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Contos brasileiros contemporâneos: notas sobre a narrativa noir

Contemporary brazilian short stories: notes on noir narrative

Resumo:

Este ensaio discute contos brasileiros contemporâneos, refletindo sobre o conceito de narrativa noir. Inicialmente, é abordada uma antologia “noir” brasileira de 2016, na qual foram incluídos textos que não deveriam ser classificados dessa maneira. De acordo com nossa hipótese, referente a textos escritos por Dalton Trevisan, Drauzio Varella, Marcelo Rubens Paiva e Valêncio Xavier, estórias sobre crime podem se distanciar de estruturas convencionais, e apresentar diversos recursos formais.

Palavras-chave
noir; crime; narrativa; conto; literatura brasileira

Abstract:

This essay discusses contemporary Brazilian short stories, in order to define if they can be considered noir narratives. We focus on a “noir” Brazilian anthology (2016), which included texts that should not be classified as such. According to our hypothesis, texts written by Dalton Trevisan, Drauzio Varella, Marcelo Rubens Paiva and Valêncio Xavier are crime stories that may shy away from conventional structures and feature a variety of formal resources.

Keywords
noir; crime; narrative; short story; Brazilian Literature

Resumen

Este ensayo investiga cuentos brasileños contemporáneos, y presenta una reflexión sobre el concepto de narrativa noir. Inicialmente, se aborda una antología "noir" brasileña de 2016, en la que se incluyeron textos que no deberían ser clasificados de esa manera. En acuerdo con nuestra hipótesis, textos escritos por Dalton Trevisan, Drauzio Varella, Marcelo Rubens Paiva y Valencio Xavier, que son historias de delito, pueden distanciarse de estructuras convencionales, y presentar diversos recursos formales.

Palabras claves
noir; delito; narrativa; cuento; literatura brasileña

A editora Akashic Books, com sede nos Estados Unidos, criou uma série de livros para uma série noir. Os volumes são publicados com o nome de um local no título. Em diversos casos, o espaço definido é uma cidade. De acordo com esse padrão, foram publicados Paris noir, London noir, Chicago noir e San Francisco noir, entre outros. Em 2016, a editora publicou no Brasil São Paulo noir, volume organizado por Tony Bellotto. De acordo com o projeto editorial apresentado no website da editora, o mesmo livro, traduzido para o inglês, será lançado neste ano de 2018.

O grupo de autores é muito diversificado, incluindo alguns escritores reconhecidos pela crítica acadêmica. O volume é caracterizado por uma heterogeneidade em termos formais e temáticos. A palavra noir aparece no título, como se fosse um critério de unidade para os textos que integram o livro. Essa indicação de unidade, no entanto, não se sustenta com a leitura do conjunto de textos.

Entre os contos de São Paulo noir, está “Baixo Augusta”, de Marcelo Rubens Paiva. O texto apresenta um delegado, Marcelo Santana, com o encargo de lidar com um crime. A vítima é uma moça descrita como jovem, uma “garota quase adolescente” (PAIVA, 2016PAIVA, Marcelo Rubens. Baixo Augusta. In: BELLOTTO, Tony (Org.). São Paulo noir. São Paulo: Akashic Books, 2016. , 77). A apresentação desse crime e da vítima ocupa o segundo, o terceiro e o quarto parágrafos do conto. Logo depois dessa apresentação, o narrador modifica o seu discurso, em termos temáticos e formais. O quinto parágrafo é mais longo do que os anteriores, e é centrado em uma caracterização do espaço em que o crime aconteceu, a região de São Paulo que dá título ao texto. O narrador expõe imagens que remetem ao passado da área, como se configurasse uma memória coletiva dessa parte da cidade. Alguns elementos se referem diretamente ao presente da enunciação, descrevendo a região em perspectiva contemporânea. Em uma extensão de mais de trinta linhas, o discurso se constitui como parataxe, com ampla predominância da sintaxe coordenativa sobre a subordinativa. O recurso da enumeração é explorado, com a apresentação de aspectos da vida na região como se estivessem em listas de itens. Cabe destacar um trecho:

(...) sobe, cruza boates, puteiros, inferninhos, cantinas, clubs, restaurantes étnicos (gregos, espanhóis, italianos, baianos), hotéis, teatros, faculdades, sobe, cinemas de arte, sobe, lojas de discos, sebos, ambulantes vendendo CDs piratas de filmes clássicos, ambulantes vendendo CDs piratas de filmes que nem estrearam ou acabaram de estrear no cinema (inclusive em cartaz no cinema em frente) (...) (PAIVA, 2016PAIVA, Marcelo Rubens. Baixo Augusta. In: BELLOTTO, Tony (Org.). São Paulo noir. São Paulo: Akashic Books, 2016. , 79)

A palavra “sobe” sugere um movimento visual a ser acompanhado pelo leitor, com uma percepção detalhada de aspectos da rua Augusta, como se o narrador estivesse conduzindo o leitor progressivamente, no sentido que vai do centro da cidade à avenida Paulista. As enumerações de vários elementos, incluindo tipos de culinária de restaurantes, espaços culturais e pontos de comércio, expressam a diversidade social da região e expõem uma variedade de razões pelas quais pessoas se interessam por essa área.

Os cinco parágrafos seguintes dão continuidade à caracterização do Baixo Augusta, incluindo dados históricos sobre a região no século XIX, observações sobre o surgimento da expressão “Baixo Augusta”, um registro sobre a circulação de estudantes, referências aos Mutantes, a Elis Regina e a Tom Zé, e uma descrição da vida noturna. Na página 82, o narrador introduz o personagem Plínio, como um jornalista que gostava de jogar pôquer com amigos. A partir desse ponto, episódios da trajetória de Plínio constituem o eixo central da narrativa. Entre os episódios, ocorrem mudanças significativas para o protagonista: seu hábito de jogar pôquer enfrentou dificuldades, em razão de reclamações pelo barulho por parte dos vizinhos; o grupo passou a se reunir numa boate da região, chamada de Fire, nas segundas-feiras, quando o estabelecimento não abria ao público; após um tempo, o lugar passa a ser frequentado por pessoas estranhas ao círculo de amigos; o pôquer se torna uma atividade voltada para o lucro da boate, com bebidas servidas por garçons; a casa noturna recebe um frequentador que incomoda e irrita Plínio; este decide preparar um roubo, com arma, da própria boate que frequentava.

Ao longo dessas ocorrências, não há uma única menção ao delegado Marcelo Santana. É como se o narrador tivesse perdido o interesse pelo crime apresentado na parte inicial. O nome do delegado ressurge no penúltimo parágrafo, depois que o roubo foi relatado; o narrador apresenta a informação de que uma moça foi encontrada morta, porém, ele não indica explicitamente que se trata da mesma vítima mencionada na parte inicial do conto. Por inferência, o leitor pode assumir que sim, mas causa estranheza que o discurso do narrador, estilizado, nessa parte, como se trouxesse uma informação de uma matéria de jornal, não faça nenhuma menção ao fato de que falou sobre uma vítima no segundo parágrafo do texto. O efeito é de reiteração; o leitor é motivado a voltar ao início do texto para entender o penúltimo parágrafo.

Antes de Plínio decidir realizar o roubo, em um momento logo depois de ele se irritar com um frequentador do pôquer, o narrador diz que ele “saiu da boate e respirou o ar puro da noite da Augusta” (PAIVA, 2016PAIVA, Marcelo Rubens. Baixo Augusta. In: BELLOTTO, Tony (Org.). São Paulo noir. São Paulo: Akashic Books, 2016. , 89). Ele vê então uma mulher, que desperta seu interesse. O porteiro informa que a moça é “mineirinha” e que cobra “duzentas pratas”.

Plínio decide voltar à boate acompanhado pela moça, e dá instruções a ela para sussurrar “com muito prazer, para eles escutarem” (PAIVA, 2016PAIVA, Marcelo Rubens. Baixo Augusta. In: BELLOTTO, Tony (Org.). São Paulo noir. São Paulo: Akashic Books, 2016. , 90), como se a beleza da mulher causasse um impacto, ou uma inveja, entre os frequentadores do pôquer. O leitor poderia articular esse trecho da estória com as referências à vítima no início e no final. Em hipótese, como ficamos sabendo que Plínio esteve com uma prostituta, e que o cadáver foi encontrado em local muito próximo da Fire, poderíamos assumir com convicção que a estória detalhada de Plínio está cruzada com a exposição, pouco desenvolvida, sobre a vítima do crime. Um raciocínio que procure causas e efeitos, explicações lógicas e finais conclusivos poderia fazer acreditar que Plínio é o criminoso.

No entanto, não há nenhuma evidência disso. Logo depois do roubo, Plínio aparece num carro, indo para longe da boate, e ele enxerga, ao parar em um farol, a mesma moça que esteve com ele na boate, a “mineirinha”. Ela sorriu para Plínio, no entanto, “ele fingiu que não era ele, não sorriu de volta” (PAIVA, 2016PAIVA, Marcelo Rubens. Baixo Augusta. In: BELLOTTO, Tony (Org.). São Paulo noir. São Paulo: Akashic Books, 2016. , 93). A impressão é de que o jogador não tinha interesse em retomar o contato anterior; menos ainda, de que ele teria razões concretas ou planos objetivos para matá-la. Sem essas razões ou esses planos, e sem situar Plínio em algum ponto localizado, no espaço e no tempo, que pudesse ser entendido como o contexto do assassinato, a obra não incentiva nenhuma explicação lógica. Marcelo Rubens Paiva estabeleceu uma tensão ao delimitar a trajetória de Plínio como a que é mais detalhada no enredo. É como se fosse anunciada uma estória de assassinato e investigação policial, e isso fosse suspenso, em favor de outra, com conflitos pessoais e roubo.

O conto sugere um apelo às convenções de gênero no segundo parágrafo, lançando o horizonte de uma investigação criminal. A parte inicial pode iludir o leitor, fazendo supor que o restante do texto poderia estar concentrado no trabalho de investigação de Marcelo. No entanto, devem ser consideradas duas linhas discursivas que dominam o texto. A primeira é a apresentação histórica, social e espacial do Baixo Augusta, com ênfase na diversidade da região. A segunda é a estória de Plínio, que culmina no assalto à boate que ele mesmo frequentava. Mesmo considerando o fato de que uma prostituta aparece na trajetória de Plínio, isso não chega a constituir uma explicação suficientemente definida sobre o crime, e portanto prevalece a ideia de que se trata de um texto caracterizado por uma pluralidade de linhas discursivas, em que se destacam, em ordem de aparecimento:

  1. uma história de crime que se tornou objeto de atenção de um delegado;

  2. uma apresentação detalhada de uma região da cidade de São Paulo;

  3. a trajetória de Plínio, um personagem inconformado com transformações à sua volta.

Se o critério adotado para ordená-las fosse a extensão da presença de cada uma, dentro do tempo da enunciação, essa ordem se inverteria, pois (c) ocupa mais a atenção do narrador do que as anteriores; a maior parte das informações apresentadas por ele, entre as páginas 82 e 93, se referem à trajetória de Plínio.

Essa pluralidade remete ao procedimento de variação da distância estética (ADORNO, 2003ADORNO, Theodor. Posição do narrador no romance contemporâneo. In: ADORNO, Theodor. Notas de literatura I. São Paulo: Editora 34, 2003. , 61), construído por Marcelo Rubens Paiva. Cabe lembrar, por exemplo, uma passagem centrada na atividade do delegado perante o crime:

Era uma moça morena, bonita. Unhas das mãos e dos pés pintadas. Fora esganada até a morte. Alguém reclamou de uma moça desaparecida naqueles dias? Não. Não naqueles dias. Alguma pista? Nada. Como se tivesse caído do céu. Se sua arcada ou digitais estivessem em algum arquivo do sistema, não seria difícil identificá-la. Chequem com ambulantes, moradores de rua, putas, frentistas do ponto de gasolina. Checamos, doutor. Nada. Chequem de novo! Tem câmaras de segurança dos condomínios? Tem. Requisitem as fitas. Sim. Não vimos nada. Lixeiros? Não viram nada. Porteiros. Não, doutor, ninguém viu nada. (PAIVA, 2016PAIVA, Marcelo Rubens. Baixo Augusta. In: BELLOTTO, Tony (Org.). São Paulo noir. São Paulo: Akashic Books, 2016. , 78)

É proposto um desafio para o leitor de, em poucas linhas, atravessar variações na voz da enunciação, e compreender apropriadamente o que ocorre com o deslocamento de foco narrativo. A narração apresenta elementos de uma cena de conversa entre o delegado e policiais envolvidos na investigação. A presença de Marcelo é identificada pela posição de mando, determinando hipóteses e pedindo ações de outros. As frases com pontuação interrogativa e exclamativa são atribuídas a essa voz de controle. Outras frases, que atuam como respostas às atribuídas ao delegado, poderiam estar sendo enunciadas por diversos policiais, ou por um único. O ritmo das interações é irregular: “Nada”, depois de “Alguma pista?”, parece ser uma reação imediata; “Não vimos nada”, por sua vez, supõe um tempo para que os policiais assistissem às fitas, de modo que deve haver um intervalo entre “Requisitem as fitas” e a resposta negativa. “Era uma moça morena, bonita” pode ser uma opinião de Marcelo, de modo que o narrador estaria expressando o que o delegado pensa, ou do próprio narrador em terceira pessoa, que não é exposto como um personagem específico integrado à cena.

O parágrafo final do conto retoma a linha discursiva (b), desta vez apontando para uma decadência da região do Baixo Augusta, com as casas noturnas deixando de funcionar. A essa imagem arruinada se associa à informação de que Plínio teria viajado com um amigo para Vegas, e visitado um cassino. Esse último parágrafo nada diz sobre o assassinato ou a vítima. Diz, no entanto, que no Baixo Augusta ocorreu um “aumento do número de jovens contaminados pelo HIV” (PAIVA, 2016PAIVA, Marcelo Rubens. Baixo Augusta. In: BELLOTTO, Tony (Org.). São Paulo noir. São Paulo: Akashic Books, 2016. , 94), razão pela qual, por falta de frequentadores, essas casas tinham fechado. Essa frase, formulada como se fosse extraída de uma notícia jornalística, causa estranheza pela falta de antecedentes textuais. É um assunto lançado pelo narrador nas últimas linhas. A análise da forma do conto, diante da pluralidade de elementos de composição, permite observar que “a própria temporalidade narrativa é colocada em questão na cesura entre a causa e o efeito que não será mais suturada por uma explicação final” (SCHOLHAMMER, 2013SCHOLHAMMER, Karl Erik. A cena do crime: reflexões sobre um palco do contemporâneo. In: SCHOLHAMMER, Karl Erik. Cena do crime: violência e realismo no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. , 16).

Com essa construção, o final não sustenta nenhuma síntese: Plínio permaneceu impune do crime de roubo; não há solução para o crime de assassinato; não são determinadas a motivação e a autoria desse crime; o delegado não conclui seu trabalho; a moça não é identificada com clareza; o Baixo Augusta continua em transformação.

As especificidades da narração em “Baixo Augusta” levam o processo de leitura a um conjunto de incertezas. Em acordo com Ansgar F. Nunning, é possível afirmar que o texto cria uma série de pressuposições detalhadas, quadros de referência e desperta dúvidas sobre o próprio narrador (NUNNING, 2008NUNNING, Ansgar F. Reconceptualizing Unreliable narration: synthesizing cognitive and rhetorical approaches. In: PHELAN, James & RABINOWITZ, Peter (Eds). A companion to Narrative Theory. Malden: Blackwell Publications, 2008. , 104). A significação, nesse sentido, não resulta de uma percepção conclusiva e totalizante. Marcelo Rubens Paiva construiu uma forma de relato na qual o início e o final não se relacionam como causa e efeito, ou como problema e solução; ao contrário, eles parecem resíduos de uma estória maior que não foi contada. Lendo pela primeira vez, um leitor, ao chegar na página 84, poderia acreditar que a descrição da região e a estória de Plínio são digressões, adiando a retomada do tema principal. Na verdade é a trajetória do jogador de pôquer que ocupa a maior parte do texto, fazendo com que os parágrafos referentes ao delegado Marcelo possam parecer pouco conectadas com o restante.

São Paulo noir integra, em sua proposta, uma referência geográfica - uma cidade - e uma delimitação de gênero. Essa conjunção sugere uma articulação direta entre imagens da cidade e as características formais desse gênero. Chama a atenção, no entanto, a heterogeneidade formal do conjunto de textos; eles remontam apenas parcialmente aos padrões de escrita mais comuns em narrativas noir.

Para Geraldo Pontes Jr., em termos convencionais, uma narrativa policial se caracteriza por:

(...) um ideal de ordem representado por agentes que visam a mantê-la, enfrentando a transgressão social. A se pensar no modelo mais conservador desse tipo de narrativa, a distância entre o detetive e os fatos narrados separa o meio investigado do ponto de vista da narração (...) Vale sempre frisar que o investigador, de fora do contexto narrado, representa não somente a lei e a ordem, mas também tem a tarefa de decodificar um mistério como questão chave a se resolver. (PONTES JR., 2016PONTES JR., Geraldo. A periferia como matéria do roman noir em obras francesas contemporâneas. In: PONTES JR., Geraldo; VIEGAS, Ana Cristina Coutinho & MARQUES, Jorge Luiz (orgs.). Configurações da narrativa policial . Rio de Janeiro: Dialogart Publicações , 2016. , 161)

De acordo com Karl Erik Scholhammer, a narrativa policial contaria com um “leitor participativo”; a resolução de um enigma sobre um crime seria um elemento central, em acordo com a expectativa de que possa ser encontrada uma verdade. Essa ideia de que um detetive produz conhecimento verdadeiro se deve ao fato de que “o conto e o romance policial em seu momento inaugural expressavam um otimismo cientificista e positivista, projetando uma visão da literatura como ferramenta na busca de conhecimento da realidade” (SCHOLHAMMER, 2013SCHOLHAMMER, Karl Erik. A cena do crime: reflexões sobre um palco do contemporâneo. In: SCHOLHAMMER, Karl Erik. Cena do crime: violência e realismo no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. , 15).

Uma estória de um caso de Sherlock Holmes, de Conan Doyle, por exemplo, supõe uma diferenciação nítida entre o crime e a ordem social; por isso, o detetive pode ser confiável o suficiente para que suas conclusões sejam tratadas como verdadeiras. No caso de um romance noir, essa clareza sobre a ordem social e seus agentes se tornaria nebulosa. Obras com essa caracterização, de acordo com Pontes Jr., constituiriam um “gênero de difícil definição”, que se volta para a transgressão social, mas “ultrapassa a vocação para decifrar o enigma” (PONTES JR., 2016PONTES JR., Geraldo. A periferia como matéria do roman noir em obras francesas contemporâneas. In: PONTES JR., Geraldo; VIEGAS, Ana Cristina Coutinho & MARQUES, Jorge Luiz (orgs.). Configurações da narrativa policial . Rio de Janeiro: Dialogart Publicações , 2016. , 164). Uma especificidade do romance noir com relação às convenções gerais do romance policial seria uma “descrença em instituições sociais, de que decorre o descentramento da verdade na decodificação do crime” (PONTES JR., 2016PONTES JR., Geraldo. A periferia como matéria do roman noir em obras francesas contemporâneas. In: PONTES JR., Geraldo; VIEGAS, Ana Cristina Coutinho & MARQUES, Jorge Luiz (orgs.). Configurações da narrativa policial . Rio de Janeiro: Dialogart Publicações , 2016. , 164).

Em seu ensaio “Sinais: raízes de um paradigma indiciário”, Carlo Ginzburg se voltou para os relatos policiais, e apresentou uma reflexão sobre o personagem Sherlock Holmes. As investigações desse detetive seriam conduzidas por um “método indiciário” em que o detetive observaria “indícios imperceptíveis para a maioria” (GINZBURG, 1989GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In:GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. , 145). O trabalho do detetive estaria associado a uma capacidade de percepção de detalhes referentes a um crime; a esses detalhes, desconsiderados pelo senso comum, seriam atribuídas significações capazes de esclarecer um mistério a respeito do passado. Embora Ginzburg não esteja se referindo especificamente à narrativa noir, é relevante considerar a sua posição.

Nos casos de obras convencionais do gênero policial, é comum esperar que o pensamento do detetive seja caracterizado por competências tanto analíticas como sintéticas. É necessário que detalhes sejam observados, ganhando destaque, através do estabelecimento de relações entre cada parte de um conjunto de pistas e a totalidade da arquitetura do crime. Essa relação entre parte e todo, como objeto de reflexão por parte do detetive, leva a um conhecimento do passado. A capacidade de pensar de modo sintético integraria os fragmentos de conhecimento em uma unidade de sentido, levando eventualmente à revelação de autoria e motivação de um crime.

Cabe discutir se o termo noir poderia descrever textos em que um movimento investigativo, entre a capacidade de análise e o movimento de síntese de conhecimento, está ausente. Em São Paulo noir, predomina a ausência de síntese nos finais dos textos. Em diversos contos, o final é aberto, ou mais ainda, incompatível com a possibilidade de um conhecimento conclusivo sobre o que de fato ocorreu.

As convenções do romance noir foram estabelecidas por Tzvetan Todorov, na década de 1960, em seu ensaio “Tipologia do romance policial”. Dashiell Hammett e Raymond Chandler são indicados como autores de referência. Entre as características apresentadas pelo teórico, estão as seguintes: o gênero é mais circunscrito por temas, incluindo a violência e a imoralidade, do que por tipos particulares de personagens; é realizada uma fusão de duas estórias, a de um crime e a de uma investigação; o crime não ocorre antes de a narração começar, mas durante o seu processo; não é definido um ponto de chegada previsível; não há um mistério específico que deve ser desvendado; a narrativa motiva a curiosidade do leitor, que é envolvido em suspense; o detetive vive situações de risco; nenhum romance desse gênero é escrito na forma de uma obra memorialística (TODOROV, 1979TODOROV, Tzvetan. Tipologia do romance policial. In: TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. São Paulo: Perspectiva, 1979. , 98-99). Com base em S. S. Van Dime, Todorov acrescenta: o culpado deve ser um dos personagens principais; as explicações devem seguir uma racionalidade, sem apelo ao fantástico; não são aceitas descrições psicológicas. Além disso, menciona que, na narração, descrições são propostas sem ênfase, e a linguagem apresenta certa rudeza (TODOROV, 1979TODOROV, Tzvetan. Tipologia do romance policial. In: TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. São Paulo: Perspectiva, 1979. , 101-102). O ensaio, de orientação estruturalista, distingue três modalidades de romance policial: além do romance noir. as outras seriam o romance de enigma e o romance de suspense. O primeiro tipo tem, entre os três, a configuração mais simples; trata-se de um discurso que conta com duas estórias, a primeira, de um crime, a segunda, de uma investigação (TODOROV, 1979TODOROV, Tzvetan. Tipologia do romance policial. In: TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. São Paulo: Perspectiva, 1979. , 96-97). O terceiro tipo agrega elementos dos outros dois, incluindo a busca de uma explicação lógica para os acontecimentos e a incerteza quanto ao que pode ou não ocorrer com os personagens (TODOROV, 1979TODOROV, Tzvetan. Tipologia do romance policial. In: TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. São Paulo: Perspectiva, 1979. , 102-103). A influência de Todorov pode ser observada, na contemporaneidade, pelas referências a seu trabalho por parte de diversos estudiosos da literatura noir (por exemplo, PONTES JR., 2016PONTES JR., Geraldo. A periferia como matéria do roman noir em obras francesas contemporâneas. In: PONTES JR., Geraldo; VIEGAS, Ana Cristina Coutinho & MARQUES, Jorge Luiz (orgs.). Configurações da narrativa policial . Rio de Janeiro: Dialogart Publicações , 2016. ; ALMEIDA, 2016ALMEIDA, Claudia Maria Pereira de. Um enigma indecifrável em um romance não muito policial. In: PONTES JR., Geraldo, VIEGAS, Ana Cristina Coutinho & MARQUES, Jorge Luiz (orgs.). Configurações da narrativa policial. Rio de Janeiro: Dialogart Publicações, 2016. ; BELHADJIN, 2009BELHADJIN, Anissa. Le jeu entre stéréotypes et narration dans le roman noir. Cahiers de Narratologie. Laboratoire Interdisciplinaire Récits, Cultures et Sociétés, V.17, 2009. http://journals.openedition.org/narratologie/1089. Acesso em 10 de janeiro de 2018.
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; BRANDHUBER & SILVA, 2008BRANDHUBER, Marie Claire & SILVA, Yara dos Santos. Considerações sobre a evolução do gênero romance policial e a obra O crime da Gávea, de Marcílio Moraes. In: CASA NOVA, Vera, org. Literatura brasileira e crime. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2008. , entre outros). As reflexões de Todorov apresentam generalizações que podem ser criticadas, em especial se forem utilizadas para discutir obras escritas depois da década de 1960, quando “Tipologia do romance policial” foi escrito. No entanto, como o autor continua sendo uma referência importante para estudiosos da literatura noir, é possível afirmar que, academicamente, as afirmações de Todorov continuam sendo consideradas válidas para compreender convenções de gênero. É um campo de estudo que exige renovação teórica e, no Brasil, precisa ser desenvolvido.

O título de São Paulo noir poderia criar a expectativa de que, nos textos, seriam utilizados recursos em conformidade com escritores considerados referências exemplares para o gênero. No entanto, é ostensivo que os escritores não foram orientados a contribuir para o livro sob a condição de respeitar convenções ou reproduzir estereótipos. Ao contrário, a heterogeneidade formal é ostensiva. Isso pode ser descrito de acordo com afirmações de Anissa Belhadjin: é possível afirmar que vigora uma “ausência de critério formal” referente às “linhas de força do gênero noir” (BELHADJIN, 2009BELHADJIN, Anissa. Le jeu entre stéréotypes et narration dans le roman noir. Cahiers de Narratologie. Laboratoire Interdisciplinaire Récits, Cultures et Sociétés, V.17, 2009. http://journals.openedition.org/narratologie/1089. Acesso em 10 de janeiro de 2018.
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, 3) no volume São Paulo noir. Para o leitor que procure obras próximas de convenções consagradas pelo gênero, vários textos do volume organizado por Belotto podem causar estranheza.

Com relação a “Baixo Augusta”, por exemplo, diversos critérios de classificação expostos por Todorov seriam inadequados para descrever o conto. Ali o tempo não é linear, e não fica claro em que momento ocorreu o assassinato. Existe um mistério específico a ser desvendado, ao menos no caso do delegado Marcelo, mas ele não consegue resolvê-lo. Se tomarmos esse personagem como um detetive, para fins de raciocínio, não ocorre nada no relato que represente risco para sua vida. Várias descrições são caracterizadas por recursos de ênfase, incluindo hipérboles. Os critérios de Van Dime também não são adequados: o narrador descreve aspectos psicológicos de Plínio; este, sendo o personagem principal, não é denunciado como culpado do assassinato.

Para Belhadjin, os temas da violência e da morte seriam comuns no gênero (BELHADJIN, 2009BELHADJIN, Anissa. Le jeu entre stéréotypes et narration dans le roman noir. Cahiers de Narratologie. Laboratoire Interdisciplinaire Récits, Cultures et Sociétés, V.17, 2009. http://journals.openedition.org/narratologie/1089. Acesso em 10 de janeiro de 2018.
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, 3). Porém, as maneiras de abordá-los são muito variadas; com as transformações das formas literárias, alguns escritores deixaram de considerar a investigação como parâmetro fundamental para composição dos textos, em favor de outros modos de construção.

Esse é o caso de “Margot”, texto com o qual a antologia de Bellotto é encerrada. O conto de Drauzio Varella apresenta uma protagonista, cujo nome dá título ao texto, caracterizada, em sua trajetória, pela necessidade de constantemente reconstruir a si mesma. De início, ainda criança, morando em Iranduba, uma pequena cidade próxima de Manaus, Margot vive em extrema pobreza, tendo obrigações com a criação de seus irmãos, e apoiando a mãe, que trabalha como auxiliar de cozinha. Adolescente, ela se envolve com um rapaz, e pratica um ato sexual; nisso, é vista por um homem. Com o falatório na pequena cidade, ela passa a ser alvo de agressões verbais. É espancada por um grupo de homens. A mãe, por ser evangélica, briga com Margot. Após um tempo, a jovem decide tomar uma balsa para Manaus. Depois de uma viagem longa e desconfortável a Belém, Margot, sem poder se manter, conhece uma mulher que a orienta para trabalhar como prostituta.

Durante um período, Margot se sustenta com vários programas por dia. Em uma vez, um cliente, sob efeito de cocaína, a agride e ameaça matá-la com um canivete. Assim que consegue escapar, Margot acerta o mesmo canivete no homem. Ela foge para Salvador. Na capital da Bahia, continua trabalhando na prostituição. Dessa vez, foi diferente:

(...) aprendeu a aplicar o suadouro, golpe por meio do qual levaram o cliente para um quarto de cortiço, onde o casal era surpreendido em pleno ato sexual por um dos asseclas de Raimundão, que se apresentava como policial encarregado de reprimir a prostituição no bairro. O produto da extorsão era dividido em partes iguais. (VARELLA, 2016VARELLA, Dráuzio. Margot. In: BELLOTTO, Tony, org. São Paulo noir . São Paulo: Akashic Books , 2016. , 251)

Nesse ponto, a construção da personagem expõe uma disposição que, até então, não tinha aparecido: a escolha consciente por, para além da prostituição, praticar crimes em cumplicidade com outras pessoas. Para o leitor, talvez Margot tivesse essa atitude por precisar passar por mudanças, devido ao impacto traumático de episódios anteriores - o espancamento, a humilhação pública, a ameaça de morte por parte de um cliente. Desde a infância até aquele momento do relato, a moça não teve apoio de nenhuma instituição pública, e nem mesmo da mãe, para se constituir como cidadã; ao contrário, desenvolveu razões para não confiar nas pessoas.

No entanto, essas são apenas especulações. O leitor pode elaborar essas ou outras intuições. Porém, faltam ao texto conjunções subordinativas adverbiais causais, ou recursos de linguagem similares, que permitissem demonstrar com precisão conexões lógicas lineares entre os acontecimentos. Prevalece uma sintaxe coordenativa, e muitas frases são breves. Por essas razões, não é possível estabelecer com certeza o que levou Margot que, no início, era uma menina capaz de se sacrificar pelos familiares, a optar pela prática de crimes.

Em uma das execuções do golpe do suadouro, ela é presa. Em seu período carcerário, se aproxima do tráfico de drogas. Ela pondera: “Melhor arriscar-se naquele mundo milionário do que correr risco de morrer nas mãos de um tarado, na pobreza da prostituição” (VARELLA, 2016VARELLA, Dráuzio. Margot. In: BELLOTTO, Tony, org. São Paulo noir . São Paulo: Akashic Books , 2016. , 251). De acordo com o relato, ela consegue se tornar uma vendedora respeitada, capaz de realizar acertos com policiais.

Nesse momento, a construção discursiva do conto se modifica. Começam a aparecer intervenções diretas de Margot, indicadas textualmente com travessão, como se, ultrapassando as fronteiras da narração em terceira pessoa, existisse um espaço dramático, presencial, em que uma conversa acontece. Não fica determinada a relação temporal entre o discurso narrativo e as falas da personagem. O texto apresenta o seguinte:

- Até a polícia confiava em mim. A recíproca, no entanto, não era verdadeira: - É o pior tipo de gente. Não investem dinheiro na compra, não têm o trabalho de vender, não são perseguidos e não vão parar na cadeia. Não arriscam nada, só aparecem na hora de buscar a grana. Quando não recebem, prendem todo mundo. Nunca imaginou que um dia lhe chegasse às mãos tanto dinheiro. (VARELLA, 2016VARELLA, Dráuzio. Margot. In: BELLOTTO, Tony, org. São Paulo noir . São Paulo: Akashic Books , 2016. , 252)

As afirmações “A recíproca (...)” e “Nunca imaginou (...)” são enunciados atribuídos ao narrador em terceira pessoa, o mesmo que antes contou que Margot “aprendeu” a dar golpes. As duas manifestações marcadas por travessão seriam atribuídas a Margot. Para o leitor, nada disso está claro: quando ela falou isso? Com quem está conversando, ou para quem se dirige? Seriam partes de um depoimento? Seriam essas frases fragmentos selecionados de uma conversa mais longa? Em caso positivo, quando essa conversa ocorreu? O relato, como um todo, seria baseado nessa conversa?

Essas intervenções inesperadas despertam um questionamento sobre o acesso ao pensamento de Margot. Como é dado o acesso a suas palavras, por qual razão não é ela mesma a narradora da sua própria estória, desde o início? O discurso individual da protagonista irrompe, inesperadamente. Essas manifestações, limitadas e descontínuas, chamam a atenção. É como se ela dependesse de um outro, empático, para que sua vida mereça atenção e, junto a isso, ela aproveitasse aberturas no fluxo da narração para se fazer presente.

Depois da “ascensão social” com o tráfico (VARELLA, 2016VARELLA, Dráuzio. Margot. In: BELLOTTO, Tony, org. São Paulo noir . São Paulo: Akashic Books , 2016. , 252), Margot é presa novamente. Ao deixar o cárcere, decide mudar para São Paulo. Retorna à prostituição, e mais adiante vai para uma “casa do Baixo Augusta”, que ela descreve como “um lugar chique, ambiente selecionado, freguesia que gastava bastante” (VARELLA, 2016VARELLA, Dráuzio. Margot. In: BELLOTTO, Tony, org. São Paulo noir . São Paulo: Akashic Books , 2016. , 253). Essa passagem lembra a descrição da região no texto de Marcelo Rubens Paiva, anteriormente mencionado. Sentindo-se bem nesse local, Margot alugou uma quitinete; esse episódio é comentado por ela como sendo a primeira vez em que ela poderia arrumar um lugar para morar.

A situação fica difícil novamente, a partir da vinda de um homem chamado Bentão para atuar como segurança da casa noturna. Esse personagem é caracterizado como impulsivo, violento e dominador. Um dia, logo depois de ser promovida a gerente da casa, quando se sentia recriada, podendo se afastar tanto da prostituição como dos crimes, Margot é atacada por Bentão, e o texto diz: “O soco veio com tanta força que o sangue do supercílio espirrou por cima do balcão” (VARELLA, 2016VARELLA, Dráuzio. Margot. In: BELLOTTO, Tony, org. São Paulo noir . São Paulo: Akashic Books , 2016. , 260). Pouco depois, como se estivesse nítido que ela não poderia viver sob a constante agressividade desse homem, Margot decide atacá-lo, com um punhal, que penetra as costas do agressor.

A trajetória da personagem é marcada por deslocamentos no país (de Iranduba a Belém, de Belém a Salvador, de Salvador a São Paulo), pela capacidade de lidar com violência física e ameaças de morte, e pelo abandono por parte de figuras importantes (a mãe, o namorado Edu). Em seu conjunto, essa trajetória apresenta vivências intensas de sofrimento corporal, nas privações da infância, no espancamento, na agressão de Bentão, nas dificuldades da prostituição, além dos períodos no cárcere.

Causa estranheza a inclusão do texto de Varella na antologia São Paulo noir. É fácil reconhecer que nele estão presentes crimes e policiais; no entanto, ele está em oposição às convenções do romance policial. Em termos de articulações entre elementos formais e temáticos, o texto está bem mais próximo, em alguns aspectos, de obras dissociativas que abordam a violência (como “Quem matou o Caju” de Dalton Trevisan e “Rremembranças da menina de rua morta nua” de Valêncio Xavier, que serão comentados mais adiante), do que de convenções da narrativa noir. Em Varella não existe distinção clara entre ordem e contravenção, e nem uma pressuposição moral de superioridade por parte de quem não transgride as leis. O texto em nada lembra uma estória convencional de detetive, em que sinais sejam procurados para que seja revelada uma verdade oculta. O enredo não pode ser reduzido a um crime e a uma investigação, sendo que não há um discurso estilizado como investigativo; não há um detetive; o narrador, em certos momentos, descreve as condições psicológicas da protagonista.

A antologia não tem compromisso com conceituações academicamente aceitas, e certamente não é obrigada a assumir, em seu título, qualquer ligação com uma reflexão teórica, como a de Todorov, da década de 1960. O público interessado em São Paulo noir não é necessariamente acadêmico, ou conhecedor de Teoria da Literatura, de modo que o termo noir será entendido pelo público, em geral, de maneiras que correspondam a empregos conhecidos do termo em contextos externos à universidade, incluindo discursos midiáticos. Portanto, nada exige que essa palavra, no título, tenha uma precisão exata. Poderíamos supor, por outro lado, que tanto os escritores como o público talvez tenham familiaridade com obras usualmente classificadas, em literatura e no cinema, como narrativas noir. Desse modo, mesmo sendo polissêmico, o termo está apontando para possibilidades de associação, por parte de autores e leitores, entre os textos do volume e repertórios conhecidos de obras consagradas, consideradas exemplos do gênero.

No caso de “Baixo Augusta”, é possível afirmar que o autor tenha provocativamente lançado os leitores em um universo familiar ao gênero, nas duas primeiras páginas, retornando a ele no penúltimo parágrafo. É como se o escritor ingressasse nesse universo para, de certo modo, subverter os seus princípios por dentro. Porém, “Margot” é diferente. O leitor é exposto a problemas referentes à violência contra a mulher, à miséria, à exclusão social e a comportamentos da polícia. São temas decisivos para debates políticos e sociais no país, nos últimos anos. A capacidade de provocar reflexão crítica e evocar esses debates é, sem dúvida, mais relevante, nesse caso, do que a filiação a um tipo de narrativa específico. Se tivesse sido publicado em outro volume, talvez o leitor não fosse, em nenhum aspecto, levado a considerar a obra como noir. De fato, nesse caso, a impressão é de que existem apenas dois interessados em atribuir essa classificação a “Margot”: o organizador e a Editora do volume. Nada sugere que tenha ocorrido a Drauzio Varella uma evocação de Dashiell Hammett, ou que os leitores encontrem em “Margot” razões para lembrar diretamente desse escritor.

A presença de “Margot” no volume evidencia que o uso do termo “noir” na capa não indica nenhum comprometimento da Editora com clássicos do gênero. Embora a palavra estabeleça uma ligação com um passado literário, a leitura do volume permite observar que a tendência predominante é de que os contos realizem deslocamentos com relação a textos exemplares. Leitores conservadores, apegados a obras consideradas clássicas, poderão rejeitar a inclusão de vários textos nesse volume.

O desenvolvimento de reflexões sobre a presença do noir na literatura brasileira contemporânea pode motivar, para além da antologia aqui tomada como exemplo, a análise de textos que abordam um crime, mas se afastam de padrões comuns do relato policial. Dois casos chamam a atenção, em razão das perspectivas originais de construção formal. Nessas obras, é acentuada a indeterminação, em contrariedade às conclusões sintéticas das narrativas policiais convencionais.

O conto “Quem matou o Caju”, de Dalton Trevisan, está centrado na investigação de um crime, e é dividido em três partes. O autor constitui um narrador que se dirige a um interlocutor, como se tivesse sido chamado para depor a respeito da morte de um amigo, nomeado no próprio título. As três partes apresentam pontos em comum, como referências ao ambiente em que o crime ocorreu (um cemitério). Porém, em cada uma das partes, esse expositor elabora um posicionamento diferente: na primeira, alega não saber o que teria acontecido; na segunda, atribui a culpa a dois amigos, Zé e Penha; na terceira, o narrador confessa ter estrangulado o Caju, mas partilha a responsabilidade pela morte com Zé, que “acabou o serviço” (TREVISAN, 2005TREVISAN, Dalton. Quem matou o Caju In: COSTA, Flávio Moreira (Org.). Crime feito em casa. Contos policiais brasileiros. Rio de Janeiro: Record, 2005., 204). Embora estejam presentes elementos básicos da narrativa policial - um crime e uma investigação - o texto não organiza esses elementos de modo tradicional. Ele foi construído de modo a sugerir que um mesmo depoente, em temporalidades diferentes, narra os acontecimentos diferentemente. Não está explicitado se as três falas foram dirigidas para o mesmo interlocutor, se ocorreram uma após a outra, ou mesmo se elas respondem a um mesmo questionamento. Essa forma de narrar é antitética com relação às convenções das histórias de detetive. Ao terminar de ler, a percepção é que há mais dúvidas do que o leitor poderia supor em seu contato com as primeiras linhas.

Em “Rremembranças da menina de rua morta nua”, Valêncio Xavier utiliza diversos recursos formais: fragmentos de jornais, transcrições de notícias, registros de programas de televisão, fotografias, números, verbetes de dicionário, um poema e um desenho de um pé humano, entre outros. O autor remete a um crime ocorrido em um parque no Rio de Janeiro. Uma menina de rua, de oito anos de idade, foi estuprada e morta. Os elementos verbais e visuais são apresentados de modo fragmentário.

O trabalho de Xavier está focado em um crime, e inclui registros de investigação sobre ele. É apenas nesses aspectos que ele se relaciona com a literatura policial. “Rremembranças da menina de rua morta nua” não corresponde a nenhuma categoria tipológica tradicional, seja em literatura ou em artes visuais. É uma obra liminar, que constitui nos espaços das páginas expressões impactantes, em que a função referencial de palavras e imagens, associada ao discurso jornalístico, está articulada com uma função expressiva das linguagens, como apelos, provocações ou chamados para a empatia dos leitores, diante do horror insuportável desse crime. É como se a inconformidade e a indignação tivessem movimentado fisicamente os materiais ao longo das páginas, e sua distribuição no livro exigisse mudanças de pensamento, por parte dos leitores.

Além de referências a uma investigação policial, que aparecem através de recortes de jornais, as páginas trazem frases atribuídas a Gil Gomes, que se tornou conhecido, na mídia brasileira, como um sensacionalista, que se apropriava de imagens ligadas a crimes para provocar a audiência. A transcrição de cenas de um programa de televisão, “Aqui agora”, expõe como a gravidade da morte da menina ocupa um espaço indiferente entre outros assuntos, em acordo com uma distribuição de tempo calculada por padrões empresariais de mercado. Por exemplo, a fala de Gil Gomes “Onde estava. Estava morta” antecede um “Ok Gil” do apresentador Luiz Correa, que anuncia um pacote econômico, e logo em seguida outro apresentador diz: “Veja a seguir: ovos coloridos, uma arte milenar ganha roupa nova nesta Páscoa” (XAVIER: 2006XAVIER, Valêncio. Rremembranças da menina de rua morta nua e outros livros. São Paulo: Companhia das Letras , 2006. , 48-49).

O programa de televisão continuamente expôs fotografias da criança e fez referência explícita ao nome dela. Xavier, ao incorporar essas referências, cobre com tarjas pretas as ocorrências do nome e, na fotografia, cobre os olhos. Da exploração abusiva por parte desses representantes da mídia, ele desloca a criança para um espaço de preservação, respeito e cuidado. No caso de “Rremembranças da menina de rua morta nua”, estamos em um contexto oposto à concepção de que uma narrativa policial desperte interesse por levar, através do intelecto de um detetive, à revelação de uma verdade sobre os fatos. As falas atribuídas a Gil Gomes e seus colegas reificam o que ocorreu, dando ao crime uma importância equivalente à atribuída a ovos de páscoa. Como reflexão sobre a vida danificada, a obra de Valêncio Xavier situa seu foco na menina, citada no próprio título, e na memória que podemos ter dela.

A proposição de Carlo Ginzburg sobre o paradigma indiciário não é adequada para a leitura dessa obra. Quando as imagens e os textos são observados, em sua variedade e descontinuidade, não há nenhuma voz - seja de um narrador, ou qualquer outra - que esteja, a partir de uma perspectiva externa, articulando fatos e informações de modo a compor um relato. Existem referências a investigações, e a um delegado encarregado do caso, Antônio Maia, mas elas não constituem um percurso temporal que mostre um trabalho encadeado e bem-sucedido. A forma de “Rremembranças da menina de rua morta nua” apresenta indícios, trechos ou resíduos de uma história que poderia ser contada mas, diferentemente do que ocorre com o método do paradigma indiciário, não há como esperar uma interpretação organizada e um conhecimento claro ao final da leitura.

As convenções da narrativa policial tradicional podem levar o público a sentir prazer, acompanhando uma investigação, ou se surpreendendo com a revelação de uma solução para o enigma do crime. Em Valêncio Xavier a força da empatia com a criança morta dá visibilidade ao seu sofrimento, à dor que ela vivenciou quando foi estuprada e morta. A obra não apresenta nenhuma conclusão sobre o responsável. As páginas, cada uma trazendo um impacto inesperado, não se submetem a nenhuma síntese. Nessa ausência de unidade formal reside, como uma força ética, a possibilidade de aproximação do que perturba.

Referências bibliográficas

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    Jaime Ginzburg. Professor Livre-docente de Literatura Brasileira da Universidade de São Paulo e bolsista 1D do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Tem mestrado em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (1993) e doutorado em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1997). Realizou Pós-doutorado na Universidade Federal de Minas Gerais. Foi Professor Visitante na Universidade Federal de Minas Gerais, na Universidade do Estado de São Paulo, na University of Minnesota e na Universitat Bielefeld. Atuou como Rio Branco Chair in International Relations, no King's College, em Londres, entre fevereiro de 2015 e janeiro de 2016, desenvolvendo o projeto de pesquisa Culture and violence: Politics and Society in Brazilian and British film. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Brasileira, atuando principalmente em literatura brasileira de 1930 ao presente, literatura comparada, autoritarismo, violência, direitos humanos, repressão e melancolia. Com Márcio Seligmann-Silva e Francisco Foot Hardman, organizou Escritas da violência (2012, em dois volumes). Com Sabrina Sedlmayer, organizou Walter Benjamin: rastro, aura, história (2012). Com Dioni Maria dos Santos Paz, organizou Leitura e produção de textos (1999). Autor de Crítica em tempos de violência (2012), que recebeu o Prêmio Jabuti em Teoria e Crítica Literária, e Literatura, violência e melancolia (2013). E-mail: jginzb@gmail.com

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan 2018

Histórico

  • Recebido
    14 Jan 2018
  • Aceito
    15 Mar 2018
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