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INFÂNCIA E POESIA NA LÍRICA FINAL DE JORGE DE LIMA

CHILDHOOD AND POETRY IN THE FINAL LYRIC OF JORGE DE LIMA

Resumo

Neste texto, pretendemos analisar como Jorge de Lima se utiliza de alguns aspectos relacionados ao mundo lúdico infantil e da memória de sua infância para a criação de Invenção de Orfeu.

Palavras-chave:
Invenção de Orfeu; infância; poesia

Abstract

In this text, we intend to analyze as Jorge de Lima make use of some features related to childish world and his boyhood memories for creation of Invenção de Orfeu.

Keywords:
Invenção de Orfeu; childhood; poetry

Resumen

En este texto, nos proponemos analizar cómo Jorge de Lima utiliza algunos aspectos relacionados con el mundo lúdico de los niños y el recuerdo de su infancia en la creación de la Invenção de Orfeu.

Palabras clave:
Invenção de Orfeu; infância; poesia

Giambattista Vico, em 1730, nos seus Princípios de (uma) ciência nova, expõe a ideia de que a linguagem poética seria primitiva, e que os homens passaram dela para a racional, sendo ambas intimamente ligadas. Mais do que isso, Vico concebe a linguagem poética como fato natural e, por conseguinte, entende as imagens não como desvios da linguagem (como consideravam os retóricos), ampliando o pensamento de sua época. Para o filósofo italiano, "os homens do mundo nascente (fanciullo) foram, por sua própria natureza, sublimes poetas" (VICO, 1979VICO, Giambattista. Princípios de uma ciência nova: acerca da natureza comum das nações. São Paulo: Abril Cultural, 1979.: 42). Enquanto o discurso poético moderno se realiza de maneira "artificial" ou diferentemente da linguagem corrente, observa Vico, na idade primitiva do homem (sua infância) a linguagem era exercida de forma distinta. Enquanto a linguagem poética moderna se esforça para exprimir-se de maneira imaginativa, a linguagem primitiva a exprimia naturalmente.1 Uma das características de grande importância na poesia moderna se refere a seu caráter de evasão. O avanço técnico conseguido nos grandes centros urbanos, ao mesmo tempo que impressionam os poetas, causa-lhes também repulsa. E é assim que a lírica vai representar o seu tempo. Para Hugo Friedrich, esta é uma situação de difícil decifração e que leva os poetas a um processo que vai da evasão ao irreal, à fantasia, e, consequentemente, a um hermetismo na linguagem. Assim, o crítico afirma que "a evasão ao irreal, a fantasia que começa muito além do normal, o sentido de mistério deliberado, o hermetismo da linguagem: tudo pode ser talvez concebido como uma tentativa da alma moderna, em meio a uma época tecnizada, imperializada, comercializada, de conservar para si a liberdade e para o mundo maravilhoso, que nada tem a ver com as 'maravilhas da ciência'" (FRIEDRICH, 1991:163). Antônio Lázaro nos explica, na introdução aos Princípios de (uma) ciência nova, esse procedimento:

Quando, por exemplo, se pensa nos eventos descritivos pela mitologia como apenas ficções extravagantes, ou quando se inclina a tratar trabalhos de poesia ou pintura como objetos de prazer ou de entretenimento, deve-se tomar cuidado em não projetar essas atitudes nos povos antigos. Houve períodos em que, longe de ser encarada como uma espécie de embelezamento dispensável da existência civilizada, a poesia era, ao contrário, do modo natural da expressão humana. (LÁZARO apud VICO, 1979VICO, Giambattista. Princípios de uma ciência nova: acerca da natureza comum das nações. São Paulo: Abril Cultural, 1979., XXI)

Nessa perspectiva, tanto a poesia quanto a imaginação infantil apresentam vigorosas fantasias e as crianças criadoras se assemelhariam aos poetas:

os primeiros homens das nações gentílicas, quais infantes (fanciulli) do nascente gênero humano, como os caracterizamos nas Dignidades, criavam, a partir de sua ideia, as coisas, mas num modo infinitamente diverso daquele Deus. Pois Deus, em seu puríssimo entendimento, conhece, e, conhecendo-as, cria as coisas. Já as crianças, em sua robusta ignorância, o fazem por decorrência de uma corpulentíssima fantasia. E o fazem com uma maravilhosa sublimidade, tamanha e tão considerável que perturbava, em excesso, a esses mesmos que, fingindo, as forjavam para si pelo que foram chamados "poetas", que, no grego, é o mesmo que "criadores". (VICO, 1979VICO, Giambattista. Princípios de uma ciência nova: acerca da natureza comum das nações. São Paulo: Abril Cultural, 1979.: 76)

Partindo dessa lógica, o filósofo italiano considera que os primeiros poetas é que devem ter nomeado as coisas, "a partir das ideias mais particulares e sensíveis. Eis as duas fontes, esta da metonímia e aquela da sinédoque" (VICO, 1979VICO, Giambattista. Princípios de uma ciência nova: acerca da natureza comum das nações. São Paulo: Abril Cultural, 1979.: 90). Assim como a criança, o poeta escreve como se tivesse visto o objeto de sua reflexão pela primeira vez. Para Vico, "as crianças com as ideias e nomes de homens, mulheres e coisas, que pela primeira vez viram, aprendem e chamam, a seguir, todos os homens, mulheres e coisas, que tenham com os primeiros alguma semelhança ou relação", sendo esta a grande fonte natural dos caracteres poéticos, com os quais naturalmente pensaram os povos primitivos (VICO, 1979VICO, Giambattista. Princípios de uma ciência nova: acerca da natureza comum das nações. São Paulo: Abril Cultural, 1979.: 92).

Vico conclui seus argumentos apresentando a ideia de que a idade de ouro da humanidade é o tempo em que, como explica Antônio Lázaro (em nota da introdução à obra do filósofo italiano), "se degradaram as grandes metáforas dos poetas teólogos e/ou fundadores e inventores" (LÁZARO apud VICO, 1979VICO, Giambattista. Princípios de uma ciência nova: acerca da natureza comum das nações. São Paulo: Abril Cultural, 1979.:149). Para desenvolver sua ideia, Vico dividirá a humanidade em três estágios (o divino, o heroico e o humano), os quais representam, cada um à sua maneira, sua língua e visão do mundo. O estágio inicial (que nos interessa mais de perto aqui) corresponde a uma visão criadora ou "poética". Neste estágio, o homem, por meio da imaginação, antes mesmo de usar sua capacidade racional e refletir sobre as coisas, as criam, considerando-as realidades externas a ele. A criação poética está intrinsecamente ligada à capacidade imaginativa e criadora do homem - que diminui com o desenvolvimento da razão. Antonio Candido nos esclarece que,

a linguagem poética, eminentemente criadora, nasce da necessidade de exprimir, mas não sucede a uma linguagem não-poética; pelo contrário, precede-a, tanto assim que o verso sempre surge antes da prosa. Com o correr de tempo e o aparecimento da linguagem racional, da explicação racional, etc., a forma anterior perde a sua exclusividade, mas permanece ao lado da outra. O poético se prolonga pelo racional, ou metafísico, adentro. (CANDIDO, 2004CANDIDO, Antonio. O estudo analítico do poema. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2004.: 146-147)

Portanto, a importância concedida à imaginação é considerada primordial, pois

a linguagem figurada nasce de uma inopia; mas não sucede a uma linguagem própria. O que falta é precisamente esta, que só poderá se desenvolver numa fase racional, na qual se estabeleça o conhecimento das coisas pelas causas. Portanto, a linguagem figurada da poesia é a forma primordial que institui a visão do mundo, permanecendo em nosso tempo como sobrevivência. (CANDIDO, 2004CANDIDO, Antonio. O estudo analítico do poema. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2004.: 147-148)

De acordo com Alfredo Bosi, "toda (a scienza nueva) [está] voltada para entender a natureza do trabalho poético, o ser da Poesia, em termos de linguagem, cuja ordem imanente se colhe na unidade de sentidos, memória e fantasia." (BOSI, 1977BOSI, Alfredo. O ser e o tempo na poesia. São Paulo: Cultrix, 1977.: 210). Desse modo, a poesia imaginativa e o mundo infantil estão intrinsecamente ligados, e a modernidade poética vai refletir, principalmente através da busca da evasão da vida cotidiana, esse modo de criação. Para Bosi, "nesses tempos, ingratos para a sensibilidade heroica, o poeta procura reconquistar, 'com arte e indústria' o poder inventivo da linguagem, que lhe é conatural, e tenta evitar a redução do seu discurso a um universo de juízos convencionais." (BOSI, 1977BOSI, Alfredo. O ser e o tempo na poesia. São Paulo: Cultrix, 1977.: 211).

Acompanhando os passos do pensamento de Vico, Alfredo Bosi afirma que a criação poética é fruto da memória, no sentido em que ela "aparece como faculdade de base" (BOSI, 1977BOSI, Alfredo. O ser e o tempo na poesia. São Paulo: Cultrix, 1977.: 204). E o meio pelo qual se "modela" a imagem é a fantasia. Desta se produz tanto os mitos quanto a prática poética em si, o texto. De acordo com Vico,

entre os Latinos chama-se "memória" a faculdade que guarda as percepções recolhidas pelos sentidos, e "reminiscência" a que as dá à luz. Mas memória significa também a faculdade pela qual nós conformamos as imagens, e que as dá, e que os Gregos chamaram "fantasia", e nós comumente dizemos "imaginar" dizem os Latinos memorare. Será, por acaso, porque não podemos fingir em nós senão o que pelos sentidos percebemos? De certo, nenhum pintor pintou jamais qualquer gênero de planta ou de ser animado que não o retirasse da natureza: porque hipogrifos e centauros são verdades da natureza ficticiamente combinadas. (VICO apudBOSI, 1977BOSI, Alfredo. O ser e o tempo na poesia. São Paulo: Cultrix, 1977.: 200)

Aliado a isso, podemos pensar que a memória no texto literário tem o papel de reelaborar o que foi vivido (ou imaginado) pelo poeta, de modo que ela possa se realizar no poema. Sem essa reelaboração, a memória simplesmente representaria o passado comum a qualquer pessoa. Como veremos adiante, é principalmente da memória infantil que Jorge de Lima retira grande parte de seu repertório poético, por meio das temáticas referentes à sua meninice, estendendo-as ao aspecto geográfico e sociocultural do Nordeste, servindo-se, pois, da imaginação criadora para elaborar sua poesia.

Essa presença da infância como forma de rememoração ocorre, de acordo com Alfredo Bosi, como resposta ao presente ingrato do poeta que é,

na poesia mítica, a ressacralização da memória mais profunda da comunidade. E quando a mitologia de base tradicional falha, ou de algum modo já não entra nesse projeto de recusa, é sempre possível sondar e remexer as camadas da psique individual. A poesia trabalhará, então, a linguagem da infância recalcada, metáfora do desejo, o texto do inconsciente, a grafia do sonho: (...) A poesia recompõe cada vez mais arduamente o universo mágico que os novos tempos renegam. (BOSI, 1977BOSI, Alfredo. O ser e o tempo na poesia. São Paulo: Cultrix, 1977.: 150)

Luiz Santa Cruz, na tentativa de dar uma possível unidade à obra de Jorge de Lima, contrapondo-se, assim, àquele corrente argumento que acusa o poeta de assumir (transitar entre) as várias tendências poéticas em voga, acredita que é a infância a responsável pela unidade poética limiana, sendo sua marca mais profunda. O crítico ainda aponta que: "tanto na obra poética de Jorge de Lima, como em toda a sua criação literária, a palavra-chave que nos permite com ela devassar o segredo e o elo misterioso de sua cadeia criadora é a mesma da obra de Georges Bernanos: A palavra 'Infância'." (CRUZ, 1958CRUZ, Luiz Santa. Jorge de Lima. Rio de Janeiro: Agir, 1997 (Coleção Nossos Clássicos, n. 26. 5 ed.).: 20). Para Santa Cruz, é através da infância que o poeta absorve as várias temáticas tratadas em sua poesia, como são exemplares os aspectos social e religioso.

Invenção de Orfeu também apresentará, em sua concepção, o elemento infantil, porém essa temática será compreendida de maneira mais angustiante e mítica, revelando-se mais imaginativa. É por meio da memória da infância do poeta doente (pela asma) que ressurgem no "épico" limiano, os "mitos angustiantes", os "pavores noturnos" sempre provenientes do nordeste brasileiro. Também é saliente na poesia limiana outros elementos referentes à memória afetiva do poeta, como são representativos o candeeiro belga e as vacas holandesas, vacas estas que, segundo Cruz, o poeta "amansaria em Invenção de Orfeu, comparando as suas tetas aos seios maternais e acolhedores de sua própria 'mãe preta' nordestina" (CRUZ, 1997CRUZ, Luiz Santa. Jorge de Lima. Rio de Janeiro: Agir, 1997 (Coleção Nossos Clássicos, n. 26. 5 ed.).: 30). Soma-se a esta imagem o "cavalo todo feito de chamas" do soneto II de "As aparições", o Apocalipse de São João, aflorado no mundo angustiante e apocalíptico da meninice do poeta (CRUZ, 1997CRUZ, Luiz Santa. Jorge de Lima. Rio de Janeiro: Agir, 1997 (Coleção Nossos Clássicos, n. 26. 5 ed.).: 30-31). A perda da infância associada ao tema da Queda do paraíso original pode ser considerada outro elemento importante da obra do poeta. O motivo da Queda será constante na obra de Jorge de Lima, com destaque para sua fase religiosa, e de modo singular, em Invenção de Orfeu.

O gosto pelos saraus literários quando criança, suas experiências "sobrenaturais", imaginativas e suas leituras, desde os episódios de Inês de Castro de Camões e de Casimiro de Abreu, já prenunciavam a tendência do poeta para o infantil e o quanto essa época marcaria sua poesia. Os versos de Casimiro, decorados e recitados em sala de aula pelo poeta, revelam bem o que a infância significava para ele:

Oh! dias de minha infância! Oh! meu céu de primavera! Que doce a vida não era Nessa risonha manhã!

A memória da infância aparece, finalmente, não só na obra de Jorge de Lima, mas expande-se para um contexto maior, o do modernismo.BOSI, Alfredo. O ser e o tempo na poesia. São Paulo: Cultrix, 1977.De acordo com Homero de Senna (SENNA, 1996SENNA, Homero. O mistério poético. In: República das letras: entrevistas com vinte grandes escritores brasileiros. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996.: 136-137), essa expansão se dá através da influência de Marcel Proust. Jorge de Lima teria sido um dos primeiros leitores de Proust no Brasil, o que o marcara intimamente, como comprova a sua relação com a memória afetiva de sua infância, como também demonstra a desarticulação do tempo linear em sua poesia.

São inúmeros os poemas que exploram a temática infantil na obra de Jorge de Lima: "O mundo do menino impossível", "Meninice", "Os cavalinhos", "Volta à casa paterna", "O banho das negras", "O grade circo místico" etc. são exemplares nesse sentido. Além dessa expressiva quantidade de poemas dedicados ao tema da infância e suas associações, Jorge de Lima também se dedicou à literatura infantil com dois livros, Vida de São Francisco de Assis e Aventuras de Malasarte, este último traduzido para o alemão com parceria de seu irmão, Mateus Lima.

Para estudarmos a presença da infância em Invenção de Orfeu (poema que reúne as experiências do poeta desde sua meninice e os elementos [extratos] de sua cultura), propomos comentar alguns poemas de seu Canto Primeiro, suficientes para demonstrar que Jorge de Lima valorizará a infância contrapondo-a ao mundo do adulto ("de bigodes" e de "pincenês") que vive em um momento de conturbação, violência e escravidão ("e há presídios e há tropas: Não há paz./E há desertos de pedras e umas savanas./População: Uns dez bilhões de escravos,").

Como já está expresso no Canto Primeiro, estância VII, o mundo adulto é visto como opressor do ideal verdadeiro e natural da infância, do sonho, da fantasia, da inocência e da virtude, assim como o próprio mundo feminino. Nesse sentido, através de uma linguagem simbólica e que se utiliza de "imagens fortes" numa espécie de pressentimento (o que associa o poeta ao vidente) ele prevê o nascimento de algo poderoso e renovador, como sugere a imagem do ovo que carrega em si o significado do nascimento de algo novo, que se contrapõe ao mundo adulto e opressor. Isso é revelado nos versos: "Todavia esse pêlo/todavia raspemos esse pêlo que há na face de todas as criaturas,/e os bigodes que afogam as crianças,/e os véus fixos nos olhos das mulheres."

As estradas pertencem aos vizinhos, as minas aos feudais, domina o centro o famoso vulcão, e tudo já pertenceu a algum céu e há gelo e há ouro e há presídios e há tropas: Não há paz. E há desertos de pedras e umas savanas. População: Uns dez bilhões de escravos, e seu descobridor entre os antípodas, entre as febres, daí jorra a montanha com seus mares em torno de outros climas, E eis os climas por dentro de outros climas e no âmago dos âmagos - esse ovo, e esse silêncio trágico nesse ovo, todavia raspemos esse pêlo que há na face de todas as criaturas, e os bigodes que afogam as crianças, e os véus fixos nos olhos das mulheres.

As estâncias XV, XVI e XVII se fundem e se constroem seguindo um fio condutor que nos remete às lembranças da infância passada em meio ao ambiente nordestino e cultural negro (com as mães pretas, suas histórias, crendices e mistérios). Estes sonetos apresentam o aparecimento da Ilha no imaginário do poeta-herói que se constituirá a partir das reminiscências de suas lembranças.

No soneto XV, temos a presença de uma das figuras mais significativas da cultura negra: a mãe preta, que embala o menino após alimentá-lo com seu leite e conta suas histórias tristes (por causa do banzo) guardadas na memória do poeta.

A garupa da vaca era palustre e bela, uma penugem havia em seu queixo formoso; e na fronte lunada onde ardia uma estrela pairava um pensamento em constante repouso. Esta a imagem da vaca, a mais pura e singela que do fundo do sonho eu às vezes esposo e confunde-se à noite à outra imagem daquela que ama me amamentou e jaz no último pouso. Escuto-lhe o mugido - era o meu acalanto, e seu olhar tão doce inda sinto no meu: o seio e o ubre natais irrigam-me em seus veios. Confundo-os nessa ganga informe que é meu canto: semblante e leite, a vaca e a mulher que me deu o leite e a suavidade a manar de dois seios.

É através da memória do tempo da infância que o poeta busca um lugar onde espera reencontrar a harmonia perdida com a passagem da idade infantil, remetendo-nos também à ideia do paraíso perdido após a Queda do homem. Nessa perspectiva, vemos que o herói do poema pretende reconquistar a perfeição, retomando o Jardim do Éden, onde o homem vivia de modo pleno e harmonioso.

Podemos perceber no ritmo do poema a imitação da cadência que o poeta menino ouvia quando era acalentado por sua mãe preta, por meio das rimas dos quartetos delongados (bela, formoso, estrela, repouso, singela, esposo, daquela, pouso) como quem embala o sono de uma criança.

O soneto também mostra o sentimento de carinho, de amabilidade e magia no poema, como sugerem as caracterizações referentes à mãe preta: "bela", "formoso", "pura" e "singela". É interessante também notar a associação feita, no poema, entre a vaca e a mãe preta, o que parece representar uma típica comparação praticada pelas crianças, que comumente associam "objetos" diferentes a funções semelhantes. Dessa forma, a mãe preta amamenta (fornece leite) como a vaca também amamenta (fornece leite), assim o poema parece apresentar esse tipo da relação feita pelas crianças trazendo para ele a linguagem infantil. Desse modo, a linguagem poética e a linguagem da infância assemelham-se e estabelecem uma relação de proximidade, como a apontada por Vico: as crianças chamam todas as coisas que se assemelham ou se relacionam como as coisas que viram pela primeira vez, situação que no parecer do filósofo italiano é a "fonte natural dos caracteres poéticos", com os quais pensaram os povos primitivos. Nessa perspectiva, o poeta resgata em Invenção de Orfeu uma "linguagem primitiva", isto é, a linguagem da origem, trazendo para o seu poema a palavra "pura" antes mesmo de ser contaminada pelo uso corrente da linguagem cotidiana. É a perspectiva da criança que orienta a criação do poema e não a do adulto, pois o poeta resgata a linguagem própria da infância (primordial).

Outra característica importante pode ser apontada a partir do verso "Confundo-os nessa ganga informe que é meu canto:", que se refere ao poema como "informe" e que pode ser muito bem entendido como aquele sem forma determinada ou também aquele que atingiu formas variadas por meio das inúmeras formas poéticas na construção de Invenção de Orfeu. Essa multiplicidade equivale a uma nova forma, sobretudo quando se comparada a uma epopeia clássica. A poesia é, portanto, "coágulo" (promove a aglomeração de "partículas" [formas] por meio de dispersão em um ajuntamento maior) de toda substância humana, constituindo-se, assim, como um poema novo que busca abarcar a totalidade das coisas. O seu movimento de agregar coisas, nesse sentido, provém da força da origem que é metaforizada pelo "leite" e pela "vaca", situados nesse mundo de êxtase original. É o que também podemos ver no poema seguinte.

O soneto XVI prossegue explorando os elementos do poema anterior. O alimento proveniente da mãe preta ou da vaca (o leite) é fundamental para a formação da ilha do poeta, que representa claramente o espaço primordial buscado pelo herói-poeta na tentativa de recriar a harmonia do princípio dos tempos. Já nas duas primeiras estrofes do soneto, o poeta fornece os elementos da construção de seu poema-ilha: o leite (alimento proveniente da memória infantil), o imaginário e a fantasia (o sonho). É nessa ilha que vai surgir a "nova palavra", a partir da luta contra o tempo cronológico em que o homem tenta demarcar a sua efemeridade. É através da "nova palavra" que o poeta pretende restaurar a ordem paradisíaca perdida; como no evangelho cristão, esta "nova palavra" nos remete à "boa nova" deixada por Cristo aos homens. Dessa forma, o poeta associa-se a Cristo e tem a missão de inaugurar um novo mundo.

Em suma, a infância estará intrinsecamente relacionada ao sonho, à memória e também à própria elaboração do poema, estabelecendo, assim, o caráter metalinguístico característico de Invenção de Orfeu. É através da febre que surgem os pesadelos com imagens extraordinárias, até mesmo com a presença da morte.

Desse leite profundo emergido do sonho coagulou-se essa ilha e essa nuvem e esse rio e essa sombra bulindo e esse reino e esse pranto e essa dança contínua amortalhada e pia. Hoje brota uma flor, amanhã fonte oculta, e depois de amanhã, a memória sepulta aventuras e fins, relicários e estios; nasce a nova palavra em calendários frios. Descobrem-se o mercúrio e a febre e a ressonância e esses velosos pés e o pranto dessa vaca indo e vindo e nascendo em leite e morte e infância. E em cada passo surge serpentários de erros e uma face sutil que de repente estaca os meninos, os pés, os sonhos e os bezerros.

O soneto XVII encerra a sequência dos poemas anteriores mostrando o recomeço após a Queda. Desse modo, vemos que o poeta constrói seu poema principalmente a partir de sua memória. Isso fica bem claro quando ele diz "esbarro-me em mim mesmo". É interessante notar o papel fundamental que a memória apresenta neste poema e em tantos outros. É através dela que o poeta se liberta do tempo e se filia à eternidade. Somam-se a isso as horas passadas, o mundo conturbado e a metamorfose do poeta, que se transforma em ilha, ou seja, no próprio poema.

E esse rebanho de bezerros, cedo recomeça constante sua estrada. As horas moribundas já curvadas Deslizam nos ossuários. Tendo medo. Ó vida tão confusa e tão lidada, ó sombra tão compacta e tão rochedo, de mim que choro que é que resta? Nada e nada e nada mais do que antecedo. Antecedo-me, esbarro-me em mim mesmo. Filiei-me à eternidade sem querer, E agora vago como se vaga a esmo. Verto-me em ilha, vejo-me nascer, retiro dessa ilharga verdadeira a minha perdição por companheira.

O poeta também relacionará o tema da infância à sua biografia (estância XIX). Nesse sentido, ele, já adulto, relembra sua infância através dos retratos na parede, da casa de sua infância e de sua movimentação cotidiana, conseguindo apreender a essência do mundo inicial que o adulto guarda, da mesma forma que oferece ao leitor a tentativa de recuperação de sua identidade. Assim, o retorno à vivência do infantil através da imaginação traz de volta ao adulto os itinerários do menino, que revê personagens, lugares e experiências vividas. Esse procedimento ocorre não apenas em Invenção de Orfeu, mas em vários momentos da poesia de Jorge de Lima, como demonstram os exemplares poemas "Democracia", "Ancila negra", "Volta à casa paterna".

Mircea Eliade nos aponta o papel fundamental que a memória (a anamnesis) tem na libertação da obra no tempo:

o essencial é recordar todos os acontecimentos testemunhados no curso da duração temporal. Essa técnica relaciona-se, portanto, à concepção arcaica (...) a importância de se conhecer a origem e a história de uma coisa para podê-la dominá-la. Certamente, percorrer o tempo em direção contrária implica uma experiência que depende da memória pessoal, ao passo que o conhecimento da origem se reduz à apreensão de uma história primordial exemplar, de um mito. Mas as estruturas são homologáveis: trata-se sempre de recordar, detalhada e precisamente, o que separou no princípio e a partir de então. (ELIADE, 1998ELIADE, Mircea. Mito e realidade. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1998.: 83 - grifos do autor)

No sentido do pensamento mítico (e seu desenvolvimento ulterior) e comparando à história pregressa do poeta, o seu desejo de reencontrar a origem e sua aplicação em sua construção poética, Eliade acrescenta: "O conhecimento da origem confere uma espécie de domínio mágico sobre as coisas. Mas esse conhecimento abre igualmente o caminho para especulações sistemáticas sobre a origem e as estruturas do Mundo. (...) Aquele que é capaz recordar dispõe de uma força mágico-religiosa ainda mais preciosa do que aquele que conhece a origem das coisas." (ELIADE, 1998ELIADE, Mircea. Mito e realidade. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1998.: 83 - grifos do autor). O estudioso continua seu raciocínio anunciando que,

O "essencial", portanto, é atingido através de um prodigioso "voltar a trás": não mais um regressus obtido por meios rituais, mas efetuado por um esforço do pensamento. Nesse sentido, pode-se dizer que as primeiras especulações filosóficas derivam das mitologias: o pensamento sistemático esforça-se por identificar e compreender o "princípio absoluto" de que falam as cosmogonias, em desvendar o mistério da Criação do Mundo, em suma, o mistério do aparecimento do Ser. (ELIADE, 1998ELIADE, Mircea. Mito e realidade. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1998.:101 - grifos do autor)

Essa recorrência de lembranças do mundo infantil em Jorge de Lima é apontada por J. F. Carneiro como constituintes de uma "armadura poderosa que defendeu o poeta nesse mundo de adultos, nesse mundo que só é possível habitar porque nele ainda vivem os ecos de sua infância. E bastava a Jorge de Lima querer escutá-los, registrá-los de novo, uma, inúmeras vezes, para reencontrar a paz mesmo quando não encontrava a ilha" (CARNEIRO, 1958CARNEIRO, J. Fernando. Apresentação de Jorge de Lima. Rio de Janeiro: MEC, 1958.: 52-53). Diante dessa afirmativa, torna-se cada vez mais claro, na obra de Jorge de Lima, um desejo expresso de retorno à inocência, à pureza e ao tempo original. Em uma espécie de sonho com a existência primordial, o poeta se afasta do tempo presente devastado pela miséria do mundo adulto e luta sua "cruzada cristã", resistindo à senilidade e à rigidez na busca do reencontro com a alegria, a beleza, a inocência; enfim, tudo aquilo que a infância representa.

XIX

Todavia, vejamos, há meninos

nascidos, e há uns tantos moribundos

a olhar as mãos, e os dedos superfinos

das próprias mãos, não muito, mas imundas.

E agora penetramos: Camarinhas,

halls, salas e outras peças sem suores,

algumas sujidades tuas, minhas,

e vasos para mijos tão conforme.

Encolhem-se de pejo, ficam rubras,

atrás, dos reposteiros, doces lares

com cheiros de comidas e ossos-bucos

e alguns mirrados numas tutelares.

Gozemos as visitas dos sofás,

perplexas, muitas vezes, com os tremores

de terra ou sufocada pelo gás,

senão por transcendentes cobertores.

Senão pela memórias de família,

pelos vultos das pátrias, (ó que tempos!)

pelos falsos demônios em vigília

mais cavilosos que os genuínos demos.

Senão por mim, atrás do pincenê,

do pensamento dito, do retrato

da parede escabrosa. (Quem me vê,

vê janelas de infância num sobrado).

E essa indelével rosa e cabra-cegas,

e as madornas gamosas e as mucamas

e essa rede escondida em que carregas

a dissimulação te acalentando.

Ó casas de tranqüilos terremotos,

primaveras, velhices, lenocínios,

desarrimos presentes e remotos,

relativos, senão bons destinos.

Nessas tardes calmosas tão pudentas

com os rostos maquilados e precatórios,

concordamos, amigo, que dos tempos

as tardes são os tempos e os cenários.

O olhar lançado ao passado é o olhar adulto que visualiza a infância perdida. Assim, pode-se ver no poema uma divisão temporal de dois modos: o primeiro é marcado pelo olhar e/ou pelo julgamento que o sujeito lírico direciona ao passado: "Senão por mim, atrás do pincenê,/e pensamento dito, do retrato/da parede escabrosa (...)"; no segundo, a infância está marcada por sua presença constante no poeta, mesmo já adulto: "(...) (Quem me vê,/vê janelas de infância num sobrado)". Nesta mesma estrofe, vemos que o poeta, para alcançar o cerne do mundo primeiro representado pela infância, tempo que todo homem carrega consigo em sua existência, se utilizará de um artifício, de uma espécie de abertura ("janelas") que leva às paisagens de sua meninice. O poeta é nostálgico em relação à sua infância, como se vê pela presença, na sétima estrofe, de elementos provenientes de suas reminiscências infantis: "rosa", "cabra-cegas", "madornas gamosas", "mucamas", "rede". E, finalmente, este período resume-se de maneira positiva nas oitava e nona estrofes.

Na estância XXIV, vemos que a nave (templo, poema) construída pelo "engenheiro noturno" terá como base a infância. Esse dado se revela de grande importância, pois é ela (a base) que dá sustentação e mantém firme qualquer edificação, sem a qual não há a possibilidade de se começar a edificar qualquer coisa. É sugestivo que este empreendimento de construção de uma nave (ou templo) seja feito pelo "engenheiro noturno" (o poeta) que passa por escárnio, zombaria ou chacota. Isso demonstra bem o lugar que o poeta (o "sonhador") ocupa na sociedade. Mas é ele quem tem a tarefa de construir a embarcação (o poema), pois é ele que tem a habilidade de criar através do sonho e da imaginação. Seu empreendimento é considerado "penoso" porque exigirá muito dele, terá que trabalhar muito para conseguir realizar sua obra. Mas ele terá o auxílio precioso da imaginação provinda do mundo fabuloso infantil, como bem demonstram a referência biográfica do poeta menino nos saraus infantis com as leituras dos irmãos Grimm e suas histórias imaginativas. É também sintomático o verso "'Feliz de quem ainda em cera se confina'..." que demonstra bem o desejo, empreendido no poema, de rompimento com a fruição temporal e de encontrar a eternidade. Acreditamos que a última estrofe dessa estância pode representar bem a importância que as crianças e seu mundo imaginativo têm no poema de Jorge de Lima. É como se fosse uma espécie de base que sustenta sua poesia; e, nesse sentido, é o que possibilita sua criação, fornecendo, em grande parte, o elemento imaginativo de sua poesia.

Abrigado por trás de armaduras e esgares, o engenheiro noturno afinal aportou ao nordeste dessa ilha e construí-lhe as naves. Penoso empreendimento o invento desse cais e desse labirinto e desses arraias. Para britar a pedra escreveram-se hinos prontos para marchar ou morrer sem perdão. Numeraram-se os chãos cada qual com seus ossos, reacendeu-se a colmeia, atiçou-se o pavio. Lemos contos de Grimm, colamos mariposas nesse jato de luz em frente às velhas tias; e sob esse luar conversamos baixinho com esse pranto casual que os velhos textos têm. O pródigo engenheiro acendeu seu cachimbo e falou-nos depois de flores canibais que sorvem qualquer ser com seus polens de urânio. "Feliz de quem ainda em cera se confina"... disse-nos afinal o engenheiro noturno. Em seguida sorriu. Era perito e bom. Vimo-lo sempre em sonho a perfurar os túneis forrados a papel de cópias e memórias. Era a carne profunda e embalar-nos nos braços e esse vasto suspiro a se perder no mundo; era a marca dorsal já tatuada em porvires desses castos porões de prazeres reptantes. Inaugurou-se a festa, os impulsos surgiram, e em calmaria fez-se a colheita do sal. Houve proibições em frente às velhas tias de sobrolho tardio e ternuras intactas. Alguma loura irmã dentro de nós dormiu, abriu-se em nosso tecto uma abóbada escura circunstancial, madura em seu silêncio cúmplice. Essa perturbação alcançou os meninos esculpidos ao pé das colunas do templo que desceram ao palco exibindo-se nus.

O elemento biográfico presente no poema revela-se de grande importância para a compreensão da obra de Jorge de Lima, pois é a partir dele que conseguimos apreender as inúmeras referências apresentadas em seus poemas e suas possíveis significações. Além de representar o ambiente emotivo e social que formou a personalidade do poeta e que, como demonstra toda a sua obra, o marcou profundamente, fornece mais dois fundamentais elementos constituintes de sua poesia: a memória e a religiosidade. É o que notamos na estância XXX.

Inda meninos, íamos com febre comer juntos o barro dessa encosta. Será talvez, por isso, que o homem goze ser a seu modo tão visionário e ébrio. E ainda goste de ter em si a terra com seu talude estanque e sua rosa, e esse incesto contínuo, e infância anosa, e céu chorando as vísceras que o cevam. Tudo isso é um abril desenterrado a ilha de se comer, ontem e agora, e vontade contínua de cavá-los, cavá-los com a maleita renovada. Ó terra que a si própria se devora! Ó pulsos galopantes, ó cavalos!

Portanto, vemos registrados neste soneto a geografia de onde se origina o poeta, acionada por sua memória infantil, a partir das imagens dos meninos pobres nordestinos comedores de barro. Em um sentido mais profundo, há o caráter metalinguístico do poema, representado pela ebriedade de que é feito, através da febre, do sonho, mas também da crítica social, que se evidencia na falta do que comer dos meninos pobres do Nordeste. Assim, a "devoração" da própria terra pode representar tanto o alimento de seus habitantes como, no sentido metafórico, fornecer referências simbólicas e culturais para a construção do poema. A imagem da "devoração" da terra, somada a muitas outras relativas ao aspecto histórico, geográfico e social do nordeste brasileiro (presente em vários de seus poemas) e a relação íntima do poeta com este ambiente (conforme preconizava o projeto estético modernista) parece demonstrar o desejo deste de recuperar, através do passado histórico e da tradição popular, a consciência da realidade brasileira em suas variadas dimensões.

O modernismo ofereceu ao poeta a possibilidade de abolir, em sua poética, os anacronismos da linguagem oficial, acrescentando a possibilidade de uma linguagem mais inventiva e também o descobrimento de um Brasil rejeitado pelo academicismo literário. É exemplar a conversão de Jorge de Lima ao modernismo com um dos seus poemas mais representativos, o que está diretamente relacionado ao mundo imaginário e infantil: "O mundo do menino impossível". Jorge de Lima, ao dissociar-se da poesia "passadista", não abandonou totalmente algumas de suas características formais, como provam mesmo a utilização, em Invenção de Orfeu, de variadas formas poéticas canônicas, o próprio léxico erudito e sua possível relação com o simbolismo (expresso na tentativa de busca da totalidade, na perícia linguística ou mesmo no grande número de musas mortas integrantes do poema). Mas é importante observar que foi o modernismo que lhe forneceu o arcabouço necessário para a superação desse academicismo estéril, fazendo com que ele alargasse seu campo de representação poética, seja de maneira formal ou conteudística, mesmo que na época em que Invenção de Orfeu fora escrito os procedimentos poéticos do modernismo já estivessem cristalizados na literatura brasileira, no sentido mesmo da proposição lançada por Mário de Andrade no início de seu "Prefácio interessantíssimo": de que a "arte não consegue reproduzir natureza, nem este é seu fim. Todos os grandes artistas, ora consciente (...) ora inconsciente (a grande maioria) foram deformadores da natureza". Essa situação levou Mário a acreditar que "o belo artístico será tanto mais artístico, tanto mais subjetivo quanto mais se afastar do natural" (ANDRADE, s/d: 25). Nesse momento, os artistas modernistas buscavam novos modos de procedimentos para a construção do texto literário, procedimentos estes contrários à descrição realista, ao acabamento, à cópia. Isso tudo somado ao desejo de privilegiar, em suas obras, a invenção como reação à aparência e ao equilíbrio. Nesse sentido, a poesia de Jorge de Lima representa bem os anseios do modernismo brasileiro, que, além das considerações acima, também desejava fazer uma literatura que levasse em conta os elementos culturais do povo brasileiro, sua realidade e sua língua.

Consciente do momento em que viveu e também por meio de suas próprias inquietações, o poeta funde sua preocupação social, como aponta sua poesia negra e nordestina - caracteristicamente modernista -, com a vanguarda literária, para, de uma só vez, executar, em Invenção de Orfeu, a sua concepção do fazer poético, reconhecidamente caracterizado pela utilização da memória infantil e do onirismo, fonte primeira de sua poesia. O que, pode-se dizer, retrata a busca do poeta de um tempo perdido e reencontrado no poema. Característica formal que encerra também o caráter utópico presente em Invenção de Orfeu.

É esse estado do sono conturbado (em febre), facilmente comparado aos acessos de asma do menino Jorge de Lima, que lhe propicia, através de sua memória retrabalhada, a criação de versos que entrelaçam realidade e fantasia. Assim, temos no fragmento da estância XXXVI versos modelares:

As nossas mães seguram-nos os pulsos temos febre e avistamos coisas ou ouvimos coisas. Já começa o mundo. Descem memória nos constantes olhos; é bom não ser-se logo deslumbrado nem fiel aos solilóquio encantados nem às visões que vêm nos acordar.

Em grande parte da obra de Jorge de Lima, o vemos resgatar personagens, ambientes e cenas da infância, que estruturam não só sua vida, mas também sua obra. Numa espécie de epifania, a memória do poeta mostra o que há de mais íntimo e profundo e nunca esquecido de sua vivência infantil. Essas lembranças pertencem tanto ao universo mágico e mítico quanto à sua vivência real. Desse modo, o poeta constantemente acena ao passado, distante de sua realidade adulta, de modo que o vivido e o imaginário infantil é reatualizado, materializando-se no poema. Nesse sentido, a criança está constantemente presente no poeta, fazendo com que a emoção infantil não se perca com o passar do tempo, mas se identifique com a própria emoção poética. Portanto, podemos dizer que o poeta busca resgatar um passado vivo que permanece atuante no presente, de forma intensa, permitindo que ele resgate um mundo perdido, capaz de reorientar o tempo presente.

Como pudemos notar, na poética de Jorge de Lima, a infância e a poesia encarnam um poder transformador, como se possuíssem a capacidade mágica de mudar o mundo. Na verdade, Invenção de Orfeu parece mesmo assegurar a magia dessa junção, transformando o mundo presente em sonho, seja por meio do lúdico, seja através do encantamento, elementos próprios do mundo infantil e do poético. Jorge de Lima leva a seu poema o menino que existe nele, já que seu poema apresenta toda a bagagem cultural adquirida na infância do escritor, somada, principalmente, ao seu caráter imaginativo próprio a sua criação. Invenção de Orfeu é uma espécie de tentativa de retomada de um paraíso perdido, diverso do mundo adulto, que se revela ao poeta por meio do retrato de uma realidade caracterizada pela intolerância e pela desarmonia entre os homens. O poeta dá um testemunho da vida moderna e, opondo-se a ela, procura no mundo da infância uma resposta a esse presente, na tentativa de resgatar os princípios básicos de união e fraternidade, numa busca de libertação e de retomada das raízes tanto poéticas quanto existenciais. Desse modo, a poesia se dá como meio de preservação, no adulto, da eterna infância e de seu olhar sobre o mundo, sempre renovador. Em resumo, o poeta faz renascer em sua poesia, por meio da imaginação infantil e seu poder mágico - através do lúdico e do encantatório -, um novo mundo, uma espécie de gênesis sempre recriado; a cada criação e/ou invenção, o poeta transfigura a realidade, renovando-a em seu poema.

Referências bibliográficas

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  • Uma das características de grande importância na poesia moderna se refere a seu caráter de evasão. O avanço técnico conseguido nos grandes centros urbanos, ao mesmo tempo que impressionam os poetas, causa-lhes também repulsa. E é assim que a lírica vai representar o seu tempo. Para Hugo Friedrich, esta é uma situação de difícil decifração e que leva os poetas a um processo que vai da evasão ao irreal, à fantasia, e, consequentemente, a um hermetismo na linguagem. Assim, o crítico afirma que "a evasão ao irreal, a fantasia que começa muito além do normal, o sentido de mistério deliberado, o hermetismo da linguagem: tudo pode ser talvez concebido como uma tentativa da alma moderna, em meio a uma época tecnizada, imperializada, comercializada, de conservar para si a liberdade e para o mundo maravilhoso, que nada tem a ver com as 'maravilhas da ciência'" (FRIEDRICH, 1991:163).
  • 2
    Foi com a estética modernista que a arte poética pôde se utilizar de maneira mais autêntica da temática da infância na literatura brasileira. Temática impossível de ser utilizada na época anterior, que preconizava a beleza através da representação sublime, das palavras pretensamente poéticas e das temáticas de cunho elevado, como é característico da poética parnasiana. Um exemplo claro disso é a possibilidade que os poetas têm de utilizar a linguagem coloquial, valorizar a cultura regional brasileira que os leva inevitavelmente a se remeterem às suas infâncias, vividas fora dos centros urbanos brasileiros, e consequentemente valorizar suas culturas primitivas, ligadas ao folclore e à tradição popular brasileira. Nesse momento, a infância está verdadeiramente presente em nossa literatura, como podemos notar, por exemplo, em várias obras de escritores modernistas, como as dos poetas Oswald de Andrade, Cecília Meireles, Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, como também em romancistas como José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Jorge Amado, entre outros.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Dec 2015

Histórico

  • Recebido
    15 Abr 2015
  • Aceito
    20 Maio 2015
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