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Desastrada maquinaria do desejo: a Prosa do observatório de Julio Cortázar

RESENHAS

Desastrada maquinaria do desejo: a Prosa do observatório de Julio Cortázar. Mônica Genelhu Fagundes. (Tese de doutorado em Literatura Comparada. Faculdade de Letras - UFRJ, 2008. Orientador: Edson Rosa da Silva.)

Ary Pimentel

A PAIXÃO DE LER IMAGENS E POESIA COM JULIO CORTÁZAR

Os amigos são como chaves que vão abrindo diferentes portas, já o dizia Mario Benedetti, são companheiros encontrados meio ao acaso enquanto fazemos o nosso caminho e que se incorporam a ele. A partir de pequenas ou grandes afinidades, vamos escolhendo essas amizades ou elas nos escolhem. Entre estes amigos, quase sempre, podem se destacar nomes de peso como Borges, Kafka, Baudelaire, Joyce, Cortázar...

A tese de Mônica Genelhu Fagundes faz parte, mais que dos rituais acadêmicos, dos rituais dessa amizade literária que ela soube dignificar como poucos.

Diante da enormidade da obra do "enormíssimo cronópio", Mônica soube ser uma espécie de arquiteta das palavras, apresentando aos que se dispõem a caminhar pelo corpo do seu texto um belo exercício de construção de pontes que é talvez como melhor podemos entender a sua prática neste exercício fascinante e arriscado que denominamos leitura.

Com profundo rigor e fidelidade às premissas estabelecidas pelo próprio texto de Cortázar, sem concessões, com elegância e habilidade, a autora mergulha nesta ação como num ato de diálogo apaixonado, movimento de dois corpos que se encontram, como deve ser toda leitura que merece este nome.

Mas, a paixão não pode deixar de lado as razões que orientam o olhar. Há na Desastrada maquinaria do desejo toda uma constelação de saberes e leituras prévias, uma rica bibliografia que às vezes se explicita na superfície do texto e outras vezes aparece de modo mais sutil nas dobras do discurso. O trabalho do leitor crítico pressupõe esta dupla relação: com o objeto de estudo e com o seu instrumental de leitura.

A primeira coisa a dizer sobre este texto talvez seja que temos aqui dois livros, superpostos. Podemos dividir em duas partes, em duas camadas, a nossa apreciação sobre as principais características da "máquina des-astrada" de Mônica Genelhu. Identificamos ao mesmo tempo uma dimensão crítica e outra estética, as quais, embora as separemos em dois planos, não se dissociam: o modo de dizer estabelece uma relação orgânica com o que é dito.

A autora entregou-se ludicamente à construção de um texto literário sobre outro texto literário: uma obra que ilumina uma outra na qual o olhar se dirige não aos astros distantes, mas ao reino deste mundo.

O texto da Desastrada maquinaria do desejo tem, portanto, não só o mérito de capturar múltiplos sentidos da Prosa do observatório, mas também o de criar em certos momentos literatura a partir da literatura. A escrita desperta o prazer de ler já nas primeiras páginas de uma introdução que se mostra, naturalmente, na fronteira do crítico e do poético.

Cabe ressaltar a elegância com que a autora transita entre a estrutura mais ortodoxa do discurso acadêmico e a trama mais arriscada e fascinante do ensaio criativo, produzindo um texto sempre nos limites do poético e da reflexão crítica. Dimensão essa que se mostra mais uma vez no início do primeiro capítulo com o belíssimo "Instruções para montar um caleidoscópio", uma espécie de pórtico que permanece a iluminar a leitura até a última página.

A tese, que agora se apresenta como livro potencial, tem a capacidade de apreender a relação entre arte e realidade com o mesmo olhar problematizador ("la otra mirada") que o autor investiu no seu poema em prosa.

Olhar vigilante, atento aos mínimos movimentos de construção do texto verbal de Cortázar, mas não menos atento a uma outra dimensão do texto que são as fotografias tiradas por ele dos observatórios construídos por um sultão indiano e trabalhadas por Antonio Gálvez, Mônica Genelhu identifica no centro da trama textual aquilo que para muitos seria mera ilustração. Aí, nas fotos que colocam em diálogo céu e terra, enguias e estrelas, pretende encontrar um espaço sempre móvel de observação, achar os pontos de interseção nos quais se cruzam os olhares: o objeto de observação, de onde se projetam todas as perspectivas é também o ponto para o qual convergem os olhares. É nesta posição especular onde o escorpião se pica a si mesmo que Mônica identifica as refrações da "prosa do observatório", um texto que resiste às estratégias mais tradicionais de leitura aprendidas nos bancos da academia porque seu núcleo se encontra em outro lugar que não aquele onde muitos o procuram.

Tal como a dupla Cortázar/Gálvez que desmonta e remonta as imagens dos observatórios construídos há quase três séculos em cinco cidades indianas, Mônica desmonta o texto fotográfico-poético em múltiplos fragmentos e o remonta em busca de um novo sentido. Gira em torno do objeto e vai se aproximando do texto por diferentes lados até penetrá-lo. E para isto aborda uma mesma imagem mais de uma vez. Contudo, aquilo que poderia parecer uma repetição configura sempre uma mudança de argumentação posto que mudou o ponto do olhar.

Essa abordagem foi sistematizada e transformada numa verdadeira teoria para ler Cortázar presente ao longo do texto inteiro, uma espécie de apêndice ao "Manual de instruções" dos cronópios, um novo guia de viagem pela arquitetura cortazariana.

Soma-se às "Instruções para montar um caleidoscópio" ou se desdobra a partir delas um complexo entrelaçar de fios que poderíamos chamar de "Instruções para caminhar com...". É fascinante a segurança com que o guia nos leva numa caminhada sobre os textos como as formiguinhas sobre os quadros do artista belga no conto "País chamado Alechinsky". Muitas vezes, ao acompanhar esta experiência de leitura poética de imagens, o expectador-viajante-leitor se sente levado pela mão como o filho do poeta Santiago Kovadloff que, diante do mar pela primeira vez, lhe pede: "Me ajuda a olhar!". Pouco a pouco, vamos nos introduzindo nas brechas da realidade que estão na base do impulso criativo de Cortázar e vai surgindo diante dos nossos olhos uma dimensão até então inexistente.

A leitura proposta permite uma aproximação maior ao texto verbal e não verbal. É como se interferisse no tamanho das reproduções, ampliando-as inúmeras vezes, focando e recortando fragmentos específicos que passam a receber uma nova luz, novos sentidos, despertando no leitor um "novo modo de olhar".

Talvez para propiciar o trânsito do leitor pelo texto, a autora como mediadora dessa outra abordagem prefere não manter distâncias. Acaba por lançar-se de corpo inteiro na perseguição a uma linguagem impossível que possa se apresentar como um "Livro de Instruções" para uma compreensão mais ampla dos textos de Prosa do observatório como prosa poética e do intrincado campo de relações estabelecidas pela obra com outros textos da produção de Cortázar e de uma vasta produção da arte moderna.

Uma vez que parte para o estudo de casos, não se restringe à prosa "do observatório". Abre o leque para várias outras prosas de Cortázar numa feliz seleção de contos e romances que trazem de volta para o leitor várias décadas da produção do autor argentino. Os textos escolhidos apresentam, quase sempre, um forte potencial poético, demonstrando que Mônica optou por ler poesia em prosa (em Prosa do observatório) e poesia na prosa de Cortázar, projeto esse que lhe permite mostrar-se capaz de dialogar com diferentes romances e contos do autor e de fazer com que o observatório (objeto e sujeito da prosa poética) também se envolva neste diálogo com uma ampla leitura de toda a obra de Cortázar.

A autora opta por uma abordagem divergente daquelas que parecem mais promissoras a boa parte da crítica: fixar-se nas estruturas que caracterizam a literatura fantástica ou deslocar o eixo da discussão para o âmbito da politização que caracterizaria a obra cortazariana posterior a "El perseguidor" e à Revolução Cubana.

Resistente a uma abordagem linear, consciente de que o texto de Cortázar tem como característica maior a "sensação de não estar de todo", podemos perceber que a leitora da prosa e das imagens do observatório tampouco se sente cômoda com qualquer das abordagens já tentadas justamente porque em todas elas sente a dificuldade de situar de modo absoluto a obra de Cortázar. Produz, então, um texto-caleidoscópio, um texto-móbile, texto-observatório participativo.

Neste texto, recusa-se a uma organização linear na estrutura dos capítulos e mesmo na progressão das idéias. O que se percebe ao final é um discurso fragmentário que propõe uma série de visões e re-visões dos objetos a fim de nos levar a intuir uma visão do todo que nunca se fixa. Os elementos da construção textual nos oferecem uma espécie de modelo para armar que deixa amplas aberturas para a ação/percepção/criatividade do leitor.

A tese que perpassa a Desastrada maquinaria do desejo deriva do caráter intensamente visual do estilo de Prosa do observatório e consiste essencialmente na articulação do pensamento teórico-estético com a crítica política e social em toda a obra de Cortázar. Dois planos que, indissociáveis como na imagem do dialético anel de Moebius, entrelaçam sociedade e sistemas de representação, revolução e imaginação. Numa mesma fita de papel/palavra que chamaremos "utopia" temos duas faces: uma delas é azul e representa o plano estético; a outra é vermelha e corresponde ao âmbito sociopolítico. Após uma ligeira torção na fita, uma ponta tem o lado vermelho colado sobre o azul da outra ponta. Como demonstra o fragmento a seguir, o problema central do texto cortazariano reside em uma estrutura dinâmica, na qual se passa continuamente de um plano a outro:

Percorrendo a superfície do anel de Moebius com a ponto do dedo, está-se ora no interior ora no exterior da estrutura, sem qualquer interrupção ou aviso de passagem; fazendo o mesmo com um lápis, verifica-se que o traço marca as duas faces da fita: lados que, embora encontrem entre si uma relativa continuidade, não se fundem definitivamente um no outro, anulando sua identidade (p. 80-81).

Não há, portanto, conclusões fáceis, mas sim embates e perseguições, processo e montagem, mutação e interstício, o que exige um leitor crítico e inquieto, que encare este texto desafiador como a própria obra de Cortázar.

Em seu conto "Apocalipsis de Solentiname", Cortázar fala do poeta José Coronel Urteche, "a quien más gente haría bien en leer". O mesmo poderíamos dizer da Desastrada maquinaria de Mônica Genelhu. Mas, para que este desejo se torne realidade, é preciso que o texto ultrapasse a redoma do mundo acadêmico onde poucos exemplares foram lidos por um público privilegiado e possa ser desfrutado por todos aqueles que apreciam a "experiência desastrosa da diferença, da solidão, da incomunicabilidade", a "busca desejosa da semelhança, do contato, da relação": a viagem da leitura.

Expressão personalíssima de uma nova crítica literária altamente perspicaz, leitura-chave para mergulhar de novo em um sempre novo mundo de Cortázar, mas antes de tudo um jogo, um divertimento, é o que podemos dizer da Desastrada maquinaria do desejo.

Eis aqui um belo livro à espera de um editor.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Ago 2008
  • Data do Fascículo
    Jun 2008
Programa de Pos-Graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras -UFRJ Av. Horácio Macedo, 2151, Cidade Universitária, CEP 21941-97 - Rio de Janeiro RJ Brasil , - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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