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O que acontece

Ce qui arrive que acontece

RESENHAS

Uma exposição concebida por Paul Virilio

Marcelo Jacques de Moraes

UFRJ

Ce qui arrive [O que acontece]

Fondation Cartier pour l'art contemporain, Paris

29 de novembro de 2002 – 30 de março de 2003

De incidentes em acidentes, de catástrofes em cataclismas, a vida quotidiana se torna um caleidoscópio onde afrontamos sem cessar o que vem, o que sobrevém inopinadamente, por assim dizer, ex abrupto... No espelho quebrado, é preciso então aprender a discernir o que acontece, cada vez mais freqüentemente, mas sobretudo cada vez mais rapidamente, de maneira intempestiva e até mesmo simultânea.

Diante desse estado de fato de uma temporalidade acelerada que afeta os costumes, a Arte e também a política das nações, uma urgência se impõe entre todas: a de expor o acidente do Tempo.

Assim o filósofo e urbanista Paul Virilio justifica a necessidade de fundar um Museu dos Acidentes, de que a exposição Ce qui arrive, por ele concebida, pretende ser um primeiro passo.

O tema da exposição é, naturalmente, o acidente, pensado como avesso surdo do desenvolvimento tecnológico, como efeito inexorável de alguma espécie de desregulagem quantitativa inantecipável, voluntariamente provocada ou não. Aliás, a questão da intencionalidade, para Virilio, é secundária. A frase de Freud que abre a apresentação da exposição não deixa dúvidas ao expectador quanto à vocação de nosso tempo para o acidente: "A acumulação põe fim à impressão de acaso". Quer se trate de um terremoto em Taiwan, de um descarrilhamento de trens na Alemanha, de uma quebra na bolsa, de Tchernobyl ou do atentado ao World Trade Center, os riscos que tais catástrofes anunciam como cada vez mais inevitáveis e, ao mesmo tempo, impensáveis são os de uma "quantidade desconhecida", cuja "potência de negatividade" é diretamente proporcional à capacidade performativa da invenção que a contém em germe. Potência que não depende necessariamente de uma encarnação do Mal – seja ele Bush ou Saddam, para sermos atuais – para se concretizar.

De fato, ao refletir sobre as explosões aéreas que se sucederam ao longo do último século ("inventar o avião é inventar o crash"), Virilio pondera: "Acidente aéreo ou sabotagem? A questão será incessantemente reposta, a menos que se considere, enfim, que o fato de querer fazer voarem milhares de passageiros no mesmo instante e num único veículo aéreo já é um acidente, ou mais exatamente uma sabotagem da inteligência prospectiva".

Assim, nesta nossa era do que Virilio chama de "o crepúsculo dos lugares" [crépuscule des lieux], uma certa lógica perversa invade e como que regula o cotidiano, fazendo do acidente um "horizonte de espera" contra o qual o "espaço real da geofísica" em nada pode nos proteger, e levando o político, incessantemente ocupado com a "gestão do medo", a confundir-se cada vez mais com o mediático. Enredados em nossas teias de máquinas em sincronia, cada vez mais velozes e invisíveis, a qualquer momento, qualquer um de nós, onde quer que esteja, pode sofrer ou, a despeito de si, desencadear um acidente.

Mas além de permitir a discussão das principais teses de Virilio sobre o acidente e a velocidade, sintetizadas nos textos do catálogo, e por ele já há algum tempo alçadas à dimensão de uma disciplina – a dromologia –, a exposição como um todo leva à reflexão sobre o papel que pode desempenhar a imagem na construção de uma memória crítica de nosso tempo.

Longe de levar à adesão a certa perspectiva segundo a qual a imagem tenderia invariavelmente a transformar a realidade em espetáculo – perspectiva que sugeriria, portanto, a irrealidade ou a falsidade irredutível daquilo que a imagem supostamente reproduz –, as obras expostas parecem querer lembrar que ela não falsifica apenas. Que pode também revelar. Sobretudo quando se despe de toda capa de neutralidade e, em sua maior ou menor ousadia plástica, se propõe a ler o que apresenta – mais do que representa – em toda a sua ilegibilidade. Alguns exemplos:

A instalação do arquiteto Lebbeus Woods (La Chute, 2002) materializa em novecentos tubos de alumínio a trajetória do desabamento do teto da sala em que expõe. Ao figurar a invisibilidade do acidente ("este é o espaço-tempo da queda: sua brevidade só pode ser apreendida pela imaginação"), o artista exibe ao mesmo tempo as rigorosas – ainda que inantecipáveis – leis que o terão determinado.

Cai Guo-Qiang, que havia preparado a festa de fogos de artifício para a Conferência de Cooperação Econômica Ásia Pacífica, realizada em outubro de 2001 em Xangai, apresenta lado a lado o grandiloqüente filme oficial do governo chinês, transmitido ao vivo pela televisão, e sua própria versão (Tonight so lovely, 2001-2002), na qual o espetáculo pirotécnico, associado à tensão captada nas ruas, se assemelha estranhamente às cenas de guerra que nos temos habituado a ver também em nossas casas diante da tela.

A instalação-vídeo de Aernout Milk (Middlemen, 2001) põe em cena operadores da bolsa qual marionetes entre papéis, vídeos e uma parafernália eletrônica, mudos e com o olhar fixo e perdido em painéis invisíveis, como que suspensos de si entre um presente caótico que não passa e um futuro que não acontece. Como que eternamente condenados ao tempo real do acidente – da "bomba informática", como diria Virilio.

A escultura suspensa de Nancy Rubins (MoMA & Airplane Parts, 1995), feita de fragmentos de aviões colhidos num cemitério de aviões do deserto californiano, para além da reflexão sobre a relação entre movimento e os materiais, faz pensar não apenas na aceleração do tempo – aviões de apenas algumas décadas nos parecem mais do que objetos pré-históricos –, mas sobretudo em nossa relação com a memória, que trata o que foi como necessariamente reciclável – a forma politicamente correta do descartável.

Em seu primeiro filme (A movie, 1958, 12 min., 16 mm), Bruce Conner costura imagens de atualidades e de filmes B, insinuando há quase meio século no seio da cultura americana o fenômeno que já se encontra hoje devidamente globalizado: a ligação simbiótica entre velocidade, consumo e poder.

Ou seja, a imagem – ou, mais genericamente, a apresentação plástica de uma experiência de mundo – pode tornar-se poderoso instrumento crítico quando ela própria se encarrega de mostrar que, por detrás daquilo que ela aparentemente oferece a nossa percepção, se lêem, mais do que objetos reais, modos de olhar, os quais inserem tais objetos em redes de relações com outras imagens. E que, portanto, os historicizam. Preocupação apropriada à nossa contemporaneidade, submetida em permanência, como o mostra de certo modo Virilio, à tirania do instante, que nos induz a destacar a imagem do processo histórico que a constitui e, conseqüentemente, a apagá-la como tal, para, assim, fazê-la, qual um fetiche, ocupar o lugar da própria realidade.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Jul 2004
  • Data do Fascículo
    Jul 2003
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