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Avaliação da qualidade de vida em portadores de doença falciforme do Hospital das Clínicas de Goiás, Brasil

Resumos

INTRODUÇÃO: A doença falciforme é a doença hereditária mais frequente no nosso país. O portador apresenta acometimentos físico, emocional e social, e sua qualidade de vida pode estar comprometida. OBJETIVO: Avaliar a qualidade de vida dos doentes falciformes em tratamento no Hospital das Clínicas da Universidade de Goiás. MÉTODO: Foram entrevistados 60 sujeitos entre 14 e 60 anos, doentes falciformes, em tratamento no Hospital das Clínicas. Aplicou-se o WHOQOL-Bref (instrumento avaliativo de qualidade de vida da Organização Mundial de Saúde - OMS), o questionário étnico-racial e o sociodemográfico. A significância foi definida por um erro padrão de 5% (p < 0,05). Os sujeitos eram do sexo feminino em 53,3% e solteiros em 71,7%. A média da idade foi de 27 anos e o nível educacional até o primeiro grau completo foi de 51,7%. RESULTADOS: A maioria considerou-se parda (46,7%) e a minoria, negra (11,7%). Apenas 6,7% disseram ser vítimas de preconceito devido à cor e 33,3% disseram ser vítimas de preconceito devido à doença. Os sujeitos relataram ligação entre doença e sua cor em 48,3%. A qualidade de vida foi avaliada negativa em 6,7% e, em 70%, positiva. Apresentaram satisfação negativa quanto à saúde 23,3% dos sujeitos e, em 48,3%, a satisfação foi positiva. Os escores do WHOQOL-Bref, de 0 a 100 foram: domínio físico (57,32), psicológico (66,03), social (69,86) e ambiental (52,76). CONCLUSÃO: Houve correlação significativa entre preconceito devido à doença e nível educacional, e entre idade e todos os domínios. A doença falciforme limita a vida do portador, com comprometimento da qualidade de vida. A doença está perdendo o caráter de "black related disease", coincidindo com a miscigenação racial brasileira.

Anemia falciforme; Doença crônica; Qualidade de vida; Questionários; Fatores socioeconômicos; Grupos étnicos


INTRODUCTION: Sickle cell disease is the most common inherited disease in Brazil. Patients are known to suffer physical, emotional and social impairment and their quality of life may well be involved. METHOD: The quality of life of sickle cell disease patients treated in Hospital das Clínicas of the Universidade Federal de Goiás was evaluated. Sixty patients with ages ranging from 14 to 60 years old were interviewed. The WHOQOL-Bref (a quality of life validation instrument of the World Health Organization), and the ethnical-racial, and sociodemographic questionnaires were administered. A standard error of 5% (p-value < 0.05) was considered acceptable. RESULTS: The mean age of the participants was 27 years old, 53.3% of the patients were women, 71.7% were single and 51.7% had completed elementary school. The majority classified themselves as mulattos (46.7%) and the minority Blacks (11.7%). Only 6.7% considered themselves victims of racial discrimination because of their skin color but 33.3% considered themselves victims of discrimination due to sickle cell disease. The patients 48.3% reported an association between their disease and their skin color. The quality of life was considered bad by 6.7% and good by 70%. A total of 48.3% considered their lives to be satisfactory and 23.3% to be unsatisfactory. The scores obtained from the WHOQOL-Bref (from 0 to 100) were: 57.32 for physical, 66.03 for psychological, 69.86 for social and 52.76 for environmental domains. There were significant correlations of discrimination due to the disease with educational level and age with all the WHOQOL-Bref domains. CONCLUSION: Sickle cell disease significantly limits the quality of life of patients. Also, sickle cell disease, coinciding with the racial miscegenation, is losing its "black-related disease" character in Brazil.

Anemia; sickle cell; Chronic disease; Quality of life; Questionnaires; Socioeconomic factors; Ethnic groups


ARTIGO ARTICLE

Avaliação da qualidade de vida em portadores de doença falciforme do Hospital das Clínicas de Goiás, Brasil

Maria do Rosário Ferraz RobertiI; Camila Lorena Nunes Seabra de Oliveira MoreiraII; Renato Sampaio TavaresIII; Handel Meireles Borges FilhoIV; Adriel Gracco da SilvaIV; Cláudio Humberto Gonçalves MaiaIV; Flávio Leão LimaIV; Douglas Fagundes TeixeiraIV; Bruno Pereira ReciputtiIV; Cláudio Rodrigues da Silva FilhoIV; Joji Sado FilhoIV; Danilo Borges dos SantosIV; Isadora Pimentel LemosIV

IDisciplina de Práticas Integradoras I, Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Goiás - UFG - Goiânia (GO), Brasil

IIAmbulatório de Hemoglobinopatias, Hospital das Clínicas, Universidade Federal de Goiás - UFG - Goiânia (GO), Brasil

IIIDepartamento de Clínica Médica, Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Goiás - UFG - Goiânia (GO), Brasil

IVAcadêmicos de Medicina, Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Goiás - UFG - Goiânia (GO), Brasil

Correspondência Correspondência: Handel Meireles Borges Filho Rua Carlos Chagas nº 160 - Setor Serrinha 74835-020 - Goiânia (GO), Brasil Tel.: (55 62) 8579-8614 E-mail: handelfilho@hotmail.com

RESUMO

INTRODUÇÃO: A doença falciforme é a doença hereditária mais frequente no nosso país. O portador apresenta acometimentos físico, emocional e social, e sua qualidade de vida pode estar comprometida.

OBJETIVO: Avaliar a qualidade de vida dos doentes falciformes em tratamento no Hospital das Clínicas da Universidade de Goiás.

MÉTODO: Foram entrevistados 60 sujeitos entre 14 e 60 anos, doentes falciformes, em tratamento no Hospital das Clínicas. Aplicou-se o WHOQOL-Bref (instrumento avaliativo de qualidade de vida da Organização Mundial de Saúde - OMS), o questionário étnico-racial e o sociodemográfico. A significância foi definida por um erro padrão de 5% (p < 0,05). Os sujeitos eram do sexo feminino em 53,3% e solteiros em 71,7%. A média da idade foi de 27 anos e o nível educacional até o primeiro grau completo foi de 51,7%.

RESULTADOS: A maioria considerou-se parda (46,7%) e a minoria, negra (11,7%). Apenas 6,7% disseram ser vítimas de preconceito devido à cor e 33,3% disseram ser vítimas de preconceito devido à doença. Os sujeitos relataram ligação entre doença e sua cor em 48,3%. A qualidade de vida foi avaliada negativa em 6,7% e, em 70%, positiva. Apresentaram satisfação negativa quanto à saúde 23,3% dos sujeitos e, em 48,3%, a satisfação foi positiva. Os escores do WHOQOL-Bref, de 0 a 100 foram: domínio físico (57,32), psicológico (66,03), social (69,86) e ambiental (52,76).

CONCLUSÃO: Houve correlação significativa entre preconceito devido à doença e nível educacional, e entre idade e todos os domínios. A doença falciforme limita a vida do portador, com comprometimento da qualidade de vida. A doença está perdendo o caráter de "black related disease", coincidindo com a miscigenação racial brasileira.

Descritores: Anemia falciforme; Doença crônica; Qualidade de vida; Questionários; Fatores socioeconômicos; Grupos étnicos

ABSTRACT

INTRODUCTION: Sickle cell disease is the most common inherited disease in Brazil. Patients are known to suffer physical, emotional and social impairment and their quality of life may well be involved.

METHOD: The quality of life of sickle cell disease patients treated in Hospital das Clínicas of the Universidade Federal de Goiás was evaluated. Sixty patients with ages ranging from 14 to 60 years old were interviewed. The WHOQOL-Bref (a quality of life validation instrument of the World Health Organization), and the ethnical-racial, and sociodemographic questionnaires were administered. A standard error of 5% (p-value < 0.05) was considered acceptable.

RESULTS: The mean age of the participants was 27 years old, 53.3% of the patients were women, 71.7% were single and 51.7% had completed elementary school. The majority classified themselves as mulattos (46.7%) and the minority Blacks (11.7%). Only 6.7% considered themselves victims of racial discrimination because of their skin color but 33.3% considered themselves victims of discrimination due to sickle cell disease. The patients 48.3% reported an association between their disease and their skin color. The quality of life was considered bad by 6.7% and good by 70%. A total of 48.3% considered their lives to be satisfactory and 23.3% to be unsatisfactory. The scores obtained from the WHOQOL-Bref (from 0 to 100) were: 57.32 for physical, 66.03 for psychological, 69.86 for social and 52.76 for environmental domains. There were significant correlations of discrimination due to the disease with educational level and age with all the WHOQOL-Bref domains.

CONCLUSION: Sickle cell disease significantly limits the quality of life of patients. Also, sickle cell disease, coinciding with the racial miscegenation, is losing its "black-related disease" character in Brazil.

Keywords: Anemia, sickle cell; Chronic disease; Quality of life; Questionnaires; Socioeconomic factors; Ethnic groups

Introdução

A doença falciforme (DF) é doença hereditária causada por mutação pontual que leva à troca de ácido glutâmico pela valina na sexta posição da cadeia de ß-globina. O defeito genético produz alterações nesta molécula de hemoglobina, fazendo com que, em baixas tensões de oxigênio, essas moléculas alteradas sofram um processo de polimerização e perda da deformabilidade característica das hemácias, deixando-as com aspecto de "foice". Essas hemácias falcizadas aglomeram-se no interior dos capilares sanguíneos, causando obstrução parcial ou total da luz vascular.(1)

Os sinais e sintomas clínicos estão relacionados a anemia grave, complicações vaso-oclusivas e hiperbilirrubinemia crônica, sendo a crise vaso-oclusiva o principal deles.(1) A prevalência estimada de indivíduos com traço falciforme (heterozigotos), no Brasil, é de 4% dentro da população geral, com nascimento anual estimado de 200 mil novos casos e com expectativa de haver, atualmente, 7.200.000 casos.(2) Quanto aos homozigotos, estima-se haver 25 a 30 mil casos no Brasil, com nascimento de 3.500 novos casos ao ano.(2) Em Goiás, a proporção estimada de indivíduos portadores do traço falciforme é de 2,2%.(3)

Quanto à prevalência étnica, no Brasil, é maior entre negros, no entanto distribui-se de forma heterogênea, podendo acometer indivíduos brancos devido à miscigenação da população brasileira.(4)

Assim, a DF é a doença hereditária monogênica mais comum no Brasil, com especial prevalência em Goiás, cursando com ampla variabilidade clínica, desde pacientes quase assintomáticos àqueles com inúmeras complicações e frequentes hospitalizações. Tal cenário permite tratar essa doença como problema de saúde pública.

Apesar do grande avanço já alcançado, ainda não se conseguiu a cura dessa enfermidade, sendo paliativos os cuidados prestados. É, portanto, uma doença crônica, em que a cura ainda não é possível e o tratamento é prolongado. A qualidade de vida (QV) surge então como um desafio essencial a ser alcançado por pacientes, familiares e profissionais da saúde.(4)

Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), QV refere-se à percepção do indivíduo de sua posição na vida, no contexto da cultura e sistema de valores nos quais ele vive, e em relação aos seus objetivos, expectativas, padrões e preocupações.(5) Além disso, há o conceito de "qualidade de vida associada à saúde", que avalia o impacto da saúde na capacidade do indivíduo viver plenamente.(6)

Nos últimos trinta anos, a avaliação da QV tem se tornado gradualmente importante para a assistência à saúde, havendo aprimoramento e sofisticação em sua metodologia de avaliação, focada em avaliações subjetivas, medindo a percepção individual da qualidade de vida dos pacientes.(7)

Segundo Padilla,(8) o conceito de qualidade de vida relacionada à saúde ganha caráter multidimensional relacionado ao bem-estar físico, psicológico, social e espiritual, sendo que, muitas vezes, estas três últimas dimensões são mais valorizadas que a dimensão física.

Devido à grande importância da QV no contexto da evolução e tratamento das doenças, em especial das doenças crônicas, essa variável foi incluída nos ensaios clínicos como um aspecto a ser avaliado, buscando-se valorizar parâmetros mais amplos que o controle de sintomas, a diminuição da mortalidade ou o aumento da expectativa de vida.(9)

Segundo Tapper,(10) os primeiros casos diagnosticados da doença, no início do século XX, ressaltavam as estreitas relações entre raça e doença, assumindo o caráter de "black-related disease" ou doença relacionada à raça negra. E, apesar das atuais políticas raciais compensatórias e das mudanças nas relações sociais, frequentemente a DF é vista pelo doente como um estigma.

É dessa situação que emerge um ideário que vê a doença como uma punição, o que agrava a percepção do doente em relação à sua exclusão. E, no caso da DF, a punição é dupla: tanto pelo fato de se possuir uma doença como pela origem étnica.

Aliada à questão racial existe a condição de precariedade social e econômica, que é um significativo fator de risco para a depressão. Além disso, fatores pessoais (personalidade, percepção individual sobre a doença, entre outros) e familiares (coesão e suporte familiar, por exemplo) são fortes aliados para definir uma condição depressiva.(10)

Indivíduos que não possuem adequado suporte social, econômico e familiar tendem a apresentar mais problemas decorrentes da doença e mais dificuldades de ajustar-se a ela. Com isso pode haver o desencadeamento de episódios de dor, os quais foram associados com altos níveis de sintomas depressivos.(11)

Por tudo isso, percebe-se a importância de se ampliarem os debates que envolvem a QV do portador de DF. Trata-se de uma doença crônica, que se configura como problema de saúde pública no Brasil. Os impactos que ela traz para a vida do doente são inúmeros, aliados a limitações diversas. A compreensão destas limitações permite identificar problemas e delinear ações adequadas de intervenção para modificar variáveis que interferem negativamente na QV.(9)

Assim, em concordância com os segmentos sociais organizados de homens e mulheres negras no Brasil, propusemos-nos investigar e analisar indicadores relativos à QV de pacientes portadores de DF em tratamento.

Avaliamos os indicadores de qualidade de vida através de seus aspectos físico, social, psicológico e ambiental, obtidos pelo WHOQOL-Bref, comparando-os a dados obtidos através do questionário sociodemográfico e questionário étnico-racial.

Métodos

A pesquisa foi conduzida utilizando-se recursos quantitativos que permitem um estudo descritivo, exploratório e transversal.

Foram entrevistados, sequencialmente, 60 portadores de DF que vieram ao ambulatório de hemoglobinopatias no período de janeiro a julho de 2008, de um universo de 120 pacientes portadores de DF, em tratamento, de ambos os sexos, com idade entre 14 e 60 anos, vinculados ao Serviço de Hematologia.

Foram incluídos na pesquisa aqueles que concordaram com a participação assinando o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Menores de 14 e acima de 60 anos foram excluídos. O sujeito, ou o responsável legal do paciente menor de 18 anos, foi informado previamente sobre aspectos relevantes da pesquisa a ele pertinentes, remetendo à sua adesão consciente e voluntária. A amostra é representativa da população e a margem de erro é de 5%.

O instrumento de avaliação de Qualidade de Vida abreviado da Organização Mundial de Saúde (WHOQOL-Bref) é derivado de outro denominado World Health Organization Quality of Life Assessment 100 (WHOQOL 100), ambos validados em língua portuguesa por Fleck et al.(12,13) Embora outras ferramentas para avaliação da qualidade de vida tenham sido confeccionadas, esta se apresenta até o momento com o maior valor casuístico.(9)

O WHOQOL-Bref consta de 26 questões, duas gerais e as demais 24 representando cada uma das 24 facetas que compõem o instrumento original. Assim, diferente do WHOQOL-100, em que cada uma das 24 facetas é avaliada a partir de quatro questões, no WHOQOL-Bref é avaliada por uma questão.

As duas primeiras questões do WHOQOL-Bref dizem respeito à percepção individual com relação à qualidade de vida (Questão 1), e à percepção individual com relação à saúde (Questão 2). As demais 24 questões do WHOQOL-Bref compõem quatro domínios: físico, psicológico, social e ambiental.

O domínio físico é representado pelas questões 3, 4, 10, 15, 16, 17 e 18. O psicológico é representado pelas questões 5, 6, 7, 11, 19 e 26. O social, por sua vez, é representado pelas questões 20, 21 e 22. Finalmente, o domínio ambiental é representado pelas questões 8, 9, 12, 13, 14, 23, 24 e 25.

Todas as questões são apresentadas em forma de escala Likert de cinco pontos: quanto mais próximo de 1, pior a qualidade de vida, e quanto mais próximo de 5, melhor a qualidade de vida. Para pontuar o WHOQOL-Bref, separam-se as questões por domínio e calcula-se a média de todos os participantes, ou seja, somam-se os escores das questões de cada domínio e divide-se pelo número total de participantes. Os escores de cada domínio poderão então ser convertidos para uma escala 0-100.

Asnani et al. verificaram a eficácia do WHOQOL-Bref para mensurar a qualidade de vida de doentes falcêmicos, ressaltando o fato deste instrumento ter sido desenvolvido a partir de grupos espalhados em centros de pesquisa do mundo inteiro, com o objetivo de criar um questionário que pudesse ser utilizado para mensurar a qualidade de vida de diversos povos do planeta.(14)

O questionário étnico-racial é um instrumento criado pelos autores deste artigo para detectar se há relação ou não entre a doença do paciente e sua cor. Ele é composto por quatro questões, sendo a primeira sobre a opinião do sujeito da pesquisa quanto à sua cor, baseado no sistema classificatório de cor do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A segunda e a terceira dizem respeito ao preconceito com relação à cor e à doença, respectivamente. E a última questão relaciona o preconceito com relação à cor e à doença para verificar se o paciente acredita que sua doença está ou não relacionada com a sua cor.

O questionário sociodemográfico é um instrumento criado pelos autores deste artigo para obter as seguintes informações dos sujeitos da pesquisa: sexo, idade, nível educacional e estado civil.

Após a apresentação do projeto de pesquisa à equipe de saúde do Serviço de Hematologia e à aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP), iniciou-se o recrutamento dos possíveis sujeitos da pesquisa, através de contato direto na consulta médica. Nesse contato foram explicados os objetivos da investigação e os procedimentos da coleta de dados. Havendo concordância, os sujeitos assinaram o TCLE, em duas vias, sendo que uma permaneceu em posse do pesquisador e a outra do próprio sujeito. Nenhum dos sessenta possíveis sujeitos que foram abordados em sequência recusou-se a participar do estudo.

O processo de coleta de dados ocorreu concomitantemente à consulta médica . Durante o encontro para a coleta de dados foram aplicados pelos pesquisadores o questionário WHOQOL-Bref, o questionário étnico-racial, e o questionário sociodemográfico aos sessenta sujeitos. Os dados foram coletados em um único encontro.

Os resultados do WHOQOL-Bref foram avaliados de acordo com os escores obtidos em cada domínio, após conversão para a escala 0-100, utilizando-se o programa estatístico SPSS® 16.0, com sintaxe específica doWHOQOL-Bref. Os resultados do WHOQOL-Bref foram então comparados aos dados sociodemográficos obtidos através deste questionário.

Os resultados do questionário étnico-racial foram avaliados de acordo com a frequência de respostas obtidas para cada pergunta. Estes resultados foram então comparados aos dados sociodemográficos. O nível de significância para todas as análises foi de 5% (p<0,05), e os resultados comparados por meio do coeficiente de correlação de Pearson.

Resultados

O questionário sociodemográfico (Tabela 1) revelou que a maioria dos sujeitos era do sexo feminino (53,3%) e solteira (71,7%). A média de idade foi de 27 anos, variando de 14 a 60 anos, com nível educacional até o primeiro grau completo (51,7%).

Pelo questionário étnico-racial, constatou-se que 46,7% dos indivíduos consideram-se pardos, 13,3% consideram-se brancos, 11,7% consideram-se negros, e os 28,3% restantes preferiram não responder. Com relação a ter sofrido preconceito no que diz respeito à cor e à doença, 6,7% dos indivíduos disseram ser vítimas de preconceito quanto à cor, enquanto que 33,3% disseram ser vítimas do preconceito quanto à doença. Sobre a sua impressão quanto à ligação entre sua doença e sua cor, 48,3% responderam que a relação é válida; em contraposição, 50,0% não acreditam nessa relação; os 1,7% restantes preferiram não responder.

Aqueles que compunham a faixa etária de 14-30 anos negaram mais a ligação entre sua doença e sua cor, em comparação com aqueles indivíduos que tinham mais de 30 anos.

Analisando a questão 1 do WHOQOL-Bref, observamos que 6,7% avaliam sua QV de forma negativa (ruim e muito ruim), 23,3% a consideram intermediária (nem ruim nem boa) e 70,0% a avaliam de maneira positiva (boa e muito boa).

Avaliando a questão 2 do WHOQOL-Bref, observamos que 23,3% apresentam grau de satisfação negativa (muito insatisfeito e insatisfeito) sobre a saúde, 28,4% encontram-se em situação de indefinição (nem satisfeito nem insatisfeito) e 48,3% apresentam grau de satisfação positiva (satisfeito e muito satisfeito).

Embora a relação entre saúde e QV seja reconhecida há vários anos, percebeu-se que, em comparação, a percepção dos indivíduos em relação à sua QV foi mais positiva do que a percepção sobre seu estado de saúde (p<0,05).

Os escores do WHOQOL-Bref, que são divididos em quatro domínios (Físico, psicológico, social e ambiental), mostraram, em escala 0-100: físico (57,32), psicológico (66,03), social (69,86) e ambiental (52,76).

Houve correlação significativa entre o preconceito devido à doença e o nível educacional (Tabela 2), e entre idade e todos os domínios do WHOQOL-Bref (Tabela 3).

Discussão

As doenças crônicas, de maneira geral, promovem alterações físicas, emocionais e sociais, exigindo mecanismos de adaptação dos indivíduos que, muitas vezes, repercutem diretamente sobre sua QV.

A DF, por ser uma enfermidade crônica, apresenta tais alterações. Elas decorrem das várias complicações que podem surgir ao longo do curso natural da doença, além da diminuição da expectativa de vida do indivíduo. Neste estudo, notou-se que os resultados guardam relação com os achados do estudo de Alves sobre mortalidade por DF.(15)

Os dados revelaram que 66,7% da amostra tinha até 30 anos de idade, semelhante ao encontrado por Alves, que constatou que 70% dos portadores de DF não ultrapassaram a terceira década de vida.(15)

O estudo PiSCES (The Pain in Sickle Cell Epidemology Study) comparou a QV dos doentes falciformes com a QV de portadores de doenças crônicas, como asma, e pacientes em hemodiálise, e encontrou resultados semelhantes para a QV destes grupos em comparação aos doentes falciformes.(16)

Ocorre ainda uma íntima relação da doença com a raça negra, sobrevindo duplo caráter estigmatizante, decorrente da presença da doença e da origem étnica.

Devido à intensa miscigenação racial no país, acreditamos que, apesar de a DF estar superando o caráter de "black-related disease",(10) ainda existe associação entre a clínica e a prevalência entre afrodescendentes. Estariam, portanto, estes indivíduos marginalizados socialmente e com perda significativa da QV.

Na análise dos dados sociodemográficos, verificou-se que a amostra encontra-se em idade ativa, a maioria entre 14-30 anos (66,7%). Em estudo feito por Asnani et al., a média de vida calculada para doentes falciformes foi de 53 anos para homens e 58,5 anos para mulheres.(14) Em outro estudo constatou-se que cerca de 11% dos portadores de DF não sobrevivem até a idade adulta.(17) Assim, seria possível inferir que baixa QV piora a expectativa de vida do portador? Há possível relação entre perda de QV e baixa expectativa de vida?(18)

Quanto aos dados obtidos no questionário étnico-racial, constatou-se que 46,7% dos indivíduos consideram-se pardos, 13,3% consideram-se brancos, 11,7% consideram- se negros, e os 28,3% restantes preferiram não responder. Sabendo-se da íntima relação entre a raça negra e a doença falciforme,(10) esperava-se uma maior proporção de indivíduos negros; no entanto, tal pressuposto não foi evidenciado. O resultado pode refletir a heterogeneidade étnica do povo brasileiro(19) ou o receio de se caracterizar como negro.

Outra análise foi com relação a ter sofrido preconceito quanto à cor e à doença: 6,7% dos indivíduos disseram ser vítimas de preconceito quanto à cor, enquanto 33,3% disseram ser vítimas do preconceito quanto à doença, mostrando que a doença pode influir de maneira mais negativa sobre as relações sociais dos portadores do que a cor.

Quando indagados sobre a sua impressão quanto à ligação entre sua doença e sua cor, 48,3% responderam que a relação é válida, em contraposição a 50,0%, que não acreditam nessa relação; os 1,7 restantes não responderam. Nesse contexto, pôde-se observar que os indivíduos que compunham a faixa etária de 14-30 anos negaram mais a ligação entre sua doença e sua cor, em comparação com aqueles que tinham mais de 30 anos. Tal dado indica que indivíduos mais velhos conhecem mais sobre sua doença do que os mais novos, sugerindo um maior interesse em conhecer sua patologia e como ela pode influenciar na sua QV.

Ao analisar as questões 1 e 2 do WHOQOL-Bref relativas a aspectos gerais sobre QV e saúde, constatou-se que, apesar de doentes, a maioria dos sujeitos avalia de maneira positiva tanto sua QV quanto sua saúde.

Embora a relação entre saúde e QV seja reconhecida há vários anos,(20) é importante perceber que, em comparação, a percepção dos indivíduos em relação à sua QV foi mais positiva do que sua percepção sobre seu estado de saúde (p<0,05).

Analisando os resultados do WHOQOL-Bref divididos em quatro domínios (Físico, psicológico, social e ambiental), temos os escores de cada domínio numa escala de 0 até 100. As perdas mais expressivas de qualidade de vida foram na dimensão ambiental, com média de 52,76%, seguida pela dimensão física com média de 57,32% .

Pereira et al. encontraram perdas expressivas nos domínios físico, psicológico e social para portadores de doença falciforme.(4) Nota-se, portanto, correspondência quanto ao domínio físico. Infere-se que a doença compromete de certa forma o domínio físico, uma vez que o paciente é dependente do tratamento médico, além de apresentar maior suscetibilidade a fadiga e dor, além de menor capacidade laborativa.

No que tange ao maior comprometimento do domínio ambiental, essa alteração pode ocorrer porque a amostra pesquisada advém de hospital público, onde a grande maioria é atendida pelo sistema público de saúde. Provavelmente trata-se de sujeitos com baixa renda, tendo condições mais precárias de moradia, poucas oportunidades em atividades de lazer.

Analisando o domínio físico, foi possível avaliar decréscimo no escore, com o avanço da idade, provavelmente devido ao desgaste normal do indivíduo com o passar da idade, ou devido ao agravamento do quadro sintomatológico da doença, podendo ser também uma associação desses dois fatores.

Quando se analisa o domínio psicológico, a suposição possível é de que os indivíduos mais velhos enfrentam mais problemas nesse campo, como a baixa autoestima e preocupação com a morte.

Ao avaliar-se o escore do domínio social é possível observar que se trata do domínio com maior pontuação, indicando que o portador de doença falciforme conta com um suporte social, ou seja, indivíduos habilitados a lidar com estressores ambientais.

Há também correlação negativa ("r" negativo) possível entre idade e todos os domínios (Tabela 3). Um valor negativo para "r" significa que as variáveis, quando comparadas, caminham em direções inversas, ou seja, se uma delas cresce a outra decresce e vice-versa. Assim, a correlação negativa, nesse caso, indica que à medida que aumenta a idade dos sujeitos os escores dos domínios diminuem.

Outra correlação possível é a do preconceito com relação à doença e o nível educacional dos sujeitos (Tabela 2): tratando-se de correlação negativa, indica que à medida que cresce o nível educacional dos sujeitos diminui a percepção de preconceito com relação à doença.

Conclusão

Os dados obtidos nesta pesquisa confirmam que a DF, por ser doença crônica e cursar com ampla variabilidade clínica, provoca limitações na vida do seu portador, sendo a dor e as diversas internações, muito provavelmente, responsáveis pela desestabilização física e emocional do sujeito. Verificou-se também que a doença está perdendo o caráter de "black related disease", coincidindo com a miscigenação racial brasileira.

Um aspecto importante a ser abordado por estudos futuros seria a comparação entre a QV de subgrupos de doentes falcêmicos de uma mesma população de doentes para avaliar se a associação com outras hemoglobinopatias e intervenção terapêutica melhorariam a QV destes doentes. Neste trabalho, em particular, é possível afirmar que houve perda da QV dos portadores de doença falciforme em tratamento.

A QV é importante aspecto a ser analisado, principalmente sendo multidimensional, influenciando e sendo influenciada pela saúde individual. Além de tratar a dor, os esforços para melhorar a QV dos portadores de DF devem incorporar também o aspecto psicológico, objetivando reduzir a ansiedade, depressão e problemas familiares.(21)

No caso das doenças crônicas, a qualidade de vida ganha maior importância, pois pode influenciar diretamente no prognóstico da doença, sendo necessários mais estudos sobre o assunto, os quais possam direcionar estratégias para implementar programas de saúde e privilegiar ações de cuidado ao doente.(9)

Recebido: 17/4/2010

Aceito: 3/9/2010

Conflito de interesse: sem conflito de interesse

Hospital das Clínicas, Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Goiás - UFG - Goiânia (GO), Brasil

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Fev 2012
    • Data do Fascículo
      2010

    Histórico

    • Recebido
      17 Abr 2010
    • Aceito
      03 Set 2010
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