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A dignidade e o ridículo da poesia: autoria, história e destinação em Le Spleen de Paris

Dignity and the ridiculous of poetry: authorship, history and destination in Le Spleen de Paris

Resumo

Leituras tradicionais de textos de Le Spleen de Paris, como as de Jean Starobinski e Walter Benjamin, dão destaque para a figura do bufão e para a atitude burlesca. Nessas análises, os poemas em prosa baudelairianos são vistos como testemunhos travestidos de uma experiência biográfica e histórica. O presente artigo procura apontar os inconvenientes da associação mecânica entre autor histórico e sujeito poético, colocando em primeiro plano elementos da obra de Baudelaire que levariam a considerar de outro modo a ideia do “declínio” do gênero poético.

Palavras-chave
Charles Baudelaire; Poema em prosa; Ironia; História

Abstract

Traditional readings ofLe Spleen de Paris, as those made by Jean Starobinski and Walter Benjamin, highlight the figure of the buffoon and the burlesque attitude. In these analysis, Baudelaire’s prose poems are considered as disguised testimonies of a biographical and historical experience. This paper aims to point out the inconvenience of an automatic association between the poet himself and the poetical subject, emphasizing aspects of Baudelaire’s writing which would lead us to consider otherwise the idea of ​​the “decline” of poetry.

Keywords
Charles Baudelaire; Prose poem; Irony; History

Résumé

Les lectures traditionnelles du Spleen de Paris, comme celles de Jean Starobinski et Walter Benjamin, soulignent la figure du bouffon et l’attitude burlesque. Dans ces analyses, les poèmes en prose baudelairiens sont envisagés en tant que témoignages travestis d’une expérience biographique et historique. Cet article cherche à désigner les inconvénients de l’association simple entre l’auteur historique et le sujet poétique, mettant au premier plan des éléments de l’œuvre de Baudelaire qui exigeraient de considérer d’une autre façon l’idée du déclin de la poésie.

Mots-clés
Charles Baudelaire; Poème en prose; Ironie; Histoire

O problema do “autorretrato travestido”

Em seus estudos sobre o patético trágico, no qual se destaca o livro Portrait de l’artiste en saltimbanque (2004; originalmente, de 1970), Jean Starobinski STAROBINSKI, Jean. Portrait de l’artiste en saltimbanque. Paris: Gallimard , 2004.reconhece no bufão, no palhaço, no saltimbanco, no mímico, no louco, em elementos circenses ou carnavalescos, uma figura das mais comuns da poesia e da arte nos séculos XIX e XX. Interpretada como sintoma da decadência social, que ocorre com a passagem do mecenato aristocrático para a vida burguesa, essa figura remeteria ao aspecto trágico da situação moderna das artes: personagens derrisórios se tornam, para o autor, uma espécie de “alter ego”, uma alegoria da arte e do artista. Baudelaire ocupa um lugar de destaque nessa interpretação, pois é em sua poesia que Starobinski reconhece o início do tratamento propriamente alegórico do tema.

Em texto anterior (de 1967STAROBINSKI, Jean. Sur quelques répondants allégoriques du poète. Revue d'histoire littéraire de la France, LXVII, 2 (avril-juin 1967), pp. 402-412.), “Sur quelques répondants allégoriques du poète”, o autor explora mais detidamente a referência ao poeta, mobilizando dois poemas de Le Spleen de Paris (também conhecido como Pequenos Poemas em Prosa): “Une mort heroïque” e “Le vieux saltimbanque”. O primeiro tematiza a relação conflituosa do artista com seu mecenas, e o segundo a situação da arte como diversão vendida em praça pública. Curiosamente, Starobinski não aborda a questão temática, a não ser como cenário, como “passado legendário” (p. 403-404STAROBINSKI, Jean. Sur quelques répondants allégoriques du poète. Revue d'histoire littéraire de la France, LXVII, 2 (avril-juin 1967), pp. 402-412.), preferindo situar a figura do artista, em ambos os textos, como verdade moderna da obra de Baudelaire, ou seja, como “máscara” característica do século XIX.1 1 Não considera, por exemplo, para sua leitura de “Une mort heroïque”, as posições que Baudelaire expressa sobre a Revolução Francesa e sobre a questão do “sacrifício”, o que leva a subestimar igualmente, a pretexto da “exterioridade do acontecimento”, a condição de “revolucionário” do artista bufão e o fato de que o príncipe é também artista (“Assez indifférent relativement aux hommes et à la morale, véritable artiste lui-même” [Suficientemente indiferente em relação aos homens e à moral, verdadeiro artista ele próprio]; BAUDELAIRE, 1975, p.320). O importante para Starobinski é que, em ambos os textos, é comum a ideia da máscara: a máscara do patético-trágico, entendida como alegoria do artista.

Mais especificamente, é ao mostrar especial atenção à camada textual, destacando a figura do “narrador-testemunha” que o autor se aproxima desse propósito. O narrador é o terceiro termo da relação entre artista e mecenas, artista e público, que oferece a Starobinski as evidências de que o tema em Baudelaire funciona como uma forma de máscara. Cito o trecho final do artigo, que ajuda a entender o raciocínio como um todo:

Nombreux sont les poèmes en prose où Baudelaire se met lui-même en scène, en qualité de témoin et de narrateur. Mais, j’y insiste, « Une Mort héroïque » et « Le Vieux Saltimbanque » présentent une analogie supplémentaire : dans l’un et l’autre texte, le témoin est saisi brusquement d’une émotion violente […]. Dans les deux cas, la relation essentielle, cessant de se jouer exclusivement entre la victime et le bourreau, devient une relation « triangulaire ». Le narrateur-témoin, dont la charité démonstrative vient établir tout ensemble un rapport de contraste et de connivence avec la cruauté de l’événement, recueille l’image d’une agonie, au sens fort du terme, pour s’en faire à lui-même l’application symbolique. Le spectacle, dès lors, s’intériorise, et le poème se parachève dans l’épiphanie d’une signification qui, en approfondissant le monde extérieur, annule l’extériorité de l’événement représenté. La conscience de la mort et de l’impuissance de l’art donne ainsi naissance à un nouvel art, à un art foncièrement moderne. (STAROBINSKI, 1967STAROBINSKI, Jean. Sur quelques répondants allégoriques du poète. Revue d'histoire littéraire de la France, LXVII, 2 (avril-juin 1967), pp. 402-412., p.412)

[Numerosos são os poemas em prosa nos quais Baudelaire se coloca ele próprio em cena, na qualidade de testemunha e narrador. Porém, insisto, “Une mort héroïque” e “Le vieux saltimbanque” apresentam uma analogia suplementar: tanto em um quanto em outro, a testemunha é tomada bruscamente por uma emoção violenta[...]. Nos dois casos, a relação essencial, deixando de ocorrer exclusivamente entre a vítima e o carrasco, torna-se uma relação “triangular”. O narrador-testemunha, cuja caridade demonstrativa estabelece ao mesmo tempo uma relação de contraste e de conivência com a crueldade do acontecimento, carrega a imagem de uma agonia, no sentido forte do termo, a fim de fazer sobre si mesmo uma aplicação simbólica. A partir daí, o espetáculo se interioriza e o poema termina com a epifania de uma significação que, aprofundando o mundo exterior, anula a exterioridade do acontecimento representado. A consciência da morte e da impotência da arte concebe assim uma nova arte, uma arte profundamente moderna.]

Para Starobinski, o poeta está “ele próprio” em cena, como aconteceria em vários outros textos em prosa de Baudelaire. Isso só se torna possível graças ao dispositivo da narração em forma de testemunho, na qual o narrador (ou sujeito do poema)2 2 Starobinski usa os termos “narração” e “narrador” para tratar dos textos em prosa de Baudelaire. Uma vez que estamos falando de um livro de poemas em prosa (sem prejuízo para o dispositivo narrativo, que não é conflitante com a retórica da poesia), e uma vez que Spleen de Paris coloca em cena modos retóricos variados, preferirei falar de “texto” e “sujeito” poético. se mostra emocionado pela má sorte do artista. Esse seria o “salto” baudelairiano que, por meio de uma aplicação a si mesmo da situação de agonia, demonstra a consciência da morte da arte característica da modernidade, dando à figura do patético trágico seu caráter propriamente alegórico.

Starobinski se preocupa, portanto, em zelar pela estrutura textual, evitando o logro analítico da mera atenção à exterioridade representativa. Uma hábil referência à relação em “triângulo” coloca em primeiro plano a questão da narração e, portanto, desloca a atenção do enunciado para o âmbito da enunciação. Por outro lado, a associação entre o ponto de vista autoral e o estado de espírito alegado pelo narrador (a emoção violenta pela qual se diz tomado) não me parece automática. Se a desconfiança em relação à sinceridade do sujeito já é um tópico conhecido de Les fleurs du mal, o caso de Le Spleen de Paris me parece merecer ainda mais cuidados.

Em “Le vieux saltimbanque”, em específico, o cálculo do ponto de vista textual é bem mais complexo do que a mera emoção do sujeito que narra. O texto trabalha, de fato, uma alegoria do poeta ou do artista,“dégradé par sa misère et par l’ingratitude publique” [dégradé par la misère et “degradado por sua miséria e pela ingratidão do público],3 3 As citações em português de Le Spleen de Paris são retiradas da edição brasileira de 2018, em tradução de Isadora Petry e Eduardo Veras. associado explicitamente ao “viel homme des letres” [velho homem de letras] (BAUDELAIRE, 1975, p.279) BAUDELAIRE, Charles. Œuvres complètes, v.I. Paris: Gallimard, 1975.. Essa alegoria, no entanto, é cercada de vários elementos que não são considerados na leitura de Starobinski.

O cenário do texto é de uma espécie de quermesse ou de parque de diversões ao ar livre. Nele, a alegria é dada por elementos materiais baixos. O cheiro de fritura é caracterizado como “incenso” da festa popular (“une odeur de friture qui était comme l’encens de cette fête.” [um cheiro de fritura que era como o incenso daquela festa], p. 296BAUDELAIRE, Charles. Œuvres complètes, v.I. Paris: Gallimard, 1975.). O lazer é definido como interrupção infantilizante do trabalho embrutecedor, que não deixa espaço para o risco (“la certitude du pain pour les lendemains” [a certeza do pão de amanhã], p. 296BAUDELAIRE, Charles. Œuvres complètes, v.I. Paris: Gallimard, 1975.), substituindo a capacidade de padecer e renascer pela mera suspensão pacificadora (“un armistice conclu avec les puissances malfaisantes de la vie” [um armistício firmado com as potências malignas da vida], p. 295BAUDELAIRE, Charles. Œuvres complètes, v.I. Paris: Gallimard, 1975.). O entretenimento só é patético na medida em que se alimenta de seu lugar comum. Reconhecemos nessas alusões, tratados com leve ironia, temas e posições baudelarianos (expostos, por exemplo, nos seus Journaux intimes) sobre a vida cotidiana e sobre a postura do artista. Neste cenário de animação barata, o artista é o saltimbanco desanimado, exilado às margens do espetáculo, em sua barraca abandonada. Não é um elemento heterogêneo ao cenário: apenas um concorrente vencido. O sujeito do texto não vê muito sentido em perguntar ao saltimbanco o que havia por trás de sua cortina em farrapos, reconhecendo ali uma espécie de teatro, de palco simbólico, no qual a cortina é o dispositivo básico. Não apenas o artista é reconhecido pelo sujeito, como sua atitude mostra que, ele próprio, saltimbanco, se reconhece na miséria, na crise de sua arte. A questão se duplica, se aprofunda, flerta com a lógica da mise en abîme.

O sujeito narrador declara inicialmente ter medo de “humilhar” o artista, ao abordá-lo:

Que faire ? À quoi bon demander à l’infortuné quelle curiosité, quelle merveille il avait à montrer dans ces ténèbres puantes, derrière son rideau déchiqueté ? En vérité, je n’osais ; et, dût la raison de ma timidité vous faire rire, j’avouerai que je craignais de l’humilier. (p.296)

[O que fazer? De que adianta perguntar ao infortunado que curiosidade, que maravilha ele tinha para mostrar nessas trevas fétidas, atrás de sua cortina em farrapos? Na verdade, não ousei; e, ainda que a razão de minha timidez lhes faça rir, confessarei que temia humilhá-lo.]

Trata-se de um elemento de difícil interpretação, valorizado pelo texto. A situação parece grave, e o sujeito narrador hesita. Eu diria que há aí uma encenação do sacrifício como modo de relação com o espaço público.4 4 A questão do sacrifício é um aspecto fundamental da poética de Baudelaire, já tratada por estudiosos como Pierre Pachet (1976), podendo ser associada a noções como “sacrifício”, “destruição”, “reversibilidade” e, portanto, à reflexão teológica e à obra de Joseph de Maistre. Pachet também se interessa, em seu estudo, pela questão do sujeito e sua atitude de irreverência. Para o sujeito narrador, abrir a cortina desse teatro do sacrifício corresponderia a uma interrupção violenta de sua lógica, privando o artista da honra de sua renúncia (“Il avait renoncé, il avait abdiqué. Sa destinée était faite.” [Havia renunciado, abdicado. Seu destino estava consumado.], p. 296BAUDELAIRE, Charles. Œuvres complètes, v.I. Paris: Gallimard, 1975.). Há aí toda uma camada de sentido que desloca a alegoria geral do texto, tal como descrita por Starobinski. Pode-se dizer que o sujeito que narra não se reconhece, de imediato, no saltimbanco: ele reconhece, ele compreende, antes de mais nada, o sentido do ato que o artista protagoniza. O que está em questão nesse momento não é exatamente o sentimento de identificação, mas a preocupação com a encenação sacrificial da arte. A cena está armada, mas não pode ser interrompida.

O sujeito do texto conclui, então, que deixaria algum dinheiro de passagem ao saltimbanco, esperando que ele adivinhasse sua intenção (“je venais de me résoudre à déposer en passant quelque argent sur une de ses planches, espérant qu’il devinerait mon intention”, p. 296BAUDELAIRE, Charles. Œuvres complètes, v.I. Paris: Gallimard, 1975.). Interpretada como desejo de cumplicidade ou de comunidade com o velho artista, esse gesto de reconhecimento do “espetáculo” de seu declínio, de seu gesto sacrificial, não se completa efetivamente. A identificação do artista como possível semelhante é interrompida pela inexorabilidade do mal (das “potências malignas da vida”) aqui associado ao movimento massivo da multidão. Se o texto se conclui com a elucidação didática da alegoria, a cena ela mesma não realiza a aproximação do sujeito e do saltimbanco. Simbolicamente, portanto, haveria razões para ver aí uma falha do dispositivo de “identificação” ou de “exemplaridade”: não há confirmação da hipótese sacrificial levantada pelo sujeito do texto, tampouco há na cena protagonizada por ele uma reencenação do teatro da dor do artista.

Antes que uma perfeita situação alegórica, construída à base do reconhecimento mútuo, o que temos associada à tristeza do sujeito é a reafirmação da dificuldade ou da impossibilidade desse reconhecimento. Na figura dessa persona que observa não está em jogo apenas uma atitude emocional diante da crise da arte, mas a impotência de fazer valer seu teatro sacrificial. Apenas quando levado pela multidão, ele se volta (“m’en retournant”), torna a olhar para a cena e explicita o sentido geral do que acabara de ver:

Et, m’en retournant, obsédé par cette vision, je cherchai à analyser ma soudaine douleur, et je me dis: Je viens de voir l’image du vieil homme de lettres qui a survécu à la génération dont il fut le brillant amuseur; du vieux poëte sans amis, sans famille, sans enfants, dégradé par sa misère et par l’ingratitude publique, et dans la baraque de qui le monde oublieux ne veut plus entrer !” (p.297)

[E, ao retornar, obcecado por aquela imagem, procurei analisar minha repentina dor, e então disse a mim mesmo: acabo de ver a imagem do velho homem de letrar que sobreviveu à geração da qual ele foi o brilhante animador; do velho poeta sem amigos, sem família, sem crianças, degradado por sua miséria e pela ingratidão do público, e em cuja barraca o mundo ingrato não quer mais entrar!]

É, portanto, apenas após o contato com essa “visão”, ao dar sentido à sua dor, que o sujeito conclui que ali estava em jogo a figura do artista, a questão mais geral da literatura. Apenas ao se ver privado do contato cúmplice é que a própria alegoria geral vem a ser enunciada.

O sujeito que diz “eu” dentro do texto, e que Starobinski trata como uma máscara de Baudelaire, tem uma função textual que não é necessariamente a de porta-voz do autor. A autodefinição do sujeito como “bom parisiense” (“je ne manque jamais, en vrai Parisien, de passer la revue de toutes les baraques qui se pavanent à ces époques solennelles” [nunca deixo, como bom parisiense, de passar em revista a todas as barracas que se exibem nessas épocas solenes], p. 295BAUDELAIRE, Charles. Œuvres complètes, v.I. Paris: Gallimard, 1975.), por exemplo, contrasta com a crítica do provincianismo que encontramos no conhecido ensaio “O pintor da vida moderna”. Igualmente, a solução monetária encontrada por ele a fim de empreender uma cumplicidade no sacrifício só poderia ser considerada seriamente (tendo em vista a relação problemática com a lógica comercial burguesa) se colocada em relação com a ideia da “moeda falsa” (tema de outro texto de Le Spleen de Paris).

Além disso, é importante lembrar que há outro tipo de cumplicidade sugerido pelo texto: não a cumplicidade com o saltimbanco, mas com o interlocutor. O sujeito imagina que sua intromissão na cena do artista parecerá risível ao seu leitor (“dût la raison de ma timidité vous faire rire, j’avouerai que je craignais de l’humilier” [ainda que a razão de minha timidez lhes faça rir, confessarei que temia humilhá-lo]), alguém que não entenderia o sentido simbólico do teatro sacrificial protagonizado pelo saltimbanco. O sujeito mostra uma sintonia fina com as expectativas desse interlocutor, ainda que isso o leve a se explicar. O leitor ou interlocutor é, portanto, o quarto elemento da cena, não considerado por Starobinski - um dos elementos que exigem a reconsideração da geometria triangular da análise do texto.

Ou seja, consideradas as características atribuídas ao sujeito, não apenas há bons motivos para hesitar sobre sua perfeita convergência com a cena da renúncia, como caberia também questionar a identificação inequívoca entre sua emoção e o sentimento experimentado por Baudelaire. Pelo contrário, se pensarmos na preocupação que esse “bom parisiense” tem com as reações do leitor, não estaria totalmente fora de questão considerar a cena da compaixão pelo artista como uma espécie de impostura. O sujeito identifica-se com o artista? Que tipo de artista? Ou então, ao fazer essas declarações cheias de bom senso e de bons sentimentos, coloca em cena ironicamente hábitos e valores médios característicos da vida burguesa do século XIX?

Não há como estabelecer cabalmente esse ou aquele sentido. Mas há razões senão para recusar ou ao menos para desconfiar da leitura habitual do texto, entendido como ponto de vista de um sujeito piedoso (com sua “caridade desmonstrativa”, como diz Starobinski) identificado ao autor, que lamentaria o declínio moderno do artista.5 5 Estudos de Michel Deguy sobre Baudelaire (2012) mostram como o autor recusa a lógica tradicional da “piedade” (ou da caridade). Tal dispositivo de relação entre ética e estética não deixa de comunicar com a crítica baudelairiana do discurso humanitário ou “fraternitário”. Em Le Spleen de Paris, “À ‘prostituição fraternitária’, possível referência à utopia republicana de Proudhon (LABARTHE [...]), o poeta opõe a ‘santa prostituição’ da poesia [‘Les Foules’] [...], que pressupõe uma ‘comunhão’ crítica com o lugar-comum, um oximórico autossacrifício sem aniquilação da individualidade.” (VERAS, 2017, p.179). No fundo, o que encontramos na leitura de Starobinski é o que eu chamaria de um pressuposto lírico - se entendermos “lirismo” (de acordo com seus detratores) como termo que remete ao expressivismo romântico, à identificação entre autor e sujeito lírico. Ainda que evoque um dispositivo irônico em Baudelaire, tal dispositivo parece funcionar apenas no interior do pressuposto lírico, deixando em segundo plano as consequências mais radicais das estratégias de ironia e de sarcasmo amplamente utilizadas por Le Spleen de Paris.

Dispositivos de indeterminação: a figura do interlocutor

Na triangulação proposta por Starobinski, o terceiro termo funciona como confirmação do ponto de vista enunciado explicitamente, resolvendo o impasse da cena por meio da elaboração emocional do conflito entre artista e sociedade. A meu ver, seria preciso levar em consideração a hipótese de que há aí mais (ou menos) que uma síntese: de que, num cálculo mais global da enunciação, haveria um deslocamento do impasse para outro plano. Esse impasse diz respeito não apenas ao fato da “ingratidão pública” em relação à poesia, mas ao modo de relação que Baudelaire (isto é, a obra, o pensamento ou a estética de Baudelaire) estabelece com tal ideia de ingratidão.

A figura do interlocutor ou do leitor é uma pista textual que exige a consideração de um quarto momento do texto. A análise deveria então trabalhar, não com uma estrutura de sentido em forma de triângulo, mas em forma de quadrado. Se há um dilema expresso na relação entre artista e público, a síntese aparentemente proposta pelo sujeito do texto não seria o ponto de chegada, mas o começo de um deslocamento para outro campo, no qual se renova o conflito entre sujeito e interlocutor, entre enunciação e recepção, entre retórica da alteridade e ética da destinação.

É preciso lembrar, a esse propósito, que o problema da destinação é um aspecto fundamental do livro. Um dos textos de Le Spleen de Paris (“Le chien et le flacon”), em forma de singelo apólogo, descreve o endereçamento ao público leitor como envio de dejetos cuidadosamente escolhidos:

“- Ah ! misérable chien, si je vous avais offert un paquet d’excréments, vous l’auriez flairé avec délices et peut-être dévoré. Ainsi, vous-même, indigne compagnon de ma triste vie, vous ressemblez au public, à qui il ne faut jamais présenter des parfums délicats qui l’exaspèrent, mais des ordures soigneusement choisies.”(BAUDELAIRE, 1975, p. 284) BAUDELAIRE, Charles. Œuvres complètes, v.I. Paris: Gallimard, 1975..

[“Ah! miserável cão, se eu tivesse te oferecido um pacote de excrementos, tu o terias farejado com deleite e talvez até devorado. Assim, indigno companheiro de minha triste vida, tu te assemelhas ao público, a quem não se deve jamais apresentar perfumes delicados que o exasperem, mas dejetos cuidadosamente escolhidos.”]

Independentemente da análise que pode ser feita da figura do cão, a problemática enunciada aí não deixa de se relacionar com a própria produção do livro, publicado inicialmente de forma pontual em jornais e revistas. Eduardo Veras (2017)VERAS, Eduardo. “Bagatelas laboriosas”: Ambivalências do lugar-comum na poesia em prosa de Baudelaire. Terceira Margem, n.35, jan.-jun. 2017, pp.164-193. analisa a situação, mostrando como os textos dialogam com lugares comuns da poesia e do discurso humanitário da época, ironizando as figuras, os valores e a lógica do espaço jornalístico, isto é, convergindo com o universo do leitor para atingi-lo de dentro. Le Spleen de Paris, nesse sentido, é um livro dirigido contra certa imagem de leitor e, especificamente, do leitor de jornais.

É preciso, portanto, considerar com desconfiança o dispositivo de enunciação no livro como mero procedimento de exposição baseado na identificação, na construção de semelhança. Walter Benjamin observa que há uma atitude de “bufoneria” (BENJAMIN, 2002, p.221)BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: Un poète lyrique à l’apogée du capitalisme. Trad. Jean Lacoste. Paris: Payot, 2002. 6 6 As citações de Walter Benjamin são feitas a partir de edição francesa, que traduzo. em Baudelaire, uma fanfarrice que aparece de modo bastante explícito em alguns textos do livro e que estaria relacionada com o “choque” causado por uma nova ordem social. Poderíamos associar essa atitude inclusive com a inversão da relação humanitária com a pobreza, que comparece em textos como “Assommons les pauvres”, por exemplo. Transposto para a imagem do artista que está em jogo no livro, teríamos que reconsiderar, portanto, a ideia de identificação ou de “interiorização” da tristeza passiva e da cumplicidade piedosa. Mesmo que admitíssemos que a finalidade da análise do texto (o que não me parece evidente) é a de observar a lógica histórica interiorizada, isto é, transformada em expressão emocional ou em espelho do temperamento do sujeito, teríamos ao menos que considerar que essa lógica histórica só pode ser definida depois de um cálculo cuidadoso do modo como é trabalhada e do modo como é destinada. A textualidade e a destinação são dispositivos que fazem parte do sentido da obra e que levariam eventualmente a outras resultantes em termos de sentido histórico e em termos da posição relativa que o poeta ocupa nela.

Se a alusão à semelhança (“Hypocrite lecteur, - mon semblable, - mon frère!”[“Hipócrita leitor, - meu semelhante, - meu irmão!”]; BAUDELAIRE, 1975, p.6) BAUDELAIRE, Charles. Œuvres complètes, v.I. Paris: Gallimard, 1975. parece a Benjamin um elemento do desejo de comunicação, é preciso lembrar que ela indica fundamentalmente em Baudelaire, dentro da lógica da hipocrisia, um pacto conflituoso. Em Les fleurs du mal, nem o próprio sujeito, associado ao fingimento e ao “amor da mentira” (como diz um dos poemas do livro), escapa ileso. Ele sofre com as ironias do Belo e com as violências diante das quais o próprio olhar é insustentável; violências geradas quase sempre no seio de valores positivos (o amor, a verdade, a beleza). Ou seja, o sujeito do livro é um sujeito colocado em lugar de conflito, mostrando-se ele próprio violentado e ludibriado, situação a partir da qual coloca em jogo continuamente sua autonomia. Le Spleen de Paris é um livro especial, nesse sentido, considerando-se seu projeto de atingir criticamente às expectativas do leitor. A exemplo da obra de escritores considerados “difíceis”, distantes do “grande público”, para o qual decidem (ou são constrangidos a) escrever, a leitura do livro tem mais de uma camada. Os casos de Clarice Lispector ou de Hilda Hilst, no Brasil, mostram como essas camadas podem estar tanto na ideia de repertório, no aspecto provocativo dos temas e seu tratamento, quanto na ambiguidade da própria identificação autoral, que passa a fazer parte da lógica do livro.7 7 Nesse aspecto particular, A via crucis do corpo lembra Le Spleen de Paris. Há uma ironia estrutural na aproximação possível dos 13 textos do livro de Clarice Lispector com as estações da Via Sacra; mas isso só é possível se o leitor assumir a apresentação do livro (assinada por iniciais “CL”, suposto editor do livro) como etapa de seu fazer sentido. Na “apresentação” de Le Spleen de Paris, as iniciais “C.B.” remetem ao autor do livro, em diálogo com seu editor, mas sua autenticidade está comprometida de outra maneira. Há uma ironia estrutural, que contamina o livro como um todo e que, no caso de Baudelaire, se exprime já na “apresentação” do livro, pela problemática de sua estruturação como (não-) livro (“un petit ouvrage dont on ne pourrait pas dire, sans injustice, qu'il n'a ni queue, ni tête, puisque tout, au contraire y est à la fois tête et queue, alternativement et réciproquement.” [uma pequena obra sobre a qual não se poderia dizer, sem injustiça, que não tem rabo nem cabeça, pois, ao contrário, nela tudo é cabeça e rabo ao mesmo tempo, de forma alternativa e recíproca]; “À Arsène Houssaye”; BAUDELAIRE, 1975, p.275BAUDELAIRE, Charles. Œuvres complètes, v.I. Paris: Gallimard, 1975.).

Levando em consideração um tal descompasso, seria preciso rever inclusive leituras que destacam, em Le Spleen de Paris, uma espécie de seriedade militante, que estaria na base da “segunda revolução” moderna da obra de Baudelaire. Barbara Johnson (1979)JOHNSON, Barbara. Défigurations du langage poétique: la seconde révolution baudelairienne. Paris: Flammarion, 1979., seguida por Jean-Marie Gleize, considera a produção do poema em prosa de Baudelaire como uma espécie de virada em sua obra, que relê a estética de Les fleurs du mal e se afasta dos princípios que a definiam.8 8 Esse estudo dos anos 1970 é uma das matrizes da recuperação mais recente do poema em prosa baudelairiano. Ocorre que, para Johnson, na esteira de autores como Paul de Man, a tensão interna do poema em prosa está mais relacionada com a tensão interna da escrita ela própria do que com a trajetória histórica dos ataques à “poesia” na época moderna (como é o caso em Gleize): “Ni antithèse, ni synthèse, le poème em prose est le lieu à partir duquel la polarité - et donc la symétrie - entre présence et absence, entre prose et poésie, dysfonctionne.” [Nem antítese nem síntese, o poema em prosa é o lugar a partir do qual a polaridade - e portanto a simetria - entre presença e ausência, entre prosa e poesia, disfunciona.] (p.37). Como se a poesia se realizasse melhor como passagem de fronteiras genéricas, exatamente no momento em que ela faz sua incursão no poema em prosa. Naturalmente, a própria ironia pode ser evocada como um desses dispositivos revolucionários. Entretanto, a ironia não me parece operacionalizável, pelo menos não dessa maneira: o viés crítico do livro não constitui uma força de oposição absolutamente determinada, voltada contra os elementos poéticos tradicionais, mas antes de mais nada um dispositivo de indeterminação. O modo ambivalente com que se coloca, dificultando as identificações e a relação de confiança com o leitor, prejudica a própria referência ao texto como “lição” ou como “programa”. Nesse sentido, dificilmente poderíamos defini-lo a partir da ideia de um espírito combativo disposto a codificar historicamente seu rebaixamento, isto é, disposto, por operações programáticas de afronta, a transformar esse combate em modelo de relação com a obra literária.

Se tem o mérito do didatismo, por outro lado a divisão proposta por Gleize (2007)GLEIZE, Jean-Marie. Les chiens s’approchent, et s’éloignent. Alea, v.9, n.2, jul.-dez. 2007, pp.165-175. entre o lirismo elevado de Les fleurs do mal (livro do mistério, livro da elegância felina) e o prosaísmo militante de Le Spleen de Paris (livro do real rebaixado, da prosa, do cão vagabundo) é prejudicada pelo esquematismo. Embora considere o descompasso constitutivo do Spleen, o uso crítico que Gleize vem fazendo do livro mantém uma visão do texto como organismo retórico que carrega, ou permite, uma função combativa: a de corrigir o divórcio entre a poesia e o real pela via do rebaixamento. A distinção interna se justifica, é claro, como estratégia crítica e poética de Gleize; porém, do ponto de vista da poética de Baudelaire, haveria complicações consideráveis (inclusive no que diz respeito à ironia interna e ao estatuto do sujeito).

Ora, valeria a pena considerar uma hipótese de sentido segundo a qual a enunciação de Le Spleen de Paris está afetada decisivamente por seu modo de destinar-se: afetada não apenas por uma visão abstrata de leitor ou de recepção, a ser eventualmente dramatizada, mas pela incorporação (na própria lógica textual) da dissimetria que essa destinação acaba criando na relação do sujeito com sua “mensagem” explícita. Analisar todas as consequências dessa hipótese exigiria um trabalho relativamente longo, pois atingiria na base determinados automatismos de leitura. No espaço deste artigo, gostaria apenas de caracterizá-la, evidenciando problemas interpretativos entranhados na ideia de travestimento do sujeito, considerado como uma “máscara” do autor (ou seja, como elemento de mediação dentro de um cálculo de semelhança entre o eu do texto e o autor histórico).

Cabe lembrar, inicialmente, que o termo “autor” não designa apenas o eu histórico daquele que escreveu (seu temperamento, seus hábitos, suas opções de vida). Aquele que chamo “autor” - a imagem que temos desse autor - é antes de mais nada um ponto de vista sobre a realidade dado por um conjunto de escritos: no caso de Baudelaire, seus poemas, seus ensaios, suas anotações, suas cartas, etc. Da mesma maneira que há diferenças internas (trajetórias, deslocamentos, rupturas), inevitáveis pontos cegos, também é necessário calcular seu desejo de sentido e sua coerência relativa (afinidades, desdobramentos, retomadas). Diante dessa noção mais ampliada de autoria, a ironia não é apenas um filtro a ser mobilizado na análise de um sujeito transparente: ela afeta diretamente o modo de fazer sentido de um texto e, portanto, também, qualquer tentativa de instrumentalização (estética ou política) dessa transparência. Em suma, se a associação entre o sujeito e o autor não é um cálculo simples, a própria natureza da enunciação traz complicações à determinação daquilo que está ou não sob a égide desse sujeito - daquilo que seriam suas “lições”.

A ironia, em seu sentido mais básico, participa do jogo textual e é fundamental para estabelecer a perspectiva sobre determinados temas. Em “L’horloge”, por exemplo, o sujeito do texto retoma uma ideia pitoresca e exótica (“Les Chinois voient l’heure dans l’œil des chats.” [Os chineses veem as horas no olho do gato]; BAUDELAIRE, 1975, p. 299) BAUDELAIRE, Charles. Œuvres complètes, v.I. Paris: Gallimard, 1975., compondo com ela uma espécie de apólogo com intenção poética ou moral. Para tanto, propõe uma aproximação entre a sabedoria oriental e o modo como os olhos da amada (chamada de “Féline” [Felina]) comunica a ideia de tempo. Ao referir-se aos olhos da amada, o poema coloca em cena uma situação muito semelhante à do soneto “La beauté”, de Les fleurs du mal (referência interna que é importante observar, no caso): enquanto no poema em prosa a conclusão moral da comparação parece a mais tradicional possível (“Oui, je vois l’heure ; il est l’Éternité !” [Sim, vejo as horas; são a Eternidade!]; p.300), no soneto percebemos uma inquietação enunciada a partir do monólogo da própria Beleza, que zomba dos poetas (“j’ai, pour fasciner ces dolices amants, / De purs miroirs” [tenho, para fascinar esses dóceis amantes, / Puros espelhos]; p.21). Ou seja, ao mesmo tempo em que recebe da Beleza seus belos “rêves de pierre” [sonhos de pedra], o poeta é diminuído à condição de um amante dócil que consome seus dias diante de uma ilusão de eternidade - seu próprio reflexo em um espelho. Em “La beauté”, o descompasso se manifesta pela explicitação do conteúdo alegórico do poema que, por contraste, deprecia a visão tradicional da relação com o Belo.

Em “L’horloge”, a ironia em relação à moral tradicional é mais imediata. Vem logo após a enunciação do clichê exótico e mobiliza a retórica da destinação:

N’est-ce pas, madame, que voici un madrigal vraiment méritoire, et aussi emphatique que vous-même ? En vérité, j’ai eu tant de plaisir à broder cette prétentieuse galanterie, que je ne vous demanderai rien en échange.(p.300)

[E não é, madame, que temos aqui um madrigal verdadeiramente meritório e tão enfático quanto a senhora? Na verdade, tive tanto prazer em bordar este pretensioso galanteio que não lhe pedirei nada em troca.]

O sujeito do texto se dirige à sua “Felina”, sugerindo de forma quase pueril que está compondo um “madrigal” (gênero antigo comumente endereçado a uma mulher, de maneira galante e suave). Note-se que esse madrigal não é exatamente verdadeiro ou profundo, mas, diz ele, “meritório”. Além disso, sua qualidade principal é a de ser “enfático” como a própria interlocutora. A essa curiosa referência ao temperamento da amada (em que se imagina alguma afetação, alguma deleitosa falsidade), encontrando paralelo em outros textos do livro, o sujeito associa o prazer que ele próprio descobre na artificialidade e na impostura (“este pretensioso galanteio”). Essa satisfação pessoal o pouparia, inclusive, de pedir alguma coisa em troca (“não lhe pedirei nada em troca”). Ora, a afirmação sugere, pelo avesso, que em outras situações o sistema da troca de favores seria natural, sendo o poema um elemento de barganha, um favor concedido na perspectiva de uma compensação. A inserção da relação amorosa no circuito mercadológico da troca, do toma-lá-dá-cá (apenas interrompido pelo prazer solitário e egoísta da criação), imprime aqui um forte sarcasmo à ideia espiritual e desinteressada do elogio amoroso.

O texto subverte toda a situação colocada inicialmente, em forma de lugar comum, graças à menção que é feita à extravagância da interlocutora e à falsidade do protesto amoroso. Por esse motivo, dificilmente comportaria uma leitura sentimental, na qual o autor, por meio de sua máscara, propõe um verdadeiro madrigal. A exemplo do texto “La soupe et les nuages”, e alguns outros, o tratamento da figura da amante destoa do estereótipo romântico. Se, em “L’horloge”, esse é um dos elementos que faz com que toda a cena, do pitoresco oriental às qualidades espirituais da amada, saia manchada pelas tintas da ironia, em “La soupe et les nuages”, o excesso da amada e considerações que ela faz a respeito da cena sugerem uma ambivalência de fundo, que atinge o próprio sujeito e os princípios estéticos ou morais aos quais ele é associado (a contemplação, o amor, o infinito). Como determinar a perspectiva autoral do texto em casos como este? Como reconhecer aí algum tipo de “lição”?

Da dignidade da poesia

O distanciamento paródico ou irônico prejudica, portanto, a identificação automática entre autor histórico, sujeito do poema e ponto de vista textual. Tanto na teoria da narrativa (com a ideia de um “autor-implícito”, na terminologia de Wayne Booth) quanto na teoria da poesia (com a ideia de um “eu-lírico”), essas distinções são fundantes e necessárias. Porém, permanecem um problema em leituras tradicionais de Le Spleen de Paris. Se, por um lado, a associação entre tais instâncias é capaz de oferecer caminhos interessantes de análise graças às peculiaridades da narrativa biográfica do autor real (suscetível de especulações históricas ou psicanalíticas), por outro lado ignorar a cena textual (inclusive, a rigor, a textualidade da própria narrativa histórica ou biográfica) tende a prejudicar a clareza sobre o que está em jogo em uma obra.

Esse me parece ser também um problema da leitura de Walter BenjaminBENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: Un poète lyrique à l’apogée du capitalisme. Trad. Jean Lacoste. Paris: Payot, 2002., para quem a dimensão biográfica é colocada em paralelo direto com os textos: “Não pode haver um estudo aprofundado de Baudelaire que não se ocupe com a imagem de sua vida.” (p. 221BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: Un poète lyrique à l’apogée du capitalisme. Trad. Jean Lacoste. Paris: Payot, 2002.). Baudelaire está pessoalmente em seus textos, uma vez que é a “experiência vivida” que o poeta estaria disposto a erigir como “verdadeira experiência” (p.207BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: Un poète lyrique à l’apogée du capitalisme. Trad. Jean Lacoste. Paris: Payot, 2002.).

A situação estaria contemplada em “Perte d’auréole”, por exemplo, texto que sintetiza, a partir da situação biográfica, uma experiência histórica mais fundamental. A leitura que Benjamin faz desse texto9 9 Pouquíssimo lido na época (e inclusive com problemas de edição), como lembra Benjamin, “Perte d’auréole” teria sido um dos últimos inseridos no livro. o transformou num momento importante para o estudo não apenas da obra de Baudelaire, mas da própria poesia moderna. O texto remeteria diretamente ao enfrentamento histórico com sua situação de “crise”. Ao mesmo tempo em que ajudam a constatar uma tal crise histórica, as referências de Benjamin ao poema constituem uma cena de leitura que funda o discurso de crise, com o qual nos debatemos ainda hoje (cf.SISCAR, 2010SISCAR, Marcos A. Poesia e Crise: Ensaios sobre a “crise da poesia” como topos da modernidade. Campinas: Editora Unicamp, 2010.).

Para Benjamin, Baudelaire experimenta um momento historicamente singular:

Baudelaire foi o primeiro a tomar consciência, e da maneira a mais rica em consequências, do fato de que a burguesia estava prestes a privar o poeta de sua missão. Que missão social poderia substituí-la? Nenhuma classe social poderia responder; era preciso ser o primeiro a retirá-la do mercado e de suas crises. (BENJAMIN, 2002BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: Un poète lyrique à l’apogée du capitalisme. Trad. Jean Lacoste. Paris: Payot, 2002., p.221).10 10 “(…) Baudelaire prit le premier conscience, et de la façon la plus riche en conséquences, de ce que la bourgeoisie était sur le point de retirer sa mission au poète. Quelle mission sociale pouvait la remplacer ? Aucune classe sociale ne pouvait répondre ; il fallait être le premier à la tirer du marché et de ses crises.”.

Como resgatar a “dignidade do poeta em uma sociedade que não tinha mais nenhum tipo de dignidade a oferecer”? (p. 221BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: Un poète lyrique à l’apogée du capitalisme. Trad. Jean Lacoste. Paris: Payot, 2002.). A esse respeito, Les fleurs du mal fariam um raciocínio de “longo prazo”, enquanto no Spleen veríamos surgir um espírito de “bufoneria”, resultante da lógica implacável da vida burguesa e da perda da “aura”. O sujeito do texto é um sujeito irônico e, mais do que isso, burlesco, bufão. A constatação parece antecipar o tópico que também interessaria posteriormente a Starobinski; contudo, a explicação aqui é outra. Para Benjamin, Baudelaire interioriza uma experiência histórica que não lhe deixa outra alternativa senão zombar da poesia, isto é, de sua situação anacrônica e de sua impotência. A excentricidade do poeta evoca, assim, uma atitude desesperada diante da história. Ele pretende tirar a poesia “do mercado e de suas crises”, mas essa possibilidade não se oferece de imediato; sem poder restaurar a dignidade da poesia, no curto prazo, só lhe resta a atitude de irreverência (“Daí a bufoneria de sua atitude”; p.221BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: Un poète lyrique à l’apogée du capitalisme. Trad. Jean Lacoste. Paris: Payot, 2002.).11 11 “D’où la bouffonnerie de son attitude”.

Para Benjamin, não se trata exatamente de observar como a vida se transforma em poema. Ao contrário, o poema não é senão o testemunho histórico da atitude pessoal de Baudelaire, na condição de poeta, a qual nos daria pistas indiretas, mas decisivas, sobre a organização do real e do lugar da poesia dentro dele. A biografia fornece matéria para a análise do conteúdo histórico, que está em primeiro plano. Dizendo de outro modo, o que está em questão não são os sentidos possíveis da fanfarrice ou da ironia como dispositivos da obra de Baudelaire (e, por extensão, da poesia moderna, como um todo), mas o dispositivo histórico que a atitude extravagante (biográfica) do poeta permite discernir. Benjamin, aliás, não faz questão de elaborar o sentido dessa experiência vivida. Basta-lhe a “imagem” instituída, o renome do “personagem” poeta, que contribui de maneira decisiva para a “composição de sua glória” (p. 221BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: Un poète lyrique à l’apogée du capitalisme. Trad. Jean Lacoste. Paris: Payot, 2002.),12 12 “composition de sa gloire”. reunindo a reputação do extravagante e pervertido com a do defensor da “paixão estética”. Em outras palavras, aquilo que interessa destacar na experiência vivida já está dado.

O procedimento benjaminiano, como disse, abre para questões importantes de análise histórica. Contudo, desconsidera aspectos decisivos, que trariam ruído às suas conclusões sobre Baudelaire. Como propus em outra oportunidade, a partir das figuras da “nuvem” (SISCAR, 2010SISCAR, Marcos A. Poesia e Crise: Ensaios sobre a “crise da poesia” como topos da modernidade. Campinas: Editora Unicamp, 2010.), a atribuição de equivalência entre autor e sujeito textual e a consequente desconsideração de aspectos textuais (como a ironia e a citacionalidade) é um dos problemas de base da leitura benjaminiana, que impacta o sentido do texto e a posição do autor diante das questões que estão em foco. A exemplo de outros discursos humanistas sobre a literatura, esse fenômeno me parece decorrência de uma recusa de outorgar ao poeta a possibilidade de interpretar (e não apenas de fornecer indícios sobre) o sentido de seu contemporâneo; uma dificuldade de considerar a escrita poética como um lugar de saber, sem aderir a ela e a seus eventuais idealismos por um lado, e por outro lado sem considerá-la como um mero repertório de automatismos e sintomas. Naturalmente, a interpretação histórica que caberia reconhecer no poeta (dada pelo conjunto de sua obra, de sua estética e de seu pensamento) não é mais (nem menos) verdadeira que qualquer outra. Mas indubitavelmente ela é parte do problema e em certo sentido sua razão de ser, a condição da própria leitura; o projeto de sentido de um texto precisa, portanto, ser elaborado de maneira cuidadosa.

Efeitos dessa questão poderiam ser apontados na leitura benjaminiana de “Perte d’auréole”, vista como texto exemplar sobre o declínio moderno da poesia. Para Benjamin, diferentemente da figura do “flâneur”, característica de Les fleurs du mal, o sujeito do texto é aquele que perdeu as ilusões, inclusive de que a multidão tenha ainda um potencial de movimento e uma alma. Aqui, o poeta procuraria endurecer-se contra o caráter vil e cotidiano da multidão real:

Traído por seus últimos aliados, ele se volta contra a multidão; faz isso com a cólera impotente daquele que se debate contra a chuva e contra o vento. Tal é a experiência vivida que Baudelaire pretendeu elevar à categoria de verdadeira experiência. Ele descreveu o preço que o homem moderno deve pagar por sua sensação: o colapso da aura na experiência vivida do choque. A conivência de Baudelaire com o colapso lhe custou caro. (BENJAMIN, 2002BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: Un poète lyrique à l’apogée du capitalisme. Trad. Jean Lacoste. Paris: Payot, 2002., p. 207).

O poema seria, portanto, uma fanfarronice ou uma bravata erigida a partir da desilusão com a sociedade burguesa e com a impossibilidade de modificá-la. Tendo sido cúmplice e conivente com os jogos de poder da vida literária da época, Baudelaire agora abre mão de resgatar sua auréola, isto é, a “dignidade” da poesia, assumindo uma atitude puramente demolidora, sem finalidade. Como se o aspecto cômico e excêntrico da equivalência proposta entre a elevação do poeta e a baixeza da multidão servisse aqui como uma forma de sublimação pessoal, biográfica (e, a partir daí, histórica). Em sua análise, Benjamin lembra que o poeta aureolado é uma velharia para Baudelaire.13 13 A oposição, feita de passagem, entre a atitude demolidora e a necessidade de “criar um clichê” (expressa por Baudelaire “Je dois créer un poncif”; BENJAMIN, 2002, p.205) não fica muito clara na leitura de Benjamin e talvez seja um dos pontos problemáticos da articulação, que pensa a proposta de Baudelaire em termos de conspiração e de abdicação. Abandonando a aura e acotovelando-se com a turba, em igualdade de condições, o poeta pretende agravar a percepção do ambiente vil no qual transita, desejando expor sua experiência biográfica do choque. Eis “a lei de sua poesia” (p. 207BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: Un poète lyrique à l’apogée du capitalisme. Trad. Jean Lacoste. Paris: Payot, 2002.).

O tratamento do burlesco como resultante de um aspecto extratextual, a meu ver, permanece um problema. Se, em vez disso, procurássemos inicialmente atender à complexidade que esse dispositivo tem, juntamente com outros, dentro da coerência de uma perspectiva autoral, possivelmente a interpretação desse agravamento discursivo sobre o real seria distinta - mais próxima de uma radicalidade artística relacionada à história do que de uma desistência histórica transformada em poesia.

Semelhança e retórica do endereçamento

PERTE D’AURÉOLE Eh! quoi! vous ici, mon cher? Vous, dans un mauvais lieu! vous, le buveur de quintessences! vous, le mangeur d’ambroisie! En vérité, il y a là de quoi me surprendre. - Mon cher, vous connaissez ma terreur des chevaux et des voitures. Tout à l’heure, comme je traversais le boulevard, en grande hâte, et que je sautillais dans la boue, à travers ce chaos mouvant où la mort arrive au galop de tous les côtés à la fois, mon auréole, dans un mouvement brusque, a glissé de ma tête dans la fange du macadam. Je n’ai pas eu le courage de la ramasser. J’ai jugé moins désagréable de perdre mes insignes que de me faire rompre les os. Et puis, me suis-je dit, à quelque chose malheur est bon. Je puis maintenant me promener incognito, faire des actions basses, et me livrer à la crapule, comme les simples mortels. Et me voici, tout semblable à vous, comme vous voyez! - Vous devriez au moins faire afficher cette auréole, ou la faire réclamer par le commissaire. - Ma foi! non. Je me trouve bien ici. Vous seul, vous m’avez reconnu. D’ailleurs la dignité m’ennuie. Ensuite je pense avec joie que quelque mauvais poète la ramassera et s’en coiffera impudemment. Faire un heureux, quelle jouissance! et surtout un heureux qui me fera rire! Pensez à X, ou à Z! Hein! comme ce sera drôle! [PERDA DE AURÉOLA Mas o quê? Você por aqui, meu caro? Você, em um lugar tão baixo! Você, o bebedor de quintessências! Você, o comedor de ambrosia! Na verdade, isso muito me surpreende. Meu caro, você sabe do meu pavor de cavalos e de carros. Há pouco, enquanto atravessava o bulevar com muita pressa, saltitando na lama, no meio desse caos movente aonde a morte chega a galope de todos os lados ao mesmo tempo, minha auréola, num movimento brusco, escorregou da minha cabeça na sujeira do asfalto. Não tive coragem de pegá-la. Achei menos desagradável perder minhas insígnias que arriscar quebrar os ossos. E depois, eu disse a mim mesmo, a desgraça serve para alguma coisa. Agora eu posso caminhar incógnito, praticar ações baixas e me entregar à crápula, como os simples mortais. E eis-me aqui, igualzinho a você, como pode ver! Você deveria ao menos pôr um anúncio de perda dessa auréola, ou fazer uma queixa às autoridades. Ah! Não. Estou bem assim. Apenas você me reconheceu. Aliás, a dignidade me entedia. Além disso, imagino com alegria que algum mau poeta irá apanhá-la e colocá-la na cabeça sem nenhum pudor. Fazer alguém feliz, que prazer imenso! E sobretudo um felizardo que me fará rir! Pense em X, ou em Z, hein! Como isso será engraçado!]

“Perte d’auréole” não tem narrador. Trata-se de uma conversa entre dois interlocutores, estruturada em forma de diálogo dramático-cômico e colocada entre aspas. Em Le Spleen de Paris, a pontuação das aspas é usada algumas vezes (como no caso de “L’étranger”) a fim de reforçar o caráter alegórico do texto. Nos casos em que aparecem, lembram uma moldura meio rococó, uma ornamentação afetada, assinalando talvez o pertencimento da própria forma textual às velharias do gênero (“ces vieilles rubriques” [essas velhas rubricas], como diz o poema “La Béatrice”, em Les fleurs du mal), gênero bordado como “pretensioso galanteio”. O “poncif” (o clichê, o lugar comum, o estereótipo) não está ausente da representação: faz parte dela. O aspecto aqui é menos o de uma alegoria, solene ou irônica, do que uma representação cômica (que lembraria o teatro de rua da Comedia del’Arte, apresentado em carroças ou palcos improvisados, com personagens “tipos” ou “máscaras”). Trata-se, antes de mais nada, de entender o jogo dessas máscaras, e não exatamente de definir qual delas se encaixa na experiência vivida pelo autor.

Nota-se que há um realismo trivial (o movimento da rua, o objeto que cai, a sugestão do anúncio) que contracena com o dado sobrenatural da auréola (remetendo ao poeta, o “bebedor de quintessências”, o “comedor de ambrosia”; mas também à santidade, ao martírio, ao prestígio, à glória). O descompasso serve não apenas para destacar o conteúdo alegórico, estético e moral (já que estão em jogo “ações vis”), como também para reforçar o efeito cômico. Temos aí uma versão caricata do procedimento de profanação, comum em Baudelaire: aquilo que estava restrito ao divino é recolocado no chão, ao alcance dos homens. Mais do que no chão, provocativamente na lama e na imundície.

O descompasso aparece também nas comparações que o texto propõe (perder as “insígnias” seria melhor do que ter os ossos arrebentados, por exemplo) e organiza a própria fala dos interlocutores, uma vez que um deles trata a questão como um problema prático e banal (da perda de um objeto pessoal), a ser resolvido, e o outro como motivo de diversão. Há algo de excessivo e caricato em cada fala, cujo contraste sustenta o efeito burlesco, esvaziando o possível incômodo provocado pelo fato, em si. Ou seja, há uma trivialização cômica da situação, que é reforçada por uma espécie de anticlímax, transformando o suposto drama da perda numa situação ridícula, ou risível.

Se a voz principal enuncia um ponto de vista, ela não fala sozinha. O interlocutor (que faz as vezes do leitor ou da amada, em outros textos do livro) é um apoio cênico ou discursivo do poeta-bufão. Ele pode ser comparado à figura circense do “escada”, ajudante de palhaço que sustenta o diálogo, fornecendo a base de suas piadas. A perspectiva que o interlocutor tem do assunto em pauta remete ao senso comum, a um possível leitor, representante do “grande público”. Ele expressa o bom senso cotidiano (que beira o absurdo, no caso), atendendo à curiosidade ou ao voyerismo do leitor apenas interessado pelo enredo (pelo “fil interminable d’une intrigue suplerflue” [fil interminável de uma intriga supérflua] (BAUDELAIRE, 1975, p. 275)BAUDELAIRE, Charles. Œuvres complètes, v.I. Paris: Gallimard, 1975.. O reconhecimento do interlocutor como “semelhante” [semblable] (“E eis-me aqui, igualzinho [semblable] a você, como pode ver!”), se por um lado coloca a voz do poeta na condição de “simples mortal”, faz com que o leitor deva compartilhar com ele não apenas a situação cotidiana da perda de um pertence, mas também (o que é mais significativo) a condição vil, as “ações baixas” e a inconsequência do anonimato (“Agora eu posso caminhar incógnito”). A máscara do “mortal” não diz apenas a queda: ela serve para qualificar o mortal. Ela remete não apenas ao baixo, como também ao indeterminado, ao anônimo, ao não confiável.

Por um lado, essa cumplicidade ofende qualquer visão edulcorada da vida comum. Por outro, juntamente com a perspectiva cômica e irônica, tende a modificar o sentido alegórico da perda da auréola. A proposta não é, nem do ponto de vista semântico, nem do ponto de vista retórico, a de fornecer uma lição (sobre a vida moderna). Tampouco o burlesco parece limitar o texto ao consentimento irônico da lógica das relações burguesas. Consideradas suas estratégias e não apenas o possível testemunho de questões biográficas, qual seria a “mensagem” do texto? Qual seria sua visão de real? Sua perspectiva da relação entre poesia e público? Que pergunta deve ser dirigida a um texto cômico, ou irônico? Se “Perte d’auréole” não é uma tentativa de resgatar ou de “reivindicar a dignidade” perdida do poeta, tampouco (apesar do conteúdo semântico explícito) podemos dizer que abre mão dela.

O poema atua no modo da irreverência, e essa irreverência aparece significativamente já no título: “Perte d’auréole” e não, mais simplesmente (aquilo que seria uma constatação), “La perte de l’auréole”. O título do poema simula o “anúncio” referido no diálogo, em vez de remeter à perda ela mesma. O poema é apresentado, portanto, como um anúncio, o anúncio da perda. A princípio descartada, na esfera do enunciado, a ideia do anúncio é indiretamente reconstituída no nível da enunciação, em posição de título. O texto se apresenta como um texto endereçado, destinado, devendo o leitor compartilhar dessa lógica como receptor de um aviso de natureza insólita. Como destinatário do anúncio (contrabandeado da esfera do enunciado para a esfera da enunciação), o leitor é aquele que deve estar informado, avisado; o leitor deve permanecer vigilante em relação à perda. Não temos, entretanto, no poema a função pragmática do anúncio (reencontrar o que foi perdido); trata-se de anunciar ou mostrar ao leitor que não apenas houve uma perda, uma queda, mas que ele deve se reconhecer doravante, juntamente com o poeta, nesse lugar baixo, de sua natureza vil, mortal, não confiável. Se tal poema, em sua condição de anúncio, soa como uma advertência e, ao mesmo tempo, como uma gargalhada, não é porque o poeta é, ele próprio, um bufão; não é porque é sua voz (sua máscara) aquela que gargalha - o fato mais importante é que o poema anuncia que o ridículo é geral.14 14 Uso aqui “ridículo” com valor conceitual, pensando no sentido que lhe dá Michel Deguy, em livro homônimo (Spleen de Paris) que faz um diálogo direto com a obra de Baudelaire: “‘Ridicule’ est le prédicat dont je me sers volontiers pour peindre ‘l’homme’ quand, détaché, ‘divin’ (à vélo, par exemple), œil vivant invisible parmi eux, je les remarque. Je sens bien que nous sommes ridicules, mais en quoi, pourquoi, comment?”[“Ridículo” é o predicado do qual me sirvo de bom grado para pintar “o homem” quando, solto, “divino” (de bicicleta, por exemplo), com olhos vivazes no meio deles, eu os percebo. Sinto que somos ridículos, mas em que, por que, como?”](DEGUY, 2001, p. 48). A cena final de “Perte d’auréole” (marcada pelo sarcasmo do poeta) nada mais é do que a cena do ridículo à qual estão expostos, “simples mortais”, e não apenas os maus poetas. Lembremos que, em Fusées, ridículo e piedade (caridade) são colocadas em jogo e em conflito: “Quant à moi qui sens quelquefois en moi le ridicule d’un prophète, je sais que je n’y trouverai jamais la charité d’un médecin.” [Quanto a mim, sentindo por vezes em mim o ridículo de um profeta, sei que jamais encontraria aí a caridade de um médico.](BAUDELAIRE, 1975, p. 667). Se há condições de falar em mensagem, ou em lição, teríamos que passar pelo anúncio desse ridículo. Reforçado pelo poncif, pelas aspas, pela encenação da velharia poética, o anúncio do ridículo é aquilo que coloca em relação à poesia e a seu outro.

A possível “dignidade” da poesia (se dignidade significa o reconhecimento de uma voz, digamos “poética”, entre as outras vozes ou discursos sociais) não está na melancolia trágica ou na irreverência de sua desistência histórica. Está na capacidade que teria de colocar o leitor diante de um espelho - o espelho da mortalidade e do ridículo. Em Le Spleen de Paris, esse dispositivo de endereçamento é um elemento importante tanto do contexto pragmático da produção do livro (na sua relação com o jornalismo, em conflito com a ideia de público), quanto da organização dos textos como obra (sem ordem interna, o que seria uma “comodidade” para o editor e para o leitor) ou, ainda, do sentido da fina retórica de cada poema (presença do interlocutor, dispositivos de diálogo). Essa dimensão da destinação não é uma mera consequência do desejo d’épater le bourgeois, ou de emocioná-lo. É um dispositivo que mantém ativa a ideia da semelhança pelo ridículo, ou dessemelhança compartilhada.15 15 “Si c’est la définition de l’homme d’être un semblable, ‘mon semblable’, d’être en étant semblable, c’est donc une même chose qui est à la fois l’essence et le ridicule. Comment s’en sortir?” [Se é a definição do homem a de ser um semelhante, “meu semelhante”, ser sendo semelhante, então uma mesma coisa é simultaneamente a essência e o ridículo. Como sair dessa?] (DEGUY, 2001, p.20).

Nesse sentido, a bufoneria não seria uma consequência (psicológica e, a partir daí, histórica) do choque: constituiria antes uma estratégia (textual) de elaboração do sentido da história. Em vez de considerar que Baudelaire estabelece uma espécie de identificação horizontal entre a figura do poeta e a situação histórica da poesia, como testemunho de sua decadência histórica (“crise”), seria preferível constatar que há uma elaboração do problema da dignidade histórica dentro do texto. A multidão não é apenas um cenário, um pano de fundo (como em Starobinski), nem apenas o dispositivo no qual se pode ler a demissão histórica do poeta e da poesia (como em Benjamin). Se há um espaço comum, é na medida em que uma semelhança é reconhecível naquilo que é vil e não confiável, no anonimato da crápula - aquela para quem, justamente, a “dignidade” tradicional (a qualidade moral, a consciência do próprio valor, a elevação) não faz nenhum sentido. A democracia não seria aquela baseada no fundamento do valor alto, da idealidade da semelhança, mas na diferença radical implícita no reconhecimento do ridículo. O comum é, portanto, a exemplo da poesia, aquilo que cai na lama, ou seja, não o fato ele próprio da poesia caída, nem o “ideal baixo da literatura” (como diz sobre a “prosa” Pierre Alféri; 2013), mas a nossa identificação suja, nossa semelhança contraditória, o fato de sermos ridículos uns para os outros. Se há condições de falar de “dignidade”, de sua perda ou de algum tipo de dignidade no caso da poesia, é preciso remetê-la, poética e historicamente, à lógica baudelairiana de produção da dessemelhança.

* * *

Em suma, considerar que o poeta está pessoalmente presente no texto (como uma de suas máscaras ou como sintoma de suas vivências) dificulta a percepção dessa lógica do deslize que opera sub-repticiamente no sentido de suspender as identificações. A retórica das aspas, o teatro das vozes, as referências àquilo que não é digno ou confiável, são elementos desse procedimento. Reconhecido apenas pelo interlocutor (“Apenas você me reconheceu.”), ou seja, apenas dentro da moldura da situação, que é também a situação textual, o poeta passa não apenas por uma despersonalização, mas por uma desidentificação, um tipo de indeterminação que não esvazia o teor autoral (não afasta a poesia do problema do nome, do próprio, da propriedade), mas que constitui, ao contrário, seu viés de interpretação sobre o assunto. Não é apenas o cuidado com a dimensão “formal” do texto que está em jogo aí, mas o próprio direito que uma obra teria de dizer alguma coisa sobre si mesma, sobre seu contemporâneo, sobre o papel histórico da poesia e da arte.

Há muitos outros textos em Le Spleen de Paris nos quais a lógica textual é radicalmente simplificada pela leitura biográfica e alegórica, na tentativa de formular abstrações históricas associadas ao desejo de restauração do idêntico, de “fraternidade”. Seria preciso lembrar não apenas que a escrita de Baudelaire restringe constantemente suas aspirações à lama, à sujeira ou à “prosa” da finitude, mas que a própria enunciação dessa finitude aparece a cada passo solapada, contrariada, re-destinada. Não pode ser vista, portanto, simplesmente como testemunho involuntário (sintomático) do caráter fantasmático da mercadoria. Há aí (em temas e figuras, nas questões que elabora, por meio das convenções poéticas de que se vale) um pensamento da espectralidade das relações (de troca) e da lógica alucinante da moeda (falsa). Nesse sentido, a questão da troca (mercadoria), em Baudelaire, não se revolve pela anulação das diferenças ou pela inversão das prerrogativas, mas se desdobra a partir da crítica ao pressuposto geral da equivalência.

Uma releitura de Le Spleen de Paris deveria, aliás, começar pela análise da cena da “confissão” que o poeta faz no primeiro texto (tratado geralmente como apresentação, ou como dedicatória, do livro), em forma de carta endereçada “À Arsène Houssaye”16 16 Le Spleen de Paris seria editado por Houssaye, que retardou a publicação, incomodado com textos que poderiam chocar o leitor. A situação causou a ruptura de contrato e foi a causa de um desentendimento. Em contraste com a homenagem da dedicatória, o fato dá outra dimensão à leitura desse texto. : a de que a ideia do livro teria nascido da leitura de Gaspard de la Nuit, obra de Aloysius Bertrand, pioneiro na prática do “poema em prosa”. Trata-se, para o autor da carta (“C.B.”), de aplicar o dispositivo “estranhamento pitoresco” não exatamente à “descrição da vida moderna”, mas a “uma vida moderna e mais abstrata” (BAUDELAIRE, 1975, p. 275)BAUDELAIRE, Charles. Œuvres complètes, v.I. Paris: Gallimard, 1975.. Esse interesse pela singularidade irredutível, que não se associa apenas ao fato histórico, enquanto tal, mas ao “ideal obsedante” (em cumplicidade com o Spleen, como sabemos), produziria um resultado (um “Spleen de Paris”) não apenas distante do modelo de Bertrand, mas

quelque chose (si cela peut s’appeler quelque chose) de singulièrement différent, accident dont tout autre que moi s’enorgueillirait sans doute, mais qui ne peut qu’humilier profondément un esprit qui regarde comme le plus grand honneur du poète d’accomplir juste ce qu’il a projeté de faire.(p.276)

[algo (se é que se pode chamar de algo) singularmente diferente, acidente do qual qualquer outro além de mim se orgulharia, mas que só pode humilhar profundamente um espírito que vê como a maior honra do poeta realizar exatamente o que ele projetou fazer]

Há aí tanto a afirmação e o elogio do projeto quanto a humilhação advinda da experiência da singularidade daquilo que parece não ter pé nem cabeça. Ainda que possa haver suspeita em relação ao caráter retórico dos “ciúmes” [jalousie] emulativo e da humilhação, a afirmação não deixa de confirmar a situação geral, da qual “qualquer outro” se orgulharia (ridiculamente, portanto). Se o ridículo de que se trata está na diferença entre o projeto e o resultado, o poema de Baudelaire é o lugar em que esse saber (transformado em pressuposto básico de várias disciplinas das Humanidades) é ao mesmo tempo elaborado e colocado em situação vertiginosa. Constatar o ridículo é constatar a diferença entre o que se intenta e o que se faz, entre o que se pensa e o que se diz.

A honra poética da “contradição” não está longe desse descompasso, mas também a crítica à ideia de “paraíso” na ordem do pensamento. Trata-se de uma lógica (neste caso, de uma poética) exigente, que tende anos manter mobilizados diante das dissimetrias e das violências do real, opondo-se à mera ideia de abdicação, à desistência do lugar ou do um ponto de vista. Para demonstrá-lo, seria preciso levar o mais longe possível o entendimento das situações, mesmo que procurando chifre em cabeça de cavalo (procurando “midi à quatorze heures”, como se diz em “La fausse monnaie”17 17 Nesse texto, aquilo que é expresso pelo narrador (o valor produtivo do que é falso) é devolvido pelo interlocutor, na forma de um “cálculo inepto”. A razão do desconforto gerado pela situação está na maneira pela qual o raciocínio angustiado, que procura pelo em ovo, é aproveitado pela “incontestável candura” do interlocutor como valor positivo, como lição humanitária, como modo de fazer ao mesmo tempo uma “caridade” e um “bom negócio”. ) -mesmo que à custa da evidência do ridículo comum.

Eis também a condição mortal de qualquer leitura.

Referências

  • BAUDELAIRE, Charles. Œuvres complètes, v.I. Paris: Gallimard, 1975.
  • BAUDELAIRE, Charles.Pequenos poemas em prosa. O Spleen de Paris Trad. Isadora Petry e Eduardo Veras. São Paulo: Via Leitura, 2018.
  • BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: Un poète lyrique à l’apogée du capitalisme Trad. Jean Lacoste. Paris: Payot, 2002.
  • DEGUY, Michel. Spleen de Paris Paris: Galilée, 2001.
  • DEGUY, Michel. La pietà Baudelaire Paris: Belin, 2012.
  • GLEIZE, Jean-Marie. Les chiens s’approchent, et s’éloignent Alea, v.9, n.2, jul.-dez. 2007, pp.165-175.
  • JOHNSON, Barbara. Défigurations du langage poétique: la seconde révolution baudelairienne Paris: Flammarion, 1979.
  • PACHET, Pierre. Le Premier Venu Paris: Denoël, 1976.
  • SISCAR, Marcos A. Poesia e Crise: Ensaios sobre a “crise da poesia” como topos da modernidade. Campinas: Editora Unicamp, 2010.
  • STAROBINSKI, Jean. Portrait de l’artiste en saltimbanque Paris: Gallimard , 2004.
  • STAROBINSKI, Jean. Sur quelques répondants allégoriques du poète. Revue d'histoire littéraire de la France, LXVII, 2 (avril-juin 1967), pp. 402-412.
  • VERAS, Eduardo. “Bagatelas laboriosas”: Ambivalências do lugar-comum na poesia em prosa de Baudelaire. Terceira Margem, n.35, jan.-jun. 2017, pp.164-193.
  • 1
    Não considera, por exemplo, para sua leitura de “Une mort heroïque”, as posições que Baudelaire expressa sobre a Revolução Francesa e sobre a questão do “sacrifício”, o que leva a subestimar igualmente, a pretexto da “exterioridade do acontecimento”, a condição de “revolucionário” do artista bufão e o fato de que o príncipe é também artista (“Assez indifférent relativement aux hommes et à la morale, véritable artiste lui-même” [Suficientemente indiferente em relação aos homens e à moral, verdadeiro artista ele próprio]; BAUDELAIRE, 1975, p.320BAUDELAIRE, Charles. Œuvres complètes, v.I. Paris: Gallimard, 1975.).
  • 2
    Starobinski usa os termos “narração” e “narrador” para tratar dos textos em prosa de Baudelaire. Uma vez que estamos falando de um livro de poemas em prosa (sem prejuízo para o dispositivo narrativo, que não é conflitante com a retórica da poesia), e uma vez que Spleen de Paris coloca em cena modos retóricos variados, preferirei falar de “texto” e “sujeito” poético.
  • 3
    As citações em português de Le Spleen de Paris são retiradas da edição brasileira de 2018, em tradução de Isadora Petry e Eduardo Veras.
  • 4
    A questão do sacrifício é um aspecto fundamental da poética de Baudelaire, já tratada por estudiosos como Pierre Pachet (1976PACHET, Pierre. Le Premier Venu. Paris: Denoël, 1976.), podendo ser associada a noções como “sacrifício”, “destruição”, “reversibilidade” e, portanto, à reflexão teológica e à obra de Joseph de Maistre. Pachet também se interessa, em seu estudo, pela questão do sujeito e sua atitude de irreverência.
  • 5
    Estudos de Michel Deguy sobre Baudelaire (2012DEGUY, Michel. La pietà Baudelaire. Paris: Belin, 2012.) mostram como o autor recusa a lógica tradicional da “piedade” (ou da caridade). Tal dispositivo de relação entre ética e estética não deixa de comunicar com a crítica baudelairiana do discurso humanitário ou “fraternitário”. Em Le Spleen de Paris, “À ‘prostituição fraternitária’, possível referência à utopia republicana de Proudhon (LABARTHE [...]), o poeta opõe a ‘santa prostituição’ da poesia [‘Les Foules’] [...], que pressupõe uma ‘comunhão’ crítica com o lugar-comum, um oximórico autossacrifício sem aniquilação da individualidade.” (VERAS, 2017, p.179VERAS, Eduardo. “Bagatelas laboriosas”: Ambivalências do lugar-comum na poesia em prosa de Baudelaire. Terceira Margem, n.35, jan.-jun. 2017, pp.164-193.).
  • 6
    As citações de Walter Benjamin são feitas a partir de edição francesa, que traduzo.
  • 7
    Nesse aspecto particular, A via crucis do corpo lembra Le Spleen de Paris. Há uma ironia estrutural na aproximação possível dos 13 textos do livro de Clarice Lispector com as estações da Via Sacra; mas isso só é possível se o leitor assumir a apresentação do livro (assinada por iniciais “CL”, suposto editor do livro) como etapa de seu fazer sentido. Na “apresentação” de Le Spleen de Paris, as iniciais “C.B.” remetem ao autor do livro, em diálogo com seu editor, mas sua autenticidade está comprometida de outra maneira.
  • 8
    Esse estudo dos anos 1970 é uma das matrizes da recuperação mais recente do poema em prosa baudelairiano. Ocorre que, para Johnson, na esteira de autores como Paul de Man, a tensão interna do poema em prosa está mais relacionada com a tensão interna da escrita ela própria do que com a trajetória histórica dos ataques à “poesia” na época moderna (como é o caso em Gleize): “Ni antithèse, ni synthèse, le poème em prose est le lieu à partir duquel la polarité - et donc la symétrie - entre présence et absence, entre prose et poésie, dysfonctionne.” [Nem antítese nem síntese, o poema em prosa é o lugar a partir do qual a polaridade - e portanto a simetria - entre presença e ausência, entre prosa e poesia, disfunciona.] (p.37). Como se a poesia se realizasse melhor como passagem de fronteiras genéricas, exatamente no momento em que ela faz sua incursão no poema em prosa.
  • 9
    Pouquíssimo lido na época (e inclusive com problemas de edição), como lembra Benjamin, “Perte d’auréole” teria sido um dos últimos inseridos no livro.
  • 10
    “(…) Baudelaire prit le premier conscience, et de la façon la plus riche en conséquences, de ce que la bourgeoisie était sur le point de retirer sa mission au poète. Quelle mission sociale pouvait la remplacer ? Aucune classe sociale ne pouvait répondre ; il fallait être le premier à la tirer du marché et de ses crises.”.
  • 11
    “D’où la bouffonnerie de son attitude”.
  • 12
    “composition de sa gloire”.
  • 13
    A oposição, feita de passagem, entre a atitude demolidora e a necessidade de “criar um clichê” (expressa por Baudelaire “Je dois créer un poncif”; BENJAMIN, 2002, p.205BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: Un poète lyrique à l’apogée du capitalisme. Trad. Jean Lacoste. Paris: Payot, 2002.) não fica muito clara na leitura de Benjamin e talvez seja um dos pontos problemáticos da articulação, que pensa a proposta de Baudelaire em termos de conspiração e de abdicação.
  • 14
    Uso aqui “ridículo” com valor conceitual, pensando no sentido que lhe dá Michel Deguy, em livro homônimo (Spleen de Paris) que faz um diálogo direto com a obra de Baudelaire: “‘Ridicule’ est le prédicat dont je me sers volontiers pour peindre ‘l’homme’ quand, détaché, ‘divin’ (à vélo, par exemple), œil vivant invisible parmi eux, je les remarque. Je sens bien que nous sommes ridicules, mais en quoi, pourquoi, comment?”[“Ridículo” é o predicado do qual me sirvo de bom grado para pintar “o homem” quando, solto, “divino” (de bicicleta, por exemplo), com olhos vivazes no meio deles, eu os percebo. Sinto que somos ridículos, mas em que, por que, como?”](DEGUY, 2001, p. 48DEGUY, Michel. Spleen de Paris. Paris: Galilée, 2001.). A cena final de “Perte d’auréole” (marcada pelo sarcasmo do poeta) nada mais é do que a cena do ridículo à qual estão expostos, “simples mortais”, e não apenas os maus poetas. Lembremos que, em Fusées, ridículo e piedade (caridade) são colocadas em jogo e em conflito: “Quant à moi qui sens quelquefois en moi le ridicule d’un prophète, je sais que je n’y trouverai jamais la charité d’un médecin.” [Quanto a mim, sentindo por vezes em mim o ridículo de um profeta, sei que jamais encontraria aí a caridade de um médico.](BAUDELAIRE, 1975, p. 667BAUDELAIRE, Charles. Œuvres complètes, v.I. Paris: Gallimard, 1975.).
  • 15
    “Si c’est la définition de l’homme d’être un semblable, ‘mon semblable’, d’être en étant semblable, c’est donc une même chose qui est à la fois l’essence et le ridicule. Comment s’en sortir?” [Se é a definição do homem a de ser um semelhante, “meu semelhante”, ser sendo semelhante, então uma mesma coisa é simultaneamente a essência e o ridículo. Como sair dessa?] (DEGUY, 2001, p.20DEGUY, Michel. Spleen de Paris. Paris: Galilée, 2001.).
  • 16
    Le Spleen de Paris seria editado por Houssaye, que retardou a publicação, incomodado com textos que poderiam chocar o leitor. A situação causou a ruptura de contrato e foi a causa de um desentendimento. Em contraste com a homenagem da dedicatória, o fato dá outra dimensão à leitura desse texto.
  • 17
    Nesse texto, aquilo que é expresso pelo narrador (o valor produtivo do que é falso) é devolvido pelo interlocutor, na forma de um “cálculo inepto”. A razão do desconforto gerado pela situação está na maneira pela qual o raciocínio angustiado, que procura pelo em ovo, é aproveitado pela “incontestável candura” do interlocutor como valor positivo, como lição humanitária, como modo de fazer ao mesmo tempo uma “caridade” e um “bom negócio”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Jul 2019
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2019

Histórico

  • Recebido
    15 Jan 2019
  • Aceito
    01 Abr 2019
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