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Glauber, "fabulista fabuloso"

Resumos

Em 1974, Glauber Rocha escreveu "O nascimento dos deuses" para a televisão italiana, uma adaptação de Anábasis, obra clássica de Xenofonte. Recentemente divulgado em português, o roteiro serviu de guia a uma pesquisa através do arquivo do cineasta. A diversidade de temas e referências culturais muito distintas, estrategicamente articuladas em filmes e ensaios para obter efeitos potentes de crítica estético-política, ressalta do confronto das obras conhecidas com as notas, rascunhos, croquis e fragmentos componentes do acervo, pondo em destaque a impressionante força fabuladora contida na assinatura glauberiana.

fabulação; arquivo; construção escritural; arte político-crítica


En 1974, Glauber Rocha a écrit "La naissance des dieux " pour la télévision italienne, une adaptation de Anabase, œuvre classique de Xénophon. Récemment publié en portugais, le scénario a servi de guide pour une recherche à travers les archives du cinéaste. La diversité de sujets et de références culturelles très distinctes, stratégiquement articulées dans des films et des essais pour obtenir des effets puissants de critique esthético-politique, ressort de la comparaison des œuvres connues par les notes, les brouillons et les fragments composant le fonds de l'auteur, mettant en relief l'impressionnante force fabulatrice renfermée dans la signature glauberienne.

fabulation; archives; art critico-politique; construction scripturale


In 1974 Glauber Rocha wrote "The birth of the Gods" for the Italian television, an adaptation of Anabasis, the classical work of Xenophon. Recently published in Portuguese, this script guided a research in the author's archives in order to investigate the anti-conventional creative process of the artist. The comparative observation of Glauber´s films and published essays with notes, drafts, sketches and fragments, preserved at Tempo Glauber, show the potent aesthetic and political effect produced by the complex articulation of unexpected subjects and different cultural references. The critical analysis of these documents of Glauber's artistic activity highlight the impressive fabulatory power present in his work.

fabulatory process; archives; writing production; political-critic art


Glauber, "fabulista fabuloso"

Marília Rothier Cardoso

RESUMO

Em 1974, Glauber Rocha escreveu "O nascimento dos deuses" para a televisão italiana, uma adaptação de Anábasis, obra clássica de Xenofonte. Recentemente divulgado em português, o roteiro serviu de guia a uma pesquisa através do arquivo do cineasta. A diversidade de temas e referências culturais muito distintas, estrategicamente articuladas em filmes e ensaios para obter efeitos potentes de crítica estético-política, ressalta do confronto das obras conhecidas com as notas, rascunhos, croquis e fragmentos componentes do acervo, pondo em destaque a impressionante força fabuladora contida na assinatura glauberiana.

Palavras-chave: fabulação; arquivo; construção escritural; arte político-crítica.

ABSTRACT

In 1974 Glauber Rocha wrote "The birth of the Gods" for the Italian television, an adaptation of Anabasis, the classical work of Xenophon. Recently published in Portuguese, this script guided a research in the author's archives in order to investigate the anti-conventional creative process of the artist. The comparative observation of Glauber´s films and published essays with notes, drafts, sketches and fragments, preserved at Tempo Glauber, show the potent aesthetic and political effect produced by the complex articulation of unexpected subjects and different cultural references. The critical analysis of these documents of Glauber's artistic activity highlight the impressive fabulatory power present in his work.

Key words: fabulatory process; archives; writing production; political-critic art.

RÉSUMÉ

En 1974, Glauber Rocha a écrit "La naissance des dieux " pour la télévision italienne, une adaptation de Anabase, œuvre classique de Xénophon. Récemment publié en portugais, le scénario a servi de guide pour une recherche à travers les archives du cinéaste. La diversité de sujets et de références culturelles très distinctes, stratégiquement articulées dans des films et des essais pour obtenir des effets puissants de critique esthético-politique, ressort de la comparaison des œuvres connues par les notes, les brouillons et les fragments composant le fonds de l'auteur, mettant en relief l'impressionnante force fabulatrice renfermée dans la signature glauberienne.

Mots-clés: fabulation; archives; art critico-politique; construction scripturale.

As rubricas indicam uma solenidade oficial, com trombetas e tambores. Vitorioso na batalha, Alexandre da Macedônia é a personagem que domina o ambiente do alto de seu cavalo. Enquanto se dirige à multidão, dizendo que venceu "todas as batalhas" e instaurou "a democracia em todas as cidades libertadas", prepara-se para desatar o "nó de Górdio", demonstrando o alcance de seus poderes. É impossível perceber as pontas da corda cujo grande nó prende o jugo de um carro. Cresce a tensão entre os observadores, até que, com o grito de uma águia negra, o monarca "desembainha a espada e corta o nó pela metade".*1 *1 (ROCHA, Glauber. Alexandre, o Sol do Ocidente. Folha de S. Paulo. Mais. 09/01/2005: 10. ) Esta cena de sabor antigo, que tanto atende às exigências revolucionárias de um épico à Eisenstein como caberia numa superprodução de Cecil B. de Mille, integra a segunda parte do roteiro de "O nascimento dos deuses", escrito em 1974 por Glauber Rocha para a televisão da Itália. O roteiro nunca foi filmado mas teve edição em italiano, com ilustrações do próprio cineasta, esquematizando as tomadas. Em 9 de janeiro de 2005, o suplemento "Mais" da Folha de S. Paulo publicou o fragmento que, acompanhado por artigo de Ivana Bentes, revela "Alexandre, Sol do Ocidente".

O impacto da ação de Alexandre, usando a força para desatar o nó, pode servir de alegoria à própria linguagem do cineastaescritor, capaz de, num passe de quase-mágica, pôr sua experiência com jagunços e guerrilheiros a serviço de uma interpretação política atualizada da história e mitologia clássicas. A violência certeira do herói antigo, resolvendo instantaneamente um problema que exigiria longo estudo e paciência, equivale à condensação inesperada de temporalidades e culturas distintas e produz efeito desconcertante, mas iluminador. Ao comentar o fragmento, só agora divulgado, Ivana Bentes refere-se à carta de 6 de janeiro de 1974, dirigida por Glauber a Zelito Viana, onde comenta com humor seu método de engendramento de intrigas. Cabe lembrar que existe também, no arquivo do cineasta, um texto autobiográfico - "Análise do último período" -, onde a tarefa de escrever esse roteiro se relaciona a outras atividades dos anos de exílio. Os registros privados, estabelecendo nexos entre as diversas frentes de produção ar-tística, dão destaque à simultaneidade e consequentes cruzamentos de, pelo menos, quatro produções: História do Brasil, filme rodado para o ICAIC de Cuba em parceria com Marcos Medeiros, "Anábaziz"(sic), primeiro tratamento do roteiro de A idade da Terra, e o referido "O nascimento dos deuses", além da muito adiada montagem de Câncer. A heterogeneidade dos projetos e a desenvoltura com que Glauber os desenvolve e discute dão a medida de seu incrível poder de fabulação.1 1 O termo "fabulação", que os dicionários registram como encadeamento de narrativas fabulosas, recebe destaque no pensamento deleuziano, em especial, no capítulo de A imagem-tempo onde trata do cinema do terceiro mundo. Aí, se lê: "A fabulação não é um mito impessoal, mas também não é ficção pessoal: é uma palavra em ato, um ato de fala pelo qual a personagem nunca para de atravessar a fronteira que separa seu assunto privado da política, e produz, ela própria, enunciados coletivos. (grifo do autor). (DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. Cinema 2. Trad. Eloísa de Araújo Ribeiro. São Paulo: Brasiliense, 1990: 264. ) Dos mitos greco-romanos ao pensamento marxista, da historiografia brasileira à obra clássica de Xenofonte, do jornalismo político aos experimentos da vanguarda artística, tudo é transformado em modelo e matéria para a construção dos argumentos.

A dramatização, certamente enfática, do lugar comum, em que Alexandre usa sua arma de guerra para cortar o nó górdio, evidencia a força desabusada do cineasta do terceiro mundo diante da tradição fabular greco-judaico-cristã. Vejam-se os termos com que ele mesmo apresenta a proposta italiana de filmar Anábasis e Ciropédia de Xenofonte, na carta a Zelito:

[...] Diante destas circunstâncias - um filme sobre antigas civilizações do Ocidente (Grécia) e Oriente (Ásia Menor) - transferi a

Idade da Terra

(Paulo Martins das Mortes

rides again...

) por este novo

Deus e o Diabo nos desertos do Saara

- é um filme de cangaceiros, Paulo Martins é Xenofonte, Ciro I é Lampião e Ciro II

Barravento

, logo viajo à ancestralidade mais ou menos seguro dos resultados porque o que me interessa é desmistificar mitologias greco-orientais, mostrar que por baixo de Olympos e Templos reinava o patriarcalismo escravocrata, primeiras solidificações do capitalismo. [...] Não sei nada da Grécia nem da Pérsia mas, como estudei a fundo a História do Brasil pelo método materialista dialético estrutural psicolinguístico, tiro de letra em dois meses.

*2 *2 (ROCHA, Glauber. Cartas ao mundo. Org. Ivana Bentes. São Paulo: Companhia das Letras, 1997: 476, 479. )

A espada de Glauber é sua capacidade fabuladora. Se o trabalho de romancistas e cineastas é inventar uma sintaxe que articule motivos dispersos, atribua sujeitos a ações e estabeleça nexos entre as mesmas, alcança melhor resultado quem desenvolve a imaginação em sentido inusitado e certeiro. O bom profissional da fábula, na cultura moderna, é o herdeiro arguto das mitologias comunitárias, arcaicas ou tribais. Cabe-lhe indicar o prodígio, conservando parte da grandiosidade da epopeia e inserindo o tempero da desconfiança, na forma de humor. Por isso mesmo, Glauber dizia pautar-se pela teoria de Brecht - a épica cortada pelo fio da razão - e pela prática de Borges - o experimento insistente do fantástico. Convicto de que "mais fortes são os poderes do povo"*3 *3 (ROCHA, Glauber. "Guimarães Rosa, nas palavras...". Inédito, 1963. pi. Arquivo - Tempo Glauber. ) Glauber colecionava mitos. Mas, ao glosá-los, condensava peças de origens diferentes, para romper com o bom senso conformista, desnaturalizar a significação e permitir interpretações alternativas. Seus encadeamentos fabuladores, excessivamente hibridizados, correm o risco, de um lado, da simplificação esquemática e, de outro, do hermetismo. No entanto, ele nunca abrandou a autoexigência de inventividade na apropriação e transformação subversiva de enredos. Foi assim que escolheu a carreira exigente de cineasta, tentando desatar o nó da indústria capitalista, mas aproveitando todas as brechas para inserir sua arte nos circuitos de massa, em busca de interferir no cotidiano das pessoas comuns. Na mesma carta a Zelito, ele se mostra fascinado com "a possibilidade de materializar as estruturas claras das civilizações de Oriente e Ocidente, levando à máxima radicalização linguística a estética revolucionária popular televisada".*4 *4 (ROCHA, Glauber. Cartas ao mundo. op. cit.: 476.)

Quando aceitou a encomenda de roteirizar e, eventualmente, filmar "O nascimento dos deuses", Glauber não era um estreante na adaptação de temas histórico-míticos. Seus filmes anteriores, embora desenvolvidos a partir de argumentos de sua própria lavra, sempre incluíram a pesquisa de mitos e ritos locais, tanto quanto instrumentalizaram um apreciável cabedal de leituras, mesmo que assistemáticas, abarcando os clássicos e a vanguarda. Fabulista autoconfiante, sempre se encaminhou para os projetos ambiciosos e arriscados. Movia-se, de propósito, na fronteira entre o sublime e o grotesco. As figuras messiânicas o encantavam e tomava posse delas com o zelo ambíguo do crente em constante estado de dúvida. O tom de seus filmes - como o de grande parte de seus textos - é o da solenidade, que precisa necessariamente experimentar momentos de ridículo. O gênero de fabulação que o interessa é o carnavalizador, conforme o conceito já muito divulgado de Bakhtin. O último filme de Glauber, possivelmente o que deixou a crítica mais perplexa, A idade da Terra, aproveitou a experiência dos anos de exílio entre referências étnicas diferentes e circuitos culturais contrapostos. Mas antes e depois desse período, o arquivo do artista contém exercícios de fabulação simultaneamente mitificante e desmitificadora. Um exemplo é "Cristo", argumento a meio caminho de se tornar roteiro, que aparece nas versões em português e espanhol, mais ou menos desenvolvidas, com registros não datados, ora manuscritos, ora datilografados.

A história bíblica do nascimento de Cristo serve a Glauber para rearticular, no espaço do deserto, os cenários antigos das campanhas de Ciro e Alexandre e os cenários recentes e periféricos do messianismo jagunço dos sertões. Mesmo não incluindo referências explícitas, o texto do argumento define-se como evangelho político da descolonização do terceiro mundo - proposta também experimentada em Der Leone have Sept Cabeças. O deslocamento vertiginoso de motivos, que produz as alegorias verbo-visuais glauberianas, resulta da desnaturalização insistente da história e da geografia. Seu trabalho de refabulação fabulosa procura desvelar a violência da expansão imperialista - das batalhas gregas e conquistas de César às navegações renascentistas e à Guerra Fria. No tópico do "nascimento dos deuses", o lugar do mito cristão é estratégico, pois denuncia a helenização do mundo pelo jugo romano ao mesmo tempo que derruba as razões da catequese. É assim que a economia cruel do discurso de Glauber delineia a adaptação histórica:

Otávio Augusto sob cujo império nasceu em Belém da Galileia Jesus Cristo filho de Maria, a Virgem, casada com o marceneiro José de Arimatheia [sic]. As tribos de Africásia continuavam bárbaras.

Roma mantinha a política persa burocratizada por Alexandre.

Deuses gregos, Zoroastro, longínquo bramanismo, Jeová judeu.

Esperavam o Messias porque os reis judeus traíram Jeová em nome da corrupção.

Os patriarcas profetas negavam o Messias.

Maria lavando roupa viu seu ventre fecundado pelo esperma do soldado romano.

[...] O desenvolvimento econômico-cultural da Grécia atinge a democracia escravocrata que, ameaçada pela Pérsia, se transforma no helenismo, síntese de Alexandre e Ciro.

[...] Alexandre correu o terceiro mundo até as incríveis muralhas da China.

Deserto divino.

Maria lavando roupa viu que um Deus revolucionário deveria nascer de mãe popular, da buceta colonizada.

Novo Testamento: Deus é o povo Jesus Cristo.*5 *5 (ROCHA, Glauber. "Cristo". Inédito. s/d, pi. Arquivo - Tempo Glauber. )

O tratamento anárquico dispensado a esse tema do "nascimento dos deuses", longe de resultar em mera banalização, propõe um esforço consistente de pensar através da alegoria artística. Em 1974, Glauber afirmou na carta a Zelito: "O cinema me interessa como ciência do conhecimento."*6 *6 (ROCHA, Glauber. Cartas ao mundo. op. cit.: 478.) Seu humor é, por isso, extremamente tenso. No traço caricatural de seus desenhos e frases, não se perde nada da agressividade dos conflitos. O pensador-cineasta se empenha na apropriação da herança cultural do Ocidente para combater, de dentro, sua imposição autoritária, mas nunca para desvalorizá-la. Pode-se dizer, nos termos de hoje, que a tarefa descolonizadora, que Glauber assumiu em sua obra, não inclui a rejeição do cânone. Ele sempre procurou somar heranças; jamais dilapidálas. Como Paulo Martins, que assume a persona poética de Mário Faustino, ao ritmo dos atabaques, a maior parte das personagens repete, em suas falas, fragmentos da poesia erudita e popular de todas as culturas. Em "Anábaziz", Brooks, o conquistador americano da imaginária Ogulaganda, usa as palavras de Brutus, na versão sheakespeariana do assassinato de César, enquanto o árabe Rassan, tornando-se o libertador, "recita os versos do Korão que rompem o espaço, e longe, do outro lado das montanhas, encontra os versos do Novo Testamento [...]". Nesse clímax, a maior carga de energia, capaz de aproximar Rassan do povo, vem "dos gritos Negros - de um Zumbi ressuscitado num abismo infinito [...]".*7 *7 (ROCHA, Glauber. Roteiros do terceyro mundo. Org. Orlando Senna. Rio de Janeiro: Alhambra; Embrafilme, 1985: 233, 234. )

Para se aproximar do pensamento de Glauber Rocha, é necessário resistir tanto ao fascínio quanto à desorientação, necessariamente provocados pela potência agressiva de sua estratégia fabuladora. A consulta ao arquivo do artista, com a boa dose de paciência exigida, ajuda no ajuste do foco para avaliar sua produção. Se o enorme acervo de textos e imagens corresponde ao "nó górdio", o pesquisador tem de assumir a antítese do conquistador macedônio. E este é o exercício adequado para distanciar-se também do estilo urgente e peremptório do titular do arquivo. Como intelectual provocador, este exibia filmes anticonvencionais, publicava artigos-bomba e comportava-se de forma incômoda. Se os companheiros ficavam, muitas vezes, desnorteados com suas tiradas aparentemente gratuitas, o público, mesmo o especializado, rejeitava seus filmes mais difíceis. Com grande ambição estética e política, Glauber tinha gestos impositivos e inesperados para Alexandre. No entanto, revelando os processos de articulação entre materiais heterogêneos e a persistência na aprendizagem do artesanato reflexivo-estético, o arquivo desmente a imagem inadvertida de obra e autor. Para ousar uma proposta como a "estética da fome" e elevar uma voz profética diante da "idade da Terra", Glauber se desdobrou em inúmeros exercícios de construção de estórias e de autofabulação.

Embora nem todos os textos arquivados estejam datados, é possível rastrear, entre a enorme produção verbal de Glauber, os escritos da adolescência. São, na maior parte, experimentos narrativos - "contos de aprendiz" -, onde se desenvolvem enredos amorosos ou do cotidiano, como "Ramia", uma estória trágica de cabaré, "Classe 39", quase crônica do serviço militar, "Aras a hora, Penélope fia", proposta mais ambiciosa, estudo psicológico de uma moça, usando a técnica do "fluxo de consciência", e, em destaque, "A greve composta em alvura", construção de linguagem concretista tematizando protesto de pescadores. Pode-se supor que esse texto esteja na base das estreias cinematográficas, Pátio e Barravento. Mostrando que o escritor não rejeita nem hierarquiza suas produções, há uma reunião desses textos mencionados com outros de data posterior, nem sempre tão mais bem realizados, sob o título geral de "Contos e textos revistos". Tudo indica que se trata da primeira organização de uma coletânea. Mas o conto, embora ensaiado em muitas oportunidades, não foi, como se podia esperar, o único tipo de treino da atividade fabuladora. Os registros de argumentos e suas versões desenvolvidas para o teatro ou o cinema enchem as pastas do arquivo, em clara demonstração de que o cineasta ocupou muitas de suas horas ordenando e burilando tanto sua inventividade fabular quanto as tramas populares que sua intuição recolhia. O "esboço de argumento para filme", intitulado "Aurora", recebe quatro tratamentos, indicando, talvez, a permanência de resíduos retomados em A idade da Terra. Em contraste com a temática contemporânea e urbana de "Aurora" - ou "Aurora amarga", que é outro título proposto -, há retomadas de cunho político das velhas tradições populares; é o caso de "Auto de cheganças e descheganças" e do roteiro Senhor dos navegantes, datado de 1957 e publicado em fac-símile pelas Edições Macunaíma de Salvador, trinta anos depois. A estes, somem-se os roteiros da série "Antônio das Mortes", desdobramento da personagem emblemática de Deus e o diabo e de O dragão da maldade, escritos para a televisão brasileira, mas nunca encenados. Além dos referidos, o acervo guarda uma infinidade de fábulas rascunhadas, onde se percebe que não há nada de improvisado na produção artística de Glauber. À medida que se avançar no conhecimento do material, vão-se atingir condições de uma crítica rigorosa do conjunto, para avaliar, em contraponto, os textos publicados e os inéditos. Só assim, será possível perceber se, dos muitos livros projetados e dos efetivamente montados ou em organização, quais trariam acréscimos à obra. De qualquer modo, um conhecimento parcial do arquivo - levada em conta a enorme heterogeneidade dos documentos - reafirma a qualidade de "fabuloso" para o poder fabulador de Glauber.

Rastreado nas seções e pastas do arquivo, o processo de construção fabular de Glauber Rocha, inegavelmente, distingue seu exercício do poder cultural, do método imediatista e desafiador de seu personagem Alexandre. Nenhum dos filmes e textos glauberianos produziu-se a golpe de espada. Embora incorporasse a violência ao trabalho de fabulação, Glauber teve o cuidado de desatar cada nó que se lhe apresentou. O brilho da solução de momento foi garantido por horas de pesquisa, reflexão e revisões. Esse lado laborioso do artista, que desmancha sua imagem de gênio intuitivo, corresponde ao objeto principal de suas preocupações políticas - a população de trabalhadores - e legitima seu ingresso na história da cultura brasileira ao lado tanto de intelectuais inventivos e esforçados, como Lima Barreto e Monteiro Lobato, quanto daqueles que ele elegeu como patronos ou predecessores, Euclides da Cunha e Guimarães Rosa. Foi no exercício seletivo da curiosidade intelectual e estética que Glauber se aparelhou para interferir de modo consistente, mesmo que precário, na ordem da sociedade brasileira. Houve sempre uma disposição de radicalidade no desempenho de seu trabalho. Por isso é que se pode transferir para os produtos desse trabalho os atributos que Carlos Drummond de Andrade escolheu para gravar, por ocasião da morte, o perfil de Guimarães Rosa. Adaptando, podemos repetir a indagação perplexa e admirada do poeta:

[Glauber] era fabulista?

fabuloso?

fábula?

Sertão místico disparando

no exílio da linguagem comum?*8 *8 (ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia e prosa. Org. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1983: 669. )

Se a trajetória intelectual de Glauber se aproxima das de Lima Barreto e Lobato, é porque o cineasta, como seus antecessores, não desprezava o lado prático da cultura e, para viabilizar a divulgação do Cinema Novo, atuava como produtor e discutia os aspectos financeiros e institucionais da produção de filmes numa economia periférica como a do Brasil. No entanto, aqueles buscaram ampliar o público leitor, dando tratamento literário à linguagem coloquial e às fórmulas populares adotadas pelo jornalismo. Glauber nunca procedeu assim. A técnica narrativa de seus filmes (e mesmo alguns de seus artigos para a imprensa) não recorria a expedientes facilitadores em vista dos hábitos da plateia. Ao contrário, a obra é complexa, o enfoque inesperado e o tom beira a grandiloquência retórica. Sua opção foi pela linhagem de Euclides da Cunha. Sem perder o tom solene, ele inclui humor na alegorização de personagens e cenário. Fica evidente, como referência privilegiada de sua formação, o movimento concretista. Daí seu interesse tanto pelos experimentos de vanguarda quanto pela tradição canônica. É fácil encontrar um caminho de leitura para as narrativas, roteiros e filmes de Glauber através dos ensaios críticos que Haroldo de Campos escreveu sobre alguns dos clássicos. Confira-se, em especial, Deus e o diabo no Fausto de Goethe.

Os dois principais instrumentos analítico-interpretativos empregados, no caso, por Haroldo, são o dialogismo carnavalizado de Bakhtin e a alegoria barroca, tal como a define Walter Benjamin. Considerando-se o discurso verbo-visual de Glauber como caracteristicamente híbrido, compreende-se que seu efeito de tensão resulte do conflito das falas do povo - absorvidas dos ritos folclóricos e dos movimentos marginais de revolta - com a dicção erudita da alta poesia parafraseada. E o que produz a alegoria barroca senão a discórdia entre as imagens justapostas? O humor encenado pelas personagens de Glauber é parente daquele destacado por Haroldo de Campos no poema tragicômico de Goethe. Se o Diabo frequenta a "terra do sol", tanto quanto Eldorado ou Ogulaganda, é porque Manuel e Corisco, Paulo Martins ou Aurora Madalena, instalados no impasse, comportam-se como o velho Fausto. É dessa matéria que a fabulação glauberiana é feita, não fosse ela inspirada na trajetória de Riobaldo.

O tema do pacto com o diabo, explícito ou subentendido, desencadeia um tipo de fabulação que, em vez de garantir a vida, coloca-a em perigo. O Fausto, personagem de Goethe, demonstra sua decepção com a carreira de estudioso das ciências e arrisca, pela mediação de Mefistófeles, as alternativas da sensualidade, da bruxaria e da ação. Com isso, não só percorre a Alemanha burguesa e popular de seu tempo, mas visita a Grécia clássica e atinge a dimensão cósmica. O termo, empregado por Haroldo de Campos, para descrever essa trajetória ficcional, tanto quanto a empreitada poética de articular os motivos mais incompatíveis e os ritmos mais variados, é "desmesura".*9 *9 (CAMPOS, Haroldo de. O arco-íris branco. Rio de Janeiro: Imago, 1997: 35. ) Nada mais apropriado à definição da arte e da carreira de Glauber. Não se invocam demônios satisfazendo expectativas sociais, assina-se o pacto para romper com o bom gosto, desafiar normas e provocar a ordem estabelecida. Mas a fabulação fáustica só vale se for fabulosa. Por isso, Goethe levou quase cinquenta anos revisando e acrescentando cenas a seu Fausto, a narrativa de Riobaldo não cessa de desdobrar-se e, na obra de Glauber, tudo se transfigura em cenário de ópera. Para experimentar prodígios arriscados, nenhum lugar melhor que o grande espetáculo.

E é para grandes espetáculos de música pop que parece ter migrado, nos dias de hoje, o desejo desmesurado de Glauber de pôr o som estrangeiro a serviço dos versos nacionais, de instalar no centro do palco a cadência poderosa dos tambores africanos, de fazer um carnaval intempestivo, capaz de ecoar o grito do povo. A sociedade continua desigual, preconceituosa e autoritária, mas, aos poucos, personagens de Glauber saltam dos textos e das telas para o meio da cidade. O rapper exige escola e igualdade, "pão e circo", diante da enorme plateia de burgueses e favelados. O intelectual do transe, cineasta experimental, morreu cedo porque seu papel mediador já devia parecer-lhe desnecessário. Agora, cristos negros, militares, índios e guerrilheiros exigem seus minutos de espaço, na tela diabólica da televisão.

Recebido em 07/03/2010

Aprovado em 15/03/2010

Marília Rothier Cardoso

Marília Rothier Cardoso, doutora em Letras pela PUC-Rio, é professora aposentada da UERJ e atualmente dá aulas na PUC-Rio. Suas pesquisas, nos últimos anos, têm versado sobre a contaminação da escrita literária por marcas corporais características das tradições da oralidade.

  • *1 (ROCHA, Glauber. Alexandre, o Sol do Ocidente. Folha de S. Paulo. Mais. 09/01/2005: 10.
  • *2 (ROCHA, Glauber. Cartas ao mundo. Org. Ivana Bentes. São Paulo: Companhia das Letras, 1997: 476, 479.
  • *3 (ROCHA, Glauber. "Guimarães Rosa, nas palavras...". Inédito, 1963. pi. Arquivo - Tempo Glauber.
  • *5 (ROCHA, Glauber. "Cristo". Inédito. s/d, pi. Arquivo - Tempo Glauber.
  • *7 (ROCHA, Glauber. Roteiros do terceyro mundo. Org. Orlando Senna. Rio de Janeiro: Alhambra; Embrafilme, 1985: 233, 234.
  • *8 (ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia e prosa. Org. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1983: 669.
  • *9 (CAMPOS, Haroldo de. O arco-íris branco. Rio de Janeiro: Imago, 1997: 35.
  • 1 O termo "fabulação", que os dicionários registram como encadeamento de narrativas fabulosas, recebe destaque no pensamento deleuziano, em especial, no capítulo de A imagem-tempo onde trata do cinema do terceiro mundo. Aí, se lê: "A fabulação não é um mito impessoal, mas também não é ficção pessoal: é uma palavra em ato, um ato de fala pelo qual a personagem nunca para de atravessar a fronteira que separa seu assunto privado da política, e produz, ela própria, enunciados coletivos. (grifo do autor). (DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. Cinema 2. Trad. Eloísa de Araújo Ribeiro. São Paulo: Brasiliense, 1990: 264.
  • *1
    (ROCHA, Glauber. Alexandre, o Sol do Ocidente.
    Folha de S. Paulo. Mais. 09/01/2005: 10. )
  • *2
    (ROCHA, Glauber.
    Cartas ao mundo. Org. Ivana Bentes. São Paulo: Companhia das Letras, 1997: 476, 479. )
  • *3
    (ROCHA, Glauber. "Guimarães Rosa, nas palavras...". Inédito, 1963. pi. Arquivo - Tempo Glauber. )
  • *4
    (ROCHA, Glauber.
    Cartas ao mundo. op. cit.: 476.)
  • *5
    (ROCHA, Glauber. "Cristo". Inédito. s/d, pi. Arquivo - Tempo Glauber. )
  • *6
    (ROCHA, Glauber.
    Cartas ao mundo. op. cit.: 478.)
  • *7
    (ROCHA, Glauber.
    Roteiros do terceyro mundo. Org. Orlando Senna. Rio de Janeiro: Alhambra; Embrafilme, 1985: 233, 234. )
  • *8
    (ANDRADE, Carlos Drummond de.
    Poesia e prosa. Org. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1983: 669. )
  • *9
    (CAMPOS, Haroldo de.
    O arco-íris branco. Rio de Janeiro: Imago, 1997: 35. )
  • 1
    O termo "fabulação", que os dicionários registram como encadeamento de narrativas fabulosas, recebe destaque no pensamento deleuziano, em especial, no capítulo de
    A imagem-tempo onde trata do cinema do terceiro mundo. Aí, se lê: "A fabulação não é um mito impessoal, mas também não é ficção pessoal: é uma palavra em ato, um ato de fala pelo qual a personagem nunca para de atravessar a fronteira que separa seu assunto privado da política, e
    produz, ela própria, enunciados coletivos. (grifo do autor). (DELEUZE, Gilles.
    A imagem-tempo. Cinema 2. Trad. Eloísa de Araújo Ribeiro. São Paulo: Brasiliense, 1990: 264. )
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Out 2010
    • Data do Fascículo
      Jun 2010

    Histórico

    • Recebido
      07 Mar 2010
    • Aceito
      15 Mar 2010
    Programa de Pos-Graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras -UFRJ Av. Horácio Macedo, 2151, Cidade Universitária, CEP 21941-97 - Rio de Janeiro RJ Brasil , - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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