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Distúrbios da hemostasia em crianças portadoras de cardiopatias congênitas

Hemostatic defects in children with congenital heart disease

Resumos

As cardiopatias congênitas apresentam elevada prevalência no Brasil, sendo responsáveis por morbi-mortalidade importante, principalmente em menores de 5 anos de idade. Relacionam-se a um perfil complexo de alterações hemostáticas, predispondo tanto a eventos trombóticos como hemorrágicos, e cujo conhecimento é fundamental para o manejo adequado de cada paciente. O presente artigo objetiva descrever as alterações da coagulação relacionadas às cardiopatias congênitas, cianogênicas ou não, em menores de 18 anos de idade, submetidos ou não a procedimentos cirúrgicos.

Cardiopatia; coagulação sanguínea; trombose


There is a high prevalence of congenital heart diseases in Brazil, which are responsible for high morbidity and mortality, mainly in under 5-year-old children. They are related to a complex profile of hemostatic disorders that lead to thrombotic and hemorrhagic events. Thus knowledge of the diseases is imperative for the adequate management of each patient. The objective of this article is to describe coagulation abnormalities related to congenital cyanotic and non-cyanotic heart diseases, in children, undergoing surgical procedures or not.

Coronary diseases; blood coagulation disorders; thrombosis


REVISÃO REVIEW

Distúrbios da hemostasia em crianças portadoras de cardiopatias congênitas

Hemostatic defects in children with congenital heart disease

Tais S. SenaI ; Silvio R. Pinheiro FilhoI; Isa M. LyraII

IMédica Residente em Hematologia Pediátrica do Hospital Santo Antônio/Obras Sociais Irmã Dulce - Salvador - BA

IIGerente da Hematologia Pediátrica da Universidade Federal da Bahia; Coordenadora da Agência Transfusional do Hospital Ana Neri; Preceptora da Residência Médica de Hematologia do Hospital Santo Antônio/Obras Sociais Irmã Dulce - Salvador - BA

Correspondência Correspondência: Tais Soares Sena Rua das Jandaias, 74, apto. 1203 - Imbuí 41720-090 - Salvador-BA - Brasil E-mail: taisssena@hotmail.com

RESUMO

As cardiopatias congênitas apresentam elevada prevalência no Brasil, sendo responsáveis por morbi-mortalidade importante, principalmente em menores de 5 anos de idade. Relacionam-se a um perfil complexo de alterações hemostáticas, predispondo tanto a eventos trombóticos como hemorrágicos, e cujo conhecimento é fundamental para o manejo adequado de cada paciente. O presente artigo objetiva descrever as alterações da coagulação relacionadas às cardiopatias congênitas, cianogênicas ou não, em menores de 18 anos de idade, submetidos ou não a procedimentos cirúrgicos.

Palavras-chave: Cardiopatia; coagulação sanguínea; trombose.

ABSTRACT

There is a high prevalence of congenital heart diseases in Brazil, which are responsible for high morbidity and mortality, mainly in under 5-year-old children. They are related to a complex profile of hemostatic disorders that lead to thrombotic and hemorrhagic events. Thus knowledge of the diseases is imperative for the adequate management of each patient. The objective of this article is to describe coagulation abnormalities related to congenital cyanotic and non-cyanotic heart diseases, in children, undergoing surgical procedures or not.

Key words: Coronary diseases; blood coagulation disorders; thrombosis.

Introdução

Estima-se que as malformações congênitas incidam em 2% a 3% dos nascidos vivos, estando em segundo lugar entre as causas de mortalidade infantil no Brasil, e em terceiro lugar quando considerada a mortalidade em menores de cinco anos.1 Dentre as anomalias congênitas graves, as do coração e grandes vasos são as mais frequentes, acometendo entre 2 a 10/ 1000 nascidos vivos.2

No Brasil, em 1997, segundo estudo conduzido em Pernambuco, por Arruda et al., as anormalidades cardiovasculares foram responsáveis por 39,4% de todas os óbitos por malformações.1 No estado do Paraná, a incidência estimada de malformações congênitas cardiovasculares é de 4/1000.2 As cardiopatias mais comuns, de acordo com estudo populacional conduzido nesse estado, foram a comunicação interventricular (28,3%) e defeito atrioventricular (8,1%).3

Os pacientes com cardiopatias congênitas exibem um desequilíbrio entre as atividades pró e anticoagulante, predispondo a eventos tromboembólicos, assim como eventos hemorrágicos, estes principalmente relacionados às cirurgias com circulação extracorpórea (CEC).4 Diante da alta prevalência de tais patologias, e da maior necessidade de intervenções cirúrgicas, alterações complexas no perfil de coagulação desses pacientes têm sido cada vez mais observadas, sendo enfoque crescente de vários estudos nas últimas décadas.

O objetivo do presente artigo é descrever as alterações hemostáticas que ocorrem nos pacientes com cardiopatias congênitas, submetidos ou não a intervenções cirúrgicas, à luz da literatura vigente.

Material e Método

Foi realizada pesquisa no banco de dados PubMed, através da relação entre os seguintes unitermos: congenital heart disease, cyanotic congenital heart defects, coagulation defects, hemostatic defects, coagulation factors deficiences, cardiopulmonary bypass, hemodilution, para artigos publicados em língua inglesa e portuguesa, de ensaios conduzidos em seres humanos e artigos de revisão, sem restrições quanto ao ano de publicação, sendo selecionados 28 artigos, incluídos na revisão.

Alterações hemostáticas nas cardiopatias congênitas

O sistema de coagulação humano atua através de proteínas pró-coagulantes e anticoagulantes com objetivo de manter a hemostasia.5 Seus componentes devem atuar de forma a evitar perda excessiva de sangue e formação de trombos intravasculares, garantindo o equilíbrio funcional e regulação do fluxo sanguíneo. Atualmente, aceita-se que mecanismos hemostáticos estejam associados com três complexos enzimáticos pró-coagulantes, os quais envolvem serinoproteases dependentes de vitamina K (fatores II, VII, IX, X) associadas a cofatores (V e VIII), todos localizados em uma superfície de membrana contendo fosfolipídeos, conforme demonstrado na Figura 1.6


As anormalidades da coagulação que ocorrem em crianças com cardiopatias congênitas representam uma complexa interação entre fatores e cofatores da coagulação, podendo incluir defeitos preexistentes, bem como secundários à CEC.5,7 Nas cardiopatias congênitas, principalmente cianogênicas, observa-se um desequilíbrio destes mecanismos regulatórios, por razões não totalmente elucidadas, levando a um maior risco de tromboembolismo arterial e venoso e acidente vascular cerebral (AVC), conforme esquematizado na Figura 2.8,9 Disfunção endotelial, hiperviscosidade, coagulação intravascular disseminada e ativação plaquetária são fatores implicados na gênese de tais distúrbios.4,7


Dentre as alterações da coagulação observadas em crianças com cardiopatia congênita podem ocorrer deficiências de proteína C, fatores II, V, VII e X, plasminogênio e antitrombina, fibrinogênio, disfibrinogenemia e aumento da fibrinólise.7,9,10

Na década de 60, Somervile et al. já observaram as alterações hemostáticas em 50 pacientes com cardiopatias congênitas (40 cianogênicas e 10 não cianogênicas), entre elas tetralogia de Fallot, atresia tricúspide, estenose pulmonar, desvio do septo interatrial e transposição de grandes artérias. Os distúrbios identificados foram hipofibrinogenemia, plaquetopenia, redução da síntese de tromboplastina, sendo esta última alteração proporcional ao nível de policitemia em pacientes com cardiopatias cianogênicas. Esses distúrbios foram relacionados a uma maior tendência hemorrágica em traumas e/ou cirurgias nessas crianças. Os autores já sugeriam que as coagulopatias observadas nos indivíduos policitêmicos pudessem ocorrer como efeito da hipoxemia crônica.11 Na mesma década, desequilíbrios hemostáticos devido ao consumo de plaquetas, fatores de coagulação, e fibrinólise aumentada já eram atribuídos ao procedimento de CEC.12

Na década de 70, Inglis et al. estudaram os fatores de coagulação em 42 crianças com cardiopatia congênita submetidas à CEC, sendo 24 com cardiopatias cianogênicas e 18 não cianogênicas. Em comparação aos pacientes acianóticos, os cianóticos tiveram maior queda do fator VIII, o que esteve diretamente relacionado à duração da CEC. Os pacientes cianóticos que faleceram nas primeiras 72 horas após a CEC (12 pacientes) apresentaram maior queda dos níveis de fator V, fibrinogênio e plaquetas, do que os pacientes cianóticos que sobreviveram. Nesses pacientes que faleceram, não houve recuperação dos níveis dos fatores de coagulação, como ocorreu com os demais incluídos no estudo.7 Múltiplos defeitos no mecanismo hemostático em pacientes com cardiopatia cianogênica foram encontrados por Henricksson et al., na mesma época, sobretudo níveis reduzidos de fatores vitamina K dependentes, como indicado pelos baixos fatores II, VII, e X (85% dos doentes) e de baixo fator IX (50% destes). Além disso, o fator V apresentou diminuição em 50% dos pacientes. Tais alterações não foram corrigidas pela administração parenteral de vitamina K, devido aos danos hepáticos por hipóxia, que comprometeu a síntese de complexo protrombínico.13

O papel da disfunção endotelial

O endotélio vascular pode sofrer lesão mecânica pelo aumento da viscosidade sanguínea e/ou hipoxemia crônica nas cardiopatias congênitas cianogênicas, levando a uma redução na síntese de trombomodulina, o que, por sua vez, compromete a atividade da proteína C, perpetuando a disfunção endotelial (Figura 3).4,8


A trombomodulina endotelial é um componente-chave para a via da proteína C, atuando como uma barreira anticoagulante intrínseca entre o sangue e o endotélio vascular. Níveis reduzidos dessa substância, aliados à diminuição da síntese de óxido nítrico pelo endotélio vascular, sugerem disfunção endotelial nesses pacientes, promovendo a trombogênese.8

Disfunção plaquetária

Tais fatores lesivos contribuem ainda para a ativação plaquetária e a expressão da P-selectina em sua superfície (molécula de adesão encontrada nos grânulos plaquetários e corpos de Weibel-Palade nas células endoteliais), que pode ser um indutor direto da atividade pró-coagulante associada a doenças vasculares e trombogênicas. As plaquetas ativadas que expressam a P-selectina em sua superfície liberam seus grânulos, facilitando a adesão de outras plaquetas e neutrófilos ao endotélio, causando agregação e aumento do trombo. Em 1973, Goldschimidt registrou que a disfunção plaquetária relacionada às cardiopatias congênitas cianogênicas, particularmente a hiperagregação plaquetária, desempenharia papel central na trombogênese e coagulação intravascular disseminada nesses pacientes.14 Kajimoto et al. observaram que ocorre ativação plaquetária em pacientes com cardiopatia congênita cianogênica a despeito do uso de drogas antiplaquetárias. Os autores evidenciaram ainda aumento nos níveis do complexo trombina-antitrombina (TAT) nas crianças com eventos tromboembólicos, quando comparados aos pacientes sem eventos. Portanto, aumento da P-selectina e do TAT podem indicar maior risco de tromboembolismo nesses pacientes.8

Destaca-se como maior ativador plaquetário a trombina, que leva à produção do inibidor da via do fator tecidual. Durante a CEC, a geração acelerada de trombina em crianças portadoras de cardiopatia congênita e cianogênica confirma o estado pró-coagulante relacionado à intervenção.10

Estado pró-inflamatório

A ativação dos receptores da trombina nos leucócitos aumenta a liberação de citocinas, o que contribui para o processo inflamatório. Crianças com cardiopatia congênita têm aumento da liberação de citocinas pró-inflamatorias intramiocárdicas e sistêmicas, como interleucina-1 e fator de necrose tumoral alfa, que apresentam efeito pró-trombótico pela ativação de monócitos e células endoteliais, que expressam fator tecidual.10

Particularidades em menores de 6 meses de idade

O sistema de coagulação dos lactentes menores de 6 meses de idade exibe diferenças qualitativas e quantitativas na maioria dos pró-coagulantes e inibidores. Nesses pacientes, há uma menor capacidade de gerar trombina, e de inibi-la, uma vez formada, efeito este exacerbado naqueles com cardiopatias congênitas submetidos à CEC.15 Adicionalmente, destaca-se a redução dos níveis dos fatores II, V, VII, X, XI, XII e XIII da coagulação nessa faixa etária, situação agravada em cerca de 50% dos neonatos submetidos a cirurgias cardíacas com CEC.4 Estudos subsequentes corroboraram tal observação, sendo registradas, ainda, deficiências congênitas do fator XII e fator de Von Willebrand (FvW) associadas a cardiopatias congênitas cianogênicas.4

Resistência à proteína C ativada

A proteína C ativada exerce um potente efeito anticoagulante ao degradar seletivamente os fatores Va e VIIIa. Nos pacientes que apresentam resistência à proteína C ativada, esta atividade está habitualmente reduzida. Na grande maioria dos casos (em mais de 95%), essa resistência é herdada geneticamente, sendo a mutação do fator V mais comumente referida como fator V Leiden. A proteína C ativada neutraliza o fator V Leiden lentamente, levando a um estado pró-coagulante. A prevalência do fator V Leiden em pacientes com doença cardíaca congênita está estimada em torno de 4,5%, o que, no entanto não difere da prevalência na população geral, não sendo possível concluir sobre a associação entre o fator mutante e episódios trombóticos no pós-operatório dessas crianças.5

Associação a síndromes genéticas

Vale ressaltar que algumas síndromes genéticas que estão associadas a cardiopatias congênitas podem cursar com distúrbios hematológicos, os quais podem influenciar a evolução e conduta durante os procedimentos cirúrgicos. Dentre elas, destaca-se a síndrome de Noonan, caracterizada por baixa estatura, alterações faciais, cardiopatia congênita (mais frequentemente estenose pulmonar e miocardiopatia hipertrófica), criptorquidia, anormalidades esqueléticas e diátese hemorrágica.16,17 As principais alterações relacionadas a esta síndrome são deficiências de fatores XI, VIII e XII, trombocitopenia e disfunção plaquetária, acarretando manifestações hemorrágicas em 55% dos portadores da síndrome.16,18 Pode haver ainda um padrão semelhante de deficiência de fatores da coagulação em parentes de primeiro grau de portadores da síndrome.17

Distúrbios de coagulação associados aos procedimentos cirúrgicos

O procedimento de CEC envolve importantes fases: canulação dos grandes vasos; anticoagulação; contato do sangue com superfícies artificiais; fluxo sanguíneo não-pulsátil; esfriamento ou hipotermia; contato direto do sangue com o oxigênio; cardioplegia (maioria dos casos) e parada circulatória total sob hipotermia em alguns casos (Figura 4).19


O processo lesivo relacionado à CEC é multifatorial e pode ser subdividido em três principais mecanismos: lesão mecânica dos elementos sanguíneos através dos circuitos, processo inflamatório pelo contato com as superfícies artificiais e alterações relacionadas à hemodiluição.20,21 A CEC promove ainda ativação da coagulação, que é bloqueada pelo uso da heparina. As complicações que podem surgir em relação a sangramento excessivo dependem da inadequação dos mecanismos da coagulação e fibrinólise ou decorrem da utilização do anticoagulante. Durante a CEC, ocorre hemólise de graus variáveis e as plaquetas aderem à superfície dos circuitos, formando microagregados, sendo consumidas. Há redução dos fatores de coagulação devido ao consumo e à hemodiluição. Manifestações trombóticas são menos frequentes que as hemorrágicas e mais encontradas em pacientes cianóticos e nos portadores de prótese valva.22

A hemodiluição foi introduzida por Panico e Neptune, em 1959, com o intuito de minimizar as transfusões durante as cirurgias cardíacas abertas através do uso de soluções cristaloides. Apesar da redução da necessidade transfusional, o procedimento acarreta redução da pressão coloidosmótica, com queda dos níveis de albumina em torno de 32% ao final da CEC, além da diminuição do hematócrito, aumento do sódio e da água livre nas células musculares e hemácias, e perda de potássio intracelular. Outro efeito observado é a redução dos fatores de coagulação, em média 30% a 36%, com recuperação aos níveis basais em 48 horas após a CEC.20

A anticoagulação durante a CEC é necessária para prevenir a formação de trombina e consequente coagulação à medida que o sangue entra em contato com as superfícies artificiais do circuito extracorpóreo. A heparina não fracionada é administrada para inibir não apenas a formação de trombina, mas também a atividade da trombina circulante. Sua ação é mediada através de sua ligação à antitrombina, alterando sua conformação molecular, tornando-a um potente inibidor da trombina circulante.23 Os efeitos da heparina são revertidos com a administração de protamina, no entanto, o efeito residual da heparina configura entre as causas de hemorragia pós-operatória.19

A disfunção plaquetária é crucial para a hemorragia pós-operatória observada em crianças com cardiopatia congênita. Crianças com cardiopatias congênitas e, em particular, cianogênicas, tendem a apresentar defeitos intrínsecos plaquetários que resultam em prolongamento do tempo de sangramento.4,24

Já na década de 70, Maurer et al. observaram prejuízo da agregação plaquetária em 52,1% de 65 crianças com cardiopatias congênitas cianogênica e não cianogênicas, que não estavam recebendo drogas antiplaquetárias. Destas, 11% apresentaram sintomas hemorrágicos e 9% tempo de sangramento prolongado, apesar de plaquetometria normal. Tal disfunção foi correlacionada à hipoxemia e policitemia nos pacientes cianóticos, com gravidade proporcional ao grau dessas alterações.9

A natureza da disfunção plaquetária associada à CEC permanece não esclarecida. Diversos tipos de defeitos intrínsecos das plaquetas têm sido descritos, incluindo o aumento da P-selectina, com consequente hiperativação plaquetária, associada à degranulação, e defeitos nas GP Ib e IIbIIIa têm sido reportadas em adultos e crianças durante a CEC.24

Quando comparados a crianças maiores de 1 ano de idade, pequenos lactentes (abaixo de 2 meses de idade) apresentam menor aumento da P-selectina induzida pela CEC e uma menor redução da glicoproteína Ib (GP), sugerindo hiporreatividade plaquetária, conferindo maior risco de hemorragia nesses pacientes.24

As plaquetas dos neonatos apresentam aspectos morfológicos específicos que afetam a função celular (menos pseudópodes, redução dos depósitos de glicogênio, estruturas microtubulares menores e menos grânulos alfa), indicando um processo maturativo idade-dependente. Devido à volemia extremamente pequena e à grande área proporcional do circuito da CEC na cirurgia cardíaca neonatal, acredita-se que, nesse grupo de pacientes, os distúrbios hemorrágicos possam ser mais severos após cirurgias.24

Outro estudo conduzido por Miller et al. estratificou as crianças portadoras de cardiopatias congênitas submetidas à CEC de acordo com o peso, sendo o ponto de corte 8 kg. Eles demonstraram que crianças com menos de 8 kg apresentam mais coagulopatias graves, e maior necessidade transfusional de hemocomponentes dos produtos da coagulação do que aquelas maiores de 8 kg. Por ser uma variável conhecida no pré-operatório, o peso pode ser, portanto, utilizado para antecipar o estado de coagulação após a CEC, uma vez que reflete outros fatores que influenciam o sistema de coagulação (imaturidade idade-dependente, descompensação por insuficiência cardíaca congestiva, grau de hemodiluição na CEC).25

A análise da estrutura multimérica do FvW em pacientes com cardiopatias congênitas submetidos a cirurgia cardíaca resultou na identificação da perda de grandes multímeros do FvW após a CEC, produzindo fenótipo semelhante ao tipo 2A da doença de von Willebrand. Tal achado excluiu perda significativa desses elementos pela adsorção através da superfície do circuito da CEC, sendo provável que a lesão mecânica durante o procedimento e um aumento global da atividade proteolítica plasmática sejam responsáveis por essas alterações.26 A diminuição dos multímeros de alto peso molecular do FvW foi identificada em crianças portadoras de cardiopatias congênitas não cianogênicas, previamente à realização de cirurgias corretivas. No entanto, não está claro até que ponto tais alterações contribuem para história de sangramento ou tempos de sangramento prolongados nesses pacientes.27

Alterações promovidas pelas derivações cirúrgicas

Além das coagulopatias induzidas pela CEC, observam-se ainda alterações hemostáticas produzidas pelas derivações cirúrgicas, como, por exemplo, a cirurgia de Fontan, usada como correção definitiva para atresia tricúspide e várias formas de corações univentriculares. Um dos efeitos da circulação anormal é o aumento crônico da pressão venosa sistêmica, o que pode levar a alterações no tamanho e função do fígado, como desordens da coagulação, fibrose hepática, hepatomegalia com ou sem ascite e enteropatia perdedora de proteína. Tais anormalidades podem predispor a eventos TE (por exemplo, devido à deficiência de proteínas C e S), prolongamento do tempo de sangramento (por deficiência de fator VII ou V). Além disso, o átrio direito, de volume aumentado, predispõe a estase e formação de trombo.28

Em crianças submetidas à cirurgia de Fontan (anatomia de ventículo único, em que o retorno venoso sistêmico é desviado para a artéria pulmonar, sem utilizar o ventrículo),19 foram constatados baixos níveis de fibrinogênio, fator V, fator VII, proteína C, aumento da antitrombina e prolongamento da relação de normalidade internacional (RNI).29 Nieuwenhuizen et al. avaliaram o impacto da mesma cirurgia no perfil de coagulação de 24 pacientes. Apenas dois (8,3%) apresentaram coagulograma normal no pós-cirúrgico. Anormalidades pró-coagulantes foram encontradas em 15 pacientes, incluindo deficiência de proteínas C, S, plasminogênio ou antitrombina, aumento do D-dímero, ou do complexo TAT. A alteração mais frequente foi a deficiência de plasminogênio, seguida da deficiência de proteína C. Por outro lado, anormalidades anticoagulantes foram descritas em vinte pacientes, das quais destacam-se: deficiência de fatores V, VII, aumento do tempo de protrombina (TP), alargamento do tempo de tromboplastina parcial ativada (TTPa). A mais frequente foi alargamento do TP, seguida pela deficiência dos fatores V e VII. Todos os pacientes com prolongamento do TP tinham deficiência de fator V, fator VII ou ambos, o que não teve correlação com o tempo após a primeira cirurgia ou idade do paciente.28

Conclusão

As crianças com cardiopatia congênita, particularmente as cianogênicas, exibem um desequilíbrio na maior parte dos mecanismos hemostáticos, resultando em eventos trombóticos e/ou hemorrágicos, exacerbados pela necessidade de CEC durante as cirurgias corretivas, o que dificulta o manejo desses pacientes. As coagulopatias durante e após a CEC em pacientes pediátricos podem ser muito mais complexas devido aos fatores idade e doença-dependentes, além dos efeitos do uso da heparina, hemodiluição e lesão dos elementos celulares durante sua passagem pelo circuito. O conhecimento da variedade de tais alterações é crucial para a condução adequada de cada caso em particular.

Recebido: 09/06/2009

Aceito: 06/08/2009

Hospital Santo Antônio/Obras Sociais Irmã Dulce; Hospital Ana Neri - Salvador - BA

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  • Correspondência:
    Tais Soares Sena
    Rua das Jandaias, 74, apto. 1203 - Imbuí
    41720-090 - Salvador-BA - Brasil
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      30 Abr 2010
    • Data do Fascículo
      2010

    Histórico

    • Aceito
      06 Ago 2009
    • Recebido
      09 Jun 2009
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