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Análise molecular do gene GYPB para inferência dos fenótipos S, s e U em uma população miscigenada de Minas Gerais - Brasil

Resumos

OBJETIVO: Este estudo teve como objetivos: 1) implementar a genotipagem para os antígenos S, s e U do sistema de grupo sanguíneo MNS na Fundação Hemominas e 2) avaliar pela primeira vez em uma população miscigenada de Minas Gerais, Brasil a ocorrência de polimorfismos do gene GYPB relacionados aos fenótipos U- e U+var, assim como a deleção de GYPB. Os antígenos S, s e U podem ocasionar reações transfusionais e doença hemolítica perinatal. A genotipagem é uma ferramenta útil na imuno-hematologia, principalmente quando a fenotipagem não pode ser realizada. MÉTODOS: 96 amostras de doadores de sangue e pacientes com doença falciforme previamente fenotipadas para os antígenos S, s e U foram selecionadas. As técnicas AS/PCR e ensaio combinado AS/PCR - RFLP foram empregadas para identificar os alelos GYPB*S, GYPB*s e as variantes GYPB(P2) e GYPB(NY), bem como a deleção do gene GYPB. RESULTADOS: Os resultados da genotipagem alelo-específica GYPB*S e GYPB*s foram 100% concordantes em relação aos fenótipo S+ (n = 56), s+ (n = 60) e s- (n = 35). Entretanto, o alelo GYPB*S, em associação com a variante GYBP(P2), foi detectado em 17,5% das amostras S- (n = 40), o que revela a importância da avaliação desta variante em nossa população. Entre as amostras S-s- avaliadas (n = 10), 60% apresentaram deleção do gene GYPB, e 40% apresentaram GYPB (P2) em homo ou hemizigose. CONCLUSÃO: A genotipagem é uma estratégia eficaz na inferência dos fenótipos S, s e U na população miscigenada de Minas Gerais, podendo contribuir para a segurança transfusional.

Sistema do grupo sanguíneo MNSs; Biologia molecular; Grupo com ancestrais do continente Africano; Brasil


OBJECTIVE: To implement genotyping for S, s and U antigens of the MNS blood group system at the Fundação Hemominas and to evaluate the occurrence of GYPB gene polymorphisms associated with the U- and U+var phenotypes and deletion of the GYPB gene for the first time in an admixed population of Minas Gerais, Brazil. The S, s and U antigens can cause transfusion reactions and perinatal hemolytic disease. Genotyping is a useful tool in immunohematology, especially when phenotyping cannot be performed. METHODS: Ninety-six samples from blood donors and patients with sickle cell disease previously phenotyped for the S, s and U antigens were selected. Allele-specific primer polymerase chain reaction (ASP-PCR) and polymerase chain reaction -restriction fragment length polymorphism (PCR-RFLP) assays were employed to identify the GYPB*S and GYPB*s alleles and the GYPB(P2) and GYPB(NY) variants, as well as deletion of the GYPB gene. RESULTS: The results of allele-specific genotyping (GYPB*S and GYPB*s) were totally in agreement with the phenotyping of S+ (n = 56), s+ (n = 60) and s- (n = 35) samples. However, the GYPB*S allele, in association with the GYPB(P2) variant, was detected in 17.5% of the S- samples (n = 40), which shows the importance of assessing this variant in the Brazilian population. Of the S-s- samples (n = 10), 60% had the deletion of the GYPB gene and 40% were homozygous or hemizygous for the GYPB(P2) variant. CONCLUSION: Genotyping was an effective strategy to infer the S, s, and U phenotypes in the admixed population from Minas Gerais (Brazil) and may contribute to transfusion safety.

MNSs blood-group system; Molecular biology; African continental ancestry group; Brazil


ARTIGO ORIGINAL

Análise molecular do gene GYPB para inferência dos fenótipos S, s e U em uma população miscigenada de Minas Gerais - Brasil

Marina Alves Faria; Marina Lobato Martins; Luciana Cayres Schmidt; Maria Clara Fernandes da Silva Malta

Fundação Centro de Hematologia e Hemoterapia de Minas Gerais - HEMOMINAS, Belo Horizonte, MG, Brasil

Autor correspondente Autor correspondente: Maria Clara Fernandes da Silva Malta Fundação Centro de Hematologia e Hemoterapia de Minas Gerais, HEMOMINAS Alameda Ezequiel Dias, 321, Bairro Santa Efigênia 30.130-110 Belo Horizonte, MG, Brasil maria.malta@hemominas.mg.gov.br

RESUMO

OBJETIVO: Este estudo teve como objetivos: 1) implementar a genotipagem para os antígenos S, s e U do sistema de grupo sanguíneo MNS na Fundação Hemominas e 2) avaliar pela primeira vez em uma população miscigenada de Minas Gerais, Brasil a ocorrência de polimorfismos do gene GYPB relacionados aos fenótipos U- e U+var, assim como a deleção de GYPB. Os antígenos S, s e U podem ocasionar reações transfusionais e doença hemolítica perinatal. A genotipagem é uma ferramenta útil na imuno-hematologia, principalmente quando a fenotipagem não pode ser realizada.

MÉTODOS: 96 amostras de doadores de sangue e pacientes com doença falciforme previamente fenotipadas para os antígenos S, s e U foram selecionadas. As técnicas AS/PCR e ensaio combinado AS/PCR - RFLP foram empregadas para identificar os alelos GYPB*S, GYPB*s e as variantes GYPB(P2) e GYPB(NY), bem como a deleção do gene GYPB.

RESULTADOS: Os resultados da genotipagem alelo-específica GYPB*S e GYPB*s foram 100% concordantes em relação aos fenótipo S+ (n = 56), s+ (n = 60) e s- (n = 35). Entretanto, o alelo GYPB*S, em associação com a variante GYBP(P2), foi detectado em 17,5% das amostras S- (n = 40), o que revela a importância da avaliação desta variante em nossa população. Entre as amostras S-s- avaliadas (n = 10), 60% apresentaram deleção do gene GYPB, e 40% apresentaram GYPB (P2) em homo ou hemizigose.

CONCLUSÃO: A genotipagem é uma estratégia eficaz na inferência dos fenótipos S, s e U na população miscigenada de Minas Gerais, podendo contribuir para a segurança transfusional.

Descritores: Sistema do grupo sanguíneo MNSs; Biologia molecular; Grupo com ancestrais do continente Africano; Brasil

Introdução

O sistema de grupo sanguíneo MNS é complexo, apresentando 46 antígenos conhecidos(1). Os principais antígenos desse sistema são M e N, presentes na proteína glicoforina A (GPA); S, s e U, presentes na glicoforina B (GPB). Os genes GYPA e GYPB, que codificam para as proteínas GPA e GPB, respectivamente, representam dois loci estreitamente ligados, localizados no cromossomo 4 (4p28-q31)(2). Polimorfismos de um único nucleotídeo (SNP) são responsáveis pelas variantes alélicas S/s e M/N. Indivíduos que apresentam deleção do gene GYPB são negativos para os antígenos S, s e U. Já o fenótipo S-s-U+var, caracterizado pela expressão enfraquecida do antígeno U e ausência dos antígenos S e s na superfície dos eritrócitos, está associado a alterações do éxon 5 do gene GYPB [variante GYPB(NY)] ou do íntron 5 deste mesmo gene [variantes GYPB(P2)]. Estas alterações são encontradas em populações africanas ou afro-descendentes e acarretam, respectivamente, a omissão parcial ou completa da expressão do éxon 5 do gene GYPB(3).

Os antígenos do sistema MNS são importantes na prática clínica por serem capazes de provocar reações transfusionais e doença hemolítica perinatal(4). Pacientes com transfusão recente ou anemia hemolítica autoimune nem sempre podem ser fenotipados, e nesses casos a genotipagem vem sendo empregada com sucesso(5). Indivíduos S-s-U- ou S-s-U+var, quando expostos a hemácias U+, podem produzir aloanticorpo anti-U, o qual pode ocasionar reações transfusionais severas. Como doadores com o fenótipo U- são raros em várias populações, e soros anti-U de boa qualidade são escassos, a compatibilização deste antígeno muitas vezes pode se tornar um desafio na prática transfusional. Nesse contexto, a utilização das ferramentas de biologia molecular, aliada ao atual conhecimento das bases genéticas associadas à expressão de antígenos variantes, tem sido muito importante na rotina laboratorial da Imuno-hematologia(6,7).

O Estado de Minas Gerais possui grande extensão territorial e população altamente miscigenada(8), tendo recebido indivíduos de várias regiões da África no período colonial, em decorrência do tráfico de escravos(9). Desta forma, é plausível que na população de Minas Gerais sejam observadas as variantes relacionadas ao gene GYPB previamente descritas em africanos e afro-descendentes. Neste contexto, o presente estudo teve como objetivos 1) implementar a genotipagem para os antígenos S, s e U do sistema de grupo sanguíneo MNS na Fundação Hemominas e 2) avaliar pela primeira vez na população mineira a ocorrência de mutações do íntron 5 e éxon 5 do gene GYPB relacionados aos fenótipos U- e U+var.

Para isso, foi empregada a técnica de AS/PCR (allele-specific primers polymerase chain reaction) para a genotipagem dos antígenos S e s e o ensaio combinado AS/PCR-RFLP (allele-specific primers polymerase chain reaction - restriction fragment length polymorphism) para a identificação dos polimorfismos genéticos responsáveis pelos fenótipos U negativo e U+var(3).

Métodos

Amostras empregadas

Visando à implementação e validação da técnica de genotipagem para os antígenos S, s e U, foram analisadas 96 amostras previamente fenotipadas de doadores de sangue e pacientes portadores de doença falciforme da Fundação Hemominas, com os seguintes fenótipos: S+s+ (n = 30), S-s+ (n = 30), S+s- (n = 26) e S-s- (n = 10).

Testes sorológicos

Todas as amostras de sangue foram previamente submetidas à fenotipagem dos antígenos S e s, empregando a técnica de aglutinação em coluna e utilizando gel de centrifugação ID-LISS/Coombs (contendo antiglobulina humana poliespecífica) e anticorpos humanos policlonais anti-S e anti-s (DiaMed AG - Suíça).

As amostras S-s- foram fenotipadas para o antígeno U pela técnica de aglutinação em coluna, utilizando gel de centrifugação ID-LISS/Coombs, empregando soro de pacientes aloimunizados, contendo o anticorpo anti-U previamente identificado.

Estes testes foram realizados no Laboratório de Imuno-hematologia da Fundação Hemominas em amostras de sangue total colhido em EDTA.

Extração do DNA genômico

A purificação de DNA genômico foi realizada a partir do sangue total utilizando o kit comercial QIAamp DNA Blood Mini Kit (QIAGEN GmbH, Hilden, Alemanha), de acordo com as recomendações do fabricante.

Genotipagem GYPB*S e GYPB*s - Ensaio de PCR alelo-específica

Todas as 96 amostras avaliadas no presente estudo foram submetidas às técnicas de PCR alelo-específicas para a genotipagem dos alelos GYPB*S e GYPB*s. Os testes foram realizados utilizando-se 100 ng de DNA genômico em uma reação de 20 µl contendo 20 mM de Tris-HCl (pH 8.4), 2,0 mM de MgCl2 para GYPB*S e 2,5 mM para GYPB*s, 200 µM de cada deoxinucleotídeo trifosfato , 0,8 U de Platinum Taq DNA Polimerase (Invitrogen, USA) e 2 pmol de cada iniciador GPB 1640 e GPBS ou GPBs (Tabela 1). A PCR foi feita em termociclador (modelo TC-412, Techne, Reino Unido), nas seguintes condições de temperatura: uma fase inicial a 95 ºC por 5 min, seguida por 35 ciclos de 95 ºC por 30 segundos, uma fase de anelamento de 60 ºC para GYPB*S e 63 ºC para GYPB*s por 30 segundos, 72 ºC por 30 segundos e uma fase final de extensão de 72 ºC por 5 minutos. Os produtos amplificados foram submetidos à eletroforese em gel de agarose a 2% e visualizados sob luz UV após coloração com brometo de etídeo.

Nas reações de genotipagem GYPB*S e GYPB*s, a detecção do produto de 207 pb indica a presença dos alelos correspondentes aos antígenos S e s, respectivamente.

Análise molecular para avaliação de polimorfismos do éxon 5 e íntron 5 do gene GYPB ou de sua deleção

As amostras com fenótipos S-s- previamente conhecidos (n = 10) e as amostras fenotipadas como S-s+ e que amplificaram para GYPB*S (n = 3) foram submetidas a um ensaio combinado AS/PCR-RFLP. Este ensaio permite avaliar a ocorrência da deleção de GYPB bem como detectar polimorfismos do éxon 5 e íntron 5 deste gene, relacionados ao impedimento da expressão do antígeno S e enfraquecimento de expressão do antígeno U nos eritrócitos [variantes GYPB(P2) e GYPB(NY)].

Para o ensaio combinado AS/PCR - RFLP, primeiramente foi realizada uma PCR na qual 100 ng de DNA genômico foram utilizados em reação com volume final de 20 µL, contendo 20 mM de Tris-HCl (pH 8.4), 2,0 mM de MgCl2, 200 µM de cada deoxinucleotídeo trifosfato, 4 pmol dos iniciadores GPB 4/5 e GPB IVS5, 6 pmol do iniciador GPB 5T (Tabela 1) e 0,8 U de Platinum Taq DNA Polimerase (Invitrogen,USA). Nesta mesma reação também foi utilizado 1 pmol dos iniciadores HGH sense e antisense (que amplificam uma sequência codificadora do hormônio de crescimento humano), como um controle positivo interno da reação de amplificação (Tabela 1). A reação de PCR foi realizada nas mesmas condições descritas anteriormente para GYPB*S, porém com uma fase de anelamento a 55 ºC. Os produtos amplificados foram submetidos à eletroforese em gel de poliacrilamida 8% e visualizados sob luz ultravioleta após coloração com brometo de etídeo.

A ausência de amplificação do produto de 260 pb específico para esta reação, em amostras fenotipadas como S-s-, na presença de amplificação do produto de 434 pb relacionado ao gene controle HGH, permite a inferência do fenótipo S-s-U- relacionado à deleção do gene GYPB.

Nesta mesma reação, a presença de um produto alelo-específico de 145 pb indica a ocorrência da mutação 230 C>T no éxon 5, relacionada à variante GYPB(NY).

Já a presença do produto de 260 pb indica que o gene GYPB está presente. Nestes casos, é necessário investigar a ocorrência da alteração +5g>t do íntron 5 do gene, relacionado à variante GYPB(P2), por meio de RFLP visando a melhor caracterização das amostras.

Nesta reação de RFLP, a digestão do produto de PCR de 260 pb pela enzima EcoRI (Promega, USA), gerando fragmentos de 92 pb e 168 pb, indica a ocorrência do gene GYPB selvagem, enquanto a ausência de digestão (perda do sítio de restrição) indica a presença da mutação +5 g>t no íntron 5 relacionada à variante GYPB(P2).

Resultados

PCR alelo-específica GYPB*S e GYPB*s

Todas as amostras estudadas foram submetidas às técnicas de PCR alelo-específicas GYPB*S e GYPB*s. Para as 56 amostras fenotipadas como S+ (30 amostras S+s+ e 26 amostras S+s-), foi observada a presença do produto de amplificação esperado de 207 pb que identifica o alelo que codifica para o antígeno S (Tabela 2). Em relação às 40 amostras fenotipadas como S- (30 amostras S-s+ e 10 amostras S-s-), sete (17,5%) mostraram a presença do alelo GYPB*S (Tabela 2). Dentre estas sete amostras, três haviam sido fenotipadas como S-s+ e quatro como S-s- (Tabela 2).

As sete amostras fenotipadas como S- que amplificaram na PCR alelo-específica GYPB*S foram analisadas por meio do ensaio combinado AS/PCR-RFLP(3) com o intuito de determinar a presença de alterações no éxon 5 e no íntron 5 do gene GYPB que impedem a expressão do antígeno S na superfície dos eritrócitos (ver abaixo).

Já as amostras genotipadas para o alelo GYPB*s apresentaram total concordância com a fenotipagem, ou seja, as 60 amostras s+ avaliadas (30 amostras S-s+ e 30 amostras S+s+) apresentaram produto de amplificação esperado de 207 pb, enquanto as 35 amostras fenotipadas como s- (25 amostras S+s- e 10 amostras S-s-) foram negativas na PCR GYPB*s (Figura 1).


Análise molecular para avaliação de polimorfismos do éxon 5 e íntron 5 do gene GYPB ou de sua deleção (Ensaio combinado AS/PCR - RFLP)

As dez amostras fenotipadas como S-s- foram investigadas quanto à deleção do gene GYPB por meio do ensaio combinado AS/PCR - RFLP. Quatro dessas amostras apresentaram, nesta reação, o produto de 260 pb, indicando a presença do gene. As outras seis amostras não apresentaram este produto de amplificação, podendo, portanto, ser consideradas S-s-U- em decorrência da deleção do gene GYPB.

As três amostras fenotipadas como S-s+ que apresentaram produto de amplificação na PCR alelo-específica GYPB*S e as quatro amostras fenotipadas como S-s- que apresentaram ausência de deleção do gene GYPB foram investigadas quanto a alterações no éxon 5 e íntron 5 do gene (Figura 2).


Estas investigações revelaram que as quatro amostras fenotipadas como S-s- avaliadas foram homozigotas ou hemizigotas para a alteração no nucleotídeo +5 (g>t) do íntron 5 do gene GYPB, a qual está relacionada à variante GYPB(P2) (amostras 4 a 7, Tabela 3).

As três amostras fenotipadas como S-s+ e que apresentaram amplificação na PCR alelo-específica GYPB*S apresentaram padrão compatível com heterozigose para um alelo correspondente à variante GYPB(P2) e outro alelo selvagem, correspondente à GYPB (amostras 1 a 3, Tabela 3).

Discussão

Para avaliar a eficácia das técnicas de genotipagem empregadas, as PCR alelo-específicas GYPB*S e GYPB*s foram realizadas em 96 amostras correspondentes aos seguintes fenótipos: S+s+ (n = 30), S+s- (n = 26), S-s+ (n = 30) e S-s-(n = 10).

Os resultados da genotipagem GYPB*S e GYPB*s obtidos foram 100% concordantes com os testes de hemaglutinação quando foram utilizadas amostras fenotipadas como S+s- ou S+s+.

Entretanto, 10% das amostras fenotipadas como S-s+ (n = 30) amplificaram na PCR alelo-específica GYPB*S. Este percentual é mais elevado do que o anteriormente descrito em brasileiros descendentes de africanos amostrados no Nordeste do país, onde em 7,4% das amostras S-s+ foi identificada a presença do alelo GYPB*S(6); e mais elevado do que os 5% de discrepância entre fenotipagem e genotipagem dos antígenos S e s, relatados entre brasileiros da região amazônica(10).

A análise do íntron 5 e do éxon 5 de GYPB revelou que as três amostras que apresentaram amplificação do alelo GYPB*S, embora tenham sido fenotipadas como S-s+, apresentaram a mutação silenciadora associada à variante GYPB(P2) em heterozigose com a GYPB selvagem. Nestes casos, o genótipo deduzido para os indivíduos seria GYPB(P2)*S/GYPB*s.

Das dez amostras S-s- avaliadas, seis (60%) apresentaram deleção do gene GYPB. Estudos prévios realizados em brasileiros mostraram uma prevalência de 76,5% (13/17) desta deleção entre as amostras fenotipadas como S-s-(6).

As quatro amostras fenotipadas como S-s- e para as quais foi detectado o gene GYPB também foram submetidas ao ensaio combinado AS/PCR-RFLP com o objetivo de analisar as variantes do éxon 5 e íntron 5 desse gene. Todas essas amostras foram homozigotas ou hemizigotas para a variante GYPB(P2).

Estudos anteriores já haviam relatado que a alteração +5 g>t do íntron 5, associada à variante GYPB(P2), é de fato o mecanismo mais frequentemente associado ao silenciamento do antígeno S e à ocorrência do fenótipo S-s-U+var, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos. Estes estudos mostraram que entre os afro-descendentes S-s- amostrados no Nordeste brasileiro (n =1 7), quatro possuíam o gene GYPB, dos quais três apresentavam a mutação relacionada à variante GYPB(P2) em homo (n = 2) ou heterozigose (n = 1)(6). Já entre afro-americanos esta variante foi relatada em 83% das amostras S-s-U+var(3).

Por outro lado, embora nenhuma variante GYPB(NY) tenha sido encontrada no presente trabalho, os estudos realizados em doadores de sangue brasileiros relataram que dois dos quatro indivíduos S-s-U+var e três dos 11 indivíduos S-s+ que amplificaram para GYPB*S avaliados eram positivos para o alelo GYPB(NY)(6). Já entre os afro-americanos provenientes do programa de triagem de doadores com fenótipo raro do New York Blood Center (EUA), 7 dos 41 indivíduos S-s-U+var apresentavam GYPB(NY) em homozigose (n = 4) ou heterozigose com GYPB(P2) (n = 3)(3).

É importante lembrar que após cinco séculos de miscigenação, temos em Minas Gerais, assim como em outras regiões do país, uma população altamente miscigenada, na qual há grande variabilidade nos níveis de ancestralidade, mesmo dentro de categorias fenotípicas tradicionais como "branco", "negro" ou "afro-descendente"(11). Por este motivo, consideramos que a seleção de amostras independente do perfil étnico retrata de forma mais adequada a população e evita a subjetividade própria do processo de autodenominação étnica nas populações miscigenadas.

A prevalência do fenótipo S-s- é de 2 a 8% na África, tendo sido descrito entre pigmeus (20%), africanos ocidentais (até 37%) e afro-americanos (1%)(12-15). A existência de polimorfismos relacionados ao gene GYPB entre indivíduos de origem africana tem levado à especulação de que estas variantes possam ter sido selecionadas como um resultado da resistência relativa que elas conferem contra a malária falciparum(10).

A miscigenação africana na população brasileira é expressiva, tendo sido estimada em 34,1% para doadores de sangue e 45,5% para pacientes com doença falciforme amostrados em Minas Gerais(8). Desta forma, não apenas é esperado que os fenótipos S-s-U- e S-s-U+var sejam encontrados no Brasil, mas também que suas frequências variem entre as regiões do país, já que níveis de miscigenação variam substancialmente no espaço geográfico(8,16-21).

Considerando todas as 40 amostras S- estudadas (30 amostras S-s+ e 10 amostras S-s-), 17,5% apresentaram resultado positivo na PCR GYPB*S e presença da variante silenciadora GYPB(P2). Estes números ressaltam a expressiva frequência desse polimorfismo na população mineira e são um exemplo claro da importância da análise das variantes atualmente conhecidas quando se utiliza a genotipagem para a inferência dos fenótipos dos antígenos S, s e U do sistema MNS. Além disso permanece como um desafio para futuros estudos, a identificação de outras formas variantes, além das atualmente conhecidas.

Embora as análises apresentadas tenham sido realizadas em amostras com fenótipos previamente conhecidos, a genotipagem S, s e U pode ser muito útil nos casos em que os testes sorológicos objetivando a determinação dos antígenos não podem ser realizados. Nestes casos, a pesquisa dos polimorfismos conhecidos, associados a alterações da expressão de GYPB, deve ser obrigatoriamente realizada.

A implicação na prática transfusional da presença das alterações moleculares envolvidas no fenótipo U+var ainda é desconhecida, embora saiba-se que indivíduos U+var sejam capazes de produzir anti-U quando em contato com o antígeno.

As transfusões para pacientes aloimunizados que necessitam de hemácias S-s-U- ainda representam um desafio em qualquer serviço transfusional devido à falta de reagentes sorológicos bem caracterizados e de boa qualidade(22). É difícil obter anticorpos anti-U de boa reatividade e com volume suficiente para permitir a fenotipagem dos pacientes e possíveis doadores de sangue(6). Tendo em vista estas dificuldades, os Laboratórios de Imuno-Hematologia, tanto do Brasil quanto de outras partes do mundo, eventualmente utilizam soro anti-U de pacientes aloimunizados para fenotipar hemácias de doadores e pacientes. Porém, em geral, esses anticorpos não são suficientemente bem caracterizados e podem não detectar o antígeno U variante, uma vez que ele é fracamente expresso na superfície dos eritrócitos, o que pode levar ao risco de resultados falso-negativos (indivíduo U+var fenotipado como U-). Esta situação provavelmente ocorreu em quatro das dez amostras S-s- avaliadas no presente estudo (amostras 4 a 7, Tabela 3), as quais foram inicialmente fenotipadas como S-s-U- e, após a detecção da variante GYPB(P2) em homo ou hemizigose na genotipagem, foram reclassificadas como S-s-U+var. A fenotipagem falso-negativa do antígeno U é especialmente crítica para os doadores, uma vez que suas hemácias poderão ser transfundidas em pacientes verdadeiramente U negativos.

Assim, a inserção de ferramentas de biologia molecular na determinação dos antígenos S/s e U em doadores de sangue e pacientes mostra-se fundamental para minimizar os problemas encontrados na prática imuno-hematológica, como a correta identificação dos indivíduos S-s-U- e S-s+U+var. A genotipagem S/s e U poderá levar a uma redução do risco de reações transfusionais potencialmente severas envolvendo estes antígenos, principalmente em pacientes politransfundidos, como os portadores de anemia falciforme.

Agradecimentos

Ao Laboratório de Imuno-hematologia da Fundação Hemominas pela disponibilização das amostras de sangue fenotipadas, à Drª. Lilian Castilho pelo fornecimento de amostras de DNA controle U+var, à Fundação Hemominas e à FAPEMIG pelo apoio financeiro.

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Submissão: 10/1/2012

Aceito: 26/3/2012

Conflito de interesse: Os autores declaram não haver conflito de interesse

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  • Autor correspondente:

    Maria Clara Fernandes da Silva Malta
    Fundação Centro de Hematologia e Hemoterapia de Minas Gerais, HEMOMINAS
    Alameda Ezequiel Dias, 321, Bairro Santa Efigênia
    30.130-110 Belo Horizonte, MG, Brasil
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      08 Ago 2012
    • Data do Fascículo
      2012

    Histórico

    • Recebido
      10 Jan 2011
    • Aceito
      26 Mar 2012
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