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A ficção cética

RESENHAS

A ficção cética

Gustavo Bernardo

São Paulo: Annablume, 2004, 274 p.

Quem acompanha o extenso trabalho de Gustavo Bernardo sabe da sua imensa – e nem um pouco cética – paixão pela literatura e pelo estudo do ceticismo filosófico. A ficção cética, seu último ensaio, ao reunir vocação literária – revelada desde os primeiros livros, como o romance infanto-juvenil Pedro pedra, considerado altamente recomendável para jovens pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (1982) – e trabalho árduo – que, por sua vez, encerra o artesanato intelectual próprio ao ensaísta e a paciência do arqueólogo inerente ao pesquisador –, tem como proposta fundamental justamente permitir o encontro entre ficção e ceticismo, vale dizer, o diálogo entre literatura e filosofia.

Alguém já disse que um bom escritor é aquele que conta também com a experiência – insubstituível – da sala de aula, isto é, a vivência do professor. Gustavo Bernardo, "dublê" de professor e escritor, parece confirmar essa tese em seu ensaio, pois não é a voz do professor preocupado com o diálogo e a troca fecunda de idéias que ouvimos na passagem "uma pedagogia cética orienta os alunos a fugir das sentenças categóricas recorrendo a termos suspensivos como ‘talvez’ – que também funcionam como traços de cautela acadêmica. Essa escolha lingüística instaura uma dúvida interna ao pensamento, promovendo desse modo diálogo igualmente interno ao texto. Se as idéias debatem entre si, adiando o máximo possível a conclusão, o leitor desse tipo de texto se sente parte do diálogo, e não um sujeito intimado a concordar com ou a discordar de determinada opinião"? (: 28-9).

Outras vezes, escutamos o timbre do crítico consciente, que constata – em vez de, simplesmente, contornar – as aporias, ou impasses, de seu próprio objeto de estudo: "Alguns consideram hipocrisia dos céticos suspenderem todo o juízo mas se permitirem levar uma vida normal, constituir família, comprar casa e cachorro, ir à igreja. Essa crítica aos céticos é pertinente, porque aponta para uma possível falta de radicalidade na dúvida e na crítica céticas" (: 43).

Outras vozes, muitas vozes, também comparecem ao diálogo convocado por Gustavo Bernardo. Do século III, por volta de 220 a 230, chega até nós a voz do médico grego Sexto Empírico, o primeiro sistematizador de que se tem notícia da "bateria cética", ou seja, a "máquina de guerra" do pirronismo, composta por Dez modos e Oito modos, de Enesidemo, e Cinco tropos, de Agripa, que se acham sumariados em sua obra mais importante: Hipotiposes pirrônicas. Essa obra, considerada "o breviário do ceticismo" por estudiosos como Victor Brochard, é fundamental, pois tornou o ceticismo filosófico antigo, contendo os passos do método cético formulado por Pirro no século III a. C., conhecido no Renascimento.

Erasmo de Roterdã e Montaigne, autores renascentistas, também participam do diálogo proposto por Gustavo, o primeiro ao contra-argumentar com o reformista e dogmático Lutero, e o segundo ao inaugurar, com Ensaios, uma nova forma de expressar o pensamento, baseada na reflexão e na suspensão do dogmatismo e dos tratados categóricos. Com Descartes, Gustavo trava debate intenso sobre a "dúvida metódica" que fundou a ciência moderna, concluindo que, "quando Descartes apóia todo o seu argumento no impacto avassalador das suas percepções e no tamanho enorme da sua certeza subjetiva, ele joga uma tonelada em cima das colunas de isopor" (: 165).

Por fim, já no século XX, ouvimos as vozes de Bertrand Russell e Jean Baudrillard, a quem Gustavo convoca para auxiliá-lo na análise da contemporaneidade – tarefa que se afigura difícil "porque o sujeito que descreve o fenômeno é parte do fenômeno descrito, isto é, o sujeito é condição do objeto" (: 59), mas se revela bastante produtiva, uma vez que o autor se afasta (e afasta o leitor) de conceitos desgastados e esvaziados ao extremo, como "pós-moderno" e "pós-modernidade", e dos novíssimos, e já candidatos à suspeita, "hipertexto" e "hipermodernidade" .

Ao abordar cada uma das espinhosas questões com que os incansáveis e "zetéticos" – ou seja, os "investigadores" – do ceticismo filosófico se defrontam, Gustavo Bernardo o faz de maneira bastante peculiar, penetrando-as pelo viés da literatura, essa ficção que, nas palavras do autor, "porque suspeita do real, produz sobre ele uma nova perspectiva e, conseqüentemente, uma segunda realidade" (: 23). Porque se faz necessário o esforço não apenas de ver a ficção do ponto que se ocupa no "real", mas também de tentar olhar a realidade "como se" estivéssemos dentro da ficção.

A ficção cética, por perspectivar o ceticismo filosófico por meio da ficção, e vice-versa, revela possuir uma dupla tarefa: de um lado, explorar – sem, contudo, ter a falsa pretensão de esgotar – as aporias do ceticismo filosófico, analisando-o ainda em sua historicidade; de outro, defender a validade desse mesmo ponto de vista cético para o terreno da teoria da literatura. Ao mesmo tempo em que o autor de A ficção cética defende admiravelmente a pertinência e atualidade do ceticismo filosófico, ora lançando mão de argumentos próprios ao campo da mais pura ficção científica, ora recorrendo às mais recentes descobertas da ciência, as questões literárias – e ficcionais, de modo geral – tornam-se inusitadamente iluminadas pelo ceticismo.

Ao proceder dessa forma, ou seja, ao apresentar uma forte imbricação entre questões filosóficas e questões literárias, o trabalho de Gustavo Bernardo poderia ser, à primeira vista, tomado como um emaranhado teórico correndo o risco de redundar em mera colcha de retalhos estéril, mas o autor, ao utilizar já na capa do livro a imagem do labirinto, sinaliza que é precisamente essa a questão a ser feita. "Onde começa e onde termina a investigação cética?", pergunta-se, para discutir o conceito de infinito, cujo símbolo é a figura de um "oito deitado", sugerindo que as questões trabalhadas do ponto de vista do ceticismo, se não se esgotam, não possuem início: elas se imbricam, se entrelaçam, se emaranham. Suscitam novas questões, apontam insuspeitas trilhas.

Desse modo, segundo uma deliberada mistura entre os âmbitos da filosofia e da literatura, em que aborda o ceticismo pela ficção, e vice-versa, o ensaio de Gustavo Bernardo acaba por oferecer uma dupla contribuição ao debate contemporâneo em torno da literatura e do ceticismo filosófico – essa corrente herdada da filosofia dos gregos, mas que, pela própria "visão de mundo" que contém, jamais constituiu ou originou um "sistema" filosófico fechado. Ao longo de sua história, como observa o autor, o ceticismo filosófico se manteve como método de "suspensão do juízo" contra qualquer dogmatismo, tornando-se assim antídoto, e terapia, para a velha querela entre platônicos e sofistas, defensores, respectivamente, da "verdade transcendente do Ser" e dos "jogos de linguagem" que permitiram a Górgias a formulação sobre o não-Ser.

Cabe observar ainda que a proposta de Gustavo Bernardo se aproxima do pensamento desconstrucionista de Jacques Derrida. Ao rejeitar a antiga oposição entre filosofia e poesia, e mostrar-se preocupado em desconstruir o estatuto da "verdade" – ou das diversas "verdades" – como centro do pensamento, Derrida considera que um texto filosófico pode ser, igualmente, retórico e poético, visto que tanto a literatura quanto a filosofia fazem uso da palavra. Diluem-se assim, no pensamento derridiano, as fronteiras entre filosofia e literatura, em favor de uma visão mais ampla, e, conseqüentemente, mais humana, residindo precisamente nesse ponto a maior contribuição desse filósofo contemporâneo.

Além disso, ao combinar considerações imanentistas do texto ficcional – segundo as quais o sentido de uma obra literária deve ser "desvelado" – e métodos céticos de desautomatização da percepção e suspensão do dogmatismo do pensamento, A ficção cética propõe um olhar renovado sobre como lidar com o texto ficcional. O campo da literatura, por ser "rico em aporias ou raciocínios aporéticos, por conta da dificuldade de se chegar a certezas demonstráveis" (: 28), seria um caminho possível para lidar com a ambigüidade inerente à literatura, em particular, e à ficção, de modo geral.

O alinhavo da questão ficcional (o espelho) e da questão do ceticismo (a moldura do espelho, e espelho também) leva a uma terceira questão de A ficção cética. Por trás dos espelhos – seja o de Machado de Assis ou de Guimarães Rosa, seja o de Alice ou o da grande especulação filosófica ocidental –, parece residir, para Gustavo, a questão ontológica da linguagem. "Se a realidade fosse transparente à linguagem, a ficção não seria necessária" (: 23), afirma ceticamente o ensaísta, lançando suspeita sobre aquilo que supomos como sendo "o real". De acordo com Gustavo Bernardo, para dar conta desse "real", dispomos, paradoxalmente, de um instrumento – a língua – que tem um caráter essencialmente "pletórico", ou seja, a um só tempo excessivo e insuficiente.

Vilém Flusser, filósofo tcheco-brasileiro fartamente estudado por Gustavo Bernardo em ensaio anterior (A dúvida de Flusser, Editora Globo, 2002), costumava dizer que a língua, que, em seu entender, cria e propaga realidade, vem da poesia. Assim também se pode compreender o diálogo encerrado por Gustavo Bernardo na conversação filosófica e literária que seus romances e ensaios buscam propiciar, e que espelhariam uma terceira preocupação: aquela com a defesa da instância criadora, em síntese, da poiesis. Dito de outro modo, A ficção cética, de Gustavo Bernardo, porque procura dar continuidade ao diálogo proposto pelo autor em outros trabalhos, tem como preocupação básica "a proteção do enigma", isto é, a defesa da poiesis em face de um mundo caótico – o mundo cada vez mais "moderno". Defesa semelhante foi exercida por Octávio Paz, para quem "a poesia é a memória feita imagem e esta convertida em voz. A outra voz não é a voz do além-túmulo: é a do homem que está dormindo no fundo de cada homem". Para Gustavo, "a idéia moderna de literatura respalda-se na afirmação prévia de um sujeito não sujeitado ao cosmos, mas sim criador, sujeito de sua vida e capaz de dedilhar a harpa da intimidade. Pela literatura, o homem toca a si mesmo, o que a ciência não permite: quando esta fala do interior do homem não pode falar de nada muito diferente do que do estômago e do duodeno" (: 175).

Com essas vozes, extremamente poéticas, de defesa da língua literária (ou seja, da poesia), nova questão – por sua vez suscitada pelo belo poema-ensaio intitulado "Luto", com que Gustavo fecha A ficção cética – se apresenta ao debate: e a poesia, de onde ela vem? Eis o tema que esperamos ser discutido por Gustavo Bernardo em um próximo ensaio.

Isabel Pires

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Set 2006
  • Data do Fascículo
    Dez 2005
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