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Sociologia e crítica literária

Resumos

"A crise da crítica literária", ensaio publicado por Theodor Adorno em 1953, é dedicado a importantes problemas dos estudos literários, tal como o papel do crítico. Em 1968, Adorno deu uma aula em Frankfurt sobre Sociologia, discutindo modos de pensar e estudar problemas sociais. Examinados como um conjunto, esses dois trabalhos representam uma importante contribuição para o debate sobre critérios de qualidade da produção acadêmica.

Crítica Literária; Sociologia; Tempo; Ideias


"The crisis of literary criticism", an essay published by Theodor Adorno in 1953, is dedicated to important problems of Literary Studies, such as the role of the critic himself. Adorno gave a class on Social Sciences in Frankfurt, in 1968, discussing ways of studying and thinking social matters. As an ensemble, these two works are an important contribution to the debate on quality of academic production.

Literary Criticism; Social Sciences; time; ideas


"La crise de la critique littéraire", essai publié par Theodor Adorno en 1953, est consacréà des problèmes importants pour les études littéraires, tels que le rôle du critique. En 1968, Adorno a donné une leçonà Frankfurt sur la Sociologie, discutant les manières de penser et d'étudier des problèmes sociaux. Examinés comme un ensemble, ces deux travaux représentent une contribution importante pour le débat sur les critères de qualité de la production académique.

Critique Littéraire; Sociologie; temps; idées


Sociologia e crítica literária

Jaime Ginzburg

RESUMO

"A crise da crítica literária", ensaio publicado por Theodor Adorno em 1953, é dedicado a importantes problemas dos estudos literários, tal como o papel do crítico. Em 1968, Adorno deu uma aula em Frankfurt sobre Sociologia, discutindo modos de pensar e estudar problemas sociais. Examinados como um conjunto, esses dois trabalhos representam uma importante contribuição para o debate sobre critérios de qualidade da produção acadêmica.

Palavras-chave: Crítica Literária; Sociologia; Tempo; Ideias.

ABSTRACT

"The crisis of literary criticism", an essay published by Theodor Adorno in 1953, is dedicated to important problems of Literary Studies, such as the role of the critic himself. Adorno gave a class on Social Sciences in Frankfurt, in 1968, discussing ways of studying and thinking social matters. As an ensemble, these two works are an important contribution to the debate on quality of academic production.

Key words: Literary Criticism; Social Sciences; time; ideas.

RÉSUMÉ

"La crise de la critique littéraire", essai publié par Theodor Adorno en 1953, est consacréà des problèmes importants pour les études littéraires, tels que le rôle du critique. En 1968, Adorno a donné une leçonà Frankfurt sur la Sociologie, discutant les manières de penser et d'étudier des problèmes sociaux. Examinés comme un ensemble, ces deux travaux représentent une contribution importante pour le débat sur les critères de qualité de la production académique.

Mots-clés: Critique Littéraire; Sociologie; temps; idées

Em 24 de abril de 1968, em Frankfurt, Theodor Adorno ministrou uma aula de Introdução à Sociologia, em que apresentou a um grupo de estudantes elementos da obra de Augusto Comte. Para fazer isso, criou um contexto de reflexão em que situou seu entendimento da definição do papel da Sociologia nos estudos acadêmicos. A aula foi transcrita e sua leitura causa uma série de perplexidades.

Os leitores habituados ao ensaísmo cauteloso de Adorno encontram na exposição pedagógica uma fala caracterizada por fluência, em que opiniões são expostas de modo direto. Um conjunto de questões é abordado com discernimento, de maneira corajosa, em um movimento que envolve no mínimo três campos de referência: o professor que se dirige em presença aos estudantes, o intelectual que se manifesta criticamente dentro do debate sobre as perspectivas da Sociologia, e o membro de uma sociedade em tensão, que apresenta, de modo difuso, mas preciso, uma interpretação do que está ocorrendo na Europa no final da década de 1960.

A leitura mostra que o título do curso, o mesmo do livro, é apenas um ponto de partida para ser decomposto. Desde o início, os modelos habituais de uma introdução didática, com a simplificação de uma matéria que se desenvolve linearmente rumo à complexidade, não apenas são criticados como evidentemente estão fora do horizonte do percurso da fala de Adorno. A proposição consiste em converter a ideia de uma introdução à sociologia em algo diferente e inesperado.*1 *1 (ADORNO, Theodor. Introdução à sociologia. São Paulo: Ed. UNESP, 2008. )

O desenvolvimento linear do simples ao complexo, acredita o autor, tem uma função importante, confortar a preparação das avaliações escolares. Deixar o ambiente acadêmico organizado o suficiente para que a segurança com relação às aprovações em exames possa ser delimitada.

No entanto, isso não tem nenhuma correspondência, para Adorno, com o entendimento de questões da área. Em um texto muito ácido voltado para a produção de conhecimento em Filosofia, Adorno chamou a atenção para trabalhos que chegavam a suas mãos com problemas de linguagem, clichês, em que ele podia observar que havia uma familiaridade com elementos filosóficos, sem haver entendimento desses elementos. Adorno está rastreando na vida acadêmica dois elementos que podem conviver: o rendimento caracterizado com atribuição de aprovação institucional e a inabilidade de produzir ideias. A situação da avaliação para ele se tornava constrangedora, e o autor manifestava a expectativa de um ambiente acadêmico mais caracterizado por entusiasmo, trabalho com ideias e sem cinismo.*2 *2 (ADORNO, Theodor. "Philosophy and Teachers". In: Critical Models. New York: Columbia University Press, 2005. )

Adorno acredita que o modelo pedagógico linear prejudica a própria concepção da Sociologia, que se pautaria pelo parâmetro do desenvolvimento progressivo, tal como o modelo escolar de sua apresentação sugere:

Penso que se elaborássemos uma sequência rigorosa de estudo nessa disciplina e a impuséssemos aos senhores, certamente isso facilitaria muitas coisas, levando aqueles que pensam sobretudo nos exames – a quem de modo algum respeito menos – a uma posição de segurança maior para atingir essa meta, do que provavelmente aconteceria conforme as presentes condições. Contudo, do outro lado, por esse intermédio se inocularia também nessa disciplina nova e, por isso mesmo, ainda relativamente livre, um momento de escolarização, de normatização, que, a meu ver, contraria justamente o que os senhores precisam aprender.*3 *3 (ADORNO, Theodor. Introdução à sociologia. op. cit.: 49. )

A formulação do autor integra simultaneamente três elementos: uma crítica da normatização disciplinar no campo pedagógico; um alerta contra a hegemonia positivista nos estudos de ciências sociais; e uma alusão à ideia de um conhecimento livre, que deveria ser mantido independente de um cerceamento que o prejudicaria e restringiria seu alcance, posição que está articulada com debates dos anos 60 a respeito das relações entre poder e cultura.

À proposição normatizada de uma introdução à sociologia, Adorno opõe uma alternativa, concebida a partir da crítica da ideia de continuidade. O procedimento adotado consiste em distinguir a disciplina de outras áreas do conhecimento universitário.

Pois na Sociologia é impossível uma continuidade, no sentido em que ela é possível na Medicina, nas Ciências Naturais Exatas ou, de certo modo, inclusive nas Ciências Jurídicas; a continuidade não pode ser objeto de promessas ou expectativas.*4 *4 (Ibidem: 48.)

A categoria é muito importante ao longo de toda a reflexão elaborada. De fato, tudo depende aqui do nível de previsibilidade e controle dos processos de produção de conhecimento. Se em algumas áreas pesquisadores querem garantir para si o poder de que a produção científica terá, necessariamente, resultados relevantes, em razão de que o tempo empregado é linearmente produtivo, isso não ocorreria em ciências sociais. A reflexão nessa área seria marcada por períodos de dúvida, de incompreensão, em que o desafio da investigação não se resolve.

A disjunção entre competência investigativa e controle do processo reflexivo deve provavelmente soar leviana ou absurda aos defensores do progresso científico ininterrupto. De fato, a concepção de que um pesquisador passe por períodos de tempo em que as investigações careçam de soluções conclusivas, e os desafios permaneçam suspensos, parece estranha ao ritmo industrial.

A força da crítica à noção de continuidade tem relação também com a proposição adorniana de que é necessário incompatibilizar estereótipos e conhecimento. Para ele, estereótipos, fixações de conceitos, que imobilizam ideias ao longo do tempo à revelia de mudanças históricas, não correspondem ao que deveríamos entender como interesse de conhecimento, como explica longamente em seu estudo sobre a configuração de autoridade e organização de estilo em discursos de estereótipos.*5 *5 (ADORNO, Theodor. The stars down to Earth and other essays on the irrational on culture. London: Routledge, 1994: 51-52. )

Esses movimentos disjuntivos não são fracassos ou falhas, mas elementos constitutivos do processo reflexivo, traços incorporados ao trabalho do sociólogo. É com uma metáfora básica da filosofia, a presença da luz, que o pensador elabora a importância desses movimentos:

Em disciplinas desse tipo – o que aliás, também vale para a Filosofia, de que me recuso a separar de modo estrito a Sociologia – o caminho em direção ao entendimento não ocorre, por exemplo, nos termos em que na escola aprendemos Matemática, em que progredimos do simples ao complexo em passos inteiramente claros, cada um dos quais inteiramente evidente para nós, ou coisa semelhante. [...] Trata-se apenas de expressar a experiência da distinção consequente entre estudo acadêmico e escola, de que nem tudo ocorre de modo tão gradual e mediado, sem lacunas, mas conforme certos saltos. Que de repente temos uma luz, como se costuma dizer, e quando nos ocupamos com o assunto durante um tempo suficiente, mesmo que de início com eventuais dificuldades de compreensão, // simplesmente devido ao tempo de duração do estudo e, sobretudo, ao tempo de duração do contato com a matéria, sucede uma espécie de salto qualitativo por meio do qual se esclarecem as coisas que de início não eram claras.*6 *6 (ADORNO, Theodor. Introdução à sociologia. op. cit.: 51. )

O "salto qualitativo" está associado a uma distinção temporal. Em um primeiro momento falta clareza, em um momento seguinte as coisas parecem claras. Está sendo afastada a ideia de que a clareza se estabelece necessariamente na escolha pela lógica linear, na passagem do simples para o complexo, sendo privilegiada aqui uma lógica da irrupção, em que a clareza do conhecimento depende de um distanciamento entre pontos de reflexão. A condição para a obtenção de um entendimento sobre um assunto estudado em sociologia dependeria, portanto, de maturação de ideias.

A inserção de um componente de descontinuidade nas reflexões e o afastamento da aplicação de fórmulas previsíveis e procedimentos mecânicos de produção de conhecimento se traduzem de modo inteligente na ideia de uma flexibilidade curricular, em que o planejamento de estudos de ciências sociais não deve ser engessado, cabendo ao estudante construir sua própria trajetória. Uma vez que a descontinuidade permite construir ideias, nada mais plausível do que esperar que ela esteja no campo da disposição de elementos pedagógicos.

Acredito, sim, que, quando se quer estudar Sociologia, é bom assistir a uma aula expositiva introdutória, bem como a algumas exposições específicas acerca de técnicas empíricas ou sobre temas especiais de nosso interesse. Mas creio que cada um precisa escolher por si próprio a maneira pela qual se aprofunda nessa configuração um pouco difusa da Sociologia. Peço que compreendam se nesta ocasião manifesto aquilo em que acredito, ou seja, justamente quando se leva muito a sério a ideia da liberdade, o que no contexto acadêmico significa liberdade acadêmica, liberdade de estudo – e creio que os senhores levam essa ideia de liberdade tão a sério quanto eu próprio – em certa medida isso se refere até mesmo ao planejamento do estudo pelos próprios estudantes.*7 *7 (Ibidem: 49.)

Há uma conexão viva entre o pensamento que admite a descontinuidade, que Adorno gostaria de ver na atividade do sociólogo, e no percurso que admite a liberdade, que ele espera ver na rota dos estudantes. Nos dois casos ocorreria a ruptura com padrões hegemônicos de conhecimento voltados para a reprodução de ideias já aceitas e consagradas.

É conhecida a determinação de Adorno em criticar a ideia de totalidade, em sua acepção hegeliana; "quanto mais o mundo possui a aparência da unidade e totalidade, maior é o avanço da reificação".*8 *8 (ADORNO, Theodor. "Crítica cultural e sociedade". In: Prismas. São Paulo: ática, 1988: 22) Além disso, desenvolveu uma concepção de razão antagônica, contrária à razão iluminista, e pautada por uma filosofia da história voltada para a importância dos conflitos sociais, e para a necessidade de não os desconsiderar em nossas formulações de categorias de pensamento.*9 *9 (ADORNO, Theodor. Negative Dialectics. New York: Continuum, 1999. Part Three: Models)

A crítica da noção de continuidade é parte do campo epistemológico em que se encontram a contestação da totalidade e a defesa da razão antagônica. Todos esses casos são categorias pautadas pela contrariedade às heranças hegelianas, aos modelos evolucionistas e positivistas de produção de conhecimento e de valor científico.

Cabe ressaltar que, embora Adorno esteja fazendo recomendações a seus estudantes a respeito de como estudar, como planejar sua trajetória acadêmica, e ainda observações importantes sobre o conhecimento da área, faz também uma caracterização da Sociologia nos seguintes termos: a área seria de uma "heterogeneidade peculiar e algo assustadora";*10 *10 (ADORNO, Theodor. Introdução à sociologia. op. cit.: 58. ) poderia ser considerada um "aglomerado propriamente sem denominador comum".*11 *11 (Ibidem.)

Nesse sentido, ao problematizar até o limite a delimitação da área, o pensador põe em questão o seu próprio discurso. "Introdução a quê?", podemos perguntar sobre o título do curso diante da indeterminação exposta pelo professor. De fato, trata-se de concretizar, de modo enfático, o princípio da crítica dialética tal como ele formulou, "participar e não participar da cultura", fazendo justiça assim "a si mesmo".*12 *12 (ADORNO, Theodor. "Crítica cultural e sociedade". op. cit.: 25) É criado o efeito antagônico de falar de seu tema de um lugar de enunciação interno de dentro e de fora, como quem ao mesmo tempo acredita e desacredita no próprio discurso. A palavra "assustadora" implica ainda uma estratégia de choque; mais do que acreditar ou não, trata-se de observar a área de conhecimento com estranhamento.

Quinze anos antes desta aula, Adorno publicou um ensaio intitulado "Sobre a crise da crítica literária".*13 *13 (ADORNO, Theodor. "Sobre la crisis de la critica literaria". In: Notas sobre literatura. Madrid: Akal, 2009. ) Em larga medida, a referida crise de uma área de conhecimento tem direta ligação com as proposições feitas para outra área. Isto é, a aula de Sociologia, em parte, ajudaria estudantes de Crítica Literária.

Abandonar modelos evolucionistas e positivistas de pensamento, como modo de beneficiar o pensamento crítico, pode ser uma palavra de ordem fácil. Porém, em estudos literários as heranças hegelianas são oceânicas. O campo da historiografia, com os parâmetros da periodização linear, é até hoje fortemente condicionado pela fundamentação que remonta ao século XIX. As classificações canônicas de gêneros literários remontam a proposições de conhecimento pautadas em modelos fixados, à revelia de variações históricas.

O problema observado por Adorno com relação à segurança das avaliações acadêmicas se apresenta no cotidiano de modo ostensivo. Na educação básica, nos campos de ensino articulados com exames vestibulares, em manuais e apostilas, ocorrem reduções interpretativas, classificações simplificadoras, trivializações. Não desaparecem no ensino universitário as dificuldades de lidar com a polissemia dos textos literários, havendo necessidade de abertura do debate constante sobre eles. Exames e notas exigem posições de autoridade, em que muitas vezes leituras canônicas se sobrepõem aos desafios interpretativos, de modo que as avaliações acadêmicas podem se tornar uma ferramenta para o conservadorismo político da área de conhecimento. Para a academia conservadora, uma leitura pode ser aprovada por não produzir nenhuma ideia nova; mais do que isso, talvez seja essa a expectativa permanente do campo intelectual conservador, produzir apenas retórica vazia; é exatamente o modelo que desagrada Adorno, que considera essa vida acadêmica cínica.

A preocupação de Adorno com a crítica literária é muito similar com a que demonstra com relação à filosofia: observa um "abandono linguístico", uma "tendência a operar com clichês linguísticos pré-fabricados"*14 *14 (Ibidem: 643.) em lugar do trabalho de procura da redação mais adequada. O que ele chama de crise tem a ver com um estado de precariedade no pós-guerra na área, em que, mesmo tendo sido deixado para trás o governante fascista, dele permaneceu uma herança, o "respeito por tudo que está estabelecido, reconhecido".*15 *15 (Ibidem: 642.)

Adorno associa a posição conservadora, o componente político, a uma inabilidade formal na escrita crítica, o componente linguístico. Não se trata apenas de insultar seus inimigos. É um movimento de resistência que indica que o campo acadêmico politizado é mapeado por critérios de valor, em que o chamado componente "imanente" da leitura não se dissocia do campo contextual. A partir de Karl Kraus, Adorno alinha adjetivos para a crítica conservadora que incluem conformismo, incompetência e negligência.

Enquanto o acadêmico conservador aprova com suas notas trabalhos sem ideias, e estudantes se organizam para exames, preocupados com parâmetros de estudos lineares, em Adorno todo esse modelo é posto em questão. Em sua perspectiva, trabalhos sem ideias não têm sentido, acadêmicos incompetentes fixam conceitos e com isso impedem que os estudantes aprendam o que de fato precisam aprender, critérios de valor acadêmico são critérios políticos.

O que os alunos precisam de fato aprender, escapando aos modelos lineares, e aproximando-os da razão antagônica, está sugerido em um ponto da aula de introdução à Sociologia referente ao modo como eles deveriam perceber a sociedade, objeto da área de conhecimento a que se dedicam:

Para nós, mais calejados, o paradoxo é menor uma vez que sabemos que, de modo constitutivo, a sociedade em que vivemos – e, salvo se negarmos sua existência como o fazem alguns sociólogos, a sociedade constitui o objeto da Sociologia – é essencialmente contraditória em si mesma. Assim já não surpreende tanto que a ciência que se ocupa com fenômenos sociais ou fatos sociais, faits sociaux, também não apresente uma continuidade em si mesma.*16 *16 (ADORNO, Theodor. Introdução à sociologia. op. cit.: 53. )

A ideia de que a sociedade é contraditória, de fundamentação marxista, funciona como base para a crítica da categoria da continuidade. Isto é, o fato de que o objeto é uma totalidade sem síntese se articula com a concepção de que a disciplina que o estuda seja uma totalidade sem síntese.

Essa observação torna ainda mais importante a questão formulada por Adorno em seu ensaio sobre crítica literária, a respeito da relevância da produção literária no pós-guerra. O pensador debate a hipótese, em circulação nos anos 50, de que o problema da crítica seria a qualidade duvidosa da produção de seu tempo. Adorno reage a isso dizendo que a tarefa da crítica é realizar "reflexões de maior alcance e profundidade".*17 *17 (ADORNO, Theodor. "Sobre la crisis de la critica literaria". op. cit.: 644. ) De fato, se a produção do presente não se incorpora ao passado com o encaixe esperado, a atitude não seria excluí-la, mas reavaliar a percepção adotada e alargar o horizonte de interpretação.

Como expõe Adorno no início dos anos 50, o problema da crítica literária não é "mera questão de incompetência dos especialistas. Remete à constituição global de toda a existência na atualidade".*18 *18 (Ibidem: 643.) A Segunda Guerra colocou em dúvida os parâmetros da civilização ocidental, o conceito de razão, o conceito de universalidade. Adorno observa com precisão uma implicação desse mal-estar intelectual na área de Letras: "foi posta abaixo qualquer força estabelecida da tradição com que a crítica, ainda que fosse para contradizê-la, pudesse basear-se".*19 *19 (Ibidem.) O período pós-guerra é um tempo de indeterminação, porque não é possível confiar de modo pleno em nenhum discurso que venha de uma tradição que resultou em destruição massiva, em categorias que não impediram os genocídios, os campos de concentração, as universidades a serviço do militarismo, tudo o que foi amplamente estudado pelo próprio Adorno e pela escola de Frankfurt, na crítica do iluminismo. Esse mal-estar, como é bem conhecido, não é exclusivo, mas partilhado por outros importantes intelectuais, em dilemas nos anos 50, tanto na Europa como no Brasil.

Em 1940, estando em Nova York, Adorno escreveu uma carta a seus pais, preocupado com os avanços da guerra. Ele sugere que "as chamadas democracias no fundo clamam pelo fascismo e que de certo modo foram elas as que atraíram a desgraça".*20 *20 (ADORNO, Theodor. Cartas a los padres. Buenos Aires: Paidós, 2006: 71. ) Ele teria encontrado na Inglaterra muitas provas dessa tendência.

Observações como essa ao longo da produção do pensador apontam para a exigência de uma atitude intelectual contrária ao fascismo, em que o critério de conduta política esteja associado ao critério de valor do trabalho acadêmico. Adorno não tem ilusões quanto à possibilidade de que dentro de uma democracia oficial possa ser difundido um ideário fascista, ou ainda de que um pensamento acadêmico conservador possa contribuir para o autoritarismo político.

No contexto pós-guerra, o ensaio de Adorno propõe a defesa de uma crítica literária definida como "momento integral de correntes intelectuais" – tanto em colaboração, como em contradição – delas extraindo forças "de tendências sociais".*21 *21 (ADORNO, Theodor. "Sobre la crisis de la critica literaria". op. cit.: 644. ) Essas tendências, orientadas contra o fascismo e a barbárie, estabeleceriam um movimento em que crítica literária e mudança social estariam articuladas em favor da recusa da continuidade da aceitação das heranças do passado autoritário.

Quinze anos depois, a aula em Frankfurt consolida uma concepção de vida acadêmica contrária ao imediatismo e dedicada a "reflexões de maior alcance e profundidade". O elogio ao tempo de longa duração se apresenta como uma proposição fundamental, vinculada à ideia de que em um contexto com presença de cinismo é preciso avaliar o que se quer do ensino universitário, com um discurso enunciado de modo duplo, de dentro e de fora, ao mesmo tempo sugerindo como deve se entender a Sociologia e afirmando que é indeterminada a delimitação dessa área; dando uma aula de introdução e defendendo que estudantes devem planejar por si mesmos como estudar; identificando a sociedade como objeto, e estabelecendo seu caráter contraditório.

Embora sendo uma única aula, felizmente registrada, trata-se de um momento fundamental na história das ideias con-temporâneas. E mesmo sendo referente a uma disciplina específica, Sociologia, as questões que propõe, sem dificuldade, podem ser abertas para outras áreas de conhecimento com perspectivas importantes.

Conseguir maior alcance e profundidade, havendo crítica da noção de continuidade, não significa reproduzir ideias consagradas pelo pensamento conservador, mas estabelecer um debate aberto. Sendo a sociedade considerada contraditória, e as mudanças históricas constantemente incluídas no campo de referências do debate, é esperado que posições diferenciadas sejam apresentadas. As áreas não estão fixadas mas, seguindo Adorno, estão em constante reelaboração, assustadora reelaboração. Com isso, a necessidade de rever o horizonte de delimitação dos próprios debates pode estar constantemente em pauta, como questão curricular para o ensino universitário das áreas. Tanto para a Sociologia, como para a Crítica Literária, essa pauta é prioritária para a vida acadêmica.

Recebido em 20/08/2010

Aprovado em 10/09/2010

Jaime Ginzburg

É professor da Universidade de São Paulo e pesquisador do CNPq.

  • *1 (ADORNO, Theodor. Introdução à sociologia São Paulo: Ed. UNESP, 2008.
  • *2 (ADORNO, Theodor. "Philosophy and Teachers". In: Critical Models. New York: Columbia University Press, 2005.
  • *3 (ADORNO, Theodor. Introdução à sociologia. op. cit.: 49.
  • *5 (ADORNO, Theodor. The stars down to Earth and other essays on the irrational on culture. London: Routledge, 1994: 51-52.
  • *6 (ADORNO, Theodor. Introdução à sociologia. op. cit.: 51.
  • *8 (ADORNO, Theodor. "Crítica cultural e sociedade". In: Prismas. São Paulo: ática, 1988: 22)
  • *9 (ADORNO, Theodor. Negative Dialectics. New York: Continuum, 1999. Part Three: Models)
  • *10 (ADORNO, Theodor. Introdução à sociologia. op. cit.: 58.
  • *12 (ADORNO, Theodor. "Crítica cultural e sociedade". op. cit.: 25)
  • *13 (ADORNO, Theodor. "Sobre la crisis de la critica literaria". In: Notas sobre literatura. Madrid: Akal, 2009.
  • *16 (ADORNO, Theodor. Introdução à sociologia. op. cit.: 53.
  • *17 (ADORNO, Theodor. "Sobre la crisis de la critica literaria". op. cit.: 644.
  • *20 (ADORNO, Theodor. Cartas a los padres. Buenos Aires: Paidós, 2006: 71.
  • *21 (ADORNO, Theodor. "Sobre la crisis de la critica literaria". op. cit.: 644.
  • *1
    (ADORNO, Theodor.
    Introdução à sociologia. São Paulo: Ed. UNESP, 2008. )
  • *2
    (ADORNO, Theodor. "Philosophy and Teachers". In:
    Critical Models. New York: Columbia University Press, 2005. )
  • *3
    (ADORNO, Theodor.
    Introdução à sociologia. op. cit.: 49. )
  • *4
    (Ibidem: 48.)
  • *5
    (ADORNO, Theodor.
    The stars down to Earth and other essays on the irrational on culture. London: Routledge, 1994: 51-52. )
  • *6
    (ADORNO, Theodor.
    Introdução à sociologia. op. cit.: 51. )
  • *7
    (Ibidem: 49.)
  • *8
    (ADORNO, Theodor. "Crítica cultural e sociedade". In:
    Prismas. São Paulo: ática, 1988: 22)
  • *9
    (ADORNO, Theodor.
    Negative Dialectics. New York: Continuum, 1999. Part Three: Models)
  • *10
    (ADORNO, Theodor.
    Introdução à sociologia. op. cit.: 58. )
  • *11
    (Ibidem.)
  • *12
    (ADORNO, Theodor. "Crítica cultural e sociedade". op. cit.: 25)
  • *13
    (ADORNO, Theodor. "Sobre la crisis de la critica literaria". In:
    Notas sobre literatura. Madrid: Akal, 2009. )
  • *14
    (Ibidem: 643.)
  • *15
    (Ibidem: 642.)
  • *16
    (ADORNO, Theodor.
    Introdução à sociologia. op. cit.: 53. )
  • *17
    (ADORNO, Theodor. "Sobre la crisis de la critica literaria". op. cit.: 644. )
  • *18
    (Ibidem: 643.)
  • *19
    (Ibidem.)
  • *20
    (ADORNO, Theodor.
    Cartas a los padres. Buenos Aires: Paidós, 2006: 71. )
  • *21
    (ADORNO, Theodor. "Sobre la crisis de la critica literaria". op. cit.: 644. )
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      18 Maio 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 2010

    Histórico

    • Aceito
      10 Set 2010
    • Recebido
      20 Ago 2010
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