Acessibilidade / Reportar erro

Deficiência de ferro nas afecções gastrointestinais do adulto

Iron deficiency related to gastrointestinal diseases in adults

Resumos

A anemia por deficiência de ferro (ADF) ou a deficiência de ferro (DF) isolada são comuns em crianças e mulheres pré-menopausa. Entretanto, em adultos do sexo masculino e mulheres pós-menopausa, essa condição se associa frequentemente a perdas sanguíneas gastrointestinais ou mal absorção. A prevalência das lesões gastrointestinais torna essencial o exame do aparelho digestório superior e inferior através da endoscopia. Investigações complementares devem ser realizadas se os procedimentos endoscópicos não evidenciarem sangramento em situações clínicas, tais como a necessidade de múltiplas hemotransfusões, a ausência de sangramento visível à endoscopia digestiva alta e colonoscopia e a falta de resposta à reposição de ferro.Esses casos devem ser direcionados para investigação do intestino delgado com métodos radiológicos ou, mais recentemente, com a cápsula endoscópica e da enteroscopia com duplo balão. A cintigrafia com hemácias marcadas e a angiografia têm papel restrito, sendo utilizadas apenas no sangramento aberto. O tratamento varia de acordo com a etiologia, a intensidade da perda sanguínea e da deficiência de ferro.

Deficiência de ferro; anemia; hemorragia gastrointestinal; enteropatias; endoscopia gastrointestinal


Iron deficiency anaemia and isolated iron deficiency are common in children and pre-menopausal women. However, in male adults and post-menopausal women this condition is most frequently caused by gastrointestinal blood loss or malabsorption. The prevalence of gastrointestinal lesions makes the examination by endoscopy of both upper and lower gastrointestinal tracts essential. Further investigations, when the initial exams are negative, are only warranted in cases of multiple transfusions, visible blood loss or lack of response to oral iron supplementation. In these cases examinations should be focused on the small bowel by radiological methods or more recently using capsule endoscopy and double balloon enteroscopy. Nuclear medicine and angiography have a limited role to play in this investigation as both have restricted indications for visible gastrointestinal hemorrhages not detected by endoscopic methods. Treatment varies according to the source and severity of bleeding and iron deficiency.

Iron deficiency; anemia; gastrointestinal hemorrhage; intestinal diseases; endoscopy, gastrointestinal


REVISÃO / REVIEW

Deficiência de ferro nas afecções gastrointestinais do adulto

Iron deficiency related to gastrointestinal diseases in adults

Cyrla ZaltmanI; Marcia H. M. CostaII

IGastroenterologia/Endoscopia Digestiva. Professora Associada I em Gastroenterologia da Faculdade de Medicina - Departamento de Clínica Médica da Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ - Rio de Janeiro-RJ

IIGastroenterologia/Endoscopia Digestiva. Médica do Serviço de Gastroenterologia do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, Professora Assistente II da Disciplina Enfermidades Prevalentes do Adulto I, Universidade Severino Sombra (USS) - Rio de Janeiro-RJ, Serviço de Gastroenterologia, Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (HUCFF), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) - Rio de Janeiro-RJ

Correspondência Correspondência: Cyrla Zaltman Hospital Universitario Clementino Fraga Filho Rua Prof. Rodolpho Paulo Rocco, 255, 4º andar - Ilha do Fundão 21941-913 - Rio de Janeiro-RJ - Brasil Tel.: (55 21) 2562-2326; Fax: (55 21) 2562-2417 E-mail: c.zaltman@gmail.com

RESUMO

A anemia por deficiência de ferro (ADF) ou a deficiência de ferro (DF) isolada são comuns em crianças e mulheres pré-menopausa. Entretanto, em adultos do sexo masculino e mulheres pós-menopausa, essa condição se associa frequentemente a perdas sanguíneas gastrointestinais ou mal absorção. A prevalência das lesões gastrointestinais torna essencial o exame do aparelho digestório superior e inferior através da endoscopia. Investigações complementares devem ser realizadas se os procedimentos endoscópicos não evidenciarem sangramento em situações clínicas, tais como a necessidade de múltiplas hemotransfusões, a ausência de sangramento visível à endoscopia digestiva alta e colonoscopia e a falta de resposta à reposição de ferro.Esses casos devem ser direcionados para investigação do intestino delgado com métodos radiológicos ou, mais recentemente, com a cápsula endoscópica e da enteroscopia com duplo balão. A cintigrafia com hemácias marcadas e a angiografia têm papel restrito, sendo utilizadas apenas no sangramento aberto. O tratamento varia de acordo com a etiologia, a intensidade da perda sanguínea e da deficiência de ferro.

Palavras-chave: Deficiência de ferro; anemia; hemorragia gastrointestinal; enteropatias; endoscopia gastrointestinal.

ABSTRACT

Iron deficiency anaemia and isolated iron deficiency are common in children and pre-menopausal women. However, in male adults and post-menopausal women this condition is most frequently caused by gastrointestinal blood loss or malabsorption. The prevalence of gastrointestinal lesions makes the examination by endoscopy of both upper and lower gastrointestinal tracts essential. Further investigations, when the initial exams are negative, are only warranted in cases of multiple transfusions, visible blood loss or lack of response to oral iron supplementation. In these cases examinations should be focused on the small bowel by radiological methods or more recently using capsule endoscopy and double balloon enteroscopy. Nuclear medicine and angiography have a limited role to play in this investigation as both have restricted indications for visible gastrointestinal hemorrhages not detected by endoscopic methods. Treatment varies according to the source and severity of bleeding and iron deficiency.

Key words: Iron deficiency; anemia; gastrointestinal hemorrhage; intestinal diseases; endoscopy, gastrointestinal.

Introdução

A anemia por deficiência de ferro (ADF) (ferropriva) é um estado onde há redução da quantidade total de ferro corporal até a exaustão das reservas de ferro. Nesta condição, o fornecimento de ferro é insuficiente para as necessidades dos diferentes tecidos, incluindo a formação de hemoglobina e dos glóbulos vermelhos.1 A deficiência de ferro (DF) em adultos e mulheres menopausadas é incomum, representando, na maior parte das vezes ,um sinal secundário ao sangramento gastro-intestinal.

Prevalência

No Brasil, não há levantamento da prevalência da ADF, mas estudos regionais mostram que a mesma é elevada em todas as idades e níveis socioeconômicos.2

A ADF por deficiência de ingestão é considerada a alteração carencial de maior magnitude mundial, atingindo até 35% da população. É um distúrbio prioritário no nosso país, onde dados de consumo alimentar já evidenciaram inadequação desse micronutriente na dieta, sobretudo de crianças e mulheres em idade fértil. Ao contrário da tendência de declínio de outras carências nutricionais, a anemia ferropriva é considerada uma endemia em expansão.

Várias doenças podem evoluir com anemia, definida pela OMS como taxa de hemoglobina sérica inferior a 12 g/dL para o sexo feminino e a 13 g/dL para o masculino.3 A ADF ocorre em 2%-5% dos homens e mulheres pós-menopausa em países desenvolvidos.4,5 Apesar da ausência de dados em adultos, estima-se que, no Brasil, cerca de 94 milhões de pessoas apresentem este tipo de anemia.6

O atendimento de pacientes com anemia tratada por reposição oral de ferro sem investigação prévia tem sido frequente pelos gastroenterologistas. O beneficio da denominada "prova terapêutica" é questionado, exceto na deficiência fisiológica, como ocorre em gestantes e adolescentes, por adiar o diagnóstico e o tratamento específico da doença de base.7,8

Causas

A DF e sua consequente anemia apresentam etiologias diferentes de acordo com o nível de desenvolvimento do país, o sexo e a faixa etária do paciente. Em países desenvolvidos, as causas mais frequentes podem ser classificadas segundo o sexo e a faixa etária. Em mulheres férteis, a ADF pode ter uma expressão clínica significativa com grande impacto na qualidade de vida da pacientes, estando relacionada frequentemente ao hiperfluxo menstrual. O acompanhamento contínuo desse grupo de pacientes, por vezes utilizando-se da suspensão da menstruação como prova diagnóstica, possibilita a indicação mais precisa de investigação de outras causas se a paciente permanecer sintomática ou não responsiva a terapêutica. A ADF em homens e mulheres pós-menopausa tem como causa predominante as afecções digestivas, que acarretam perda e deficiência de absorção de ferro ou ser secundária a doença crônica. Entre as afecções digestivas predominam as neoplasias gastro-intestinais, sendo mais prevalentes em indivíduos que cursam com DF se comparados a grupo controle normal de mesma faixa etária.9

Causas extradigestivas que possam ser responsáveis ou contribuir para a DF, como afecções urológicas, ginecológicas e hematológicas, devem ser sempre verificadas.

Os mecanismos envolvidos no desenvolvimento da DF são a redução de ingestão e absorção de ferro e a perda intestinal. A associação de diferentes mecanismos pode estar presente em uma mesma doença, como na doença de Crohn, onde ocorre malabsorção e perda entérica de ferro além de inflamação (Tabela 1).

A redução da absorção de ferro pode ser secundária à ingestão de alguns alimentos ou medicamentos, à alteração no metabolismo do ferro ou da integridade da mucosa entérica. Conceitua-se como absorção anormal a falha na normalização de ferro sérico após sua suplementação oral.10

Dentre os fatores inibidores da absorção de ferro estão os polifenóis, fitatos e outros elementos inorgânicos presentes em alimentos habitualmente utilizados,11,12 e à reposição oral de cálcio, frequente em mulheres pós-menopausa, que é capaz de reduzir a absorção de ferro em até 60%.1 Como exemplo de alteração da integridade da mucosa intestinal temos a doença celíaca (DC), uma enteropatia imunomediada induzida pelo glúten e caracterizada histologicamente por atrofia do epitélio com hiperplasia de cripta. Na forma latente, pode ser assintomática e a ADF pode ser a apresentação inicial.13 Há associação da DF com a anemia por doença crônica, na qual as citocinas inflamatórias alteram a homeostase do ferro, e com as anemias por deficiências de folato e cobalamina. A reposição oral de ferro isoladamente não corrige a ADF, devendo ser associada à restrição dietética do glúten, reduzindo o processo inflamatório local com melhora da absorção de ferro.14 Prevalência mundial de cerca de 1%, sendo responsável por 2%-3% das anemias ferroprivas em mulheres em idade fértil e por 20% de casos de anemia refratária.15,16,17 Dados epidemiológicos brasileiros são ausentes, mas estudo regional de Curitiba demonstra alta prevalência da doença (1:417 entre doadores de sangue saudáveis) comparável a países europeus.18

Cerca de 36%-90% dos pacientes com doença de Crohn podem evoluir com DF, e 9%-74% com ADF, dependendo da população estudada e dos termos definidores empregados. Essa deficiência tem origem multifatorial, estando associada a dietas restritivas, processo inflamatório, sangramento intestinal ou mesmo induzida por drogas (sulfassalazina e tiopurina).19

A gastrite atrófica autoimune e a induzida pelo H. pylori (Hp) têm sido descritas como indutoras de DF.20 Metanálise recente demonstrou risco de déficit de ferro e de anemia em indivíduos portadores de Hp respectivamente de 1,38 e 2,8 vezes maior que nos indivíduos não infectados. Etiologia multifatorial com perda sanguínea pelo trato digestório, redução da absorção dietética e aumento do consumo de ferro pela bactéria, entretanto, a erradicação da bactéria ainda não se mostrou suficiente para correção da anemia.21

Classificação

A perda sanguínea gastrointestinal (GI) pode ser classificada segundo sua localização e forma de apresentação.

Localização

a) Alta: acima da papila de Vater - alcance da endoscopia digestiva alta (EDA);

b) Média: proveniente do intestino delgado (ID), entre a papila de Vater e o íleo terminal;

c) Baixa: no cólon - alcançável pela colonoscopia.22

Forma de apresentação

a) Sangramento oculto: não visível para o paciente e para o médico, com detecção indireta por exames laboratoriais (anemia ferropriva, pesquisa positiva de sangue oculto nas fezes).23 Pode ser decorrente de qualquer lesão entre a cavidade oral e a região anorretal. Estão incluídas neste grupo as lesões esofágicas, gástricas e colônicas detectadas pelos exames endoscópicos que não apresentem sangramento visível no momento do exame ou que não tenham sido visualizadas no exame. Entretanto, cerca de 5% dos casos de sangramento oculto são decorrentes de lesões situadas no ID, não detectável pela EDA ou ileocolonoscopia.

b) Sangramento obscuro: sangramento GI, persistente ou recorrente com etiologia não detectada pela EDA, colonoscopia e exames radiológicos do ID (trânsito delgado ou enteróclise). Pode ser subdividido em aberto ou oculto, se não for visualizado.23,24 As angiectasias de ID são responsáveis por 30% a 60% dos casos (Tabela 2). 25

A EDA e colonoscopia não detectam a etiologia da perda em 5% dos casos. E em 75% destes, o sítio de perda está no ID, sendo as angiectasias as causas mais prevalentes, principalmente no idoso.26,27

Investigação diagnóstica

A investigação GI deve ser considerada nos pacientes com ADF confirmada, exceto se a história clínica revela perda sanguínea por sítio não digestório conhecido. A avaliação deve ser iniciada por uma boa anamnese e exame físico, que poderão auxiliar de forma importante na elucidação diagnóstica. Posteriormente podemos solicitar exames laboratoriais, endoscópicos, radiológicos e até métodos de medicina nuclear e testes provocativos.

Anamnese

A prevalência de lesões hemorrágicas varia de acordo com a faixa etária como mostrado na Tabela 3.

Na anamnese devemos enfatizar o questionamento de sintomas gastrointestinais, uso de AINEs, anticoagulantes, história familial de doença hematológica, câncer colorretal e doença celíaca (DC),28 assim como uso de medicamentos redutores da absorção de ferro e cirurgias gastrointestinais.

No sangramento oculto e obscuro, alguns dados são facilitadores do diagnóstico, como:29,30

• Idade acima 50 anos → tumores, angiectasias;

• Insuficiência renal crônica, estenose aórtica, doença de Von Willebrand → ectasias vasculares;

• Diarreia/dor abdominal → doença de Crohn (DC);

• Lúpus eritematoso sistêmico/poliarterite nodosa → vasculites, lesões isquêmicas;

• SIDA → sarcoma de Kaposi GI, colites infecciosas (CMV);

• Uso de AINE e 6 mercaptopurina → lesões erosivas

• Pancreatite crônica/neoplasia pancreática → hemosuccus pancreaticus

• Disfagia → síndrome de Plummer-Vinson

• Hemangiomas cutâneos → síndrome de Blue Rubber Bleb Nevus

A apresentação clínica, intensidade e o tempo da anemia orientarão nas etapas da investigação de forma objetiva, eficiente e com melhor relação custo-benefício. No caso de hematêmese, pela provável localização da lesão acima do ângulo de Treitz, a investigação deverá ser iniciada pela EDA, não sendo cabível a colonoscopia. Já em indivíduos com anemia leve, redução discreta do hematócrito e várias co-morbidades, a conduta deve ser conservadora e cuidadosa, pelos múltiplos fatores envolvidos.

Repercussões clínicas

A ADF, como as demais anemias, não é uma doença, mas um sinal de doença. Aspectos clínicos podem incluir manifestações do processo de doença subjacente, assim como do estado de deficiência.

As repercussões clínicas dependerão da etiologia, do tempo de evolução, da doença de base e da intensidade da perda sanguínea, quando presente. Os pacientes podem ser assintomáticos ou oligossintomáticos, cursando com astenia, desânimo, irritabilidade, perda de concentração e cefaleia. Se o início for insidioso e gradual, o paciente pode não ter a percepção adequada dos sintomas. A deficiência de ferro com ou sem anemia pode se expressar com alopécia, atrofia de papilas gustativas, secura na boca e unhas quebradiças. Desordens dietéticas com desejos irresistíveis de ingestão de substâncias pouco usuais como terra, papel e gelo podem estar associados a esta carência nutricional e que desaparecem com a reposição.31

O exame físico pode ser normal ou variar desde leve palidez de mucosas até hipotensão arterial, taquicardia, soprologia cardíaca pansistólica, e por vezes lipotímia nas perdas rápidas e acentuadas. Massas abdominais e retais devem ser descartadas. Sinais indiretos de doenças de base devem ser observados, como:

• dermatite herpetiforme → doença celíaca;

• sarcoma de Kaposi na pele → SIDA;

• lesões vasculares nos lábios → síndrome de Rendu-Osler-Weber;

• púrpuras → púrpura de Henoch-Schoenlein

• queilite, glossite e alterações ungueais → síndrome de Plummer-Vinson.29

Exames complementares

a) Laboratoriais

Não existe um parâmetro de excelência para o diagnóstico da anemia por perda digestiva, e a escolha deve considerar a hipótese diagnóstica, o custo, a complexidade, a disponibilidade e a susceptibilidade da metodologia a erros. Conforme abordado em outro artigo deste fascículo, diferentes parâmetros permitem a classificação da DF desde fases iniciais até a ADF, através da dosagem da ferritina, saturação da transferrina, ferro sérico, capacidade total de ligação de ferro e níveis hematimétricos.32,33

A pesquisa de sangue oculto nas fezes é um método muito utilizado na investigação da perda sanguínea GI, sendo positivo se a perda for superior a 1,5mL (perda de sangue diária de 0,5 a 1,5mL é considerada normal).34 Este exame tem sensibilidade suficiente para detectar sangramento não visível nas fezes, podendo ser realizado através de métodos de reação baseados no guáiaco e testes imuno-histoquímicos. Ambos os métodos requerem mais de uma amostra e apresentam vantagens e desvantagens relacionadas principalmente a sensibilidade conforme demonstrado na Tabela 4. O uso de warfarina ou doses baixas de ácido acetilsalicílico (81mg/d) não aumenta suficientemente o volume de sangue nas fezes para causar positividade no método de guáiaco.30,34

b) Métodos de imagem

• Endoscopia

A avaliação inicial do sangramento oculto GI deve ser realizada principalmente pela EDA e pela colonoscopia. O exame endoscópico do TGI superior deve ser realizado em pacientes jovens, com sintomas digestivos altos e fatores de riscos para lesões esôfago-gástricas (história familiar de câncer gástrico e uso de AINE). Além da alta sensibilidade e especificidade, a EDA é terapêutica e capaz de realizar biópsias (como da segunda porção duodenal, recomendadas na investigação de anemia ferropriva em pacientes de qualquer idade, para afastar o diagnóstico de DC).14 Entretanto, a observação de locais como o fundo gástrico, na presença de volumosas hérnias ou lesões com sangramento intermitente, possibilita resultados falso negativos na EDA, dificultando a detecção de lesões, como as erosões de Cameron e as ectasias vasculares.35

Pacientes acima de 50 anos sem sintoma digestivo alto ou com fatores de risco para lesões colônicas devem ser inicialmente investigados com a ileocolonoscopia. Adenocarcinomas, pólipos, colites de diferentes etiologias e ectasias vasculares são os principais achados. Pequenas lesões (pólipos, angiectasias e tumores) podem não ser detectadas se localizadas atrás das haustrações ou se o preparo intestinal for deficiente.36

Caso a EDA e a ileocolonoscopia não detectem lesões que justifiquem a anemia, o sangramento deve ser considerado obscuro. Este tipo de perda tem história natural imprecisa, incluindo o prognóstico e a evolução clínica. A repetição da EDA deve ser considerada nos pacientes com história de hematêmese e usuários de AINEs, visando avaliação cuidadosa do fundo gástrico no hiato esofágico em busca de lesões de Cameron.30 Nova colonoscopia deve ser considerada na possibilidade de "perda" de lesões, em pacientes com forte suspeição diagnóstica.36

Pacientes idosos com anemia ferropriva apresentam relativa alta incidência (16%) de lesões concomitantes no trato digestório superior e inferior, justificando a realização tanto da EDA como da ileocolonoscopia mesmo que o primeiro exame encontre uma lesão suspeita.37,38

Se o sítio não for detectado na presença de recorrência de anemia ferropriva apesar da suplementação de ferro, torna-se mandatória a avaliação do ID. Estima-se que 5% dos sangramentos gastrointestinais tenham etiologia nesta região.39 A distância do ID à boca ou ao ânus, a mobilidade das alças, a anatomia e a sua grande extensão dificultam avaliação deste segmento. Exames endoscópicos e radiológicos podem ser empregados, mas a escolha do método dependerá da suspeita diagnóstica, da disponibilidade do exame considerando-se a relação risco-benefício. Recentemente, a video-cápsula endoscópica (CE) e enteroscopia com duplo balão (EDB) foram introduzidas na investigação, permitindo maior acurácia diagnóstica se comparadas ao trânsito de delgado, enteróclise e enteroscopia convencional. A Tabela 5 mostra um resumo das vantagens e desvantagens de cada método utilizado na avaliação do ID.36

Pacientes com hospitalizações e hemotransfusões frequentes devem ser avaliados com angiografia e/ou enteroscopia intraoperatória. A cintigrafia, a angiografia ou a CE devem ser considerados de acordo com o vulto do sangramento, conforme mostrados na Figura 1.31


• Angiografia

Método útil apenas na investigação do sangramento GI ativo e aberto. Apesar da baixa sensibilidade (necessita de débito de sangramento maior que 0,5mL/min para positividade), da sua característica invasiva e dos riscos de insuficiência renal e colite isquêmica, permite uma precisa localização da lesão hemorrágica.35,40 Pode ser um método terapêutico por possibilitar a embolização do vaso sangrante.

A angiografia por tomografia computadorizada helicoidal é uma técnica mais recente, onde a aorta abdominal é cateterizada, com injeções intra-arteriais de um meio de contraste. O sítio de sangramento é identificado pelo extravasamento do meio de contraste, resultando em uma área hiperdensa no lúmen intestinal. Permite uma pronta e precisa localização do sítio de sangramento, guiando a subsequente angiografia seletiva convencional.41

• Medicina nuclear (Scan)

Imagens com hemácias marcadas com radionuclídeos, mais frequentemente o tecnécio (Tc99), podem ser úteis apenas na investigação do sangramento GI ativo, com perda sanguínea superior a 0,1mL/min. É mais utilizado no sangramento obscuro aberto, onde a EDA, a colonoscopia e a angiografia foram negativas. Embora relativamente sensível, permite apenas a identificação de uma área geral de sangramento, com limitado poder na orientação terapêutica. O sangramento intermitente também é um fator limitante do diagnóstico pelo método.42,43

c) Testes provocativos

Visando evitar resultados falso-negativos, vasodilatadores (nitroglicerina), anticoagulantes (heparina) e até mesmo agentes fibrinolíticos (estreptoquinase) podem ser utilizados. O objetivo é induzir ou aumentar a perda sanguínea, permitindo a detecção pela cintigrafia ou angiografia. Os resultados são controversos, não demonstrando benefício do método e questionando seu custo e segurança. Apresentam como complicações a insuficiência renal, a colite isquêmica e mesmo o óbito.44,45,46

Tratamento específico

Objetiva-se a elevação da taxa de hemoglobina sérica, manutenção da ferritina em níveis próximos ao limite inferior da normalidade, impedir a queda da hemoglobina, prevenir hemotransfusões, melhorar sintomas e a qualidade de vida do paciente.19

Nos casos de ADF relacionada a perdas GI agudas, a abordagem inicial deve ser a compensação hemodinâmica rápida do paciente e posterior tratamento emergencial do sitio de sangramento. O tratamento da ADF secundária a perda crônica ou alteração absortiva intestinal deve ser direcionado para a doença de base e correção da DF. A suplementação oral de ferro é a via preferencial, entretanto a intolerância à medicação e a presença de enteropatias são contraindicações a essa forma de reposição, inclusive com relatos de exacerbação da doenca de Crohn. Nestes casos opta-se pela via parenteral, que poderá ser associada, quando necessário, a eritropoetina.19

É considerada resposta terapêutica apropriada a elevação mínima da hemoglobina em 2 g/dL ou sua normalização no período de quatro semanas. A não resposta orienta a intensificação do tratamento, substibuindo-se a via oral pela parenteral ou adicionando-se eritropoetina se esta via já estiver em uso.19

Prevenção

O tratamento preventivo dependerá da predisposição de cada indivíduo e da detecção precoce de sintomas. Como exemplo, o controle sanguíneo periódico de pacientes submetidos a gastrectomias totais, parciais ou a cirurgia bariátrica é capaz de detectar o déficit de ferro, prevenindo a evolução para anemia.11

Indivíduos com história prévia e predisposição a novos episódios devem fazer suplementação com multivitaminas que contenham ferro ou seus sais, visando à reposição dos estoques corporais. Esta deve ocorrer sob orientação para que não haja depósito de ferro excedente em outros órgãos.

A erradicação do Helicobacter pylori (H pylori) deve ser realizada em pacientes que farão uso contínuo ou frequente de AINEs, por reduzir o risco de lesões do trato digestório.47 Entretanto, como esta infecção tem sido relacionada com o déficit de ferro e/ou anemia ferropriva, seu tratamento tem sido sugerido.47

Recebido: 12/12/2009

Aceito: 15/01/2010

Conflito de interesse: sem conflito de interesse

  • 1. Hallberg L, Brune M, Erlandsson M et al. Calcium: effect of different amounts on nonheme- and heme-iron absorption in humans. Am J Clin Nutr. 1991;53(1):112-9.
  • 2. Jordão RE, Bernardi JLD, Barros AA Filho. Prevalência de anemia ferropriva no Brasil: uma revisão sistemática Rev Paul Pediatr. 2009;27(1):90-8
  • 3
    International Nutrition Anemia Consultative Group (INACG) and World Health Organization (WHO) and United Nations Children´s Fund (Unicef). Guidelines for the use of iron supplements to prevent and treat iron deficiency anaemia. Washington DC: International Life Sciences Institute.1998.
  • 4. Goddard AF, McIntyre AS, Scott BB. Guidelines for the management of iron deficiency anaemia. British Society of Gastroenterology. Gut. 2000;46(3-4):IV1-IV5
  • 5. Sayer JM, Long RG. A perspective on iron deficiency anaemia. Gut. 1993;34(10):1297-9.
  • 6. Neuman NA, Tanaka OT, Szarfarc SC et al. Prevalência e fatores de risco para anemia no Sul do Brasil. Rev. Saúde Pública. 2000;34 (1):56-63
  • 7. Yates JM, Logan EC, Stewart RM. Iron deficiency anaemia in general practice: clinical outcomes over three years and factors influencing diagnostic investigations. Postgrad Med J. 2004;80 (945):405-10.
  • 8. Bermejo F, García-López S. A guide to diagnosis of iron deficiency and iron deficiency anemia in digestive diseases. World J Gastro-enterol. 2009;15(37):4638-43.
  • 9. Ioannou GN, Rockey DC, Bryson CL, Weiss NS. Iron deficiency and gastrointestinal malignancy: a population based cohort study. Am J Med. 2002;113(4):276-80.
  • 10. Fernández-Bañares F, Monzón H, Forné M. A short review of malabsorption and anemia. World J Gastroenterol. 2009;15(37): 4644-52.
  • 11. Charlton RW, Bothwell TH. Iron absorption. Annu Rev Med. 1983;34:55-68.
  • 12. Hallberg L, Rossander L. Effect of different drinks on the absorption of non-heme iron from composite meals. Human Nutr Appl Nutr. 1982;36(2):116-23.
  • 13. Hin H, Bird G, Fisher P, Mahy N, Jewell D. Coeliac disease in primary care: case finding study. BMJ. 1999;318(7177):164-7.
  • 14. Harper JW, Holleran SF, Ramakrishnan R, et al Anemia in celiac disease is multifactorial in etiology. Am J Hematol. 2007;82(11): 996-1000.
  • 15. McIntyre AS, Long RG. Prospective survey of investigations in outpatients referred with iron deficiency anaemia. Gut. 1993;34(8): 1102-1107
  • 16. Carroccio A, Ianni E, Cavataio F et al Sideropenic anemia and celiac disease: one study, two points of view. Dig Dis Sci. 1998;43: 673-8.
  • 17. Catassi C, Fasano A. Celiac disease. Curr Opin Gastroenterol. 2008; 24(6):687-91.
  • 18. Pereira MAG. Prevalence of celiac disease in an urban area of Brazil with predominantly European ancestry. World J Gastroenterol. 2006;12(40):6546-50.
  • 19. Gasche C, Berstad A, Befrits R, Beglinger C, Dignass A, Erichsen K et al. Guidelines on the diagnosis and management of iron deficiency and anemia in inflammatory bowel diseases. Inflamm Bowel Dis. 2007;13(12):1545-53.
  • 20. Fernández-Bañares F, Monzón H, Forné M. A short review of malabsorption and anemia. World J Gastroenterol. 2009;15(37): 4644-52.
  • 21. Muhsen K, Cohen D. Helicobacter pylori infection and iron stores: a systematic review and meta-analysis. Helicobacter 2008;13(5): 323-40.
  • 22. Ell C, May A. Mid-gastrointestinal bleeding: capsule endoscopy and push-and-pull enteroscopy give rise to a new medical term. Endoscopy 2006;38(1):73-5.
  • 23. American Gastroenterological Association medical position statement: evaluation and management of occult and obscure gastrointestinal bleeding. Gastroenterology. 2000;118(1):197-201.
  • 24. Gralnek IM. Obscure-overt gastrointestinal bleeding. Gastro-enterology 2005;128(5):1424-30.
  • 25 Thompson JN, Hemingway AP, McPherson GA, et al Obscure gastrointestinal haemorrhage of small-bowel origin. Br Med J. (Clin Res Ed). 1984;288(6431):1663-5.
  • 26. Pennazio M, Arrigoni A, Risio M, et al. Clinical evaluation of push-type enteroscopy. Endoscopy. 1995;27(2):164-70.
  • 27. Chong J, Tagle M, Barkin JS, Reiner DK. Small bowel push-type fiberoptic enteroscopy for patients with occult gastrointestinal bleeding or suspected small bowel pathology. Am J Gastroenterol. 1994;89(12):2143-6.
  • 28. Gomollón F, Gisbert JP. Anemia and digestive diseases: An update for the clinician. World J Gastroenterol. 2009;15(37):4615-6.
  • 29. Mitchell SH, Schaefer DC, Dubagunta S. A new view of occult and obscure gastrointestinal bleeding. Am Fam Physician. 2004;69(4): 875-81.
  • 30. Raju GS, Gerson L, Das A, Lewis B; American Gastroenterological Association. American Gastroenterological Association (AGA) Institute technical review on obscure gastrointestinal bleeding. Gastroenterology 2007;133(5):1697-717.
  • 31. Rector WG Jr. Pica: its frequency and significance in patients with iron-deficiency anemia due to chronic gastrointestinal blood loss. J Gen Intern Med. 1989;4(6):512-3.
  • 32. Paiva AA, Rondó PHC, Guerra-Shinohara EM. Parâmetros para avaliação do estado nutricional de ferro. Rev Saúde Pública. 2000; 34:421-6.
  • 33. Cook JD, Baynes RD, Skikne BS. Iron deficiency and the measurement of iron status. Nutr Res Rev. 1992;5(1):198-202.
  • 34. Rockey DC. Occult gastrointestinal bleeding. N Engl J Med. 1999; 341(1):38-46.
  • 35. Zuckerman GR, Prakash C, Askin MP, Lewis BS. AGA technical review on the evaluation and management of occult and obscure gastrointestinal bleeding. Gastroenterology. 2000; 118 (1):201-21.
  • 36. ASGE. Obscure gastrointestinal bleeding. Gastrointestinal Endosc. 2003;58(5):650-5.
  • 37. Cook IJ, Pavli P, Riley JW, Goulston KJ, Dent OF. Gastrointestinal investigation of iron deficiency anaemia. Br Med J (Clin Res Ed). 1986;292(6532):1380-2 .
  • 38. Joosten E, Ghesquiere B, Linthoudt H, Krekelberghs F, Dejaeger E, Boonen S, et al. Upper and lower gastrointestinal evaluation of elderly inpatients who are iron deficient. Am J Med. 1999;107 (1):24-9.
  • 39. Katz LB. The role of surgery in occult gastrointestinal bleeding. Semin Gastrointest Dis. 1999;10(2):78-81.
  • 40. Rollins ES, Picus D, Hicks ME, Darcy MD, Bower BL, Kleinhoffer MA. Angiography is useful in detecting the source of chronic gastrointestinal bleeding of obscure origin. AJR Am J Roentgenol. 1991;156(2):385-8.
  • 41. Ettorre GC, Francioso G, Garribba AP, Fracella MR, Greco A, Farchi G. Helical CT angiography in gastrointestinal bleeding of obscure origin. AJR Am J Roentgenol. 1997;168(3):727-31.
  • 42 Ng DA, Opelka FG, Beck DE, et al. Predictive value of technetium Tc99m-labeled red blood cell scintigraphy for positive angiogram in massive lower gastrointestinal hemorrhage. Dis Colon Rectum 1997;40(4):471-7.
  • 43. Voeller GR, Bunch G, Britt LG. Use of technetium-labeled red blood cell scintigraphy in the detection and management of gastrointestinal hemorrhage. Surgery. 1991;110(4):799-804.
  • 44. Koval G, Benner KG, Rösch J, Kozak BE. Aggressive angiographic diagnosis in acute lower gastrointestinal hemorrhage. Dig Dis Sci. 1987;32(3):248-53.
  • 45. Bloomfeld RS, Smith TP, Schneider AM, Rockey DC. Provocative angiography in patients with gastrointestinal hemorrhage of obscure origin. Am J Gastroenterol. 2000;95(10):2807-12.
  • 46. Berkelhammer C, Radvany A, Lin A, Hopkins W, Principe J. Heparin provocation for endoscopic localization of recurrent obscure GI hemorrhage. Gastrointest Endosc. 2000;52(4):555-6.
  • 47. Kurekci AE, Atay AA, Sarici SU, et al. Is there a relationship between childhood Helicobacter pylori infection and iron deficiency anemia? J Trop Pediatr. 2005;51(3):166-9.O tema foi sugerido e avaliado pelo coeditor deste fascículo educativo, Rodolfo Delfini Cançado, e pelo board interno da RBHH, e publicado após a concordância do editor, Milton Artur Ruiz.
  • Correspondência:
    Cyrla Zaltman
    Hospital Universitario Clementino Fraga Filho
    Rua Prof. Rodolpho Paulo Rocco, 255, 4º andar - Ilha do Fundão
    21941-913 - Rio de Janeiro-RJ - Brasil
    Tel.: (55 21) 2562-2326; Fax: (55 21) 2562-2417
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Jun 2010
    • Data do Fascículo
      Jun 2010

    Histórico

    • Aceito
      15 Jan 2010
    • Recebido
      12 Dez 2009
    Associação Brasileira de Hematologia e Hemoterapia e Terapia Celular R. Dr. Diogo de Faria, 775 cj 114, 04037-002 São Paulo/SP/Brasil, Tel. (55 11) 2369-7767/2338-6764 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: secretaria@rbhh.org