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Carta à vidente

TRADUÇÃO

Carta à vidente

Juan José Saer

Na grande tradição de iluminados eu ocupo, continuamente, o último lugar. E não digo isso em sentido cronológico mas sim hierárquico: o sopor, a sonolência, a miopia enchem a minha carta de apresentação. Do maremagnum frenético de Petrônio não retive mais do que uma frase: "Um dia não é nada. Enquanto você se vira de lado, faz-se noite"1 1 No original, "Dies, inquit, nihil est. Dum versas te, nox fit [...]". A referida passagem pertence ao capítulo sobre o banquete de Trimalcião, do livro Satiricon. Como é dita durante o banquete, a noção de "virar-se" se refere à posição em que se está no triclínio, esperando a refeição. De uma hora para outra, sem nos darmos conta, vem a noite e o dia já foi embora. A tradução de Saer adquire, assim, uma possível bissemia, uma vez que a expressão "volverse uno mismo", ao mesmo tempo que contém a idéia de movimento "físico", de mudança de posição do corpo, pode revelar o sentido de transformação, de "nos convertermos em nós mesmos, aquilo que realmente somos". Agradeço à professora Ana Thereza Basílio Vieira a ajuda na passagem de Petrônio. . Nessas condições a preguiça não é, portanto, um vício e sim um tema ontológico. Pois bem, o que vê um homem entre dois sonhos, quando ainda não terminou de se desembaraçar do primeiro para cair, em seguida, no segundo? Não vê nada. Porque ver, senhora, não consiste em contemplar, inerte, a passagem incansável da aparência e sim em agarrar, dessa aparência, um sentido. Numa palavra, o trabalho vertical, como o do raio, do iluminado, que a senhora conhece e usa, ou pelo qual a senhora é, melhor dizendo, usada. Por isso, eu vinha lhe dizendo que na grande tradição de iluminados eu ocupo, contínuo, invisível, o último lugar.

O sopor, a sonolência, a miopia: e a mão também, que, nessa penumbra, se move, inequívoca, se fechando, se abrindo, mostrando aberta, lisa, que não segurou nada. O grande, a subespécie, em relação com o sopor e a mão, é, a senhora já adivinha, a escuridão. A grande massa magnética, negra, que empurra para o fundo, um a um, nossos gestos. Nessa negritude que é o mundo eu realizo o meu trabalho desanimado, lerdo, de "regramento". A minha musa, por chamá-la assim, é, se quiserem, manual. A mecânica súbita do raio, se às vezes me toca, não é útil entre tanta escuridão.

Não lhe mando, portanto, nada. Nada que submeter à sua vidência. O universo monótono, opaco, não difere dos fragmentos monótonos, opacos, que permanecem em mim. E se eu falo agora, desta vez, sem mediações, em primeira pessoa, é para mostrar claramente que, através de mim, nenhuma alteridade se manifesta, nada que não esteja nas grandes manchas fugazes, fugitivas, intermitentes, cujas beiras estão comidas pela escuridão, e aos quais chamamos o mundo. Desta carta de semicego, não lhe peço que tire nenhuma conclusão. Porque uma conclusão está sempre atrás e é, em relação com as partes, um "outro". Ora, para um cego pode muito bem existir a alteridade, o conjunto, o todo. Um cego goza do direito à imaginação. Um míope deve ser modesto: a mancha móvel ocupa todo o seu reduzido campo visual e aniquila, sem malignidade, todo o resto. O cego, distante do mundo como está, pode, com uma intuição vertiginosa, agarrá-lo com força. O míope está tão próximo de uns poucos fragmentos que não consegue sair, de repente, para a planície.

De um homem que dá cabeçadas, então, o que se pode esperar? Nada além de uma fileira de fragmentos, espessos, em bruto. Que o mundo resplandeça neles, se um dos modos do mundo for o resplendor.

Nota

Tradução Flávia Ferreira dos Santos [UFRJ]

  • 1
    No original, "Dies, inquit, nihil est. Dum versas te, nox fit [...]". A referida passagem pertence ao capítulo sobre o banquete de Trimalcião, do livro
    Satiricon. Como é dita durante o banquete, a noção de "virar-se" se refere à posição em que se está no triclínio, esperando a refeição. De uma hora para outra, sem nos darmos conta, vem a noite e o dia já foi embora. A tradução de Saer adquire, assim, uma possível bissemia, uma vez que a expressão "volverse uno mismo", ao mesmo tempo que contém a idéia de movimento "físico", de mudança de posição do corpo, pode revelar o sentido de transformação, de "nos convertermos em nós mesmos, aquilo que realmente somos". Agradeço à professora Ana Thereza Basílio Vieira a ajuda na passagem de Petrônio.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Maio 2007
    • Data do Fascículo
      Jan 2006
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