as virtudes se geram em nós. Diga-se, antes, que somos adaptados a recebê-las e nos tornarmos perfeitos pelo hábito".1

Cícero, por sua vez, encarregado de romanizar o pensamento grego, a exemplo de Aristóteles, também dedicou uma obra a seu filho, para lhe apontar as rotas seguras, intitulada Dos Deveres, que é um verdeiro breviário de sabedoria. Ensina não como jurisconsulto, mas como pai, falando a respeito das regras de convivência em harmonia: "Resolvi escrever neste momento para você, iniciando pelo que melhor convenha para sua idade e à minha paterna autoridade. Entre as coisas sérias e proveitosas tratadas pelos filósofos, não conheço nada mais vasto e cuidadoso do que regras e preceitos que nos transmitiram, a propósito de deveres".2

O valor da lei natural se contrapõe ao da lei das cidades e carrega o ensinamento ético indispensável para separar a lei que era de cumprimento compulsório de todos os homens, daquela outra, que era variável de local para local e, principalmente, para que fosse de aceitação geral, de caráter cogente, necessitava do placet popular. Antifonte, sofista grego, cuja obra foi parcialmente perdida, introduziu o conceito de "consentimento dos governados", representando que somente a lei feita pelos homens é que necessitava de aprovação, enquanto a outra, originária da própria ética, desprezava qualquer avaliação, vez que, por si só, carregava o espírito cogente.

O dictum aristotélico preza o homem na celebração de sua inteligência, na utilização de meios racionais para equacionar sua vida funcional em prol da coletividade onde desenvolve suas atividades. Exclui-se, de antemão, qualquer conduta egoísta, que seja direcionada exclusivamente para a conquista de dinheiro e reputação, como sendo os norteadores da vida em sociedade. Se assim fosse, cairia por terra e acarretaria uma verdadeira reductio ad absurdum o pensamento filosófico grego liderado por Aristóteles.

Uma definição, com traços de atualidade, que traz elucidativos ensinamentos a respeito, é a contida no Dicionário de Bioética: "O ethos é a fundamentação, no tempo e no espaço, no meio de um certo contexto sociocultural, dos princípios morais que, deste modo, se transformam em convicções e em regras de comportamento".3

Muito próximo desse conceito é o professado por H.Tristram Engelhardt Jr., exarado nestes termos:

"A palavra ética é ambígua em si mesma. Primeiro, como sugere sua etimologia, pode significar o que é costumeiro. Como aquilo que é habitual para as pessoas, a ética é semelhante em significado à raiz da palavra moral, 'mos' (plural mores), os costumes de um povo".4

O ser ético é aquele impregnado da racionalidade, do conhecimento, que transforma até mesmo sua vida em arte, como acentuado por Foucault. Após ter o domínio do autoconhecimento (nosce te ipsum), agrega à sua individualidade conceitos e práticas que se tornaram necessários, consistentes e praticados, conscientemente, com a visão voltada para o bem. Daí que o pensamento individual, egoístico, desagrega o cidadão e o torna uma pessoa prejudicial ao grupo praticando condutas recriminadas e na contramão do bom senso coletivo. Eugénia Vilela, professora da Faculdade de Letras da Universidade de Porto, Portugal, nos escritos que homenageiam oitenta anos de nascimento de Foucault, faz ver que "através da ética individual - decorrente de uma ação realizada pelo indivíduo sobre si mesmo, pelo qual se constitui como sujeito - o que passa a estar em questão não é o ajustamento a uma norma à qual o sujeito se submete, mas a criação de uma forma de existência. Nesta perspectiva, dizendo respeito à forma que o indivíduo dá a si mesmo e à sua vida, a ética é entendida como ética da existência. Ela não supõe a definição de uma ética em relação à qual os homens devam determinar a sua essência (...) Assim sendo, a ética, cujo espaço é o da formação e transformação do sujeito, não se afirma como uma hermenêutica, mas como um gesto de constituição do eu, como uma atitude através da qual o indivíduo faz da sua vida uma obra de arte. A liberdade afigura-se, então, como a condição ontológica da ética".5

Para uma tentativa de explicação mais próxima da ética voltada para o campo da medicina de pesquisa, podemos dizer, guardadas as proporções, permitida que seja a comparação, que a ética é o resultado de uma reprodução assistida, devidamente manipulada, utilizando o sêmen do Direito e óvulos da Filosofia, com sucesso absoluto desde a concepção até o parto. O fruto inaugurará um novo espaço, um limbo, com tendência à purificação. Tendência sim, pois o homem vai direcionar seu senso ético de acordo com sua educação, costumes e influência do seu meio. O kantismo já apregoava que o homem é livre e consciente para selecionar o conjunto de normas que adota para reger sua existência social. O neonato não irá atritar com seus genitores. Ao contrário, dividirá com eles espaço idêntico, com atribuições diferenciadas, um completando o outro. É como as abelhas: juntam-se para formar colmeias.

Mas, o prestador de serviços médicos deve pautar sua conduta com base em seu conhecimento científico vinculado aos ditames éticos anunciados, como também no juramento hipocrático prestado em prol da saúde humana. É uma corrente de virtudes passada pelos profissionais mais antigos e experientes aos mais novos, que assimilam os ensinamentos e exemplos dos mais experientes.

Nasceu, no Brasil, a materialização destes ensinamentos através do Código de Ética Médica (CEM), fruto da Resolução do Conselho Federal de Medicina, que levou o n.º 1246, de 08 de janeiro de 1988, publicada no Diário Oficial da União, no dia 26 de janeiro de 1988. Regulamentou, dentre outros, os Princípios Fundamentais que regem as normas éticas a serem seguidas pelos médicos, os Direitos dos Médicos, a Responsabilidade Profissional, Direitos Humanos, Relação com Pacientes e Familiares, Doação e Transplante de Órgãos e Tecidos, Perícia Médica e Pesquisa Médica, tudo com a finalidade de zelar pelo bom desempenho da medicina.

Não é um Código Deontológico acabado e perfeito. Traz falhas no conteúdo, em definições, em terminologias e, propositadamente ou não, deixou de prever várias situações ligadas à área da reprodução humana assistida, assim como, com escassas orientações, disciplinou a respeito de doação e transplante de órgãos e tecidos humanos. Curiosamente, em seu artigo 54, com receio até de uma possível mudança constitucional que acampe a pena de morte, rompendo o casulo das cláusulas pétreas, proibiu, taxativamente, ao médico "fornecer meio, instrumento, substância, conhecimento ou participar, de qualquer maneira, na execução da pena de morte".

Mas é um Código que resultou da progressiva interpretação de situações novas, que foram assimiladas e incorporadas em suas sucessivas legislações. Basta ver o histórico dos Códigos: Código de Moral Ética (1929); Código de Deontologia Médica (1931); Código de Deontologia Médica(1945); Código de Ética da Associação Médica Brasileira(1953); Código de Ética Médica (1965); Código Brasileiro de Deontologia Médica (1984) e o atual, que é de 1988.

Ao lado do Código de Ética Médica vige o Código de Processo Ético-Profissional, criado pela Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 1617/2001, publicado no Diário Oficial da União em 16.07.01 e retificado posteriormente pelo mesmo órgão em 14.09.01. Regulamenta o procedimento processual para se estabelecer em toda plenitude o princípio do contraditório, da ampla defesa e o due process of law.

Gabriel Oselka, professor da Faculdade de Medicina da USP, ex-presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM) e do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp), em sua abalizada conceituação, assim se expressou:

"Os códigos de ética médica adotados no Brasil caracterizam-se por representar uma mescla de código de moral - que de alguma forma amplia e define a doutrina hipocrática - com código administrativo - que regula com precisão muitos aspectos práticos da profissão".6

Paralelamente ao conceito de ética médica deflagrado no referido estatuto, surgiu, com toda força e projeção a nova ciência da bioética, iniciada com o Julgamento de Nuremberg, em 1947, quando começou a reflexão a respeito da ética biomédica contemporânea. Condenava-se a pesquisa com seres humanos sem o seu livre consentimento. No ano seguinte, em 1948, a Declaração Universal dos Direitos do Homem e o Código de Nuremberg proporcionaram uma nova tutela aos direitos individuais e coletivos com uma nova dimensão do ser humano e das condições favoráveis para o seu desenvolvimento. O termo bioética foi introduzido pela primeira vez pelo oncologista Van Rensslaer Potter, em seu livro Bioethics. Bridge to the Future.7 Já em 1970, ocupando um espaço mais amplo que a ética, a bioética se intitulou ética das ciências da vida.

A definição desta nova ciência, a mais jovem de todas as outras, com seu formato atual, foi lançada na segunda edição da Encyclopedia of Bioethics, com a seguinte ementa:

"Estudo sistemático das dimensões morais das ciências da vida e do cuidado da saúde, utilizando uma variedade de metodologias éticas num contexto multidisciplinar".8

Sua aplicação não se limita somente à área médica. É a leitura de muitos olhos a respeito de problemas individuais e coletivos, com a intenção de se buscar a melhor solução, aquela mais próxima do consenso que reúne as melhores oções de vida para o ser humano. Porém, o conceito popular invadiu a área médica, plantou ali a bandeira da bioética e a transformou em seu latifúndio, onde são realizadas as experiências científicas.

Com a competência que lhe é peculiar e por ser a primeira jurista brasileira com incursão no estudo da bioética, realizando um trabalho reconhecidamente impecável, Maria Helena Diniz assim propõe o entendimento da bioética:

"A bioética seria, então, um conjunto de reflexões filosóficas e morais sobre a vida em geral e sobre as práticas médicas em particular. Para tanto abarcaria pesquisas multidisciplinares, envolvendo-se na área antropológica, filosófica, teológica, sociológica, genética médica, biológica, psicológica, ecológica, jurídica, política etc., para solucionar problemas individuais e coletivos derivados da biologia molecular, da embriologia, da engenharia genética, da medicina, da biotecnologia etc., decidindo sobre a morte, a saúde, a identidade ou a integridade física e psíquica, procurando analisar eticamente aqueles problemas, para que a biossegurança e o direito possam estabelecer limites à biotecnociência, impedir quaisquer abusos e proteger os direitos fundamentais das pessoas e das futuras gerações".9

A atualidade do conceito da bioética, após a aprovação da Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos, durante a 33ª Conferência Geral da Unesco, inseriu um plus relacionado com os conceitos de inter e transdisciplinaridade, na busca de soluções mais adequadas e ajustadas para as nações pobres, principalmente as da América Latina e Caribe.

O bioeticista Volnei Garrafa, um dos mais destacados na área, com seu profundo conhecimento assim a definiu:

"Com as transformações e o novo ritmo que começou a ser experimentado no contexto internacional da bioética, o escopo da ética aplicada deixou de ser considerado meramente individual ou específico para, ao contrário, passar a exigir participação direta da sociedade civil nas discussões com vistas no bem-estar futuro das pessoas e comunidades. A questão ética, pois, adquiriu identidade pública; deixou de ser considerada apenas uma questão de consciência a ser resolvida na esfera privada ou particular, de foro individual ou exclusivamente íntimo. Hoje, ela cresce de importância no que diz respeito à análise das responsabilidades sanitárias e à interpretação histórico-social mais precisa dos quadros epidemiológicos, como também é essencial na determinação das formas de intervenção a ser programadas, nas questões ambientais, na formação do pessoal sanitário e outros, na responsabilidade dos Estados frente aos cidadãos, principalmente os mais frágeis e necessitados".10

Nesta contextualização enquadra-se o procedimento realizado pelos profissionais da hemoterapia na captação das células-tronco hematopoéticas. O debate em torno das células-tronco embrionárias introduziu no Brasil o conceito de utilização da células-tronco. O conhecimento era limitado e muitas vezes ocorria confusão entre as embrionárias e as autógenas, sendo ambas condenadas de roldão pelo cidadão menos esclarecido. Com a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, considerando legal a utilização das embrionárias para pesquisas e fins terapêuticos dos embriões congelados há mais de três anos, impróprios para sua finalidade e com o consentimento dos genitores,11 desmembrouse o conceito, surgindo as células adultas como aquelas que não tinham qualquer restrição legal. A comunidade, a partir da diferenciação estabelecida, começou a entender que as células consideradas adultas eram aquelas que o ser humano carrega em seu patrimônio chamado corpo.

A corporeidade vem a expressar a realidade singular dohomem. É ele proprietário de um patrimônio chamado corpo humano, detentor de seus atos, administrador deste inesgotável latifúndio, que vem revestido de uma tutela especial que lhe confere personalidade e o torna sujeito de direitos e obrigações. Ao mesmo tempo em que é um patrimônio individualizado, carrega a semente universal, que irá proporcional a continuidade da humanidade. Numa expressão mais adequada e atendendo ao conceito hodierno do "homem-corpo", pode-se dizer que "...por corpo entendemos aquela dimensão do Homem em cuja base ele se institui no quadro dos entes empíricos. Neste sentido, ele é algo que se pode observar e algo que pode ser alvo de experiências, quer na sua estrutura, quer no seu comportamento. Entenda-se bem: não se trata de uma colocação local, extrínseca, mas radical e original, na qual se define a sua origem e constituição, a sua manutenção, o seu declínio e o seu fim".12

O profissional da medicina busca ajustar sua conduta médica no código deontológico médico, que traça as normase regras gerais de atuação. É uma verdadeira operação de adequação típica da conduta médica com a correspondente norma disciplinar. Ocorre que, não só com a evolução de muitos conceitos médicos, como também de novas tendências tuteladoras do pacientes, o Código de Ética Médica brasileiro, foi se definhando, perdendo o espaço que lhe foi consagrado durante muitos anos, subsumido a outros princípios da realidade atual. Muitas práticas médicas permitidas, outras recriminadas em 1988, à época de vigência do código deontológico, sofreram gritantes mutações. Basta ver que a Constituição Federal, promulgada no mesmo ano doCódigo de Ética Médica, carrega aproximadamente cerca de sessenta emendas ao texto originário, enquanto o código disciplinar não sofreu mutações.

O homem posiciona-se no núcleo da atividade médicocientífica e busca condições de se associar a empreendimentos acadêmicos tornando construtor de si mesmo. A ética médica permanece como acólita e coadjuvante de uma outra ética mais abrangente, que vem a ser a bioética, que vem de dentro para fora, ditada pelo homem em suas múltiplas facetas, pluralizada, com o conteúdo necessário e racional para facilitar a realização de seus ideais sociais.

A necessária invasão multidisciplinar nos experimentos científicos conferiu legitimidade plena ao cidadão para decidir a respeito dos rumos da ciência colocada à sua disposição. Não vai se discutir agora a respeito da técnica utilizada pelo cientista para chegar a determinado resultado, e sim o pensar ético e bioético para saber se o resultado é realmente conveniente e satisfatório, sem afastar dessa tertúlia o médico, que dela irá participar com o voto e não com o poder decisório pleno. O homem, inclusive o próprio médico, projeta uma qualidade de vida para o seu futuro.

A conduta do médico na área da hematologia é essencialmente invasiva na coleta de células da medula óssea. A terapia celular, linha de pesquisa que ganhou credibilidade em razão de seus resultados satisfatórios, faz parte da medicina considerada de ponta. As pesquisas realizadas nesta área são tantas, com benefícios incontáveis, que ganharam aprovação popular. O material humano coletado, sem qualquer restrição legal, pode ser aplicado no autotransplante ou no alotransplante. A manipulação com o material humano coletado é de alta responsabilidade, já que lida com componente estrutural e funcional dos seres vivos. Não se trata de uma invasão à privacidade íntima do cidadão, do seu ego e sim da sua essência molecular, do fato gerador do próprio serhumano. É a extração do material biológico que será implantado no próprio paciente ou em outro, com o objetivo de se alojar no órgão ou tecido e ali aprender sua nova função, já que se trata de célula virgem, sem qualquer experiência operacional. A grandeza do ato, em poder o ser humano realizar esta captação e sequencial transferência, vem a ser um demonstrativo da infinita sabedoria do Criador. O homem, quando nasce, vem coberto de ricas células-tronco distribuídas pela placenta. Igual porção vem alojada no cordão umbilical, possibilitando seu congelamento para utilização posterior. Mas, para aperfeiçoar ainda mais o ser humano, o Criador alojou as células virgens, verdadeiros soldados de reserva, como um autêntico estepe, na medula óssea, disponíveis a qualquer tempo. Esta operação de captação e transferência é realizada pelo profissional da hematologia, que tem o encargo sobre-humano de direcionamento das células. Por outro lado, o profissional está diante de uma pessoa que, espontaneamente, sem qualquer finalidade de lucro e sim em razão da mais pura solidariedade humana, cede o material que poderá colaborar com outra vida humana, quando se tratar de doação de órgãos ou tecidos.

Sem qualquer intenção de meter a cunha neste tema, mas, a título de curiosidade, a primeira leitura que se faz da "feitura" do ser humano, vem do relato bíblico:

"Então o Senhor Deus fez cair pesado sono sobre o homem, e este adormeceu: tomou uma de suas costelas, e fechou o lugar com carne. E com a costela que o Senhor Deus tomara ao homem, fabricou uma mulher, e lha trouxe".13

O verbo construir empregado pelo autor bíblico chega a ser um pouco severo, assim como sem explicação científica a utilização da costela para fazer nascer outro ser humano, mas por ser uma obra divina, a aceitação é indiscutível. A explicação provável foi dada por Heinrich Krauss:

"Na utilização de 'costela' como matéria prima ocorre, possivelmente, um trocadilho que se perdeu já na língua hebraica (e nas línguas modernas), mas na forma primitiva da história foi mantida. Na escrita cuneiforme suméria, o sinal para 'costela' é idêntico ao da 'vida'".14 Quem sabe, não teria sido feito o primeiro clone? A célula é vida, é o tronco que se finca e deita suas raízes.

Não me afastando do tema, mas a título de curiosidade e também pela celebração do centenário de morte do grande Machado de Assis, com sua sensibilidade descritiva aguçada, mestre da observação psicológica, romântico e parnasianorealista, fez uma incursão na área do xenotransplante.15 Pela experiência narrada, Stroibus e Pítias, dois amigos filósofos e cientistas descobriram que se a pessoa ingerir o sangue do rato irá tornar-se ratoneiro, da coruja, sábia, da aranha, arquiteta, da cegonha, andorinha, viajante, da rola, fidelidade conjugal, do pavão, vaidade. Tomaram o sangue do rato. Foram presos na corte de Ptolomeu e condenados à morte. Por reiterados furtos. No pensamento jocoso até do maior escritor brasileiro, no sangue reside a vida e suas configurações.

O ato de doar transcende a própria pessoa humana. Tanto é verdade que, na doação in vita e post mortem é vedado escolher o beneficiário. Pode ser qualquer pessoa, desde que figure na lista de espera, inclusive seu inimigo. A recente decisão do Sindicato dos Médicos do Egito em proibir o transplante de órgãos entre cristãos e muçulmanos é uma providência totalmente descabida, imprópria e que tramita pela contramão de direção da dignidade humana.

A dignidade do ser humano, nas questões éticas suscitadas pelos avanços da ciência e as novas tecnologias, surge como o primeiro requisito da atividade médica de extração de células-tronco. A Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humano,16 em seu artigo l.º (IV), assim proclama:

"Reconhecer a importância da liberdade da pesquisa científica e os benefícios resultantes dos desenvolvimentos científicos e tecnológicos, evidenciando, ao mesmo tempo, a necessidade de que tais pesquisas e desenvolvimentos ocorram conforma os princípios éticos dispostos nesta Declaração e respeitem a dignidade humana, os direitos humanos e as liberdades fundamentais."

Os próprios princípios que norteiam a bioética, estabelecidos por Beauchamp e Childress17 oferecem um roteiro de um procedimento médico correto, sem resvalar em situação comprometedora.

O princípio do respeito às pessoas carrega duas vertentes: autonomia e voluntariedade do paciente e as pessoas cuja autonomia sofre restrição e necessita proteção. A autonomia ou voluntariedade significa a volição do paciente em ação. Como na própria etimologia, vem a significar o direito de se administrar e tomar decisões livremente, com total liberdade, independência moral ou intelectual, isento, é claro, de coação ou desconhecimento. Mas, para que o paciente possa assim modular sua decisão, necessita ter conhecimento do procedimento médico que lhe será oferecido. Daí a necessidade do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), preconizado pela Resolução n.º 196/96, do Conselho Nacional de Saúde. O médico explicará ao paciente os benefícios, riscos, complicações potenciais, alternativas ao procedimento e o paciente, por sua vez, decidirá pela aprovação e autorização médica, não antes de fazer todas as indagações que julgar necessárias para esclarecer eventuais dúvidas, ou reprovará a proposta feita, optando por um tratamento alternativo. Em seguida, materializa seu consentimento lançando sua assinatura no termo. No caso do paciente ter sua capacidade diminuída, em razão da idade ou de perturbação mental, ou até mesmo pelo estágio avançado do mal que o aflige, a autorização será dada pelo responsável legal, na ordem hierárquica estabelecida no Código Civil, ou por quem seja o detentor de ordem judicial.

O princípio da beneficência ou não maleficência traz a noção de um procedimento correto visando atingir um resultado satisfatório. Por se tratar de uma intervenção invasiva em corpo alheio, só pode ter como finalidade a busca de umbenefício maximizado. É o primum non nocere, consistente em evitar, de todas as formas, a lesão a um bem humano. Também aplica-se o neminem non laedere, com o mesmo significado, observando que qualquer dano possível possa ser minimizado.

O princípio da justiça representa a paridade de tratamento entre as pessoas. É a regra constitucional isonômica no sentido de que "os iguais devem ser tratados igualmente". Por este princípio assegura-se a imparcialidade na distribuição dos benefícios e riscos de um determinado tratamento. Se operou resultado satisfatório a um paciente, seu benefício deve ser estendido para outro, em evidente prestígio ao ser humano. É o que ocorre atualmente com inúmeras ações ajuizadas em desfavor do Estado e União para aquisição de medicamento importado de alto custo, que não foi ainda registrado no Ministério da Saúde e recomendado pela Anvisa, mas que, nos países de origem, conseguiu resultado satisfatório para pacientes de vulnerabilidade idêntica. Ora, se a um foi conferido, qual a razão de excluir o outro? O direito à saúde encontra-se incluído no rol dos direitos humanos fundamentais e sua universal difusão.

O princípio da dignidade da vida humana, consagrado na Constituição Federal, não é mero exercício de autopiedade ou autocondescendência, mas sim uma afirmação jurídica de proteção do ser humano, com validade erga omnes. "Tratase de cuidar da vida toda e da vida de todos", proclamava João Paulo II.18 Na mesma linha de pensamento, Kant construiu o princípio da universalização, no sentido de que qualquer norma pode ser válida para uma pessoa ou grupo, se se considerar que deverá valer para qualquer outra pessoa ou grupo, colocados numa situação igual. Tem total pertinência porque se trata de uma função reguladora de máxima importância, pois não distingue diferença entre pessoas. Se todos são sujeitos de direitos o tratamento deve ser igual. Se a globalização transformou a humanidade numa só nação, todos, filhos de países ricos ou pobres, em princípio, gozam da mesma proteção e privilégio de utilização de medicamentos.

Os princípios anunciados da bioética, acoplados aoCódigo de Ética Médica, torna o médico um profissional de um saber específico em sua arte e um saber humano com profunda raiz globalizada. O exemplo dado por Platão quando se refere ao médico dos homens livres e dos escravos, não distancia muito da realidade atual, pelo sistema de saúde adotado no país. O que atende os escravos circula apressadamente pela cidade, não conversa com o paciente, impõe a ele o consumo de fármacos, sem lhe explicar a finalidade, porém, assim age com a intenção de maximizar o seu ganho. O que atende os livres, no entanto, apresenta uma postura totalmente diferente. Procura estudar a causa do mal, interroga o paciente, seus familiares e amigos e não prescreve qualquer medicamento sem antes convencê-lo da adequação.

A praxis médica brota do sistema e da necessidade social. "Quando com Hipócrates nasceu a medicina, escreveu Herranz com seu peculiar conhecimento, houve seu despojamento daquele primitivismo mágico que até então a dominava: deixava de ser uma prática mágica para se converter numa atividade baseada na ciência da natureza (numa observação empírica, nas pesquisa das causas naturais da enfermidade, na experimentação e na estatística). Ao mesmo tempo, nascia voluntariamente vinculada a um código de exigentes ideais éticos. No Corpus hippocraticum, os livros de observação científica alternam-se com tratados éticos: ciência e ética parecem intimamente entrelaçadas".19

O desnível entre as inovações da biotecnologia e da biotecnociência provoca uma demorada resposta social. As pesquisas médicas evoluem a todo instante. O Direito, como fonte regulamentadora, aguarda os resultados e jamais irá estabelecer regras, em razão de sua natureza post factum. Restam, portanto, para aprovação social do procedimento de terapia celular, a ética, consubstanciada no sistema deontológico do profissional de saúde, e a bioética, instituto inovador, de reflexão multidisciplinar, com o espírito sensível da modernidade, que atende os anseios da sociedade. Não para analisar o problema sob o prisma do certo e do errado e sim pelos critérios de necessidade e conveniência para a vida do ser humano

"A bioética, acentua D'Agostino, em outras palavras, deve certamente defender a dignidade do homem, segundo a justiça e a verdade, mas para fazer isso deve primeiro mostrar qual é o lugar em que se constitui a dignidade humana e não considerá-lo universalmente (e banalmente) conhecido e compartilhado".20

A medicina regenerativa ocupa o palco principal das necessidades sociais. Não é um produto colocado à venda e muito menos a promessa de sonhos inatingíveis. A realidade aponta para avanços notáveis da instrumentalidade operacional, da nanotecnologia, de técnicas quase perfeitas de abordagem cirúrgica, dos transplantes de órgãos e tecidos humanos, que, cuidadosamente, devem passar por um crivo de admissibilidade do paciente. Este contato entre o agente vulnerável e a ciência médica faz nascer o conceito de bioética, que não só defende a vida, como, também, defende a qualidade de vida. O paciente passa a ser parte integrante e ativa não no equacionamento do seu mal, mas sim em saber quais são as opções clínicas e cirúrgicas para o seu tratamento. Já foi o tempo em que o médico tratava o paciente, como um sujeito passivo de suas ações, o alvo de sua intervenção profissional.

A vida é um bem indisponível. O homem não pode ser considerado um organismo, um ser eminentemente biológico, mas sim um ser humano dotado de uma personalidade, com titularidade de direitos, com sua identidade própria, provido de uma mente e um espírito, conforme proclamado por Aristóteles.

Por estes motivos, a bioética deve ocupar espaço relevante e referencial na medicina regenerativa. A Igreja Católica valeu-se das bases e pensamentos bioéticos quando emitiu documento a respeito da proibição da eutanásia e aceitação da ortotanásia. A Igreja considera lícita a conduta do médico que, na iminência de uma morte inevitável, depois de ter lançado mão de todos os recursos necessários, renuncia a tratamento que daria somente um prolongamento precário e penoso da vida, sem, contudo, interromper os cuidados normais devidos ao paciente.21

O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Ação Direta de Insconstitucionalidade do artigo 5.º da Lei 11.105/ 05, que trata da utilização das células-tronco embrionárias, que precisava definir o início da vida humana, comungando com o espírito bioético, convocou vários especialistas ligados ao assunto, dentre eles, médicos, pesquisadores, bioeticistas, antropólogos, biólogos, cultos religiosos, juristas e vários outros, visando, com um olhar ditado multidisciplinarmente, obter uma decisão que atendesse aos reclamos sociais.22

Outro não é o espírito que merece reinar entre os profissionais da medicina regenerativa. O olhar da bioética deve ser feito de forma introspectiva, com a reflexão de que a ética profissional não deve ultrapassar os limites impostos à ciência. O princípio da sacralidade da vida humana (PSV) difundido nos primórdios do estudo médico é de ser mantido como princípio absoluto e irretocável. Prova disso é o sistema CEP/Conep, criado pela Resolução CNS nº 196/96, que assegura direitos e deveres que dizem respeito à comunidade científica, aos sujeitos de pesquisa e ao Estado.

Catherine Labrusse-Riou, professora da Universidade de Paris I - Panthéon Sorbonne, que fez parte do primeiro Comité Consultif Nacional D'étique, da França, nomeada que foi em 1983, com vários estudos na área da procriação artificial, com sua experiência de bioeticista, sentenciou: "Même si on ne pouvait pas scientifiquement prévoir tel ou tel effet nuisible, les détenteurs des techiniques devaient prévoir que l'on ne pouvait pas prévoir. Si la techinique y perd um peu de sa superbe, la science em réalité y retrouve sa vérité, celle de n'être justement pas une instance de vérité absolue mais de connaissances relatives et limitées donc um lieu d'incertitude réhabilitant avec le príncipe de précaution la máxime antique de la sagesse < dans le doute, abstienstoi >. C'est une question quotidienne ou presque pour les décisions médicales que d'apprécier le rapport du risque et du bénéfice avant d'agir. Il n'en suffit pas d'informer et de laisser les gents libres de faire ce qu'ils veulent avec toutes les techiniques disponibles".23

O caminho até aqui percorrido foi coroado de êxito pela medicina regenerativa, apesar de alguns incidentes naturais, que foram superados pela eficiência dos serviços médicos. Mas, os avanços continuam. Ao lado de novas conquistas científicas deve ser centrado o ser humano, através de seus representantes e instituições que são profundos conhecedores da humanidade, para ditar as regras e princípios da bioética. O homem tem de programar ética e tecnicamente seu futuro e se torna, consequentemente, protagonista do seu presente e futuro, assentado na base sólida de elaborar juízos morais sobre muitos dos seus problemas.

7. O pensamento do autor, em 1971, era mudar a relação entre homem/natureza, levando-se em consideração a preocupação de garantir a sobrevivência humana e a qualidade de vida.

13. Gn 2:21-22.

16. Aprovada por aclamação em 19 de outubro de 2005 pela 33ª Sessão da Conferência Geral da Unesco.

22. Antes do julgamento, o Supremo Tribunal Federal, pela primeira vez em sua história, convocou uma audiência pública, com a finalidade de receber subsídios de pessoas ligadas ao conhecimento da vida humana.

Recebido: 09/12/2008

Aceito: 13/12/2008

Avaliação: O tema apresentado consta da pauta elaborada pelo editor, Professor Milton Artur Ruiz, e coeditores deste suplemento, Professores Sergio Paulo Bydlowski e Adriana Seber.

Conflito de interesse: não declarado

  • 1. Os Pensadores, São Paulo: Ed. Abril Cultural, v.IV, p.267, 1973, tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornhein da versão inglesa.
  • 2. Cícero MT. A obra prima de cada autor. São Paulo: Ed. Martin Claret, 2002, p. 32.
  • 3. Dicionário de Bioética. Editorial Perpétuo Socorro. Editora Santuário, sob a direção de Salvino Leone, Salvatore Privitera e Jorge Teixeira da Cunha para a edição em língua portuguesa, agosto, 2001, p.420.
  • 4. Ceschin JA. (Trad.). Fundamentos da Bioética. São Paulo: Edições Loyola, 2004, p. 52.
  • 5. Gondra J. Kohan W.(Org.) Foucault 80 anos. Belo Horizonte, Ed. Autêntica, 2006, p. 122.
  • 6. Sagre M, Cohen C. Bioética. São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 2002, p. 63.
  • 8. Regan T. Encyclopedia of bioethics. New York: Macmillan Ed. Reich. 1995, vol 1, p. XXI.
  • 9. Diniz MH. O Estado Atual do Biodireito. 3Ş ed. São Paulo. Editora Saraiva, 2006, p.13.
  • 10. Bases conceituais da bioética: enfoque latino-americano/Volnei Garrafa, Miguel Kottow, Alya Saada (organizadores); tradução Luciana Moreira Pudenzi, Nicolás Nyimi Campanário - São Paulo: 2006, p.13.
  • 11. Art. 5.º da Lei 11.105, de 24 de março de 2005, conhecida como Lei da Biossegurança.
  • 12. Dicionário de Bioética. Editorial Perpétuo Socorro. Editora Santuário, sob a direção de Salvino Leone, Salvatore Privitera e Jorge Teixeira da Cunha para a edição em língua portuguesa, agosto 2001, p. 207.
  • 14. Krauss, Heinrich. O Paraíso: de Adão e Eva às utopias contemporâneas; tradução Mário Eduardo Viaro. São Paulo: Globo, 2006, p.35.
  • 15. Xenotransplante vem a ser a transferência de órgão ou tecido animal para o ser humano. O fato é narrado no Conto Alexandrino, escrito em 1884.
  • 17. Beauchamp TL & Childress JF. Principles of Biomedical Ethics. 3Ş ed. New York, Oxford University Press, 1989.
  • 18. Evangelium Vitae. São Paulo, Paulinas, 1995, 173.
  • 19. G. Herranz. El Código de ética y deontologia médica, em Cuadernos de Bioética. 1994;5(20):330.
  • 20. D'Agostino F. Bioética, ob. cit. p. 186.
  • 21. "Declaração sobre Eutanásia", da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, aprovado em 05 de maio de 1980.
  • 23. Catherine Labrusse-Riou. Écrits de Bioéthique, textes reunis e presentes par Muriel Fabre-Magnan. Presses Universitaires de France, 2007, p. 411.
  • Correspondência:

    Eudes Quintino de Oliveira Junior
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Jun 2009
    • Data do Fascículo
      Maio 2009

    Histórico

    • Aceito
      13 Dez 2008
    • Recebido
      09 Dez 2008
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