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Evolução da profissão farmacêutica nos últimos 40 anos

EDITORIAL

Evolução da profissão farmacêutica nos últimos 40 anos

Os senhores poderiam perguntar-me porque aceitei o convite para discorrer sobre os últimos 40 anos de ensino farmacêutico e bioquímico, destacadamente, na nossa FCF/USP. Só relutei, uma vez que aos 74 anos e aposentado desde 1986, com poucas incursões, desde então, em atividades docentes e didáticas, que poderia eu transmitir-lhes que lhes trouxesse, de fato, algo proveitoso? Cedi, porém, ao convite da Comissão Organizadora da X Semana Farmacêutica de Ciência e Tecnologia da FCF/USP, primeiro porque passei, de meus 74 anos, 56 dentro das atividades laboratoriais e, em segundo lugar, porque passei por esta casa na condição de aluno, professor e diretor, tendo vivenciado nesse tempo atividades como diretor do Centro Acadêmico, interessar-me recém-formado por uma área ainda virgem, a energia atômica voltada para as ciências biológicas e médicas e, paralelamente, desenvolver atividades docentes em nossa Faculdade. É nesse intenso período de vida que dei minha colaboração ao CFF, como seu Secretário Geral, por dois anos e logo após, e por um longo período, Presidente da Associação Brasileira de Ensino Farmacêutico e Bioquímico. Em 1976, honraram-me com a Presidência da Sociedade Brasileira de Biologia e Medicina Nuclear, reduto médico por excelência. Depois de minha aposentadoria desenvolvi, com o melhor de minha modesta experiência, um laboratório de análises clínicas, de importância nacional, considerado por muitos a instituição privada pioneira na área de hormônios e similares, reclamada de há muito pela classe médica.

Aceitei, então, a incumbência porque penso que posso falar-lhes com tranqüilidade sobre tudo aquilo que vi, vivi, senti, ora com alegria, ora com tristeza, próprias de etapas de lutas na profissão e pela profissão. Lutas que continuam sempre para que mereçam de todos nós uma permanente e constante vigília nos destinos de nossa profissão.

Para lhes falar sobre os últimos 40 anos por que passaram os currículos de formação farmacêutica, evidentemente, produto da velocidade das transformações tecnológicas, sou obrigado a contar-lhes que poucos anos após a II Guerra Mundial, a multiplicação dos conhecimentos científicos e tecnológicos ocorria a cada 40 anos. Ao terminar meu curso, em 1956, tais conhecimentos ocorriam a cada 20 anos. Pouco depois já estávamos a 10 anos. Hoje, a cada 2 anos os conhecimentos se multiplicam. E, cada vez mais, o tempo se encurta! Liberalli, que foi professor desta casa, considerado um dos luminares da profissão e dono de uma palavra vibrante, cujos discursos foram considerados jóias literárias, por afirmarem sempre sua crença no homem, no futuro e na profissão farmacêutica, dizia, em 1948, na oportunidade em que se discutiam planos para modernização dos currículos farmacêuticos que "é sobretudo em épocas de transição como a nossa, em que se renovam as fisionomias e as estruturas de quase todas as instituições, que a Universidade, a escola, têm necessariamente que marchar ao ritmo acelerado do presente, para se não anquilosarem no culto estéril de velhas formas decadentes". Se já havia essa preocupação em época que os conhecimentos se duplicavam a cada 40 anos, imaginem vocês, 15 anos antes, em 1933, em que Kilpatrick, em seu "Educação para uma civilização em mudança", já emitia uma sentença inapelável: ou a escola prepara para a vida, para a civilização que surge, ou o país e, dentro dele, o exercício profissional, se torna um espólio à mercê da aventura".

Em 1961, a Profa. Maria Apparecida Pourchet Campos, professora emérita desta casa, já falecida, dizia que a formação profissional não pode fugir a duplo imperativo: ser atual, ajustando o jovem ao meio em que vai operar; ser imaginativa, preparando-o para uma sociedade em contínua mudança, criando a oportunidade de adaptação progressiva, condicionada à medida em que a impuserem sua evolução, seja individual ou econômico-social. Por isso, já em 1957, nossa escola introduzia novas disciplinas em seu currículo, como Matemática, Estatística, Físico-Química, Química Inorgânica, Anatomia, Histologia, Imunologia, Fisiologia, Farmacodinâmica e, assim, os semestres passaram a ser 8. E é no ano de 1961, durante Congresso Brasileiro em Recife, que é proposto um novo currículo de formação profissional para o Farmacêutico. Nesta proposta o objetivo é afirmar que sua formação tem dupla polaridade, a de ser biológica e ser química.

O estudo mostrava que 3000 horas de trabalhos escolares e mais estágio a ser discutido permitiriam formação razoável, embora 4000 horas não seria demasiado para 4 anos de curso. Nesse meio tempo, o CO da USP aprovou a nova denominação do grau dos formandos em Farmácia, para Farmacêutico-Bioquímico. Quero lembrar, uma conquista iniciada pelo Centro Acadêmico XXV de Janeiro. Mas foi em 1962 que o CFE aprovou o Parecer 268/62, fixando um novo currículo de Farmácia, que numa primeira etapa formava o Farmacêutico e na segunda o Farmacêutico-Bioquímico, na minha opinião outra grande conquista, que o conduzia a 5 opções: Indústria Farmacêutica e de Alimentos; Controle de Medicamentos e Análise de Alimentos; Química Terapêutica e Laboratório de Saúde Pública. Em 1967 o CFF, diante do novo currículo, estabelecia o Âmbito Profissional Farmacêutico.

A reforma universitária aprovada em 1969 para todo o Brasil exigiu, novamente, que os currículos fossem revistos, pois um dos imperativos era de que matérias de ensino básico fossem ministradas em unidades de ensino básico. Na USP surgiram, então, unidades novas como os Instituto de Biociências e o Instituto de Ciências Biomédicas, além dos, já tradicionais, Institutos de Química e Física. É deste período que a Faculdade passou a chamar-se Faculdade de Ciências Farmacêuticas e seu curso dividido em 3 ciclos distintos. Um, pré-profissional (matérias de cunho fundamental ou básico), ministradas nos Institutos; um segundo ciclo, profissional comum e o terceiro, ciclo profissional diversificado. Dizer que em 1972, a nossa FCF já havia se adaptado à reforma não é verdade. Foi muito difícil a integração com os Institutos e muitos problemas ocorreram. A reforma universitária para a nossa Faculdade só começou a melhorar 10 anos após sua instalação. Não sei a quantas anda depois de mais de 30 anos. Penso não ter havido grandes modificações curriculares desde que saí, em 1986, a não ser pequenos ajustes para contemplar melhor a carga horária, ajustes permitidos no âmbito das próprias escolas.

Mesmo estando afastado, de há muito, das discussões sobre novas diretrizes curriculares, entendo a preocupação permanente de se atualizarem programas de ensino, estabelecerem novas disciplinas, enfim, adaptar a formação do aluno para um mundo em constante evolução, mas assusta-me o futuro do profissional se a ele, tais mudanças não significarem a melhoria sempre perseguida, em termos de qualidade, de capacitação, de liderança. Devo-lhes dizer, porém, que sou, mesmo agora com 74 anos, entusiasta das reformas que perseguem a perfeição. Nego-me, mesmo, a envelhecer para não desenvolver defesas elaboradas contra novas idéias.

Quando a escola é parte de um universo, como a USP, por exemplo, e aqui estão vocês, penso que é somente com ela que são gerados os sentimentos, a vontade, a organização e a disciplina intelectual, qualidades a que os povos verdadeiramente fortes devem suas melhores vitórias. Assim dizia Julio de Mesquita, em 1934, por ocasião da fundação de nossa USP. Por isso, sempre gostei de questionar a formação do indivíduo em si, dentro da Universidade. Alinho-me entre aqueles que concordam com Adam Smith, no distante século 18, quando afirmava que a função da Universidade não é ensinar profissão, mas o que ilumina e fundamenta a cultura geral. As vantagens da educação generalista sobre a profissionalizante são claras e creio que o sucesso científico e tecnológico e na área de humanidades de certos países se deve à sua adoção. A velocidade com que muda a tecnologia - repito - substituindo pessoas por rotinas de computador e máquinas, é um exemplo da falácia da especialização, da profissionalização.

Entretanto, a própria USP, através de seu Reitor, informa que há necessidade de pessoal especializado em algumas áreas e a Universidade acaba respondendo a essa demanda. Tais áreas ou cursos novos sequer existem em qualquer qualquer Faculdade do País (sic) e o conjunto mostra uma tendência de trazer para a graduação áreas que ficavam apenas no nível da especialização. Apenas para ficarmos em nossa área de Ciências Farmacêuticas, um dos cursos é de Química Forense que, afinal, faz parte de nossa disciplina de Toxicologia. E a informação se completa dizendo que formará peritos forenses que checam evidências de um crime por meio de análises de sangue, saliva, fios de cabelo, etc. E o pior, segundo um dos coordenadores, o curso será uma das habilitações da carreira de Química, da USP, Ribeirão Preto. É de pasmar! E tem mais. Em São Carlos, um novo curso de Ciências Físicas e Biomoleculares já está sendo chamado de o primeiro da América Latina e será dado no Instituto de Física da USP, naquela cidade. O foco é a chamada Biotecnologia que vai tratar, por exemplo, de melhoramento de plantas para a agricultura (ignoraram a Luiz de Queirós em Piracicaba), de pesquisas com células-tronco e, pasmem, da fabricação de vacinas e hormônios, utilizando microorganismos geneticamente modificados. O que fazer? A nós parece, um pouco, as conhecidas contradições da Universidade. É o caos construtivo de que falam alguns.

Apreciei, por isso mesmo, o parecer da Câmara de Educação Superior, do Conselho Nacional de Educação, que instituiu novas diretrizes curriculares e, pessoalmente, torço por seu sucesso. Em 1974, preparei, a pedido do CFF, o documento "O ensino das ciências farmacêuticas no Brasil: Análise e recomendações". Ali, avaliamos o ensino, suas perspectivas e seu provável futuro. O estudo compreendeu o exame de todas as escolas do país: 26. Hoje o país conta com mais de 200 escolas! Se apreciei o parecer, como já disse, assusta-me também imaginar um mercado de trabalho para o profissional farmacêutico que seja condigno com sua formação, agora mais árdua, a exigir mais de 5000 horas, em 10 semestres ideais.

Quem sabe se, diante de novas atribuições e dificuldades que o novo currículo encerra, as autoridades não se darão conta de que é preciso vigiar mais os processos de abertura de escolas, quase sempre criadas ao sabor de pressão de paixões politicas, para não falar de outras, como as de interesse estritamente comerciais. Daí porque alguém já as chamou de escolas permanentemente risonhas e francas; na entrada, na permanência e na saída dos alunos.

Com todas as dificuldades impostas pelo mundo moderno, não podemos esquecer que padecemos daquilo que se chama conflitos de atribuição com outras profissões, cujos âmbitos, às vezes ambíguos, fazem o mercado de trabalho ser mais disputado. É aqui que vamos encontrar, de fato, o papel que a escola deve representar no sentido de formar contingentes cada vez mais capacitados e aptos a enfrentar essa disputa.

Um retrato atual mostra que o ensino superior, de modo geral, cresceu excessivamente em número de escolas e cursos, destacadamente na rede privada e aqui as de Farmácia não foram exceção. Para não deixar jovens sem escola, os novos cursos foram criados com o apoio da autoridade governamental, interessada em ampliar acesso de estudantes à educação superior. Esse crescimento desordenado atinge, profundamente, o ensino como tal, já de certa forma desprestigiado pela carência de qualificação docente. Alguma exceção pode ser encontrada no ensino público, nas universidades estaduais e federais, nas quais podemos encontrar professores qualificados. É preciso que reflitamos um pouco: de que vale um currículo voltado para uma formação generalista, humanista, crítica e reflexiva, para atuar em todos os níveis de atenção à saúde, com base no rigor científico e intelectual, se, concomitantemente, não reciclarmos a estrutura docente? É o corpo docente que coloca a escola na vanguarda das transformações que são impostas como decorrência da própria evolução científica e tecnológica.

Mas com essa expansão a que assistimos e, mais ainda, face a nova estrutura curricular, fica difícil pensar em aprimoramento docente para atender a essa demanda.

Como recrutar professores, mestres e doutores se num espaço de 5 anos, 102 escolas de Farmácia foram criadas nas intituições privadas? E, ainda, com uma agravante: a má distribuição dos cursos pelo País. O CRF do Estado de São Paulo anota que 30% delas estão no nosso Estado. Conclusão: haja mercado de trabalho para absorver um contingente que cresce quase que exponencialmente. A segunda conclusão é que se compromete o mercado, no qual a competição acaba levando o profissional a aceitar salário abaixo do que deveria realmente valer. Esta situação não é só nossa. Medicina, Odontologia, Advocacia e outras navegam neste mesmo barco, em águas nada tranqüilas.

Pareceria a todos vocês que eu devesse trazer mensagens mais otimistas sobre os destinos da profissão farmacêutica. Longe de mim, porém, o pessimismo. Ensino e profissão caminham juntos e é por isso que caberá sempre ao corpo docente e discente, conjuntamente, exigir reformas curriculares, novas disciplinas, exercício de trabalho integral, pesquisa obrigatória, concursos e a participação efetiva dos alunos nos diversos segmentos que dizem respeito à sua verdadeira integração dentro da escola. Tudo isso deveria ser o que podemos chamar de inquietação do corpo discente para fazer melhorar sua formação. Afinal, hoje é mais fácil perscrutar as tendências do que ontem. É mais fácil estar na vanguarda dos acontecimentos, vanguarda que, afinal, deve ser a própria destinação da escola. É ela que influi, decisiva e conscientemente, na formação do jovem pleno, integrante de uma elite científica que somente os povos mais cultos podem merecer. Sempre tive comigo que se uma escola, como a nossa, por exemplo, está voltada, primordialmente, para a saúde, ela deve carregar consigo todas as inquietações do homem. Não é por outra razão que a sociedade tem destacado um papel especial e singular para os profissionais da área da saúde, porque destes o homem espera e aguarda solução para seus males (não obstante, tantas são as mazelas e tão poucas são as soluções nesse importante e crucial segmento social).

Vocês que participam da mais importante Universidade do País, devem conscientizar-se de que devem ser os melhores, os mais capacitados, os mais aptos a enfrentar as disputas do mercado de trabalho. Dentro da idéia clássica de Universidade é preciso que ela deixe de ensinar a FAZER e ensine o jovem a SER. A área profissional farmacêutica é típica desse estado de coisas, pois há muito ensinamos os alunos a fazer, esquecendo-nos de que a eles deve ser entregue a tarefa de criar, de liderar, de estar à frente dos grandes acontecimentos.

Na oportunidade deste meu reencontro com a escola e com vocês, em que eventos traduzem a continuidade de um grande esforço, sinto que verdadeiramente estamos cultuando 40 anos que é parte de um destino de mais de 100 anos. E esse destino se continua; em que pesem novos desafios e novas dificuldades, a capacidade de entender o momento e readaptar-se às condições conjunturais, sem perder o seu eixo, parece ser o que de mais profundo podemos fixar em nosso espírito.

A problemática brasileira com relação aos cursos superiores sempre foi complexa e preocupante, obrigando-nos a repensar a maneira de pensar de todos nós. Vocês fazem parte desse repensar.

Faço votos para que a reforma curricular em curso encare tal preocupação se quisermos substituir massa por competência. Não nos esqueçamos todos: a profissão SERÁ o que o ensino FOR.

Meu desejo é de que vocês encontrem o caminho do sucesso e da realização profissional. Para isso basta o pressuposto de saber que vocês fazem parte do contingente mais expressivo do País, constituído pela Universidade de São Paulo, com suas pesquisas, seus professores e seu alunado, como este com o qual tive a honra de falar um pouco e a quem agradeço a atenção.

Parabéns aos realizadores desta X Semana Farmacêutica e de outros eventos partilhados, incluídos aqui o Prof. Luiz Antonio Gioielli, Presidente da Comissão Organizadora, e a Sra. Diretora, Profa. Terezinha de Jesus Andreoli Pinto.

Por fim, deixo-lhes minha mensagem de otimismo que, um dia, o poeta escreveu.

"Sorrindo a céus que vão se desvendando

A mundos que se vão multiplicando

A portas de ouro que se vão abrindo"

Muito obrigado.

Prof. Dr. José Carlos Barbério

Palestra proferida no dia 17 de outubro de 2005 durante a X Semana Farmacêutica de Ciência e Tecnologia da FCF/USP.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Mar 2006
  • Data do Fascículo
    Set 2005
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