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Imagens extremas na cena contemporânea

Extreme images in the contemporary scene

RESUMO

O artigo investiga o uso de imagens extremas em espetáculos contemporâneos, a partir da análise das obras “Pixelated Revolution”, de Rabih Mroué, e “Le Metope Del Paternone”, de Romeo Castellucci. Ambas partem de experiências documentais/autobiográficas a fim de refletirem sobre as imagens violentas e seu impacto na vida cotidiana dos sujeitos. Parte-se da hipótese de que, ao investir em cenas do teatro do real e fugir da estereotipia e normatização, a arte inaugura novos regimes do visível capazes de provocar deslocamentos e de criar novas relações entre imagens e corpos na contemporaneidade.

Palavras-chave
imagens extremas; teatro do real; autobiografia

RESUMEN

El artículo investiga el uso de imágenes extremas en espectáculos contemporáneos, a partir del análisis de las obras “Pixelated Revolution”, de Rabih Mroué y “Le Metope del Paternone”, de Romeo Castellucci. Ambas parten de experiencias documentales / autobiográficas a fin de reflexionar sobre las imágenes violentas y su impacto en la vida cotidiana de los sujetos. Se parte de la hipótesis de que, al invertir en escenas del teatro del real y huir de la estereotipia y la normatización, el arte inaugura nuevos regímenes de lo visible capaces de provocar desplazamientos y de crear nuevas relaciones entre imágenes y cuerpos en la contemporaneidad.

Palabras claves
imágenes extremas; teatro del real; autobiografía

ABSTRACT

This article examines the use of extreme images in contemporary performances through the analysis of two works: “Pixelated Revolution”, by Rabih Mroué and “Le Metope Del Paternone”, by Romeo Castellucci. Both plays draw from documentary/autobiographical experiences in order to reflect on violent images and their impact on the daily life of their subjects. The analysis in this paper stems from the hypothesis that, by investing in the theatre of the real and moving away from stereotyping and standardization, art creates new regimes of the visible that are capable of provoking displacements and creating new relationships between images and bodies in the contemporary world.

Keywords
extreme images; theatre of the real; autobiography

Existe alguma coisa como um traumatismo, como um sentimento de exceção intolerável no cerne da vida cotidiana; uma irrupção insuportável da morte. BADIOU, 2016, p. 7BADIOU, Alain. Notre mal vient de plus loin. Penser les tueries du 13 novembre. Paris: Fayard, 2016.

Como ficar no extremo não estando até a morte? Existe esta solução, felizmente, o espetáculo. ARDENNE, 2006, p. 37ARDENNE, Paul. Extreme. Esthétiques de la limite dépassée. Paris: Flammarion, 2006.

Duas situações me fizeram escolher o tema que é título desse artigo. A primeira delas foi a vivência dos atos terroristas em novembro de 2015, quando estive por um ano em pós-doutorado, em Paris. Na ocasião, lembro do choque das pessoas ao ouvir a declaração do presidente francês François Hollande que, em rede nacional, declarou guerra ao terrorismo. Por alguns dias, pensou-se verdadeiramente que uma guerra iria eclodir. Com o medo, veio a inevitável repressão e o aumento do preconceito à população muçulmana. Após os atentados de 13 de novembro, inúmeros documentários e espetáculos surgiram como reflexos da realidade traumática e sua tentativa de elaboração. A segunda situação foi ter sido testemunha, no mês de agosto, de um ato suicida fracassado dentro de um shopping no Rio de Janeiro, ato fotografado e filmado pelos passantes (o vídeo está no youtube, somando mais de 20 mil acessos), o que me fez repensar a questão que, para Krzysztof Kieslowski, é a mais relevante de todas: “Por que continuarmos vivos?” Como lidar com a angústia? Como lidar com a morte? Em meio à crise pela qual passa o Brasil e, particularmente, o Estado do Rio de Janeiro, multiplicam-se imagens extremas na mídia, no discurso, no cotidiano; imagens de dor, da violência, do desamparo, da morte. São 160 assassinatos em média por dia no Brasil. Estamos anestesiados pelo excesso e, na produção artística contemporânea, o gesto extremo reflete, como diria Paul Ardenne, “uma estética do limite ultrapassado”. A palavra extremo data da Idade Média e tem sua etimologia no latim extremus (super/o que está além) e exter (o que é exterior). Para Ardenne, o extremo “fura as bordas do real”, mas na contemporaneidade é vivenciado não como um ato cujo risco é a morte mesmo, mas como uma forma espetacular, absorvida corporalmente e composta de imagens e representações.

Após 11 de setembro de 2001, com o ataque às torres gêmeas em Nova York, vivemos o que Marie José Mondzain chamou de “o primeiro espetáculo histórico da morte da imagem na imagem da morte” (MONDZAIN, 2015MONDZAIN, Marie José. L’image peut-elle tuer? Montrouge: Bayard Éditions, 2015., p.9), o que inaugura um novo regime de comunicação da guerra. “É a guerra ela mesma e, com ela, a morte de cada um que se tornou uma performance” (pp.12-13). Na ocasião do 11 de setembro, uma declaração polêmica feita pelo compositor Karlheinz Stockhausen, que classificou os atentados como “a maior obra de arte de todos os tempos”, provocou forte reação da opinião pública. Para Mondzain, a questão que se coloca versa sobre o “tratamento performativo da realidade e a relação desse tratamento com a ficção” (MONDZAIN, 2015MONDZAIN, Marie José. L’image peut-elle tuer? Montrouge: Bayard Éditions, 2015., p.138). Não se trata, diz ela, de “dar forma por meio do pensamento e de gestos criativos a um real intratável, é a difusão massiva do informe que se reveste dos atributos da ficção” (MONDZAINMONDZAIN, Marie José. L’image peut-elle tuer? Montrouge: Bayard Éditions, 2015., p.138). Ou seja, há “um fantasma ficcional” no atentados de 11 de setembro, na criação de uma cena espetacular. “Uma nova ordem de coisas para os olhos e os ouvidos do planeta inteiro” (MONDZAINMONDZAIN, Marie José. L’image peut-elle tuer? Montrouge: Bayard Éditions, 2015., p.138-139). Nessa nova ordem, interessa-me refletir sobre o papel das imagens documentais inseridas no teatro contemporâneo. Qual é o interesse em expor imagens extremas? Como buscar novas formas de encenação que possibilitem que a “dimensão emancipadora do visível seja mantida” (MONDZAINMONDZAIN, Marie José. L’image peut-elle tuer? Montrouge: Bayard Éditions, 2015., p.139), fugindo da replicação do efeito anestésico obtido pela massiva exposição midiática da violência e de seu discurso reiterador (reitera - a -dor) que, em sua reprodução, banaliza a força do relato e da imagem traumática?

Uma premissa importante para fugir de uma simples reprodução sistemática de imagens violentas é possibilitar ao espectador a reflexão que atravessa dois verbos: o mostrar e o evocar. O filme “Goya”, de Carlos Saura, é um bom exemplo. Logo no início, os quadros do pintor ganham movimento, são imagens de guerra que saltam dos quadros, com cavalos, pessoas feridas, paisagens tingidas de sangue. Goya não tinha como objetivo simplesmente evocar imagens da guerra, mas preservar em cada uma delas uma autonomia sensível e um olhar agudo e político, problematizador da sociedade. Como afirma Sontag, na obra do pintor catalão “a guerra não é um espetáculo. E a série pintada não é uma narrativa” (SONTAG, 2002, p.52). Há um índice em cada imagem que traz uma força devastadora que Saura soube tão bem captar no filme ao recuperar os quadros de Goya e associar à imagem pictórica o fluxo do movimento fílmico. Algo que Mondzain afirma ao definir,“dar sua potência viva e transformadora às energias mortuárias, quer dizer, dar forma ao informe respeitando a indeterminação e a imprevisibilidade dos possíveis ao serviço da vida, aquela dos corpos e do pensamento” (MONDZAIN, 2015MONDZAIN, Marie José. L’image peut-elle tuer? Montrouge: Bayard Éditions, 2015., pp.148-9).

O teatro documentário tem uma tradição nos dramas históricos e em uma dramaturgia que recorre às fontes, seja por meio de imagens, relatos, notícias e documentos históricos, acentuando um caráter político à obra. Partindo dessa definição, interessa-me, na obra de Mroué, refletir sobre a função de uma cena fortemente marcada por um caráter documental ou, melhor ainda, dos “teatros do real”, para usar concepção mais recente de Maryvonne Saison; e mais especificamente sobre os efeitos do uso de imagens extremas na cena contemporânea. Efeitos do real que, ao contrário de buscar empatia e identificação por parte do espectador, provocam o que Jean-Luc Nancy refere-se como aquilo que na arte resta separado e é inconciliável, aquilo que “a precisão da imagem enlaça e desenlaça a cada vez” (NANCY, 2016NANCY, Jean-Luc. A imagem - o distinto. Outra travessia. Universidade Federal de Santa Catarina, 2 semestre de 2016, pp. 97-109., p.108). Falar dessa cena, em seu sentido político, é ocupar um lugar de alteridade, em que as imagens “provocam uma série de ricochetes (falamos também de ecos) ao infinito, e reiteram a experiência de alteridade do real” (SAISON, 1998SAISON, Maryvonne. Les théâtres du réel. Pratiques de la répresentation dans le théâtre contemporain. Paris: L’Harmattan, 1998., p.70).

Imagens da resistência

Em “Pixelated Revolution” (2015-2017), denominada por ele como palestra-performance ou palestra não acadêmica, o artista libanês Rabih Mroué (Beirute, 1967) abre uma polêmica sobre a classificação dessa obra. Inicialmente, em entrevistasMROUÉ, Rabih. Imagens até a vitória? Entrevista concedida ao Instituto Goethe. Brasileiro. Disponível em:Disponível em:https://www.goethe.de/ins/br/pt/kul/mag/20812525.html Acesso em: 20 de agosto de 2017.
https://www.goethe.de/ins/br/pt/kul/mag/...
, ele afirmou o caráter de semidocumental da obra, para ao fim se preocupar, com certa razão, com uma classificação redutora do gênero teatro documentário. É certo que estamos diante de uma cena expandida (entre o documentário e a ficção, entre o teatro e o vídeo, entre a performance e a palestra). Mroué parte de algumas questões norteadoras em sua obra “o que devemos esquecer, o que devemos lembrar? Como filmar a própria morte?” A reflexão sobre a relação entre memória e esquecimento, memória e representação da morte une-se à necessidade do artista de investigar o uso político das imagens documentais e seu impacto na vida cotidiana dos sujeitos. Seus trabalhos partem de experiências autobiográficas, sobretudo da guerra (1975-1990) e da pós-guerra civil libanesa, com a intenção de investigar as noções de “verdade, ficção, memória, esquecimento, desaparição e os mecanismos que regem as armadilhas da representação que, tal como ocorrem hoje, instauram novas e poderosas relações entre as imagens e os corpos” (TRINIDAD, 2017, p.1)TRINIDAD, Emma. Los rebeldes sírios están grabando sus propias muertes. Disponível em: Disponível em: https://emmatrinidad.wordpress.com/2013/11/21/rabihmroue . Acesso em: 15 de agosto de 2017.
https://emmatrinidad.wordpress.com/2013/...
. As armadilhas da representação, para Mroué, decorrem de dois tipos de imagem: uma que afirma a presença, outra que confirma a ausência. Ausência que se relaciona à exclusão dos habitantes do Líbano de uma imagem oficial, “a impossibilidade de viver como indivíduo nessa parte do mundo (..) uma espécie de cidadania perdida em um Estado ausente”. (MROUÉ, 2017MROUÉ, Rabih. O dramaturgo libanês Rabih Mroué e a morte das fotos.Tradução Paulo Migliaci. In: Arquivo aberto. Folha de São Paulo, 19/03/2017 (b).b, p.1). Mroué tenta fugir da armadilha, portanto, de representar o Oriente Médio ou seu país natal, daí a profusão de textos e imagens autobiográficas em sua obra. Um sujeito ausente na própria imagem é alguém, em muitos casos, sem pouso, sem destino; alguém que perdeu o refúgio naquilo que lhe é familiar: sua origem, pertencente a um território destruído, faz-se presente nos escombros e no que a imagem não revela.

Figura 1
Pixelated Revolution (2012). Cortesia do artista

Para Mroué, a função do artista hoje seria não mais a de criar novas imagens em um mundo saturado delas, mas de se apropriar do que existe, com o intuito de interferir e questionar a realidade. Em “Pixelated Revolution”, sentado em uma mesa, ele apresenta ao público e analisa imagens realizadas pelos manifestantes sírios, por meio de aparelhos celulares, e divulgadas na Internet. Imagens enquanto exercício político de ver/rever/denunciar na rede a guerra diária à qual estavam cruelmente expostos. Ao catalogar tais imagens, Mroué toma como guia um “Antimanifesto”, uma lista de conselhos para filmar uma manifestação na qual propõe alguns procedimentos criados a partir da leitura das informações que os próprios manifestantes sírios propagavam na Internet na tentativa de se protegerem da guerra. Procedimentos que lembram os dispositivos do Dogma 95. Entre eles, por exemplo, estão “Procure filmar as manifestações de trás”, “Para os planos curtos filme somente os corpos”, “Assegura-te de filmar o rosto quando alguém está atacando ou sendo atacado”, “É preferível não indicar o nome do diretor”. A metodologia de documentação das imagens é repensada em uma guerra cuja potência virtual é desestabilizadora e cumpre um papel relevante de denunciar o sistema político opressor. Refletir sobre a criação de imagens e seus usos é também buscar estratégias de afetar/provocar o espectador para a percepção da emergência de uma nova estética das imagens. Tal percepção está relacionada ao modo de olhar, compreender e manipular as tecnologias.

Mroué opta por expor não apenas as imagens mas a relação entre o gesto de filmar, o olhar (para a realidade captada) e a palavra que busca tão somente analisar esta relação. A palavra do artista percorre o intervalo entre o olho, o gesto e o objeto do olhar. Mroué parte da pergunta: “o que ler nessa imagem?” para, na sequência, expô-la ao espectador, seguindo a descrição técnica do plano ao acompanhar a perspectiva de quem filma. Cada detalhe do quadro é descrito com o objetivo de percorrer o espaço que vai do olho do cameraman ao objeto filmado. Para ele, “o olho e a câmera são um só”; isto é, “a câmera é parte integral do corpo”, e ainda “as câmeras não são câmeras, mas olhos implantados nas mãos”.

Só aos poucos vamos entendendo como olhar e compreender essas tecnologias. Então, quando os manifestantes usam seus celulares, colocando-os na frente dos olhos e olhando através das lentes para ver o que está acontecendo, esse olho não está ainda acostumado a entender o que está vendo em uma tela mínima, a fim de encaminhar ao cérebro os sinais de reação imediata. Por isso que os manifestantes não saíram correndo quando viram que uma arma estava se movendo em direção a eles. Acho que precisamos fazer um treinamento de como usar as tecnologias. Isso leva tempo. (MROUÉ, 2017MROUÉ, Rabih. O dramaturgo libanês Rabih Mroué e a morte das fotos.Tradução Paulo Migliaci. In: Arquivo aberto. Folha de São Paulo, 19/03/2017 (b).)

Em “Pixelated Revolution”, as imagens exibidas por Mroué aparecem, em alguns casos, fora de foco e movimentam-se como se coladas aos corpos dos manifestantes; em outros, são pixeladas, vindas de aparelhos celulares de baixa resolução e do tremor-temor do ato de filmar uma situação em que o risco de morte interfere diretamente na estética da imagem produzida. Uma imagem-combate, uma imagem-redentora que é documento e, ao mesmo tempo, se propaga no gesto. Um gesto que capta o frame com a velocidade e o impulso da urgência de um tempo que pode terminar a qualquer momento para quem filma e para quem é filmado. Entre sujeito e objeto, o duplo disparo.

Filmar a própria morte: a cena fora de cena

Trato agora as imagens provenientes de um “duplo disparo”: o disparo do soldado franco-atirador e o disparo da câmera do celular do manifestante, como aquele que recebe um tiro ao filmar um soldado. Assim como aquele que filma, somos atingidos pelo disparo, como no documentário A batalha do Chile (1975), de Patrício Guzman, que apresenta uma cena próxima ao revelar a imagem do cameraman atingido por um disparo mortal realizado por um militar na ditadura chilena. Filmar a própria morte é, retomando Ardenne, furar as bordas do real, um momento de ruptura; não é mais o olhar do sujeito que filma que está em questão. O tiro reduz a distância entre olhar e ser olhado, entre sujeito e objeto, entre imagem e realidade. Há algo da ordem de um fora da imagem, alguma coisa intraduzível porque estamos diante da morte não apenas do sujeito mas da própria cena documental. A câmera se descola do corpo de quem filma e cai no chão, a imagem se descola da obra documental a que se propõe Mroué. Há algo que escapa: o momento exato da morte que não pode ser registrado.

Segundo o artista, vemos o corpo que cai no chão em um hors champ, mas não podemos ver o exato momento da morte. Não que a morte não possa ser filmada, não se trata disso; mas, ao analisar mais de setenta e dois frames, Mroué não conseguiu localizá-la com exatidão. Segundo ele, há uma fronteira não detectável entre a vida e a morte. “A gente não consegue agarrar o momento da morte com nosso olho nu. Mesmo se estivermos aptos a paralisar o nosso olhar e manter nossos olhos bem abertos o tempo inteiro, sem piscar.” (MROUÉ)

Mas por que o olho do cameraman não sabe ainda que irá testemunhar a própria morte? Para Mroué, o dispositivo câmera realiza uma espécie de mediação. O cameraman tem a impressão de que não faz parte da cena, que se trata de uma ficção produzida por ele mesmo. A hipótese que move toda a investigação de Mroué é a de que os manifestantes sírios estejam tão habituados a um imaginário da tela, que percebam a própria morte dentro da imagem. São espectadores de si. O filme-documento reflete a vida e também a morte. Ocupa um lugar liminar. E é com essa perspectiva que nos reconhecemos no gesto de quem filma. De certa forma, somos também alvos dos disparos. A imagem como arquivo de um momento histórico segue atemporal, é referência de muitas outras.

Le Metope Del Paternone: o enigma da morte anunciada

Dez dias após os atentados em Paris, Romeo Castellucci estreou a performance “Le Metope Del Partenone”, em um galpão no Théâtre de la Villette, em Paris. De início, decidiu ler um pedido de desculpas sobre as imagens chocantes que iria apresentar ao espectador, e também um aviso para aqueles que não teriam condições de permanecer na sala, seja por extrema sensibilidade diante dos ataques recentes, seja pela perda de um ente querido. Alguns espectadores se retiraram da sessão a que assisti. Inicialmente, Castellucci afirmava que a performance já havia sido apresentada na feira contemporânea de Basel, em 2015, e que nada havia sido modificado, “nem as ações, nem o tempo, nem o modo dramático”. (CASTELLUCCI, 2016CASTELLUCCI, Romeo. Entretien. Une fois que la tragédie entre. Propôs recueillis par Jean-Louis Perrier. In: Portrait Romeo Castellucci. Festival d’Automne à Paris. 20 novembre 2015-9 janvier 2016. Paris: Festival d’Automne/France Culture, maio de 2015a. , p.1). De toda forma, sua reapresentação naquele momento, guardada a coincidência, despertou no diretor um interesse renovado sobre a temática abordada. Diz o trecho da carta:

Agora, sou eu que falo, Romeo Castellucci; quero falar sobre meu estado de espírito. Esta ação tem a desgraça particular de conter imagens idênticas as quais os parisienses acabaram de vivenciar há alguns dias. Esta ação tem a desgraça particular de ser um espelho atroz do que aconteceu nas ruas dessa cidade. Imagens difíceis de suportar, obscenas na sua exatidão inconsciente. Sozinhos, vocês podem decidir o que fazer. Ficar ou partir. Estou consciente de que muito pouco tempo se passou para tratar essa massa enorme de dor e que nossos olhos estão sempre muito abertos pela claridade da violência. Estou consciente disso e peço perdão. Mas estou impotente e não posso fazer nada face ao irreparável que o teatro representa. Nesse momento, me parece mais humano estar aqui. Estar aqui essa noite significa que é necessário ser presente e vivo diante dos mortos. (CASTELLUCCI, 2015bCASTELLUCCI, Romeo. Carta aos espectadores. In: Folheto do espetáculo. Paris, novembro de 2015b., p.1)

O espetáculo surge de uma experiência autobiográfica do diretor: a vivência da morte acidental de seu amigo Alfredo Tassi, aos 27 anos, no palco, em seus braços, ao experimentar um maquinário que havia inventado para o espetáculo “Inferno”. Para o diretor, o sentimento de impotência diante da dor e da morte do outro o fez repensar sobre a sua atitude diante da vida e da sua própria obra. O Partenon de Castellucci, transformado em um espaço público, citadino, uma alusão direta à tragédia grega e ao enigma de Édipo, apresenta uma dupla proposição: o uso de atores e de não atores (paramédicos, enfermeiros e motoristas de ambulância); o tênue limite entre ficção e realidade, entre teatro e performance, entre imagem e escritura. “O Partenon que é o fundamento estético ocidental representa a beleza. Que significa a referencia à beleza quando esta mostra a dor?” (CASTELLUCCI, 2015, p. 11) Com o objetivo de provocar um efeito de real às imagens extremas apresentadas ao espectador, o diretor opta em aproximar o espaço cênico do espaço da rua; um espaço de trânsito no qual nos movemos todos os dias, muitas vezes distraídos e anestesiados diante de imagens violentas que, em alguns casos, são reflexos da desumanidade e da falta de compaixão.

Sem cadeiras, em um grande galpão, com um telão ao fundo, o espectador é convidado a percorrer o espaço e acompanhar como um voyeur os seis momentos que compõem o trabalho. São seis pessoas que sofrem acidentes diversos na rua e são atendidas sem sucesso por paramédicos (um homem queimado, uma mulher cuja perna foi amputada em um acidente, um caso grave de alergia, um homem que sofre um politraumatismo, um outro que sofre um ataque cardíaco). A violência proveniente da exibição dos corpos feridos, deformados, decapitados é esteticamente preparada, e a cena segue um ritual repetido: atores entram em cena e preparam a maquiagem das “vítimas” que performatizam o acidente aos olhos dos espectadores. Após a preparação, a cena tem seu início. Ouvimos a sirene de uma ambulância que entra na sala. Automaticamente, nos colocamos em círculo em torno dos feridos, como nos acidentes nas ruas. A preparação do corpo acidentado que antecede o suposto acidente provoca um distanciamento inevitável. Por outro lado, a entrada de paramédicos (não atores) desperta um efeito de real e uma reação no público em que o voyerismo aparece em primeiro plano. Queremos ser testemunhas da morte do outro, há um fascínio experimentado diante do corpo ferido, da precariedade, da fugacidade, da fragilidade humana diante do fim trágico. Ao fim, restam sobre o chão fluidos corporais como pinturas de Pollock, como actions paintings.

Figura 2
Plastikartstudio@

Castellucci cria uma cena em que a morte é anunciada, mas nem por isso menos trágica e traumática. Revela o que todos sabemos: a violência do cotidiano é dada por certa, somos conscientes dela, mas nem por isso, ou talvez exatamente por isso, refletimos sobre ela como algo alhures. Somos cena e fora de cena. Somos parte da realidade violenta, mas nos projetamos fora dessa mesma realidade, como um exercício de sobrevivência. Ao contrário de decifrarmos enigmas projetados em paredes, diante da crueldade do deus Apolo e do excesso de imagens a que estamos submetidos todos os dias, não desejamos o exercício da reflexão/decifração. Para Castellucci, precisamos recuperar “a ideia do escândalo no sentido grego. O escândalo é a pedra que faz com que se caia, que obriga a interromper a marcha e considerar a sua posição por impor uma escolha. A estética impõe escolher” (CASTELLUCCI, 2015, p.11). Ao optar por um entre lugar, entre a performance e o teatro, entre a ficção e a realidade, o diretor busca romper o movimento que adotamos como forma de preservar nossa integridade. Ver o excesso, por meio de imagens traumáticas, coloca-nos em uma posição vulnerável, nem espectatorial, nem participativa, expondo nossa letargia. Tal qual a vida, na obra revelada.

No dia em que a assisti, curiosamente uma espectadora tentou ajudar uma performer que tinha a perna decapitada. A imagem era forte porque realmente ela não tinha a perna, o que inevitavelmente nos fazia imaginar o momento mesmo em que havia ocorrido o acidente. A espectadora, diante da imagem hiper-realista, interviu na cena, na tentativa de ajudar a moça. Imediatamente, foi retirada pela equipe de produção do espetáculo, o que provocou uma quebra do contrato ficcional a que estávamos todos submetidos. Ao acreditar na cena e desejar ser cena, ela cumpria o que artisticamente talvez fosse o desejo do diretor.

Olhos do avesso: imagem da cena do real

O juízo impede a chegada de qualquer novo modo de existência. Pois este se cria por suas próprias forças, isto é, pelas forças que sabe captar, e vale por si mesmo, na medida em que faz existir a nova combinação. Talvez esteja aí o segredo: fazer existir, não julgar. Se julgar é tão repugnante, não é porque tudo se equivale, mas ao contrário porque tudo o que vale só pode fazer distinguir-se desafiando o juízo. Qual juízo de perito, em arte, pode incidir sobre a obra futura? (DELEUZE, 1997DELEUZE, Gilles. Para dar um fim ao juízo. In: Crítica e Clínica. São Paulo: Ed. 34, 1997., p.153)

A cena contemporânea brasileira é reflexo do brutal combate à liberdade artística e da tacanha percepção de que a arte, estigmatizada, pode e deve ser censurada, uma vez que, para alguns, é vista como um risco eminente, representando um potencial ofensivo, ameaçador à “moral e aos bons costumes”. É assim que, em 2017, no Brasil, assistimos incrédulos a fechamentos de exposições, censura a espetáculos e a obras consideradas potencialmente perigosas à sociedade. Felizmente, nem todos têm olhos voltados à literalidade da imagem dissociada de seu contexto e desfocada para a criação fabular do todo ameaçador, nem tampouco à ideia de uma imagem ou obra que possua o potencial de exterminar o sujeito ou alimentar fúrias psicopáticas coletivas contra um sistema qualquer. Todo julgamento da arte como valor estético e/ou moral, portanto, deveria ser reduzido, como diz Deleuze ao retomar Spinoza, a um “problema de amor e ódio, não de juízo” (DELEUZE, 1997DELEUZE, Gilles. Para dar um fim ao juízo. In: Crítica e Clínica. São Paulo: Ed. 34, 1997., p.153).

Quando Marie José Mondzain pergunta se uma imagem pode matar, título de seu livro, ela se refere à ideia equivocada de que existem imagens boas e ruins em função de seus conteúdos, o que estimula uma espécie de ditadura das paixões e impede a liberdade do olhar. A força da imagem reside na sua irrealidade, na sua “rebelião contra toda substancialização de seu conteúdo” (MONDZAIN, 2015MONDZAIN, Marie José. L’image peut-elle tuer? Montrouge: Bayard Éditions, 2015., p. 39). Entre o visível e o invisível constituinte de toda imagem e/ou obra, existe o olhar que os relaciona. Logo, a imagem não é senão uma “construção humana”, e o julgamento que promove a culpabilização ou pretende a interdição de uma imagem e/ou obra artística apresenta uma estranha lógica, tal qual “a visão de uma cadeira nos impõe que nos sentemos”.

“Revirar os olhos do avesso” é um convite para a reflexão sobre o desejo de ver no real outras cenas e/ou de analisar as cenas do real fugindo da estereotipia e da normatização que (de)forma nosso olhar e viola nossa alteridade. Refletir juntos sobre novos regimes do visível talvez nos faça suportar esses tempos sombrios, e possibilite a descoberta de novos modos coletivos de agir e de ver.

Referências bibliográficas

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    » https://emmatrinidad.wordpress.com/2013/11/21/rabihmroue
  • Gabriela Lírio Gurgel Monteiro é fundadora e professora do Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena (PPGAC/ECO-UFRJ), que coordenou de setembro de 2013 a setembro de 2015. É professora do curso de Direção Teatral da Escola de Comunicação da UFRJ. É autora dos livros A procura da palavra no escuro (7Letras, 2001) e organizadora de Interseções: Cinema e Literatura (7Letras, 2010). Desenvolve atualmente a pesquisa “A teatralidade cinematográfica e o uso de novos dispositivos na produção de imagens” (PIBIC/CNPq) e “Autobiografia na cena contemporânea”. Publicou artigos em periódicos diversos, nacionais e internacionais. Possui Doutorado em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2004) e Doutorado sanduíche pela Université Paris III (Sorbonne-Nouvelle) (2002), sob orientação de Georges Banu. Em 2016, concluiu Estágio Sênior (CAPES/2016), com supervisão da profa. Dra. Josette Féral, na Université Paris III- Sorbonne Nouvelle, desenvolvendo a pesquisa intitulada “Teatro e Tecnologia”. E-mail: gabilirio@yahoo.fr

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Ago 2018

Histórico

  • Recebido
    03 Set 2017
  • Aceito
    30 Nov 2017
Programa de Pos-Graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras -UFRJ Av. Horácio Macedo, 2151, Cidade Universitária, CEP 21941-97 - Rio de Janeiro RJ Brasil , - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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