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Renda e qualidade de vida (QV) devem ser valorizadas no transplante de células-tronco hematopoéticas

Income and quality of life (QL) should be of great concern in hematopoietic stem cell transplantation

EDITORIAIS E COMENTÁRIOS EDITORIALS AND COMMENTS

Renda e qualidade de vida (QV) devem ser valorizadas no transplante de células-tronco hematopoéticas

Income and quality of life (QL) should be of great concern in hematopoietic stem cell transplantation

Afonso Celso Vigorito

Correspondência Correspondência: Afonso Celso Vigorito Hemocentro de Campinas Rua Carlos Chagas, 480 _ Campus Universitário "Zeferino Vaz" Unicamp CX Postal: 6198 13083-970 _ Campinas-SP _ Brasil Tel.: (55 19) 3521-8740; Fax: (55 19) 3521-8600 E-mail: afonso@unicamp.br

A qualidade de vida (QV) é um conceito multidimensional relacionado às funções físicas, cognitivas, emocionais, sociais e ao bem-estar.1 A QV é especialmente importante para o aconselhamento de tratamentos difíceis e complexos, tal como é o transplante de células-tronco hematopoéticas (TCTH). O TCTH oferece um controle efetivo e cura potencial de neoplasias hematológicas, mas às custas de associada morbidade. Existe um risco significativo de complicações agudas e tardias que incluem as infecções, a toxicidade orgânica, a doença do enxerto contra o hospedeiro (DECH), a osteoporose, a catarata, as neoplasias secundárias, a infertilidade e a diminuição da QV.2-6

Um número crescente de estudos tem descrito o impacto do TCTH na QV. Avaliações longitudinais sugerem um déficit imediatamente após o transplante com retorno aos níveis basais no dia 100, sendo que mais de 60% dos pacientes reportam uma boa, ou excelente, QV entre o primeiro e quarto ano após o transplante.7-10 Quando se compara o transplante alogênico com o autólogo, a maioria dos dados sugere que os pacientes que receberam um transplante alogênico relatam uma QV similar ou pior do que os pacientes que receberam um transplante autólogo; além do mais, as DECH aguda e crônica são ameaças significativas.9,11-14

O impacto prognóstico das características demográficas dos pacientes e doadores, nos resultados do TCTH, é bem descrito, mas os dados em relação aos aspectos socioeconômicos e a influência destes na QV são limitados.15 Baker e cols.,16 em um estudo do CIBMTR (Center for International Blood and Marrow Transplant Research), mostraram uma tendência em relação a um risco maior de falha ao tratamento e de mortalidade entre pacientes de origem hispânica com leucemia aguda ou crônica e que haviam recebido um TCTH alogênico mieloablativo e com doadores irmãos idênticos. Os autores especularam um possível papel da situação socioeconômica nos seus resultados. Um outro estudo do CIBMTR mostrou claramente que uma baixa situação socioeconômica teve um impacto negativo nos resultados dos TCTH com doadores não aparentados. Houve um aumento da mortalidade relacionada ao transplante e uma sobrevida global pior.15 Haberman e cols.17 mostraram que a inserção no mercado de trabalho e o sucesso financeiro estavam relacionados com a recuperação e o bem-estar psicológico do paciente após o TCTH. Heinomen e cols.,18 por outro lado, mostraram que o trabalho, a escolaridade e o suporte social tiveram influência na QV.

O estudo de Mastropietro e cols.,19 publicado nesta edição, mostra a relação entre renda, trabalho e qualidade de vida dos pacientes que foram submetidos a um TCTH. Vale destacar que o grupo de TCTH do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto tem se dedicado e se destacado, nos últimos anos, nos estudos referentes à QV pós-transplante. Os autores trazem uma contribuição valiosa, já que os dados nacionais, e mesmo internacionais, são escassos nesta área. Através de instrumentos para avaliação socioeconômica, entrevista de recuperação pós-transplante, SF-36 e FACT-BMT, os autores foram capazes de demonstrar, pelo modelo de regressão logística, que a renda teve associação com as variávieis escore total de QV, sentir-se capaz e saúde mental. Os pacientes que tinham renda acima de dois salários mínimos tinham índices mais elevados no domínio saúde mental e no escore total de QV, além de se sentirem mais capazes de realizar as atividades de vida diária. Os autores discutem que as condições de pobreza depreciam a qualidade de vida, o sentimento de ser competente na vida pessoal e o ajustamento psicológico, o que poderia elevar ainda mais os riscos inerentes do TCTH.

As evidências sugerem que os médicos que trabalham com TCTH consideram a QV um aspecto secundário ao potencial de cura do transplante, além de subestimar os sintomas ou superestimar a QV dos seus pacientes.6 Os médicos deveriam usar a literatura referente à QV para auxiliar os seus pacientes a tomarem decisões.6 Os seguintes aspectos deveriam ser considerados para o aconselhamento dos pacientes candidatos a um TCTH:6

1. O TCTH é um tratamento árduo, que traz riscos de complicações sérias;

2. Os pacientes devem ser informados em relação à morbidade e mortalidade do transplante, DECH aguda e crônica, infecções, recidivas e complicações tardias. Eles também precisam ser alertados que estas complicações poderão afetar a sua QV;

3. Destacar os resultados positivos. Entre um a dois anos pós-transplante, mais de 60% dos pacientes sobreviventes relatam a sua QV como boa ou excelente, e mais de 60% não apresentam limitações funcionais maiores;

4. Destacar os resultados adversos. Mais de 25% dos pacientes sobreviventes manterão problemas médicos e mais de 25% apresentarão distúrbios emocionais e prejuízo na satisfação com a vida.

O estudo de Mastropietro e cols.19 traz subsídios para que os profissionais que trabalham com TCTH fiquem atentos e valorizem as condições socioeconômicas dos pacientes, possibilitando assim um suporte adequado e melhor acompanhamento. Assim sendo, a avaliação socioeconômica deveria ser mais uma ferramenta a ser acrescentada no pré-transplante. A conclusão dos autores coloca em evidência esta necessidade: "Não só a qualidade de vida, como também o sentimento de competência pessoal e a aquisição de um melhor ajustamento psicológico, estão fortemente associados com a renda familiar. Esse achado sugere maior atenção aos fatores socioeconômicos. Para reduzir o impacto desses fatores, são necessárias demandas da equipe multiprofissional constituída pelos médicos, enfermeiros, terapeuta ocupacional, psicólogo, assistente social, fisioterapeuta, dentista, suporte familiar e comunitário."

Unidade de Transplante de Células-Tronco Hematopoéticas (TCTH) Hemocentro de Campinas/Hospital das Clínicas (HC), Unicamp Campinas-SP.

Recebido: 23/03/2010

Aceito: 23/03/2010

Avaliação: O tema abordado foi sugerido e avaliado pelo editor.

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  • Correspondência: Afonso Celso Vigorito
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Jul 2010
    • Data do Fascículo
      2010
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