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Estéticas da crueldade

Estéticas da crueldade

Angélica Soares

[UFRJ]

Ângela Maria Dias e Paula Glenadel (orgs.)

Rio de Janeiro, Atlântica, 2004

Estéticas da crueldade é um bem-sucedido empreendimento de publicação em livro de trabalhos apresentados em seminário acadêmico não só por garantir permanência aos resultados de pesquisas docentes e discentes, mas principalmente por favorecer a circulação de temas de real interesse para o entendimento de manifestações culturais e, em especial, da cultura brasileira além das fronteiras universitárias.

Organizado em quatro partes, o volume se inicia por considerações teóricas, passando a focalizar a crueldade nas artes e na mídia, para adentrar os territórios da literatura, em que percorre, entre outras, narrativas de Rubem Fonseca, Paulo Lins, Luiz Ruffato, Graciliano Ramos, Sérgio Sant'Anna e Nélida Piñon, bem como poemas de Camões, Herberto Helder, Gastão Cruz, Adília Lopes, Victor Hugo e Lautréamont. E esclarecem as organizadoras: a crueldade é aí não só entendida como "violência sádica", vinculada à desigualdade social, mas também apreendida no sentido do "princípio da crueldade", conforme formulado por Clément Rosset, em que "encarna o caráter único e inesgotável do real, contrariado pelo 'princípio da realidade insuficiente' inerente à tendência humana a pensar o real a partir de idéias exteriores a ele mesmo".

A partir do reconhecimento do processo de ficcionalização da crueldade cotidiana que marca o espaço urbano no Brasil, desenvolvem-se, no volume, propostas teóricas avançadas, que, em diálogo com grandes pensadores, trazem contribuição valiosa para refletir sobre acontecimentos reais, bem como sobre sua esteticização. Desse investimento de teorização, ressalto o empenho classificatório de Ângela Dias, ao distinguir a "crueldade propriamente dita, dolorosa e sem escapatória, a do exotismo, distante e estetizada, e a da melancolia, indiferente e narcísica"; o reconhecimento, bem fundamentado por Vitor Hugo Adler Pereira, da sobreposição da perversão, com seu caráter continuísta, à transgressão, questionadora das estruturas sociais, e a proposta, feita por Jair Ferreira dos Santos, de reanimalização do humano, pelo exercício de temperança e/ou pela "sintonia com o corpo", como possibilidade de enfrentamento do excesso, que caracteriza a crueldade, pois que nela há sempre algo a mais que a violência. O excesso de sangue, que está na etimologia de crueldade, desdobra-se em "excesso de indiferença", "excesso de dor", "excesso de poder" em um processo produtivista paradoxal, pelo que já não se reconhece o homem na espécie animal, mas como partícipe do contexto das "catástrofes naturais".

Na mídia, ressalta Nízia Villaça, a crueldade se faz espetáculo e se une ao consumismo, dispondo cinicamente do mercado, a combinar a promoção do luxo à indiferença com o próximo: uma das características da desestabilização individualista, identificadora da cultura de nossos dias, dessubstancializada narcisicamente.

A ficcionalização da realidade pela mídia, outro aspecto de sua atuação deformadora e, por isso, também perversa, é ilustrada na análise da imagem do traficante Marcinho VP construída em quatro episódios, que merecem ser revisitados pelos leitores desse Estéticas da crueldade, para que se constate o quanto são pertinentes as conclusões do autor do ensaio, João Camillo Penna, destacando-se aqui o reconhecimento do processo de esvaziamento da personagente Marcinho, alicerçado por um falso "desconhecimento", que se torna o modo de mediação da mídia com o tráfico; no dizer de Penna, como em uma "psicopatologia da vida midiática".

A crise da representação na narrativa brasileira contemporânea é abordada por Renato Cordeiro Gomes, com sólida argumentação teórica, na literatura de Rubem Fonseca, cuja estratégia ficcional permite pensar em um trânsito do paroxismo como efeito do real, para revelações indiretas da violência. Também se voltando para a produção rubemfonsequiana, Vera Follain de Figueiredo aponta, no binômio "sedução e crueldade", uma "ironia sutil", pela qual, muitas vezes, o autor "assume a crueldade da incerteza como princípio estruturador da ficção", caracterizando-se, nietzschianamente, a linguagem de Rubem Fonseca como "lugar onde se constroem as ficções lógicas que ocupam o vazio deixado por uma verdade última inexistente".

Nélida Piñon se insere nessas "narrativas da crueldade" por Maximiliano Torres, que se volta para A casa da paixão, a fim de investigar, com base na psicanálise freudiana e no "princípio de desempenho" marcusiano, a relação entre o desejo incestuoso e o autoritarismo do personagem "Pai", fixado na tarefa castradora e inibidora das experiências sexuais da filha "Marta", construindo-se o personagem como "símbolo de uma sociedade cruel que tenta reprimir e aprisionar qualquer manifestação erótica".

Estudos sobre a crueldade poematizada, que constituem a última parte do livro, dirigem-se, em sua maioria, para a produção estrangeira, de acordo com o que se enumerou no início desta resenha.

Gostaria de ressaltar o sentido prospectivo descortinado por Paula Glenadel na poética de Lautréamont (Cantos de Maldoror, de 1869), que, ao pôr em questão a natureza do homem em sua relação com o mundo animal, já indicava "por onde é preciso ainda desconstruir".

Identificando-me com essa proposta derridiana de Glenadel, deixo para os leitores desse Estéticas da crueldade a sinalização da urgência na desconstrução do sistema de sexo-gênero, o que transparece, no contexto literário da produção lírica brasileira de autoria feminina contemporânea, sobretudo na temática erótica e no memorialismo poético. Aí, imagens do excesso de violência simbólica/social/sexual experimentado por personas femininas podem ser lidas como textualização de sub-vivências impostas por tecnologias (práticas, discursos e instituições) dedicadas à produção de homens e mulheres, com base em orientação essencialista e universalizante. Ressalte-se que esse sistema, ao servir de suporte a um patriarcalismo cruel para ambos os sexos, obriga-nos a desempenhar papéis sociais e sexuais biologizados e fortalecidos em nossa sociedade pela moral sexual judaico-cristã, que, desde sempre, destinou "legalmente" a mulher a uma submissão procriadora e o homem às tarefas de dominação provedora – quadro que se vem transformando, embora lentamente e à custa de muito sofrimento, muita divanização (só para lembrar o velho Freud) e muita psiquiatria.

Que os ecofeminismos recentes acelerem o processo emancipatório decorrente da desierarquização desses papéis e promotor das experiências humanas do cuidar e do compartilhar.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Out 2005
  • Data do Fascículo
    Jun 2005
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