Acessibilidade / Reportar erro

Relação entre renda, trabalho e qualidade de vida de pacientes submetidos ao transplante de medula óssea

Relationship between income, work and quality of life of patients submitted to bone marrow transplantation

Resumos

Embora a literatura aponte a necessidade de avaliação das condições de trabalho, suporte social e familiar dos pacientes submetidos ao transplante de medula óssea (TMO), são poucas as pesquisas nacionais acerca da influência do perfil socioeconômico sobre a qualidade de vida do paciente transplantado. Resultados de estudos internacionais não são conclusivos quanto à associação entre estas variáveis e a readaptação pós-TMO. O objetivo do presente estudo foi identificar possíveis relações entre renda, trabalho e qualidade de vida em pacientes submetidos ao TMO. A amostra foi composta por 62 pacientes adultos, com 4,3 anos de transplante em média. Para a coleta de dados foram utilizados: Instrumental de Avaliação Socioeconômica, Entrevista de Recuperação Pós-TMO, SF-36 e FACT-BMT. Os resultados mostraram que 43,5% dos pacientes tinham renda familiar de até dois salários mínimos. A situação de afastamento do trabalho foi encontrada em 46,7% dos pacientes. A variável renda foi significativamente associada com qualidade de vida, sentimento de competência pessoal e ajustamento psicológico do paciente.

Transplante de células-tronco hematopoéticas; qualidade de vida; renda familiar; trabalho


Although the literature points towards the need to assess the work conditions and the social and familiar support of patients submitted to BMT, few Brazilian data are available about the influence of the socio-economic profile on the quality of life. Results of international studies about the association between these variables and post-BMT re-adaptation are inconclusive. This study aims to identify possible relationships between income, work and quality of life in patients submitted to BMT. The study sample consisted of 62 adult patients, with an average adaptation period of 4.3 years after transplant. To collect data, we used: the Socio-economic Assessment Instrument, Post-TMO Recovery Interview, SF-36 and FACT-BMT. Results showed that 43.5% of the patients had a family income of up to two minimum wages and 46.7% of the patients were absent from work at some time during the follow-up. A significant relationship was observed between income, patient's quality of life, feeling of personal competence and psychological adjustment.

Hematopoietic stem cell transplantation; quality of life; family Income; work


ARTIGO ARTICLE

Relação entre renda, trabalho e qualidade de vida de pacientes submetidos ao transplante de medula óssea

Relationship between income, work and quality of life of patients submitted to bone marrow transplantation

Ana Paula MastropietroI; Érika A. Oliveira-CardosoII; Belinda P. SimõesIII; Júlio César VoltarelliIV; Manoel Antônio SantosV

ITerapeuta ocupacional da Unidade de Transplante de Medula Óssea do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP - Ribeirão Preto-SP

IIPsicóloga da Unidade de Transplante de Medula Óssea do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP - Ribeirão Preto-SP

IIIProfessora do Curso de Graduação em Medicina da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP - Ribeirão Preto-SP

IVProfessor Titular do Curso de Graduação em Medicina da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP. Coordenador da Unidade de Transplante de Medula Óssea do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto-SP

VProfessor do Curso de Graduação e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da USP - Ribeirão Preto-SP

Correspondência Correspondência: Érika Arantes de Oliveira Cardoso Rua Machado de Assis, 359 - Vila Tibério 14050-490 - Ribeirão Preto-SP - Brasil E-mail: erikaao@ffclrp.usp.br

RESUMO

Embora a literatura aponte a necessidade de avaliação das condições de trabalho, suporte social e familiar dos pacientes submetidos ao transplante de medula óssea (TMO), são poucas as pesquisas nacionais acerca da influência do perfil socioeconômico sobre a qualidade de vida do paciente transplantado. Resultados de estudos internacionais não são conclusivos quanto à associação entre estas variáveis e a readaptação pós-TMO. O objetivo do presente estudo foi identificar possíveis relações entre renda, trabalho e qualidade de vida em pacientes submetidos ao TMO. A amostra foi composta por 62 pacientes adultos, com 4,3 anos de transplante em média. Para a coleta de dados foram utilizados: Instrumental de Avaliação Socioeconômica, Entrevista de Recuperação Pós-TMO, SF-36 e FACT-BMT. Os resultados mostraram que 43,5% dos pacientes tinham renda familiar de até dois salários mínimos. A situação de afastamento do trabalho foi encontrada em 46,7% dos pacientes. A variável renda foi significativamente associada com qualidade de vida, sentimento de competência pessoal e ajustamento psicológico do paciente.

Palavras-chave: Transplante de células-tronco hematopoéticas; qualidade de vida; renda familiar; trabalho.

ABSTRACT

Although the literature points towards the need to assess the work conditions and the social and familiar support of patients submitted to BMT, few Brazilian data are available about the influence of the socio-economic profile on the quality of life. Results of international studies about the association between these variables and post-BMT re-adaptation are inconclusive. This study aims to identify possible relationships between income, work and quality of life in patients submitted to BMT. The study sample consisted of 62 adult patients, with an average adaptation period of 4.3 years after transplant. To collect data, we used: the Socio-economic Assessment Instrument, Post-TMO Recovery Interview, SF-36 and FACT-BMT. Results showed that 43.5% of the patients had a family income of up to two minimum wages and 46.7% of the patients were absent from work at some time during the follow-up. A significant relationship was observed between income, patient's quality of life, feeling of personal competence and psychological adjustment.

Key words: Hematopoietic stem cell transplantation; quality of life; family Income; work.

Introdução

Atualmente, a qualidade de vida tem sido intensamente investigada nos mais diversos contextos de saúde e doença. Trata-se de um conceito multidimensional que abrange a percepção do indivíduo de sua posição na vida, no contexto da cultura e valores nos quais ele está inserido e em relação aos seus objetivos, expectativas, padrões e preocupações.1

No caso específico da qualidade de vida relacionada à saúde, foi observado que sua apreciação está vinculada, entre outros fatores, à condição socioeconômica dos pacientes, sendo que baixos índices de renda per capita estariam relacionados com baixos escores de qualidade de vida.2 Dentro desse contexto, nos últimos anos tem aumentado a atenção aos aspectos relacionados à qualidade de vida dos pacientes oncológicos, como os submetidos ao transplante de medula óssea (TMO), em decorrência do crescente índice de sobrevida proporcionado pelo aprimoramento tecnológico dos procedimentos médicos.3

Em relação aos achados da literatura internacional, um grupo de pesquisadores realizou um estudo de seguimento com 125 adultos, no período de 6 a 18 anos pós-TMO. Foi utilizado para coleta de dados um roteiro de entrevista com o objetivo geral de examinar a qualidade de vida desses pacientes. Observaram que a inserção no mercado de trabalho e o sucesso financeiro, dentre outras variáveis, estavam relacionados com a recuperação e o bem-estar psicológico do paciente pós-TMO.4 Outro estudo foi realizado com 109 pacientes que se encontravam entre 4 e 171 meses pós-TMO (média de 55 meses), utilizando os seguintes instrumentos de avaliação da qualidade de vida: MOS SF-36, POMS e SSQ6ADL. Dentre as variáveis de maior valor preditivo sobre a qualidade de vida destacaram-se: trabalho, escolaridade e suporte social.5

No contexto nacional, foi realizado um estudo com o objetivo de verificar se existia uma correlação entre os escores de qualidade de vida, variáveis sociodemográficas e indicadores clínicos do TMO. O instrumento utilizado para avaliar a qualidade de vida foi o SF-36, aplicado em uma amostra de 57 pacientes submetidos ao TMO. De acordo com os resultados encontrados, nenhuma das variáveis sociodemográficas mostrou ter uma influência estatisticamente significativa sobre os domínios de qualidade de vida.6

Como pode ser observado, embora alguns estudos tenham examinado se a qualidade de vida está associada de forma significativa ao contexto socioeconômico e/ou cultural dos pacientes, não existe consenso na literatura em relação à influência das variáveis sociodemográficas, como renda e trabalho, na qualidade de vida e na adaptação do paciente após o TMO. É necessário envidar esforços para estimular pesquisas nessa temática, sobretudo em países em desenvolvimento, o que justifica a realização do presente estudo, tendo em vista que são escassas as publicações nacionais que abordam essa questão.

O objetivo do estudo foi examinar as possíveis relações existentes entre renda, trabalho e qualidade de vida em pacientes submetidos ao TMO.

Casuística e Método

Trata-se de uma pesquisa clínica,7,8 qualiquantitativa conduzida mediante um delineamento do tipo exploratório relacional transversal, no qual se pretende investigar as possíveis associações existentes entre as variáveis renda, trabalho e qualidade de vida. Tal modelo preconiza que um estudo tenha o início e o término de sua coleta de dados previamente estabelecidos. No caso da presente investigação, determinou-se o período de janeiro a dezembro de 2005, ou seja, foram avaliados todos os pacientes que retornaram ao hospital-dia e ambulatório nesse intervalo de tempo.

A amostra foi composta por 62 pacientes adultos que haviam sido submetidos ao TMO e que permaneceram em acompanhamento no Hospital Dia e Ambulatório, fase pós-TMO, da Unidade de TMO do HCFMRP-USP, no período de janeiro a dezembro de 2005.

Considerando-se a abordagem metodológica escolhida, um levantamento bibliográfico foi realizado sobre estudos anteriores.9 A escolha dos instrumentos baseou-se em dois critérios: (1) nas exigências do referencial metodológico, optando-se pela utilização de instrumentos quantitativos e qualitativos10 e (2) na utilização prévia desses instrumentos em pesquisas conduzidas em contextos semelhantes.4,5

Instrumentos

1) Instrumental de Avaliação Socioeconômica: Instrumento desenvolvido e validado para a nossa realidade, composto de indicadores sociais que permitem aferir, de modo objetivo, o nível socioeconômico do indivíduo. Esse instrumento é subdividido em cinco quadros: situação econômica da família, número de membros residentes da família, escolaridade, habitação e ocupação dos membros da família.11

2) Entrevista de Recuperação Pós-TMO: Trata-se de uma entrevista desenvolvida com base nas proposições de um estudo internacional.4 Abordam-se questões relativas ao estado geral de saúde e à adaptação ocupacional e social com o objetivo de compreender a retomada da vida cotidiana, demandas ocorridas durante o processo vivido até aquele momento, estratégias de enfrentamento, limitações contraídas pós-TMO, problemas de saúde e planos para o futuro. O instrumento original é constituído de oito questões abertas. No presente estudo optou-se pelo acréscimo de mais seis questões com o objetivo de investigar mais amplamente os aspectos da vida cotidiana atual dos pacientes, tais como: se está trabalhando atualmente e se é o mesmo trabalho que tinha antes do TMO, se está vivenciando limitações para realizar suas atividades do dia-a-dia decorrente de alguma restrição ou problema orgânico, se sente capaz de realizar suas atividades no dia-a-dia, acredita que as mudanças que ocorreram em sua vida pós-TMO foram positivas ou negativas, se tem desejo de mudar seu cotidiano atual, se está satisfeito com sua vida atual, se tem projetos para o futuro e quais são esses planos.

3) Questionário Genérico de Qualidade de Vida relacionada à Saúde - Medical Outcomes Short-Form Health Survey - SF-36: Trata-se de um elemento de avaliação genérica da qualidade de vida relacionada à saúde amplamente utilizado, com caráter multidimensional, de fácil administração e compreensão. Foi validado para o contexto brasileiro e é composto por 36 questões que abordam: capacidade funcional (10 ítens), aspectos físicos (4 ), dor (2 ), estado geral de saúde (5 ), vitalidade (4 ), aspectos sociais (2), aspectos emocionais (3 ), saúde mental (5) e uma última questão, que compara a saúde atual com a de um ano atrás.12

4) Functional Assessment Cancer Therapy - Bone Marrow Transplantation - FACT-BMT: Esse questionário, validado para a língua portuguesa,13 em sua terceira versão, é composto de 47 questões, sendo 41 utilizadas para obtenção do escore; as seis questões restantes são apresentadas por fornecer informações de síntese, porém não devem ser utilizadas para a obtenção do escore final. As questões são distribuídas em seis domínios: bem-estar físico, bem- estar social/familiar, relacionamento com o médico, bem-estar emocional, bem-estar funcional e preocupações adicionais. No contexto internacional, o FACT-BMT tem sido um dos instrumentos mais utilizados para mensurar o funcionamento de pacientes submetidos ao TMO. A versão para a língua portuguesa alcançou um índice alfa de Cronbach de 0,88.13

Os instrumentos foram aplicados individualmente, ao longo de três sessões de meia hora, ocorridas no mesmo dia. Em alguns casos, segundo o desejo do participante, a coleta foi realizada em uma única sessão de uma hora e meia.

A Entrevista de Recuperação Pós-TMO foi submetida a um pré-teste, visando a calibrar o instrumento. As novas questões foram formuladas de acordo com o seguinte procedimento: solicitou-se a dois pesquisadores experientes e com doutorado na área, que estavam cientes dos objetivos da pesquisa, que formulassem uma lista de questões que julgavam relevantes para a investigação, com base nos principais problemas apontados pela literatura ou observados empiricamente no curso da atuação profissional. Após harmonização das listas, o roteiro de entrevista foi denominado de versão 1. Essa versão foi submetida a um comitê de cinco juízes, todos profissionais relacionados à área da saúde. Após serem consideradas suas sugestões, a versão 1 foi pré-testada em 20 pacientes submetidos ao TMO.

As respostas fornecidas às oito questões que compõem a Entrevista de Recuperação Pós-TMO foram transcritas e submetidas à análise de conteúdo temática frequencial,14 realizada por dois pesquisadores que avaliaram o material de modo independente. Foram consideradas válidas as classificações de consenso. A análise de conteúdo pode ser entendida como um conjunto de técnicas de análise das comunicações, baseadas em procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, que são vistos como indicadores, quantitativos ou qualitativos, que permitem a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção e recepção (variáveis inferidas) dessas mensagens.14

As variáveis resultantes dessa análise foram: sentir-se capaz de realizar suas atividades do dia a dia (sim ou não), vivenciando limitações para realizar suas atividades no dia a dia (sim ou não), satisfação com a vida atual (sim ou não), mudanças no seu cotidiano após o TMO (positivas ou negativas), planos futuros (projetos relacionados à saúde ou projetos ocupacionais), trabalhando atualmente (sim ou não).

A avaliação do SF-36 e FACT-BMT seguiram as instruções recomendadas pelos autores.12,13 Para a análise dos dados foram realizadas análises estatísticas descritivas.

Para a inclusão dos participantes no presente estudo foram adotados todos os procedimentos éticos exigidos pela Resolução CNS 196/96. Em primeiro lugar, teve-se como princípio básico o respeito aos voluntários e à instituição hospitalar à qual eles se encontravam vinculados. O projeto foi aprovado pelo coordenador da Unidade de TMO antes de ser aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto-USP, como processo HCFMRP-USP nº 10700/2004.

Resultados

Variáveis do estudo

As variáveis de estudo foram: sexo (feminino ou masculino), idade (de 21 a 30 ou acima de 30 anos), filhos (tem filhos ou não tem filhos), estado civil (casado/amasiado ou solteiro), escolaridade (de 1 a 8 anos ou acima de 8 anos), renda (de um a dois salários mínimos ou acima de dois salários mínimos), oito domínios do SF-36 (aspecto emocional, saúde mental, vitalidade, aspecto social, dor, aspecto físico, estado geral de saúde, capacidade funcional), seis domínios do FACT-BMT (bem-estar físico, bem-estar social/familiar, relacionamento com o médico, bem-estar emocional, bem-estar funcional, preocupações adicionais) e escore total e variáveis da Entrevista de Recuperação Pós-TMO (sentir-se capaz (sim ou não), vivenciando limitações (sim ou não), satisfação com a vida (sim ou não), mudanças (positivas ou negativas), projetos ocupacionais (sim ou não), projeto de saúde (sim ou não), trabalhando atualmente (sim ou não).

Em relação ao perfil sociodemográfico dos pacientes incluídos no estudo verificou-se um discreto predomínio de pacientes do sexo feminino (56,45%). A amostra foi constituída de pacientes jovens (51,61% com até 30 anos), casados ou vivendo em união consensual (75, 81%), com dependentes (61,29%). Também chama a atenção o baixo nível de escolaridade e de rendimento; 41 (66,10%) pacientes não exerciam qualquer atividade profissional no momento da avaliação, dentre os quais 29 encontravam-se afastados do trabalho devido à sua condição de saúde.

Em relação à situação produtiva observou-se que a maioria dos pacientes no pré-TMO estava inserida no mercado de trabalho e apenas quatro (um estudante e três mulheres do lar) não exerciam atividade remunerada, ou seja, não produziam capital. Já no pós-TMO, a maioria se encontrava afastada de suas ocupações anteriores. Muitos relataram que a renda que recebiam do INSS na condição de "afastados" era maior do que o salário que recebiam quando na ativa.

Observou-se que os trabalhadores rurais (16 pacientes), pedreiros (8 pacientes), vendedores (7 pacientes) e domésticas (4 pacientes) foram as categorias ocupacionais mais representadas no pré-TMO. São ocupações de baixo prestígio social, que implicam atividades manuais que não requerem qualificação profissional, compatíveis com baixo nível de escolaridade.

No pós-TMO, vendedor foi a categoria ocupacional mais encontrada (sete pacientes). Os trabalhadores rurais e pedreiros foram ocupações extintas na etapa pós-TMO. Já o trabalho doméstico remunerado diminuiu; apenas uma paciente voltou a exercer essa ocupação. Esses dados podem estar associados com uma maior dificuldade dos pacientes pós-TMO de se reinserirem no mercado de trabalho, especialmente em atividades que exigem esforço físico vigoroso e exposição solar permanente, que são contraindicadas após o transplante.

Com relação à renda, as variáveis dos instrumentos aplicados que alcançaram correlação estatisticamente significante foram: sentir-se capaz, limitações, satisfação, mudanças, bem-estar físico, bem-estar emocional, bem-estar funcional, bem-estar social/familiar, preocupações adicionais e saúde mental. Ou seja, pacientes com renda superior a dois salários mínimos apresentavam maiores escores nos domínios de qualidade de vida, relatavam que se sentiam mais capazes de realizar suas atividades, vivenciavam menos limitações para realizar suas atividades, tinham mais satisfação com seu cotidiano e referiram que as mudanças que ocorreram em sua vida cotidiana após o TMO foram positivas. Esses dados foram sistematizados na Tabela 1.

Após verificar quais variáveis tiveram correlações estatisticamente significativas com a variável dependente renda, optou-se por continuar o estudo sobre essas correlações, aplicando-se o método de análise de regressão logística multivariada. Antes de aplicar a análise de regressão logística multivariada foi preciso selecionar apenas seis variáveis independentes para compor cada análise, pois, devido ao tamanho da amostra (n= 62), não é recomendável considerar um número maior de variáveis. Devido à multicolinearidade constata-se que as variáveis que têm muita correlação entre si estão explicando a mesma faceta da variável dependente, que, no caso, é tempo pós-TMO.

Com relação ao FACT-BMT, todos os seis domínios e o escore total apresentaram correlação estatisticamente significativa com a variável dependente renda, como pode ser observado na Tabela 1, mostrando que a FACT-BMT é bastante sensível com a variável renda. Optou-se então em selecionar o escore total (z=-4,513; p<0,001) para compor a análise de regressão logística, uma vez que ele oferece a compreensão total do questionário.

Nas relações entre renda e os aspectos do SF-36, apenas o domínio saúde mental apresentou correlação estatisticamente significativa. Na Entrevista de Recuperação Pós-TMO, as variáveis satisfação, sentir-se capaz, limitações e mudanças apresentaram correlações estatisticamente significativas. O modelo inicial ficou configurado conforme apresentado na Tabela 2.

Do modelo de regressão logística inicial foram excluídas ao final, uma por uma, as variáveis que em cada correlação apresentavam maior valor de p. Primeiramente, foi excluída a variável mudança, seguida por limitação e satisfação, permanecendo no modelo final as variáveis: escore total, sentir-se capaz e saúde mental, como pode ser observado na Tabela 3.

Pode-se concluir, portanto, que escore total, sentir-se capaz e saúde mental são as variáveis de maior valor preditivo em relação à variável renda, conforme mostra a Tabela 3.

Entende-se, então, que os pacientes que auferiam renda acima de dois salários mínimos apresentavam maior probabilidade (em média 4,7% de chance) de terem índices mais elevados no domínio saúde mental. O mesmo acontece com o escore total: os pacientes que auferiam renda acima de dois salários mínimos apresentavam maior probabilidade (em média 6,7% de chance) de terem maiores índices no escore total de qualidade de vida.

Com referência à variável sentir-se capaz, observa-se que os pacientes com renda acima de dois salários mínimos relatavam que se sentiam mais capazes (3,9 vezes de chance) de realizar atividades de vida diária. Isso significa que essas três variáveis: escore total, sentir-se capaz e saúde mental são as que melhor explicam a relação com renda. Ou seja, a variável renda está fortemente associada com o escore total da escala específica de qualidade de vida, com o sentimento de competência pessoal no desempenho das atividades diárias e com ajustamento psicológico.

Discussão

O TMO é um recurso que requer um conjunto de cuidados e cuidadores altamente especializados, uma vez que oferece risco elevado de complicações as quais podem, inclusive, levar o paciente à morte. Para sua efetividade terapêutica é necessário arregimentar um somatório de recursos dispendiosos que, por si só, não bastam para assegurar um desfecho bem-sucedido. O presente estudo fornece apoio para se considerar que, além dos aspectos humanos envolvidos nas tecnologias do cuidar, as variáveis ligadas ao contexto material de vida dessas pessoas – como a renda e o status ocupacional – também precisam ser investigadas; afinal são elas que oferecem o substrato concreto para suporte das ações de cuidado. Como a variável renda está fortemente associada com o escore total do questionário específico de qualidade de vida, com o sentimento de competência pessoal e o ajustamento psicológico do paciente, é necessário pensar nos recursos materiais que cada família dispõe para sua sustentação econômica. É preciso, assim, que haja a contrapartida da família, que ela se mobilize no sentido de angariar investimentos de uma rede de apoio social que consiga suprir as necessidades do paciente em seus momentos de maior vulnerabilidade.

Os resultados do presente estudo não corroboraram achados de investigações precedentes,6 uma vez que sugerem fortemente a influência de fatores socioeconômicos na qualidade de vida de pacientes submetidos ao TMO. Por outro lado, o achado que indica que pacientes com renda familiar superior a dois salários mínimos apresentaram maiores escores de qualidade de vida vem ao encontro de achados internacionais.4,5

Todavia, o presente estudo mostrou que, para grande parte dos pacientes, esse padrão de rendimento não advém do próprio trabalho, no período pós-TMO, mas dos benefícios sociais auferidos, uma vez que se encontravam afastados de suas ocupações originais.

Apesar de não existir um consenso na literatura a respeito dessa questão, vários autores acreditam que as limitações encontradas na retomada do cotidiano anterior ao TMO têm um efeito direto sobre a renda, que, na maioria dos casos, é depreciada, devido à restrição ao exercício de atividades, determinada pela equipe médica ou pela própria condição física, além do que a maioria dos pacientes transplantados vivencia problemas de inserção no mercado de trabalho e, como consequência, apresenta problemas financeiros.15,16

Esse dado é preocupante e remete à constatação de que não basta demonstrar que as condições objetivas da vida afetam a saúde e influenciam a qualidade de vida, mas urge planejar intervenções para apoiar de maneira mais efetiva os pacientes.17 Nesse contexto, as estratégias psicossociais parecem ser extremamente relevantes para assegurar o ajustamento no delicado período pós-TMO, quando o paciente necessita reorganizar-se para enfrentar as repercussões físicas, psicológicas, sociais e ocupacionais que impactam sua vida.

O processo de retomada do cotidiano é frequentemente tortuoso e ocorre em ritmo lento e penoso, atravessado por avanços e recuos, além de poder ser obstaculizado por complicações clínicas que nem sempre podem ser prevenidas e controladas.9 O que o presente estudo evidencia é que as condições de pobreza a que são submetidos os pacientes depreciam a qualidade de vida, o sentimento de ser competente em sua vida pessoal e o ajustamento psicológico, o que poderia elevar ainda mais os riscos inerentes ao TMO. Esses dados vêm agregar-se ao conhecimento já estabelecido por outra investigação,9 que mostra que a pobreza constitui risco potencial para os agravos que podem suceder ao transplante, na medida que intensificam as dificuldades de seguir orientações rigorosas em termos de autocuidados, higiene, alimentação, moradia, transporte, o que requer um contínuo monitoramento das possibilidades e limitações de cada sistema familiar. Afinal, o TMO incrementa a vulnerabilidade familiar, potencializando situações de crise.18

Também foi possível evidenciar o enorme desafio da readaptação no plano ocupacional, exigindo muitas vezes alterações drásticas, como a mudança de profissão, sem contar as dificuldades de inserção e reinserção no mercado de trabalho em um mundo cambiante como o contemporâneo, cada vez mais seletivo e excludente. Desse modo, podem ocorrer mudanças nos papéis sociais. Os fatores ambientais, cujo acesso depende em grande medida do padrão de vida das pessoas, parecem ser realmente decisivos para o prolongamento da sobrevida,19,20 e, como tais, não podem ser afastados dos cálculos de risco, pois o isolamento protetor oferecido na enfermaria, na fase do pós-TMO imediato, precisa de certo modo ter continuidade no âmbito doméstico, até que o paciente tenha condições efetivas de reconstruir sua vida.

Conclusão

O presente estudo adiciona ao conhecimento acumulado no contexto do TMO a informação de que não só a qualidade de vida, como também o sentimento de competência pessoal e a aquisição de um melhor ajustamento psicológico, estão fortemente associados com a renda familiar. Esse achado sugere maior atenção aos fatores socioeconômicos.

Para reduzir o impacto desses fatores, o árduo percurso que o transplantado percorre até a plena recuperação de sua condição de saúde demanda esforços, que vão desde o apoio intensivo da equipe multiprofissional constituída por médicos, enfermeiros, terapeuta ocupacional, psicólogo, assistente social, fisioterapeuta, dentista, até o suporte familiar e comunitário. O êxito do processo adaptativo do paciente depende, em larga medida, da sinergia de todos esses recursos mobilizados, que só acontecerá quando - e se - eles se conectarem e se colocarem em diálogo para oferecer ao paciente a continência de que ele necessita em cada estágio de seu lento processo de recuperação.

Recebido: 09/06/2009

Aceito: 15/01/2010

Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto - Universidade de São Paulo/Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto - Universidade de São Paulo - Ribeirão Preto-SP

Avaliação: Editor e dois revisores externos

Conflito de interesse: sem conflito de interesse

  • 1. The WHOQOL Group. The development of the World Health Organization quality of life assessment instrument (the WHOQoL). In: Orley J, Kuyken W editors. Quality of life assessment: international perspectives. Heidelberg: Springer Verlag; 1994. pp. 41-60.
  • 2. Galvão MTG, Cerqueira ATAR, Marcondes-Machado J. Avaliação da qualidade e vida de mulheres com HIV/AIDS através do HAT-QoL. Cad Saúde Pública. 2004;20(2):430-7.
  • 3. Andrykowski MA, Greiner CB, Altmaier EM, Burish TG, Antin JH, Gingrich R, et al Quality of life following bone marrow transplantation: findings from a multicentre study. Br J Cancer. 1995;71(6):1322-9.
  • 4. Haberman M, Bush N, Young K, Sullivan KM. Quality of life of adult long-term survivors of bone marrow transplantation: a qualitative analysis of narrative data. Oncol Nurs Forum. 1993; 20(10):1545-53.
  • 5. Heinonen H, Volin L, Uutela A, Zevon M, Barrick C, Ruutu T. Quality of life and factors related to perceived satisfaction with quality of life after allogeneic bone marrow transplantation. Ann Hematol. 2001;80(3):137-43.
  • 6. Silva LMG. Qualidade de vida e transplante de medula óssea em neoplasias hematológicas. [Dissertação]. São Paulo (SP): Escola de Enfermagem/USP; 2000.
  • 7. Brewer J, Hunter A. Multimethod research: a synthesis of styles. Sage (CA): Newbury Park, 1989.
  • 8. Crabtree BF, Miller WL. (Eds.). Doing qualitative research. Sage (CA): Thousand Oaks, 1999.
  • 9. Oliveira EA. Qualidade de vida de paciente submetidos ao transplante de medula óssea alogênico: um estudo longitudinal.[Tese]. Ribeirão Preto (SP): FFCLRP/USP; 2004.
  • 10. Eilers JG, King CR. Quality of life issues related to marrow transplantation. In: King CR, Hinds PS. Quality of life from nursing patients perspective: theory, research, practice. Sudbury: Jones and Barlett Pusblishers 1998, p. 204-230.
  • 11. Graciano MIG, Lehfeld NAS, Neves Filho A. Critérios de avaliação para classificação sócio-econômica: elementos de atualização. Serviço Social & Realidade 1999;8(1):109-12.
  • 12. Ciconelli RM. Tradução para o português e validação do Questionário Genérico de Avaliação de Qualidade de Vida. "Medical Outcomes Study 36 - Item Short - Form Health Survey (SF-36)". [Tese]. São Paulo (SP): Unifesp;
  • 13. Mastropietro AP, Oliveira EA, Santos MA, Voltarelli JC. Functional Assessment of Cancer Therapy Bone Marrow Transplantation: tradução e validação. Rev Saúde Pública. 2007;41(2):260-68.
  • 14. Bardin L. Análise de Conteúdo. Lisboa (Portugal): Edições 70, 1977.
  • 15. Broers S, Kaptein A, Cessie S, Fibbe W, Hengeveld MW. Psychological functioning and quality of life following bone marrow transplantation: a 3-years follow-up study. J Psychosom Res. 2000; 48(1):11-21.
  • 16. Hayden PJ, Keogh F, Ni Conghaile M, Carroll M, Crowley M, Fitzsimon N, et al. A single-centre assessment of long-term quality-of-life status after sibling allogeneic stem cell transplantation for chronic myeloid leukaemia in first chronic phase. Bone Marrow Transplant. 2004;34(6):545-56.
  • 17. Buss PM. Promoção de saúde e qualidade de vida. Rev C S Col. 2000; 5(1):163-77.
  • 18. Matsubara TC, Carvalho EC, Canini SRMS, Sawada NO. A crise familiar no contexto do Transplante de Medula Óssea (TMO): uma revisão integrativa. Rev Latino-Am Enfermagem 2007;15(4): 665-70.
  • 19. Wünsch Filho V, Antunes JLF, Boing AF. Perspectivas da investigação sobre determinantes sociais em câncer. Physis Revista de Saúde Coletiva. 2008:18(3):427-50
  • 20. Silla L, Fischer GB, Paz A, Daudt LE, Mitto I, Katz B, et al. Patient socioeconomic status as a prognostic factor for allo-SCT. Bone Marrow Transplant. 2009;43(7):571-7.
  • Correspondência:
    Érika Arantes de Oliveira Cardoso
    Rua Machado de Assis, 359 - Vila Tibério
    14050-490 - Ribeirão Preto-SP - Brasil
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      30 Abr 2010
    • Data do Fascículo
      2010

    Histórico

    • Aceito
      15 Jan 2010
    • Recebido
      09 Jun 2009
    Associação Brasileira de Hematologia e Hemoterapia e Terapia Celular R. Dr. Diogo de Faria, 775 cj 114, 04037-002 São Paulo/SP/Brasil, Tel. (55 11) 2369-7767/2338-6764 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: secretaria@rbhh.org