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O trem e os andrajos

The train and the rags

Resumo

Este trabalho é parte dos esforços de revisão da permanência da tradição no modernismo brasileiro e, mais especificamente, na poesia de Carlos Drummond de Andrade. Para tanto, recorreremos à correspondência do autor e analisaremos um poema de Alguma poesia, “Sabará”. O recorte justifica-se por esse poema nos permitir compreender as primeiras reflexões do autor sobre o patrimônio nacional quando do surgimento de sua obra moderna. Já aí se revela uma especificidade do poeta no que se refere ao tema: o gozo da destruição, que se tornaria fundamental na obra drummondiana, estende-se para o prazer com a contemplação dos andrajos da cidade colonial. Entre a tradição e sua ruína, a escrita de Carlos Drummond de Andrade realiza uma leitura original da história da modernização brasileira. Permite, pois, ao crítico iluminar as relações entre modernismo brasileiro e a escrita da história do Brasil.

Palavras-chave:
Patrimônio colonial; modernismo brasileiro; vanguardas; Carlos Drummond de Andrade

Abstract

This work is part of the efforts to review the permanence of tradition in brazilian modernism and more specifically in the poetry of Carlos Drummond de Andrade. To do so, we will refer to the author’s correspondence and analyze a poem, “Sabará”, of the series “Lanterna mágica”, of Alguma poesia. Our choice is justified by the fact that this poem enables us to comprehend the first records of the author's concern with the patrimony at a moment when his modern work was starting to be created. It leads us, then, to wonder the constitution of patrimony as writing, and in particular the fruition for destruction which would become essential in the work of Carlos Drummond de Andrade, is already revealed then.

Keywords:
Colonial patrimony; brazilian modernism; vanguards; Carlos Drummond de Andrade

Resumen

Este trabajo participa de la revisión de la permanencia de la tradición en el modernismo brasileño y más específicamente en la poesía de Carlos Drummond de Andrade. Para este propósito, utilizamos la correspondencia del autor y analizamos un poema de Alguma poesia, "Sabará", de la serie "Lanterna mágica". El corte se justifica por este poema nos permitir comprender los primeros registros de la preocupación del autor con el patrimonio nacional durante el desarrollo de su obra moderna. Ya se revela la constitución del patrimonio como escritura y, en particular, el disfrute de la destrucción que se convertiría en tema fundamental en la obra drummondiana. Entre la tradición y su ruina, la escritura urbana de Carlos Drummond de Andrade realiza una lectura original de la historia de la modernización de Brasil.

Palabras claves:
Patrimonio colonial; modernismo brasileño; vanguardias; Carlos Drummond de Andrade

Há quase trinta anos, Silviano Santiago publicava “A permanência do discurso da tradição no modernismo brasileiro”, ensaio fundamental para que não se reduzam as vanguardas do país ao imperativo do novo. O crítico demonstra aí que “não precisamos ir à geração de 45 para ver a presença nítida de um discurso de restauração do passado dentro do modernismo.” (2002, p. 123SANTIAGO, Silviano. A permanência do discurso da tradição no modernismo. Nas malhas da letra. Rio de Janeiro: Rocco , 2002, p. 123-124.) Após tantos anos, ainda é possível desdobrar os fios tecidos por essa reflexão. É nosso objetivo fazê-lo, ao estender à poesia de Carlos Drummond de Andrade a proposta lançada por Silviano Santiago. Com efeito, como defendido pelo crítico, tampouco precisamos recorrer aos livros publicados pelo poeta nos anos 1950 para observar a permanência da tradição na lírica drummondiana.1 1 O tema tem sido alvo das mais instigantes análises da recente fortuna crítica do autor, conforme atesta a leitura de Drummond: da Rosa do Povo à rosa das trevas, de Vagner Camilo (2001), e Razão da recusa, de Betina Bischof (2005). Desde o primeiro volume de poemas escritos por Drummond, Alguma poesia, estabelece-se o embate entre a ruptura e a preservação, a modernização e a permanência, a urbe e a província. Um dos poemas que torna mais evidente essa tensão é “Sabará”, objeto deste ensaio.

Esse texto é um dos mais instigantes quando pretendemos compreender a aproximação de Carlos Drummond de Andrade às vanguardas do início do século XX. Ele foi um dos escolhidos pelo poeta para compor sua participação no “Mês modernista”, seção do jornal A noite cedida de dezembro de 1925 a janeiro de 1926 a nossos vanguardistas. O “Mês” deveria revelar para o país a variedade da nova produção poética e a difusão do movimento por diferentes estados brasileiros.2 2 A análise da importância do “Mês modernista” para o movimento é feita por Eucanaã Ferraz em sua “Apresentação” a Alguma poesia: o livro em seu tempo: “Além de o sortimento prestar-se para a exibição dos dispositivos modernistas de escrita, servia, estrategicamente, para colocar em cena um certo nivelamento, que, no fim das contas, imprimiria um forte caráter de grupo àqueles escritores de São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Ainda que Mário nunca tenha se pronunciado quanto a isso, parece claro o seu intuito, nesse momento, de dar a ver uma abrangência minimamente nacional para o Modernismo”. (FERRAZ, 2010, p. 28) Considerando-se que a proposta do jornal era intitular como “Mês futurista” a seção cedida a nossos intelectuais, a escolha de Carlos Drummond de Andrade se revela ainda mais dissonante. Em 21 de dezembro de 1925, junto à “Nota social”, também incluído em Alguma poesia, “Sabará” divulga uma intrincada composição dos signos da urbanidade moderna e colonial, à primeira vista em nada afim à proposta futurista a que se queria reduzir o nosso modernismo.

Contra a expectativa de uma arte radicalmente contraposta aos signos do passado, Carlos Drummond de Andrade apresenta a projeção cinematográfica de uma cidade colonial. Para compreender essa escolha, não se pode ignorar o gesto de recusa à pecha “futurista”, que o jovem escritor comungava com o amigo Mário de Andrade.3 3 A respeito da insistência de Viriato Correia, redator-chefe de A noite, em intitular a série de textos modernistas de “Mês futurista”, Drummond escreve em carta, de 20 de dezembro de 1925: “Mário, estou impressionadíssimo com a burrice do Viriato. Ele diz que não compreende! Pensei que ele não gostasse, que fosse franco: não, diz que não compreende. Meu Deus, como é triste. E aquela história de papa, hein? // Depois do ‘Mês’ acabar, vou mandá-lo à merda, em carta registrada”. (ANDRADE; ANDRADE, 2002, p. 168) O termo “futurismo”, lançado por Marinetti e apropriado de forma pejorativa pelos detratores da renovação artística e intelectual brasileira, desagradou a parte de nossos intelectuais antes mesmo da Semana de Arte Moderna. A história do termo é traçada por Mário da Silva Brito em História do modernismo brasileiro, especialmente no capítulo “Ser ou não ser ‘futurista’”. Em 1925, a denominação já era rejeitada de forma ampla por nossos modernistas. Tampouco se deve obliterar a especificidade do modernismo mineiro, então em fase de consolidação. Um de seus traços principais é, segundo Fernando Correia Dias (2002DIAS, Fernando Correia. Gênese e expressão grupal do modernismo em Minas. In: ÁVILA, A. (org.). O modernismo. 2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2002., p. 171), o objetivo de repensar a tradição em vez de romper com ela. Esse propósito não foi exclusivo do modernismo mineiro: mesmo em sua fase heroica, o movimento modernista recuperou a tradição como componente fundamental da renovação da inteligência brasileira.4 4 A leitura de “A permanência do discurso da tradição no modernismo”, ensaio de Silviano Santiago já citado, guia as considerações aqui feitas a respeito da recuperação do passado colonial por nossos modernistas. A tese do crítico pode ser assim sintetizada: “A contradição entre futurismo, no sentido europeu da palavra, e modernismo, no sentido brasileiro, já existe em 1924, no momento mesmo em que os novos estão tentando impor uma estética da originalidade entre nós. A emergência do discurso histórico no modernismo visa a uma valorização do nacional em política e do primitivismo em arte”. (op. cit., p. 123-4) A viagem realizada em 1924 por um grupo de artistas de vanguarda às cidades históricas de Minas Gerais foi um dos passos fundamentais desse processo. Foi, além disso, essencial para a conformação do jovem Drummond ao movimento nacional. Graças à viagem guiada pelos paulistas, Carlos conheceu Mário, importante interlocutor ao longo de duas décadas e em especial durante a formação modernista do rapaz mineiro. Os paulistas, a partir da viagem de 1924, tornaram-se um grupo de referência para os jovens de Minas sem que isso representasse subserviência aos artistas mais velhos ou a ausência de diferenças.

Uma das fundamentais divergências pode ser lida a partir das distintas abordagens das cidades históricas mineiras por nossos modernistas. Oswald registrou as cidades históricas na série “Roteiro das Minas”, de Pau-Brasil, em que se lê um poema dedicado a Sabará, ao ouro com que a área ainda atrai os visitantes. Na mesma série de textos, em “Imutabilidade”, o escritor voltou a caracterizar a cidade colonial pelos signos da permanência. Em “Crônicas de Malazarte VIII”, Mário de Andrade lamentou as perdas sofridas em nosso patrimônio: “Que é da grandeza antiga? Essa dorme sono de cobra; enorme, tombando aos pedaços, apodrecida pelas goteiras, na Trindade, no Rosário, na casa de Tiradentes. É pena. Quanta obra de arte a estragar!” (ANDRADE, 1972ANDRADE, Mário de. Crônicas de Malazarte - VIII. In: BATISTA, M. et al. (sel.). Brasil: 1º tempo modernista - 1917/29. Documentação. São Paulo: Edusp/ IEB, 1972., p. 111-112). Diferentemente, em “Sabará”, de Drummond, a destruição e os signos do presente são o motivo para a manifestação eufórica do sujeito poético.

O escritor hesita em aí incluir “Sabará”, como a marcar a diferença do texto em relação ao conjunto. Nos manuscritos enviados a Mário de Andrade em 1926, enfeixados sob o título Minha terra tem palmeiras, “Sabará” tem autonomia e sequer segue a série dedicada ao registro de algumas cidades.5 5 A enumeração dos textos que compunham o conjunto enviado a Mário de Andrade por Drummond é apresentada por Eucanaã Ferraz em sua “Apresentação” a Alguma poesia: o livro em seu tempo, 2010, p. 36-37. Em “Lanterna mágica”, o poema é situado entre “Belo Horizonte” e “Caeté”. A inclusão dá novo sentido ao poema e àqueles que o cercam.

“Belo Horizonte” retrata uma cidade irmanada ao estado melancólico do sujeito poético:

Meus olhos têm melancolias,

minha boca tem rugas.

Velha cidade!

As árvores tão repetidas.

Debaixo de cada árvore faço minha cama,

em cada ramo dependuro meu paletó.

Lirismo.

Pelos jardins versailles

ingenuidade de velocípedes.

E o velho fraque

na casinha de alpendre com duas janelas dolorosas.

É possível demonstrar que a melancolia não indica apenas o estado do eu lírico. Essa condição patológica pode ser concebida também como um modo de produção poética. De acordo com Peter Bürger, a montagem, princípio básico da arte de vanguarda, é uma expressão da melancolia. O conceito, tomado a Walter Benjamin, é assim explicado por Bürger:

O que Benjamin designa aqui como melancolia é uma fixação no singular, que tem de permanecer insatisfatório porque não lhe corresponde nenhum dos conceitos gerais de conformação da realidade. O devotamento ao sempre singular é destituído de esperança porque está vinculado à consciência de que a realidade escapa ao indivíduo como realidade a ser conformada. (BÜRGER, 2008BÜRGER, Peter. Teoria da vanguarda. São Paulo: Cosac Naify, 2008., p. 145)

A certeza de que a realidade jamais será conformada pela arte determina a constituição da obra e a relação do artista de vanguarda com o material por ele utilizado. O alegorista isola elementos de seus contextos, privando-os de suas funções. Por isso, a obra é formada essencialmente por fragmentos, cujos sentidos serão recompostos pelo artista quando os justapuser na obra de arte. O pormenor que assim se isolou redunda em um emblema esvaziado. Justamente por reconhecer os materiais adotados como signos vazios, o vanguardista pode emprestar significados imprevisíveis aos materiais convocados no poema.

Em “Belo Horizonte”, significantes contrapostos ajudam a compor o retrato antigo da nova capital. Às marcas do envelhecimento do eu correspondem a velhice e a monotonia de Belo Horizonte. As árvores repetidas permitem a difusão do sujeito sobre a paisagem, que em movimento reverso espelha a geografia íntima do eu lírico. O paletó contraposto ao velho fraque corrobora a coexistência do moderno e do antigo. Desse embate, parece sair vitorioso no poema o registro do que na cidade resta obsoleto. Com efeito, até mesmo o velocípede - signo irônico da velocidade moderna - está envolto em um lirismo que destitui o poder de choque do maquinário no poema. O que resta moderno no texto são a montagem dos versos e, em especial, a sintaxe majoritariamente paratática utilizada para a projeção do estado lírico sobre os novos e antigos objetos da capital mineira.

O anacronismo comprova não se preservar o significado dos elementos que poderiam ajudar a compor o retrato das “ruas tão retas”, modernas, da capital representada de forma dura em poema publicado muitos anos depois por Carlos Drummond de Andrade.6 6 Referimo-nos a “Ruas”, de Boitempo, em que se lê: “Não sei andar na vastidão simétrica/ implacável.” afeto também leva ao apagamento do traçado retilíneo de Belo Horizonte. Não à toa a exclamação é o sinal que marca o surgimento da cidade como cenário do poema. Se - como quer Renato Cordeiro Gomes - o espaço urbano é um emaranhado de cristal e chama e de tendência geometrizante e emaranhado de existências, o estado patológico do sujeito poético pode representar o caráter político da escrita urbana. De fato, segundo o ensaísta, “romper com o racional é condição indispensável para a realização do humano e suas potencialidades inventivas” (GOMES, 2008GOMES, Renato Cordeiro. Todas as cidades, a cidade. 2ª ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2008., p. 26).

O título da série, “Lanterna mágica”, também indicia a deformação dos elementos projetados no maquinário constituído pelos poemas. O objeto antigo, um dos precursores do cinema, era responsável por espetáculos fantasmagóricos de luzes desenhadas sobre a penumbra. A convocação da máquina já defasada é sintomática de uma certa inserção da obra de Carlos Drummond de Andrade nos movimentos de vanguarda. O mesmo pode ser afirmado a respeito do registro irônico do signo “velocípede”, cuja sonoridade indica uma aceleração nunca realizada por pés infantis. Ao se valer de máquinas limitadas, obsoletas, o jovem escritor distancia-se da idolatria do maquinário, característica de muitos movimentos vanguardistas. Essa fé, que guardava componentes utópicos na fase heroica da renovação artística, acaba por se identificar com uma concepção tecnocrática da cultura e do poder. Ao contrário, nas mais consequentes obras modernas, o princípio racional da máquina se entretece com a destruição decorrente da tecnologia.7 7 Guiamo-nos pela análise feita por Eduardo Subirats no ensaio “A ambígua utopia do maquinismo”, de Da vanguarda ao pós-moderno. Segundo o autor, as utopias estéticas modernistas contemplam a salvação “em estreita e explícita vizinhança com visões do caos e da destruição” (p. 45). Nas melhores obras modernas, essa tensão entre a angústia e a ordenação racional do mundo não é apaziguada. É o caso de Carlos Drummond de Andrade, conforme fica claro na leitura do poema “Sabará”:

A dois passos da cidade importante

a cidadezinha está calada, entrevada.

(Atrás daquele morro, com vergonha do trem.)

Só as igrejas

só as torres pontudas das igrejas

não brincam de esconder.

O Rio das Velhas lambe as casas velhas,

casas encardidas onde há velhas nas janelas.

Ruas em pé

pé de moleque

PENSÃO DE JUAQUINA AGULHA

Quem não subir direito toma vaia...

Bem-feito!

Eu fico cá embaixo

maginando na ponte moderna - moderna por quê?

A água que corre

já viu o Borba.

Não a que corre,

mas a que não para nunca de correr.

Ai tempo!

Nem é bom pensar nessas coisas mortas, muito mortas.

Os séculos cheiram a mofo

e a história é cheia de teias de aranha.

Na água suja, barrenta, a canoa deixa um sulco logo apagado.

Quede os bandeirantes?

O Borba sumiu.

Dona Maria Pimenta morreu.

Mas tudo é inexoravelmente colonial:

bancos janelas fechaduras lampiões.

O casario alastra-se na cacunda dos morros,

rebanho dócil pastoreado por igrejas:

a do Carmo - que é toda de pedra,

a Matriz - que é toda de ouro.

Sabará veste com orgulho seus andrajos...

Faz muito bem, cidade teimosa!

Nem Siderúrgica nem Central nem roda manhosa de forde

sacode a modorra de Sabará-buçu.

Pernas morenas de lavadeiras,

tão musculosas que parece foi Aleijadinho que as esculpiu,

palpitam na água cansada.

O presente vem de mansinho

de repente dá um salto:

cartaz de cinema com fita americana.

E o trem bufando na ponte preta

é um bicho comendo as casas velhas.

O lugar de Sabará é periférico: está “a dois passos da cidade importante”. Essa outra cidade, que diminui o já pequeno sítio histórico, é a capital mineira, tema do poema anterior da série “Lanterna mágica”. O registro de Belo Horizonte obliquamente realizado no primeiro verso de “Sabará” dá a ver uma capital bastante distinta daquela projetada no texto anteriormente dedicado à cidade. Já não estamos diante de uma urbe afetivamente visada ou grafada com a coexistência de elementos anacrônicos. A capital é agora o espaço do maquinário moderno. Anacrônica é a “cidadezinha” colonial, que preserva marcas do passado em face da atualidade vinda da metrópole. Ainda aqui, há a coexistência de diferentes escritas urbanas, de diferentes camadas históricas no registro da cidade. Em “Sabará”, é possível perceber essas diversas temporalidades como parte de um embate entre o avanço e a paralisia, o tecnológico e o afetivo, o cristal e a chama. Na primeira estrofe, desenham-se os componentes desse encontro. O poema esclarecerá os resultados da contiguidade entre as cidades à primeira vista divergentes.

Sabará, “entrevada”, ganha características humanas. Além de ter seu corpo paralisado, a cidade está calada. Devido à notação dos seus “sinais de menos”, a vila colonial se torna um potencial sujeito da linguagem. Embora tenha perdido a fala, Sabará guarda ainda a possibilidade de expressar-se. A cidade não é passiva, mas um espaço anímico. Os objetos não se submetem inertes ao olhar dos visitantes. Há uma tensão entre a projeção alicerçada no eu e a imagem oferecida pela cidade. O jogo de esconde-esconde das casas torna-se, assim, indefinível: trata-se do desejo de exibição manifestado pela vila envergonhada ou de uma metáfora para as limitações do campo de visão do observador longínquo? A indecisão evidencia a proeminência assumida pelo espaço urbano de Sabará: a cidade colonial dá-se a ver na mesma medida em que é afetivamente registrada.

Na segunda estrofe, abandona-se o registro a distância. O novo enfoque torna possível conhecer o cenário e as personagens da cidade colonial. A repetição de “velhas” enfatiza a temporalidade partilhada pelos imóveis e seus habitantes. Além disso, em algumas versões de “Sabará”, foi resguardada a pronúncia regional e arcaizante “jinelas”,8 8 A informação é apresentada em nota de Gilberto Mendonça Telles na edição de 2002 da Poesia completa (op. cit., p.10). como a reforçar na materialidade do texto o convívio do antigo e do moderno, ambos linguística e tematicamente inscritos nos versos.

A estrofe é marcada por contraposições semânticas: a água do rio coexiste com a sujeira das casas, a velhice generalizada com a juventude subsistente ainda que como resíduo sonoro em “pé de moleque”. Os termos que compõem esse substantivo, surgido de um jogo de palavra-puxa-palavra, parecem ganhar autonomia e fazer avançar o sentido de molecagem para as relações entre os habitantes. Como em “Belo Horizonte”, temos um fazer poético constituído pela montagem de fragmentos esvaziados de seus conteúdos originais. Em “Sabará”, esse modo de composição permite surgirem aspectos das relações humanas mantidas na cidade. Une-se o traçado íngreme das ruas à vida ali entretida. Tal revelação do vivido culmina na exclamação “Bem-feito!”, cujo enunciador se estende por grupos de habitantes irmanados pela travessura. Dessa forma, o poema recupera uma cidade compreendida como objeto de uso, isto é: como espaço valorado, ao mesmo tempo fruto da experiência coletiva e fundamento da vivência individual. Assim realiza aquela que é, para Argan, a tarefa principal do urbanismo uma vez que se tenha elidido a subjetividade quando se projetam as cidades.9 9 Retomo a tese defendida por Argan nos ensaios que compõem a última parte do seu História da arte como história da cidade. Segundo o crítico: “[...] o urbanismo é a ciência da administração dos valores urbanos” (1993, p. 233). Administrar os valores da cidade implica considerar os interesses comuns, visto que o espaço urbano é ocupado por sujeitos reais, e não por indivíduos ideais. No entanto, as mudanças da relação do homem com a natureza levaram à elisão do sujeito, em uma crise cuja superação deve ser o fim de todo projeto urbano consequente. Também logra apropriar-se das propostas das vanguardas sem incorrer na supressão do sujeito, criticada por Subirats em sua análise dos movimentos de ruptura do século XX.10 10 Essa crítica é desenvolvida em Da vanguarda ao pós-moderno, já citado, e pode ser assim resumida: o aspecto beligerante fundamental à vanguarda – haja vista a origem militar do termo “avant-garde” – é ao mesmo tempo ruptura com o habitual e estímulo ao automatismo por meio da adesão ao choque, que caracteriza a percepção moderna. Ao apostar nas respostas inarticuladas, o vanguardismo suprime o sujeito e a “expressão artística se converte numa forma impositiva de comunicação” (1984, p. 52). Dessa forma, as vanguardas se fecham para a experiência subjetiva que poderia conferir um caráter criador para o futuro, alvo último da consciência histórica vanguardista. Desse modo, a escrita do poema revela uma importante dimensão política: trata-se de um registro urbano não apenas pelo tema, mas principalmente porque a linguagem permite a constituição de uma outra cidade. Em “Belo Horizonte” e em “Sabará”, o poeta-urbanista projeta um espaço humano em contraposição ao apagamento do “emaranhado da existência” nas ruas das cidades modernas.

A recuperação das relações humanas presentes na cidade mineira é emblemática, ainda, dos modos da escrita patrimonial drummondiana. O privilégio dado às cidades históricas poderia conduzir facilmente à ênfase nos bens materiais - igrejas, casarios - já anunciados na primeira estrofe. Tal valorização poderia mesmo responder à descoberta do tema pelo jovem Drummond nos anos 1920. Em carta de 1928 a Mário de Andrade, Carlos se espanta diante do péssimo estado de conservação do patrimônio em Minas Gerais: “Estou positivamente desolado com o que acaba de suceder. Você me pede fotografias, datas de construção e mais informes sobre igrejas mineiras e eu lhe contesto com quase nada, pois quase nada me arranjaram”. O resultado da pesquisa é desolador: “Acabei verificando que não havia nada, e que a tradição em Minas é uma blague (como eu já suspeitava, aliás)”. (ANDRADE; ANDRADE, 2002ANDRADE, Carlos Drummond de; ANDRADE, Mário. Carlos & Mário: correspondência de Carlos Drummond de Andrade e Mário de Andrade. Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi, 2002., p. 341)

Em face da destruição - adiante tematizada em “Sabará” -, poder-se-ia esperar um afã restaurador a guiar o poema sobre a cidade transformada devido à vizinhança com Belo Horizonte. A escrita poética se conceberia, então, como um gesto de salvaguarda dos monumentos uma vez que esta é recusada pelo Estado aos bens históricos nacionais. No entanto, essa grafia ainda não é observada nas estrofes inicias de “Sabará”. Ao contrário, o que se lê é o predomínio do humano e dos edifícios decadentes em detrimento do monumental. A escolha indicia uma certa maneira de conceber o patrimônio: em Carlos Drummond de Andrade, os bens históricos e artísticos estão submetidos a um processo de transformação e destruição.11 11 Leiam-se poemas como “Voo sobre as igrejas” (Brejo das Almas), “Estampas de Vila Rica” e “Morte das casas de Ouro Preto” (Claro enigma) ou “Ataíde à venda?” (Discurso de primavera e algumas sombras). Como a cidade e sua escrita, a grafia dos bens patrimoniais deve incorporar o caráter fugidio, em decomposição, da vida dos homens, das coisas, do mundo. Desse modo, a poesia se desvia da mais perigosa destruição segundo Henri-Pierre Jeudy: aquela que uniformiza e aplaina a cidade ao fazer capturar o cenário e os objetos urbanos pela “maquinaria patrimonial”:

O defeito da restauração é produzir uma equivalência estética da cidade, de sua história, de seus estratos orgânicos, e induzir uma convergência de olhares na direção de um único ponto de vista indiferenciado. Incapaz de sugerir uma distinção de signos arquitetônicos representativos de uma ou de outra época, a restauração parece restabelecer a ordem nos vestígios do passado, tornando-os mais visíveis, mais límpidos do que nunca.

(JEUDY, 2005JEUDY, Henri-Pierre. Espelho das cidades. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2005., p. 87-88)

Os poemas de Carlos Drummond de Andrade recusam a equivalência dos signos urbanos. Em primeira instância, a uniformidade se torna impossível devido à composição poética, que reúne elementos em choque. Em “Sabará”, é contraposto o que se decompôs ao recentemente construído por meio da coexistência do colonial - as igrejas e suas torres - e do contemporâneo - o trem e a vida presente dos sabarenses. Segundo Jeudy, semelhante registro da transformação pode estimular um exercício de liberdade, visto que a ausência dos objetos perdidos permite outros percursos, outras escritas graças à superposição da cidade antiga e da nova. Assim, amalgamam-se as imagens do presente ao passado em um movimento de reminiscência que não se confunde com a nostalgia. A restauração patrimonial, diferentemente, distingue as épocas, mascarando o jogo de superposição e de contágio desses mesmos signos ao tentar, nas palavras de Jeudy, “manter uma estética original e autêntica de uma época em que a representação pública é convocada para se fazer de eternidade” (Idem, p. 89).

Na poesia de Drummond, o anseio de eternidade não se subjuga aos marcos monumentais do poder, pois a projeção de uma ordem ideal vem corroída pela razão pragmática. Além disso, o eterno e a consequente paralisia dos jogos de signos urbanos são confrontados pela abertura ao acidental e à incerteza das mudanças. Ainda de acordo com Jeudy, tal irrupção do novo pode ser considerada um meio de a cidade resistir à uniformização. Em “Sabará”, o novo e a mudança se identificam ao vivido, às relações humanas, museografadas - porque móveis - pelo poema. Dessa forma, a poesia de Drummond denuncia antes um anseio de “preservação do social” do que uma tentativa de restauração dos monumentos do passado. De acordo com análise desenvolvida por Eucanaã Ferraz com base nas colocações de Jeudy:

Na poesia de Drummond há uma clara vontade de recuperar certas relações sociais, práticas simbólicas, um desejo de preservação do social que, no entanto, não se confunde com uma tentativa nostálgica de volta a uma cidade e um tempo ideais, nem com uma recusa de viver o presente na cidade do presente. Ao invés de tentar compor a imagem de um passado glorioso, essa poesia apropria-se dos traços de um passado recente, do ontem, do agora.

(FERRAZ, 1994, p. 119)

Em “Sabará”, a preservação do social se expande para o passado mais remoto. Na terceira estrofe, a história colonial é retomada, sempre em contraponto à modernidade. Nesse trecho, o sujeito poético afirma o lugar de onde observa, ou antes “magina”, a cidade. “Cá embaixo” pode designar tanto um espaço na cidade colonial como a fixidez do eu lírico que não saiu da capital mineira. No primeiro caso, o sujeito participa do grupo que não “subiu direito” as ruas íngremes nem os meios de transporte utilizados pelos visitantes em movimento pela cidade. Trata-se de uma manifestação da subjetividade gauche drummondiana. Além disso, a leitura permite ver no seio da vila colonial os signos da modernidade, que se adensarão no fim do poema. Na segunda hipótese, as águas antigas inscrevem o passado, corrente sob a modernidade da capital mineira. Há aí uma ironia, visto que a escrita do jovem Drummond participava de esforços de modernização da ainda provinciana Belo Horizonte.12 12 O objetivo de modernização da cidade pelos modernistas mineiros e em especial pelo jovem Drummond é analisado com rigor por Maria Zilda Ferreira Cury em Horizontes modernistas. A respeito do convívio entre o moderno e o tradicional em Belo Horizonte, a pesquisadora afirma: “Caráter ambíguo adquiria a questão da modernidade em Belo Horizonte. Na capital mineira, devido à sua especificidade de capital planejada, a ambiguidade se acentuava. A contradição – que é traço de valor apriorístico quando se fala em modernidade – passou a explicitar-se com veemência numa cidade que é moderna à força, mas que carrega consigo o peso da tradição trazida de Ouro Preto. Belo Horizonte traz como marca, notável até hoje, a oscilação entre o novo e o tradicional.” (1998, p. 47-48) Para tanto, era fundamental o registro do passadismo reinante. Em ambas as leituras, sobressai a coexistência do novo e do tradicional, confundidos por meio da projeção lírica do cenário e das relações humanas sabarenses.

O questionamento da modernidade da ponte - e, metonimicamente, das cidades mineiras - introduz um trecho de perquirição a respeito do tempo. O ensaio é entremeado pelo registro histórico: a água do Rio das Velhas foi testemunha das ações do bandeirante Borba Gato. No entanto, a transformação incessante sob a ação do tempo faz com que as águas já não sejam as mesmas, pois “não param nunca de correr”. O testemunho do rio é caduco. Portanto, nesta estrofe, como nas anteriores, há a contraposição de sentidos divergentes.

Na estrofe seguinte, em que se levam adiante as considerações acerca do tempo, novamente o choque move a montagem dos versos. Já não se trata mais da mobilidade de tudo, mas da morte e da paralisia decorrentes do envelhecimento. Ao bandeirante cuja existência se mantinha registrada nas águas do Rio, contrapõe-se um desbravador desaparecido graças ao devir histórico. Os sulcos nesse outro rio são “logo apagados”. Dessa forma, o passado - aparentemente intocável visto que pétreo - é registrado por um olhar moderno, que difunde a efemeridade e a contradição também para um tempo quando ainda se podiam conceber heróis eternos. O poema logra, assim, tirar “as teias de aranha” da história.

A quinta estrofe, introduzida pela conjunção “mas”, parece reverter o movimento de mobilidade e transformação da cidade, restaurada no primeiro verso. “Tudo é inexoravelmente colonial”, afirma o poema: desde o casario até os objetos (“bancos”, “janelas”, “fechaduras”, “lampiões”, aproximados pela ausência modernista de pontuação). As marcas do passado reúnem, assim, as divergências até então estabelecidas no poema. Ficam aparentemente apaziguadas as contradições. Contudo, as oposições persistem também nessa estrofe, como atesta o confronto entre as igrejas sabarenses, de pedra ou de ouro. Os dois últimos versos, além disso, revelam que os resíduos da história colonial tornaram-se “andrajos”. Os farrapos são uma nova manifestação do esgarçamento e da ruptura, tema e modo de composição de “Sabará”. Os versos são reveladores também da imaginação patrimonial drummondiana. Note-se que à reticência do penúltimo verso segue-se uma exclamação conotadora do páthos de quem apoia a cidade em processo inacabado de destruição. Os bens públicos que interessa à poesia preservar são compostos pelos resíduos da decomposição urbana. Sintetizada em “Sabará”, essa forma de conceber o patrimônio é analisada pelo poeta em crônica a respeito dessa cidade. Em “Viagem de Sabará”, escrita em 1928,13 13 A crônica, escrita em 1928, teve sua primeira publicação em uma edição d’O Jornal dedicada a Minas Gerais. O número, organizado por Rodrigo de Melo Franco, veio a público em 24 de junho de 1929. O texto foi posteriormente editado em Confissões de Minas, em 1944, e depois incorporado por Carlos Drummond de Andrade à sua Prosa seleta. lemos:

Há, é certo, os lugares históricos e os pseudo-históricos, que a memória vaidosa do povo indica ao viajante boquiaberto (todo viajante é boquiaberto por definição). Mas não são eles, em Sabará, que nos despertam a melhor emoção; a melhor emoção, a mais cheia de pudor e a mais profunda, é para certas formas de beleza que o homem e o tempo criaram e vão destruindo de parceria; certas igrejas que envelheceram caladas e orgulhosas no seu incomparável silêncio; certos becos; certas ruas tristes e tortas por onde ninguém passa, nem a saudade; este chafariz, com uma cruz e uma data, como um túmulo; a sucessão dos Passos; muros em ruína mesmo, sem literatura, inteiramente acabados; tudo que no passado não é nem epopeia nem romance nem anedota; o que é arte.

(ANDRADE, 2003ANDRADE, Carlos Drummond de. Prosa seleta. Rio de Janeiro: Nova Aguilar , 2003., p. 220)

A comparação do poema ao texto em prosa exigiria um ensaio mais longo. Por isso, nos atemos à passagem reproduzida acima, em que se explicita o laço entre construção e destruição nos signos patrimoniais quando concebidos por Carlos Drummond de Andrade. Em Sabará, não são os lugares históricos que despertam a maior emoção porque, devido à proximidade da capital, o peso do passado - leia-se, de um passado imobilizado - é menos marcante do que em outras cidades mineiras. A engenhosidade do argumento salta aos olhos: a vila colonial introduz melhor ao passado pois convive mais estreitamente com o presente ou, o que é o mesmo, porque está mais suscetível à transformação. Diante das ruínas, é possível pensar menos nos desbravadores de Minas Gerais do que na composição das fachadas, de que não está excluída a ação corrosiva do tempo. Sem as restrições a que se submete o viajante guiado pelas marcas de uma história petrificada, podem-se observar os antimonumentos listados no trecho da crônica acima reproduzido. O que é “inteiramente acabado” está simultaneamente destruído e completo. Por isso, não permite narrativas: epopeias, romances, anedotas. A ruína é uma imagem, mônada, do tempo. Realiza, portanto, a tarefa da literatura segundo o poeta em sua introdução a Confissões de Minas, em que publicou “Viagem de Sabará”:

Mas a verdade é que se a poesia é a linguagem de certos instantes, e sem dúvida os mais densos e importantes da existência, a prosa é a linguagem de todos os instantes, e há uma necessidade humana de que não somente se faça boa prosa como também de que nela se incorpore o tempo, e com isto se salve esse último.

(ANDRADE, 1944ANDRADE, Carlos Drummond de. Confissões de Minas. Rio de Janeiro: Americ, 1944.)

Poesia e prosa são artes do tempo, que devem incorporá-lo. A tarefa da prosa parece mais árdua, visto que a poesia - como linguagem de alguns instantes - traz em si as marcas do momento em que surge. A contraposição não importa tanto, mesmo porque foi frequentemente desfeita por Carlos Drummond de Andrade. Interessa-nos a proposição da tarefa da literatura como escrita de salvaguarda do tempo. A ruína, por reunir registros de diferentes momentos históricos, é o objeto ideal para essa preservação, pois permite que sejam produzidos novos significados para a matéria morta sobre a qual se erigem as cidades presentes. Os destroços movimentam o que resguardam. Além disso, segundo Jeudy, a ruína é o fundamento da imaginação histórica pois participa do devir das coisas:

Mesmo o edifício mais cuidado, mais preservado só ganha sentido se mostrar a imagem de seu duplo, a transparência secreta de sua ruína. E os signos identitários, os signos do reconhecimento cultural, contêm eles também o poder de sua própria desestruturação. A ruína não representa a degradação ou a perda de uma possível identificação, ela é fundadora do imaginário histórico. E em qualquer trabalho de restituição ou de reconstituição, uma execução ótima, sem falha, sem indeterminação, só faz reconduzir à ausência aterradora de um jogo entre a morte e a memória. Ao contrário, a ruína participa de um devir da coisa, do ser.

(JEUDY, 1990, p. 2-3JEUDY, Henri-Pierre. Memórias do social. Tradução de Márcia Cavalcanti. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990.)

A decomposição permite que se instaure o jogo entre a morte e a memória, motivo central da escrita patrimonial de Carlos Drummond de Andrade. Não à toa, os andrajos são euforicamente inscritos em “Sabará”: os versos armam uma engrenagem de contraposições semelhante à reunião de matérias distintas na ruína. Dessa forma, o poema assume sua contiguidade aos destroços e à patrimonialização complexa que dela pode surgir. Participando do devir, os andrajos podem dar a ver a cidade móvel que reside sob a cidade colonial - sob todas as cidades.

O presente novamente inscrito após o elogio à ruína não logra destituir a “modorra” do passado. Os andrajos persistem em meio aos signos do contemporâneo: usina, central, forde. Tampouco o novo pode apagar a atração do presente pelo passado, realizada por meio da comparação das pernas das lavadeiras às esculturas de Aleijadinho. Desse modo, o poema leva ao ápice, ao se aproximar do fim, o embate entre os signos do passado e do presente.

A instabilidade parece resolver-se nas duas últimas estrofes, em que o contemporâneo sobrepõe-se à escrita da história colonial: “o presente vem de mansinho/ de repente dá um salto.” A “modorra de Sabará-buçu” mostra ser um embuste tramado pela passagem do tempo. Há uma reversão do movimento inicial do poema: enquanto na primeira estrofe dava-se vida à cidade colonial, nas duas últimas são os agentes transformadores que são dotados de vontade, de fome de destruição. O trem de que a cidade podia se esconder, envergonhada, transforma-se em um bicho irado a devorar as casas velhas de Sabará. O gerúndio em “é um bicho comendo” torna o flagrante da destruição em ato uma grafia ainda mais pungente da transformação urbana. A escrita patrimonial realizada em “Sabará” é, portanto, o instantâneo de uma cidade em que até mesmo as ruínas são transtornadas pela modernização. A coexistência dos tempos diversos e dos signos dissonantes torna-se um modo de resguardar os destroços em processo de deglutição pela maquinaria moderna.

Não se deve confundir o gesto de devorar com o de higienizar. O banquete com os signos do passado não os elimina, mas os perverte. Não é outro o gesto realizado pela escrita de Drummond em “Sabará”: associando tradição e modernidade, o poema perverte uma e outra, dando-lhes novos significados. Não resta, portanto, uma nostalgia imobilizadora dos resíduos da tradição. O passado é movimentado quando participa da fatura do poema. Dessa forma, as “cidades sucessivas”14 14 A expressão é de Renato Cordeiro Gomes em Todas as cidades, a cidade, e designa o trabalho arqueológico realizado pelas obras que escavam a história urbana. podem se valer das ruínas multiplicadas pela modernização para construir outras cidades, mesmo que provisórias ou apenas possíveis. “Talvez”, como afirma Eucanaã Ferraz, a destruição seja a possibilidade da utopia:

Vislumbrando, portanto, a instauração de novos/antigos valores e a retomada/ invenção de territórios no devir da cidade, a poesia drummondiana diferencia-se da mais que comum lamentação diante da cidade que “não é mais a mesma” - como se houvera uma como modelo, cidade ideal, eternamente idêntica - conservada para além do tempo e das ações humanas. Quando reconstrói o espaço urbano, a poesia de Drummond considera a destruição, a decomposição, o desaparecimento não apenas como forças negativas, ou ainda, como negatividades em si mesmas, pois, antes disso, entende-as no conjunto de agentes que fazem a cidade viva, no agora, e que podem, talvez, refazê-la amanhã, sob a reordenação da utopia.

(FERRAZ, 1992, p. 139FERRAZ, Eucanaã de Nazareno. Drummond: um poeta na cidade. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Literatura Brasileira da Universidade Federal do Rio de Janeiro em 1992.)

Em Alguma poesia, ainda não atingimos a comunhão de ruína e reordenação utópica das cidades. Estamos em tempos de “reconhecimento do fato”, na expressão de Antonio Candido (1977, p. 93). No entanto, é possível reconhecer já no livro modernista o elogio da permanência da ruína em meio às inovações técnicas. Além disso, são lançados os primeiros procedimentos de registro da cidade como acúmulo de signos divergentes e em constante mutação.

Tal registro se complexifica graças à montagem dos textos que compõem a série “Lanterna mágica”. A “Sabará” sucede “Caetés”. Reencontramos nesse poema a projeção lírica da cidade: o sujeito poético imagina formas, qualifica o cenário, deixa-se entreter com sons. Mais uma vez o trem é o índice da modernidade. Porém, em movimento oposto ao registrado em “Sabará”, a tradição está de costas para o novo:

CAETÉ

A igreja de costas para o trem.

Nuvens que são cabeças de santo.

Casas torcidas

E a longa voz que sobe

que sobe do morro

que sobe...

A breve leitura de “Caeté” permite observar a importância de “Sabará” para o conjunto. Sem esse texto, “Lanterna mágica” projetaria uma sequência de poemas em que sobressairiam os signos da tradição. A inclusão do texto entre “Belo Horizonte” e “Caeté” evidencia a coexistência de signos do passado e do presente na escrita de Carlos Drummond de Andrade. A instabilidade persiste, dessa forma, como não poderia deixar de ocorrer em uma escrita que assuma a mobilidade, a dissonância e a variedade da experiência modernista.

Referências bibliográficas

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  • ANDRADE, Carlos Drummond de. Prosa seleta Rio de Janeiro: Nova Aguilar , 2003.
  • ANDRADE, Carlos Drummond de. Confissões de Minas Rio de Janeiro: Americ, 1944.
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  • SANTIAGO, Silviano. A permanência do discurso da tradição no modernismo. Nas malhas da letra Rio de Janeiro: Rocco , 2002, p. 123-124.
  • SUBIRATS, Eduardo. Da vanguarda ao pós-moderno São Paulo: Nobel, 1984.
  • 1
    O tema tem sido alvo das mais instigantes análises da recente fortuna crítica do autor, conforme atesta a leitura de Drummond: da Rosa do Povo à rosa das trevas, de Vagner Camilo (2001CAMILO, Vagner. Drummond: da Rosa do Povo à rosa das trevas. São Paulo: Ateliê, 2001.), e Razão da recusa, de Betina Bischof (2005BISCHOF, Betina. Razão da recusa. São Paulo: Nankin, 2005.).
  • 2
    A análise da importância do “Mês modernista” para o movimento é feita por Eucanaã Ferraz em sua “Apresentação” a Alguma poesia: o livro em seu tempo: “Além de o sortimento prestar-se para a exibição dos dispositivos modernistas de escrita, servia, estrategicamente, para colocar em cena um certo nivelamento, que, no fim das contas, imprimiria um forte caráter de grupo àqueles escritores de São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Ainda que Mário nunca tenha se pronunciado quanto a isso, parece claro o seu intuito, nesse momento, de dar a ver uma abrangência minimamente nacional para o Modernismo”. (FERRAZ, 2010FERRAZ, Eucanaã de Nazareno. Drummond: um poeta na cidade. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Literatura Brasileira da Universidade Federal do Rio de Janeiro em 1992., p. 28)
  • 3
    A respeito da insistência de Viriato Correia, redator-chefe de A noite, em intitular a série de textos modernistas de “Mês futurista”, Drummond escreve em carta, de 20 de dezembro de 1925: “Mário, estou impressionadíssimo com a burrice do Viriato. Ele diz que não compreende! Pensei que ele não gostasse, que fosse franco: não, diz que não compreende. Meu Deus, como é triste. E aquela história de papa, hein? // Depois do ‘Mês’ acabar, vou mandá-lo à merda, em carta registrada”. (ANDRADE; ANDRADE, 2002ANDRADE, Carlos Drummond de; ANDRADE, Mário. Carlos & Mário: correspondência de Carlos Drummond de Andrade e Mário de Andrade. Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi, 2002., p. 168) O termo “futurismo”, lançado por Marinetti e apropriado de forma pejorativa pelos detratores da renovação artística e intelectual brasileira, desagradou a parte de nossos intelectuais antes mesmo da Semana de Arte Moderna. A história do termo é traçada por Mário da Silva Brito em História do modernismo brasileiro, especialmente no capítulo “Ser ou não ser ‘futurista’”. Em 1925, a denominação já era rejeitada de forma ampla por nossos modernistas.
  • 4
    A leitura de “A permanência do discurso da tradição no modernismo”, ensaio de Silviano Santiago já citado, guia as considerações aqui feitas a respeito da recuperação do passado colonial por nossos modernistas. A tese do crítico pode ser assim sintetizada: “A contradição entre futurismo, no sentido europeu da palavra, e modernismo, no sentido brasileiro, já existe em 1924, no momento mesmo em que os novos estão tentando impor uma estética da originalidade entre nós. A emergência do discurso histórico no modernismo visa a uma valorização do nacional em política e do primitivismo em arte”. (op. cit., p. 123-4)
  • 5
    A enumeração dos textos que compunham o conjunto enviado a Mário de Andrade por Drummond é apresentada por Eucanaã Ferraz em sua “Apresentação” a Alguma poesia: o livro em seu tempo, 2010FERRAZ, Eucanaã de Nazareno. Apresentação. In: FERRAZ, Eucanaã de Nazareno (org.) Alguma poesia: o livro em seu tempo. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2010., p. 36-37.
  • 6
    Referimo-nos a “Ruas”, de Boitempo, em que se lê: “Não sei andar na vastidão simétrica/ implacável.”
  • 7
    Guiamo-nos pela análise feita por Eduardo Subirats no ensaio “A ambígua utopia do maquinismo”, de Da vanguarda ao pós-moderno. Segundo o autor, as utopias estéticas modernistas contemplam a salvação “em estreita e explícita vizinhança com visões do caos e da destruição” (p. 45). Nas melhores obras modernas, essa tensão entre a angústia e a ordenação racional do mundo não é apaziguada.
  • 8
    A informação é apresentada em nota de Gilberto Mendonça Telles na edição de 2002ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002. da Poesia completa (op. cit., p.10).
  • 9
    Retomo a tese defendida por Argan nos ensaios que compõem a última parte do seu História da arte como história da cidade. Segundo o crítico: “[...] o urbanismo é a ciência da administração dos valores urbanos” (1993, p. 233ARGAN, Giulio Carlo. História da arte como história da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1993.). Administrar os valores da cidade implica considerar os interesses comuns, visto que o espaço urbano é ocupado por sujeitos reais, e não por indivíduos ideais. No entanto, as mudanças da relação do homem com a natureza levaram à elisão do sujeito, em uma crise cuja superação deve ser o fim de todo projeto urbano consequente.
  • 10
    Essa crítica é desenvolvida em Da vanguarda ao pós-moderno, já citado, e pode ser assim resumida: o aspecto beligerante fundamental à vanguarda – haja vista a origem militar do termo “avant-garde” – é ao mesmo tempo ruptura com o habitual e estímulo ao automatismo por meio da adesão ao choque, que caracteriza a percepção moderna. Ao apostar nas respostas inarticuladas, o vanguardismo suprime o sujeito e a “expressão artística se converte numa forma impositiva de comunicação” (1984, p. 52SUBIRATS, Eduardo. Da vanguarda ao pós-moderno. São Paulo: Nobel, 1984. ). Dessa forma, as vanguardas se fecham para a experiência subjetiva que poderia conferir um caráter criador para o futuro, alvo último da consciência histórica vanguardista.
  • 11
    Leiam-se poemas como “Voo sobre as igrejas” (Brejo das Almas), “Estampas de Vila Rica” e “Morte das casas de Ouro Preto” (Claro enigma) ou “Ataíde à venda?” (Discurso de primavera e algumas sombras).
  • 12
    O objetivo de modernização da cidade pelos modernistas mineiros e em especial pelo jovem Drummond é analisado com rigor por Maria Zilda Ferreira Cury em Horizontes modernistas. A respeito do convívio entre o moderno e o tradicional em Belo Horizonte, a pesquisadora afirma: “Caráter ambíguo adquiria a questão da modernidade em Belo Horizonte. Na capital mineira, devido à sua especificidade de capital planejada, a ambiguidade se acentuava. A contradição – que é traço de valor apriorístico quando se fala em modernidade – passou a explicitar-se com veemência numa cidade que é moderna à força, mas que carrega consigo o peso da tradição trazida de Ouro Preto. Belo Horizonte traz como marca, notável até hoje, a oscilação entre o novo e o tradicional.” (1998, p. 47-48CURY, Maria Zilda Ferreira. Horizontes modernistas: o jovem Drummond e seu grupo em papel jornal. Belo Horizonte: Autêntica, 1998, p. 47-48.)
  • 13
    A crônica, escrita em 1928, teve sua primeira publicação em uma edição d’O Jornal dedicada a Minas Gerais. O número, organizado por Rodrigo de Melo Franco, veio a público em 24 de junho de 1929. O texto foi posteriormente editado em Confissões de Minas, em 1944, e depois incorporado por Carlos Drummond de Andrade à sua Prosa seleta.
  • 14
    A expressão é de Renato Cordeiro Gomes em Todas as cidades, a cidade, e designa o trabalho arqueológico realizado pelas obras que escavam a história urbana.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2017

Histórico

  • Recebido
    14 Maio 2017
  • Aceito
    31 Ago 2017
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