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Editorial

Pensando a contemporaneidade no sentido proposto por Giorgio Agamben,1 1 Referimo-nos ao texto “Che cos’è il contemporaneo?”, traduzido ao português e incluído na edição brasileira do livro O que é o contemporâneo? e outros ensaios (Chapecó: Argos, 2009). como uma singular relação com nosso próprio tempo, que implica adesão, mas também distância e certo anacronismo no olhar; um modo de estar no tempo presente, mas interpelando-o, transformando-o e colocando-o permanentemente em relação com outros tempos, surge a pergunta: como a cultura latino-americana contemporânea vivencia e reflete hoje o contemporâneo? Este número de Alea reúne um conjunto de artigos que, de diversas maneiras, circulam em torno dessa pergunta.

Abrem o volume dois textos de feição teórica, com evidentes pontos de contato no que tange à percepção transnacional dos processos literários, à margem de qualquer concepção disciplinante de base binária e falsamente homogeneizadora da cultura: Eduardo Coutinho estuda o impacto de um novo comparatismo literário na reflexão teórico-crítica latino-americana dos séculos XX e XXI e Ottmar Ette argumenta como os Estudos de Transárea constituem hoje um paradigma científico de inestimável valor para o estudo da cultura em um mundo em permanente movimento.

Em uma direção próxima, mas já no âmbito do exercício crítico, Caroline Rolle apresenta as bases de uma pesquisa que integra poéticas latino-americanas contemporâneas produzidas na expansão dos limites da linguagem, do espaço, dos gêneros e dos suportes mais convencionais da arte e da literatura, colocando sua análise transmedial em função do estudo de diferentes imaginários urbanos latino-americanos.

Na sequência, Ana Cecilia Olmos e Karl Erik Schøllhammer exploram modos contemporâneos de pensar o regime da representação. Olmos, apostando em uma hermenêutica da singularidade estética para pensar a comunidade literária, mergulha nas escritas ilegíveis de Héctor Libertella e Diamela Eltit, verdadeiras máquinas corrosivas da linguagem, que desestabilizam os sentidos cristalizados do literário, renunciam à nitidez do comunicável e dinamitam os tradicionais mandatos de representação do latino-americano; Schøllhammer, a partir da oportuna leitura de Luiz Ruffato, discute as novas possibilidades de um realismo que, à margem das formas tradicionais de representação literária e do modelo moderno de autonomia literária, incorpora segmentos do “real” à própria materialidade textual.

Já o texto de Valentín Díaz segue o traço de um original movimento intelectual de mão dupla, o impacto do pensamento de Jacques Lacan na elaboração da poética neobarroca de Severo Sarduy e os efeitos desta no pensamento de Lacan, lendo nessa trama as chaves de uma profunda transformação do pensamento a partir da segunda metade do século XX. Diogo de Hollanda, por sua vez, caracteriza a tensão estética da violência na literatura do narcotráfico, focando seu estudo na obra do escritor colombiano Juan Gabriel Vásquez e na maneira como o romance El ruído de las cosas al caer restitui, na ficção, uma experiência que pode ser esvaziada pela banalização midiática sem compromisso com a memória.

O artigo de Pablo Rocca traz para o debate contemporâneo temas da maior relevância na historiografia literária latino-americana: a relação conflituosa de expressões literárias de base oral com o cânone e o lugar da poesia popular na instituição letrada, ancorando sua reflexão no estudo de um significativo corpus poético argentino e uruguaio. Partindo de uma perspectiva comparada, Ivette Sánchez explora o tema do mercado das artes visuais e da distribuição do livro e da literatura na contemporaneidade latino-americana e Markus Alexander Lenz aproxima a produção poética de dois escritores chilenos que, à primeira vista, não sugerem pontos em comum, mas compartilham afinidades profundas na compreensão da função da poesia na contemporaneidade: Nicanor Parra e Roberto Bolaño.

Encerrando a seção, Gesine Müller estuda a mudança de paradigmas no romance latino-americano dos últimos cinquenta anos, com a crescente substituição do romance total pelo romance fragmentado, e Max Hidalgo acompanha o percurso intelectual de Leyla Perrone-Moisés, analisando diacronicamente as formas em que o pensamento de Roland Barthes incide na reflexão da brasileira em torno da crítica e da literatura.

Fecham o número da revista uma resenha de Adrian Fanjul sobre um projeto editorial recentemente surgido na cidade de São Paulo, o Malha Fina Cartonera, trabalho que se soma à produção de editoras cartoneras latino-americanas, e a tradução de Ary Pimentel para uma seleção de textos da antologia poética Todo parecía organizada por Jesús Barquet e Virgilio López Lemus em 2015, que reúne uma preciosa mostra da poesia cubana contemporânea de tema homoerótico e homoafetivo.

Elena Palmero González e Ottmar Ette

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    Referimo-nos ao texto “Che cos’è il contemporaneo?”, traduzido ao português e incluído na edição brasileira do livro O que é o contemporâneo? e outros ensaios (Chapecó: Argos, 2009).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2016
Programa de Pos-Graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras -UFRJ Av. Horácio Macedo, 2151, Cidade Universitária, CEP 21941-97 - Rio de Janeiro RJ Brasil , - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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