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Palavras dos Editores Convidados. Acerca dos Estudos Coloniais

Words from Guest Editors. On Colonial Studies

Os Estudos Coloniais conformam um heterogêneo campo de saberes, atravessado por aproximações teóricas, periodizações, recortes e objetos de análise diversos que pautam suas áreas de interesse e seus modos de investigação. Como em outras áreas de conhecimento, das confluências e antagonismos que emanam dessas configurações surgem as consagrações, omissões e resgates que vão redefinindo seus cânones e suas formas de ler. Trata-se, como outros, de um domínio tentativo, feito de interseções e de discursos em escrutínio, mas que apresenta um grau de especificidade construído, acima de tudo, pelas interrogações que se costuma postular em cada ensaio, em cada tratado e em cada discussão, que pautam suas evoluções e sua história.

Poderíamos dizer que, nos chamados Estudos Coloniais, essas interrogações não são apenas uma deriva metodológica, nem um exercício de cautela intelectual; são, de fato, a verdadeira condição de possibilidade sobre o qual se erigem o aparato conceitual e as hermenêuticas que determinam sua própria existência como campo de intervenção sobre tempos passados que, no devir americano, vagamente se estendem até as primeiras décadas do século XIX.

Tais interrogações giram em torno dos sentidos de certos termos que ocupam, por diversos motivos, um lugar central no léxico disciplinar. Menos que pretender atingir uma definição única e muitas vezes impossível, as perguntas acerca dos significados e densidades desses termos de uso comum procuram instituir vias de acesso e habilitar ferramentas que permitam se debruçar sobre um corpus heteróclito e potencialmente infinito, sempre sujeito à revelação de documentos antes ignorados ou considerados perdidos.

Dentre esses termos, alguns dos quais elencaremos aqui, o primeiro deles está já inscrito no próprio nome que designa, com ou sem aspas, o campo em questão. Assim, que entendemos, então, por colonial? Uma forma de governo e de sujeição entre metrópoles e periferias? Um período que coincide com a fundação, auge e o ocaso da dominação imperial? No primeiro caso, o termo poderia ser adequado, considerando a conquista como irrupção violenta, a regência de populações locais mediante instituições civis e religiosas de origem europeia, a ocidentalização forçada ou as lógicas econômicas do monopólio, mas não necessariamente exato, tendo em vista que os pactos de governança outorgavam diversos graus de autonomia às regiões incluídas na esfera imperial e que os dois vice-reinos estabelecidos no século XVI - a Nova Espanha e o Peru - eram precisamente isso, reinos atrelados a uma constelação maior, mas não necessariamente colônias. Já no segundo caso, entender “colonial” como marco temporal que se estende do final do século XV às primeiras décadas do XIX parece ignorar que parte do corpus dos estudos da área, como os códices pré-hispânicos, os poemas de Nezahualcóyotl ou os relatos tributários das tradições orais, é evidentemente anterior à chegada de Colombo e ao controle das populações e dos territórios do continente por parte das potências ultramarinas.

A condição equívoca ou polissêmica de um vocábulo, entretanto, não impede seu uso. Pelo contrário, esse uso, comum e constante, tem a virtude imediata de promover indagações que vão muito além da fixação de um sentido. Se o adjetivo colonial está feito de interrogações, o que dizer então da “literatura colonial” ou das “letras coloniais”? Falar de “literatura colonial” obriga a discutir as relações entre ficção e documento, as categorias de autor e os vínculos entre original e versões e traduções, a partir de perspectivas que não excluem nem a aporia nem a ambivalência. Obriga também a confrontar, em cada caso particular, com as delimitações do que possa ser entendido como “literatura”. Considerando um corpus eminentemente histórico e político, composto por crônicas, cartas, histórias gerais e naturais, relações, requerimentos, diários, memórias, relatos de viagem, poemas, sermonários, apologias, peças de teatro, relatórios oficiais, tratados teológicos, jurídicos e filosóficos, seria inadequado, e inútil, atribuir um conceito restritivo à noção de “literatura”. Restringir essa noção a critérios de invenção, projetos de autor ou valores estéticos levaria a uma encruzilhada que obstruiria as possibilidades de recepção atual desse corpus. Nesse sentido, aludir à noção de “letras coloniais” não é apenas uma determinação mais ampla e generosa, mas também a mais justa e pertinente.

Da mesma forma, essa multiforme composição da produção “colonial” torna impossível invocar uma vaga fórmula como “literatura de informação”, ou definir esses textos como meros “antecedentes” ou “precursores” da nação moderna, critérios que, em outros tempos, as Histórias da Literatura Colonial utilizavam para designar esse corpus. Tão inoportuno como esses seria esse outro critério, que situa as cartas e o diário de navegação de Colombo como marcos fundacionais, como se recorrer aqui a um mito de origem não fosse uma operação fadada a sucumbir entre irremediáveis contradições. Contudo, mais inadequado ainda seria adotar um critério linguístico, que pudesse levar a inferir que as letras coloniais são estrita ou primordialmente aquelas escritas em língua espanhola. Longe de se ocupar exclusivamente de discursos compostos na língua de Castela, os Estudos coloniais discutem não somente textos pertencentes a linhagens americanas, africanas e indo-europeias, mas também as múltiplas interações entre escritas e oralidades, o modo de circulação e apropriação dessas línguas e as diversas relações de equivalência, legitimidade e diglossia que se estabeleceram entre elas no marco da dominação imperial.

Essa intensa confluência de línguas, de tempos, de formas e de suportes de expressão interpela também os próprios limites do “americano”. Pronunciar o sintagma “estudos coloniais americanos” (ou “latino-americanos”, ou talvez “hispano-americanos” ou “ibero-americanos”) implica ter lidado antes, de maneira tácita ou explicita, com vários interrogantes. Optar por uma ou outras dessas alternativas marca uma escolha entre determinados rasgos considerados, ou não, como determinantes e peculiares. Em todo caso, parece evidente que não se trata de uma simples junção de dois gentílicos, e que, de fato, aquilo que se evoca é sempre um espaço criado por uma hifenização múltipla, que não só separa e une dois componentes, mas também alude a outras disjunções, a outros interstícios e a outras existências fronteiriças, que habitam e corroem o interior do “americano”.

Essa quarta parte do mundo que emerge no horizonte europeu para ser denominada como “Las Indias”, “Nuevo Mundo” ou “América” sempre excedeu os limites impostos por esses nomes atribuídos por navegantes desorientados, cosmógrafos meticulosos e eruditos exaltados. Consagrados pela repetição e pelo hábito, tais nomes, engendrados pelo assombro e pela confirmação de que o orbe era muito maior e muito mais difuso do que se imaginava, conservariam para sempre uma dimensão equívoca e atribulada, sujeita a usos divergentes. Se, por um lado, o rótulo “Estudos coloniais americanos” marca uma diferença e impõe um contorno geográfico em relação a outras experiências (intra-europeias, africanas, asiáticas) da colonialidade, por outro remete também a diversas realidades planetárias que estavam inextricavelmente vinculadas ao devir americano. Seria impossível interpretar os tempos coloniais americanos sem aludir às complexas redes transoceânicas de intercâmbios culturais e comerciais que a mundialização impõe ao continente e que redefinem por completo o sistema-mundo então vigente. Como operar na esfera dos estudos coloniais americanos em se referir ao atlântico negro, aos orientalismos procedentes das Filipinas ou às disputas hegemônicas entre as potências europeias? Nesse aspecto, Antuérpia, Nápoles, Goa ou Manila constituem geografias tão relevantes para a área quanto os próprios locais centrais e periféricos situados nas metrópoles ou nos vice-reinos.

Todo esse vasto conjunto de temas e problemas, de formulações, interrogantes e réplicas demanda aproximações e análises que são, por definição e por necessidade, de natureza interdisciplinar. A riqueza dos Estudos Coloniais Americanos reside, entre outras coisas, em propiciar a convergência dentro do seu cambiante território de áreas de saberes tão heterogêneas quanto o próprio campo que as alberga. Poderíamos mencionar algumas dessas áreas aqui (por precaução, sempre em plural), acompanhadas por alguns dos temas que compõem suas órbitas: histórias (das civilizações, da evangelização, da conquista, naturais e morais, da escravidão, da cidade, das ideias), letras (oralidades, escritas, signos e línguas, modelos narrativos, evoluções da imprensa), políticas (instituições, biopolíticas, geopolíticas), economias (suas configurações e fluxos locais e globais), filosofias (da linguagem, da lei), artes (importação, transformação, invenção de estilos; tradições em conflito), direitos (sujeição, reparação, guerras justas) etnografias (dos modos de vida presentes e passados sob os impactos da ocidentalização), cartografias (para descrever ou imaginar os territórios e seus confins), demografias (migrações, epidemias), urbanismo (geometrias ideais, pueblos de indios, aldeamentos, redes urbanas). Esta rápida e algo desordenada enumeração poderia ser ampliada exponencialmente; não seria necessário esclarecer que não teria forma nem razão de ser exaustiva, nem pretende sê-lo. Aspira, somente, ilustrar a inexaurível diversidade de um campo que, com seus interrogantes, disputas e rememorações, abre e carrega consigo um horizonte quase infinito de indagações que são tão cruciais para entender o mundo que alguma vez foi, quanto para se situar no mundo em que hoje vivemos.

Os leitores das páginas que seguem poderão comprovar que os textos aqui reunidos confirmam essa diversidade que é intrínseca e constitutiva desta área de saberes. Para este número da Revista Alea, propomos uma delimitação ampliada e renovadora dos Estudos Coloniais, da qual emerge, como metodologia geral e específica para o colonial, isso que finalmente poderíamos denominar um olhar fora de foco ou, também, uma série de visões de-centradas dos objetos desse campo. Quer dizer, não se trata de negar o arquivo colonial, mas de desfocar ou torcer esse olhar, para poder discutir as tendências imperiais, coloniais ou canonizadas dos discursos e dos arquivos. Desta forma, todos os artigos deste volume - alguns de maneira claramente acentuada e outros, mais timidamente - redefinem as formas conhecidas em que foram abordados estes estudos.

Poderíamos começar, exemplificando o dito acima, com uma das perguntas recorrentes nesse campo, a que se vincula com a localização do poder colonial. Usualmente, as relações com a hegemonia costumam ser observadas em termos binários, segundo os quais a figura do subalterno remete a um poder dominante centrado, de imposição de uma hierarquia evidente e territorialmente localizada, que, por outra parte, assedia ao subalterno constantemente. É comum abordar, por exemplo, por um lado as configurações do sujeito conquistado -e seu ethos construído-, e, por outro, as do sujeito subalterno e sua produção, como se se tratassem de entidades autónomas. Contudo, esse binarismo, constante em nossos Estudos, conformou uma mirada não muito precisa nem exata, inadequada de fato para dar conta das zonas de conflitos identitários e de permanente instabilidade entre os agentes envolvidos. Ainda mais, infelizmente, tem se estabelecido uma hierarquia entre os acadêmicos do nosso campo, regida por critérios de maior ou menor “acesso” às novas fontes dos subalternos, esses esquecidos do arquivo (hierarquia que, em muitos casos, depende unicamente da capacidade econômica da instituição de origem). Uma “carreira”, em definitivo, que acabou por encurralar os estudiosos do mundo colonial em novas agendas hegemônicas, atreladas aos privilégios do “arqueólogo” do arquivo no sentido mais literal desse termo.

Embora essa proposta venha permitindo ampliar o campo e aumentar a quantidade de vozes nele implicada - e, por isso, é preciso que seu impulso continue vigente -, isso não significa que o tenha redefinido verdadeiramente. Pelo contrário, para o contexto hispano-americano, seria necessário um olhar policêntrico e multiterritorial, que desfoque a localização estrita do hegemônico. Esse olhar, assim, daria a possibilidade de revelar as estelas de negociações pelo poder, tanto como o teor das suas fugas, que abrangem outros indivíduos, famílias, grupos e comunidades, e suas respectivas intervenções e agenciamentos. Nesse sentido, conformamos este volume de artigos seguindo essa orientação, partindo desta proposta que define objetos adequados para o campo do colonial e que se interessa pela busca de una metodologia para a análise de textos e de casos a partir destas definições.

Os contrastes entre os modelos coloniais hispano-americanos e luso-americanos também impõem a interrogação por limites e contiguidades, que, por outra parte, acabam remetendo às particularidades e divergências entre os modos da colonização portuguesa na África, na Índia e na América. Nesse sentido, é útil a formação de epistemologias de fronteira, cuja complexidade se aprofunda em sociedades e culturas surgidas no bojo de tensos pertencimentos e convivências comuns. Desta maneira, as colonizações, todas elas, são ao mesmo tempo diferentes e semelhantes. Seria então tarefa do pesquisador poder ver estes objetos aparentemente iguais a partir de perspectivas diferentes, e criar espaços de reflexão em que, portanto, emergirão corpos alternativos em toda sua dimensão: corpos mestiços em toda sua complexidade. Desses posicionamentos, participam também os entre-lugares e os sujeitos transculturados, que derivam dos oxímoros dos encontros das culturas e dos discursos em que se criam fronteiras e antíteses. Essa é, do mesmo modo, uma tarefa de recuperação de formas e modelos trans-históricos e transnacionais. Assim, os artigos deste volume propõem que a questão da colonização ibero-americana deva ser vista em redes de núcleos diferenciados, cujas relações criam também vínculos diversos. O conceito de semiose colonial -com seus matizes múltiplos no plano simbólico- também é útil para compreender as texturas que as viagens ultramarinas, provenientes de variados centros de poder, subitamente expandem ao longo dessa época.

O indígena, ameríndio ou nativo -mas também o mestiço- são elementos ineludíveis nos Estudos Coloniais. No entanto, como abordá-los, se sempre têm sido as figuras mais carregadas de projeções e as mais fugidias de todas? Vários ensaios deste volume dão conta de óticas possíveis, dispostas em um jogo de renovadas variações. Por exemplo, propor uma perspectiva capaz de acentuar, em dimensão interdisciplinar, os aspectos filosófico-políticos inerentes a esta questão, ajuda a iluminar as formas em que se integram e se tensionam os horizontes culturais europeus e indígenas no período da colonização. Esta abordagem está assim ancorada nas subjetividades alternativas, resultantes de conflituosas negociações, já que repara em elementos condensadores de significações sociais, culturais e políticas sincréticas que sobrevivem às meras traduções e às lógicas do arquivo. Além disso, trata-se também de oferecer uma visão acerca do conjunto do corpus, e de provocar uma leitura acerca das relações internas a esse corpus e ao arquivo, que foram diluídas na superfície de textos e materiais. Assim, existem tradições completas que - de um tempo a outro - foram apagadas pela fundação de outra tradição ou de outro relato. Este fenômeno, todavia, é uma marca bastante comum nas culturas de toda a América, onde tanto o território como a geografia e os imaginários foram pautados por contínuas refundações que tentavam sepultar as tradições anteriores. Contudo, os textos e materiais perduram no arquivo e, a partir deles, nossos estudos devem deslocar seus olhares para reivindicar e inventar leituras que ainda se encontrem em falta.

Isso se torna evidente, desde já, em relação às nações pré-hispânicas, que foram silenciadas em grande medida, mas também concerne às culturas indígenas e mestiças da época colonial, mesmo quando algumas operações bem sucedidas, como as do Inca Garcilaso de la Vega, conseguiram inverter esse mecanismo, já que acabaram adquirindo uma visibilidade muito maior que a obtida pelas versões oficiais dos cronistas toledanos. Especificamente na órbita dos Estudos pós-coloniais ou decoloniais, a maior ambição seria a constituição de uma voz-praxis indígena direta, carnal, política e politizante, como base para a reafirmação das suas identidades antropológico-culturais. Nesse sentido, este tipo de estudos pode ser promotor dessa voz. Ou então, na lógica que este volume propõe, a escrita acadêmica - com a ajuda desta metodologia adequada - aportaria a identificação ou busca de vozes e de gêneros - do passado ou do presente - que apontem para transformar as minorias afro-indo-americanas em sujeitos e coletividades plenamente políticos.

A mulher - e ainda mais, a mulher colonial -, mesmo sendo um tema hoje muito abordado, tem sido excluída como objeto e sujeito nos Estudos Coloniais. Por isso, a pergunta principal deve indagar como, em que espaço e com que luz observar a mulher colonial a partir do presente, para que emerja como sujeito e ocupe um sítio próprio, e não alheio ou adjudicado no arquivo colonial, no qual tem estado geralmente associada com o demoníaco e com a traição, em perpétua desvalorização. A mulher condenada ou condenável não teria que ser em si mesma, de acordo com a metodologia que estamos esboçando e segundo se verá neste volume, o foco de atenção da descrição destes Estudos. Haveria que apreciar, no entanto, suas estelas, observar, por exemplo, as condenações que a limitam. Com isso, também, deter-se na função textual, narrativa, social e cultural que essa mesma condenação cumpria. E, assim, não abordar seu lugar de forma limitada, mas reconhecer seus limites, alguns dos quais ela mesma define. Dessa maneira, é nesses deslocamentos, reflexos ou detalhes “marginais”, que não constituem a totalidade, que emergiriam as agências e as identidades femininas.

Cabe aqui mencionar, por outro lado, que a figura do criollo tem sido reunida junto com as das mulheres e dos mestiços. Todavia, aqui, haveria que ter em conta que os criollos fundaram arquivos que determinaram o cânone e, a par da consolidação global da burguesia, foram os beneficiários de todos os privilégios na América. Lembremos, também, a modo de ressalva, que, ainda na colônia, o criollo era uma entidade lábil e sem limites claros, e que podia estar presente e ausente ao mesmo tempo no discurso: podia encontrar-se nos lugares em que não era mencionado e ausente quando o discurso de fato aludia a ele.

Por outra parte, também é necessário indagar acerca de qual é o lugar que ocupa o evangelizador cristão no processo da colonização, entre a compaixão e o exame horrorizado, entre a valorização e o desprezo do Outro, entre o desejo de transformá-lo e a nostalgia do perdido. Certamente, a figura do evangelizador e sua escrita assumem posições inapreensíveis que poderiam ser compreendidas através das suas fugas. Ou seja, trata-se de observar as causas e, provavelmente, os efeitos dessa translação entre posições assumidas ao longo da conquista. Desse modo, não se trataria de ir contra o que afirma a personagem, mas de relevar o que é que exprimem as aparentes contradições entre o afirmado e o que se deixa falar nos textos ou na cultura material abordada.

Essas variáveis personagens, usualmente assumidos pela voz dos evangelizadores, referem também diferentes projeções sobre os indígenas. Os artigos incluídos neste número demonstram que, especialmente nos textos dos missionários e teólogos, as representações dos nativos se contradizem constantemente. Nestas projeções, é interessante e fecundo observar os espaços de inconstância, de desfiguração e de “amorfia da alma selvagem” ( VIVEIROS DE CASTRO, 2002VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. “O mármore e a murta: sobre a inconstância da alma selvagem”. In: A inconstância da alma selvagem - e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2002, p. 181-264.). Isto deveria ser assim, apesar, justamente, da também usual insistência própria dos evangelizadores, presos ao discurso hegemônico do cristianismo - embora também em parte graças a ele -, que os obrigava a caracterizar aos nativos como nobres selvagens. Nas formas prévias e nos seus deslizes - propõem estes artigos - estaria a chave dos efeitos que teve o discurso evangelizador. Em linhas gerais, o volume propõe que esses deslocamentos dos religiosos e dos seus propósitos missionais se revelam na própria gramática das suas expressões discursivas, as que analisam também em suas referências e descrições da língua indígena. Lembremos que as gramáticas, dicionários e diversas “obras de tradução” linguística e cultural têm sido gêneros comuns de que se encarregaram os missionários, e que constituem, dessa forma, objetos totalmente válidos para a análise destes deslocamentos.

Por último, este volume também se pergunta como abordar a escritura europeia que procurou assimilar as “línguas inscritas nos corpos” (MIGNOLO, 1994MIGNOLO, Walter. “Signs and their transmission: The question of the book in the New World”. In: BOONE, Elizabeth Hill; MIGNOLO, Walter (eds.). Writing Without Words: Alternative Literacies in Mesoamerica and the Andes. Durham, NC: Duke University Press, 1994.), tais como as danças, os cantos, as imagens, e, decerto, a oralidade. Por outra parte, também, essa pergunta se desdobra em outra: como fazer para que a cultura material colonial do passado, sobrevivente e com entidade simbólica, continue (nos) falando no presente? Nesta lógica, os artigos que compõem esta coletânea indicam que tanto os cantos como algumas danças e imagens, a oralidade, os rituais, a arquitetura de uma cidade, as práticas médicas indígenas, entre outros, sejam arquivos viventes (ou sobreviventes) que devem ser lidos nas suas margens diluídas ou em suas ruinas fragmentadas, e sempre como documentos.

Tal como estamos aqui indicando, esse caminho de interpretação pode interpelar identidades que, mesmo instáveis, ainda ativam o reconhecimento e o auto-reconhecimento coletivo nas alteradas sociedades dos nossos tempos. Os rituais de origem colonial, tanto como os pré-hispânicos e os mestiços, têm sido estetizados popularmente no presente e, assim, mais do que práticas que reproduzem uma institucionalização cristã-colonial, acabam, em algumas circunstâncias, operando como modelos de contra-hegemonização. Nesses deslocamentos, os sentidos pré-hispânicos e mestiços são resguardados como ruínas vivas. Deste mesmo processo - com suas diferenças particulares -, têm participado as práticas médicas de tradição indígena. Apesar da sua efetividade e também da sua semelhança, em muitas ocasiões, com a medicina que se consolidou na Europa durante os séculos em que América se encontrava sob dominação colonial, as práticas curativas indígenas pré-colombianas e contemporâneas da colônia foram quase totalmente relegadas; inclusive, apesar de alguns esforços do próprio discurso colonial documental, como os de Gonzalo Fernández de Oviedo, de Bernardino de Sahagún, ou de José de Acosta, entre outros.

Deste modo, os ensaios reunidos nestas páginas convidam a observar, no devir colonial, tanto as palavras, como a cultura material, as práticas culturais e os agenciamentos da oralidade, e suas modalidades diluídas e desfocadas, porque desta maneira é como se podem dissolver os limites e os matizes já definidos e aparentemente cristalizados no arquivo. São textos que exibem e analisam seus objetos, mas também anunciam novas formas de ver e interpretar um corpus quase infinito, que se renova diariamente e continua promovendo todo tipo de inquirições neste tempo presente que nos toca viver.

Referências

  • VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. “O mármore e a murta: sobre a inconstância da alma selvagem”. In: A inconstância da alma selvagem - e outros ensaios de antropologia São Paulo: Cosac & Naify, 2002, p. 181-264.
  • MIGNOLO, Walter. “Signs and their transmission: The question of the book in the New World”. In: BOONE, Elizabeth Hill; MIGNOLO, Walter (eds.). Writing Without Words: Alternative Literacies in Mesoamerica and the Andes Durham, NC: Duke University Press, 1994.
  • ERRATA

    No artigo: Cordiviola, Alfredo; Teglia, Vanina. Acerca dos Estudos Coloniais. Alea, v.22, n.1, p.15-24, 2020.DOI 10.1590/10.1590/1517-106X/20202211524
    página 15, onde se lia:
    Apresentação
    Acerca dos Estudos Coloniais
    On Colonial Studies
    Leia-se
    Artigo
    Palavras dos Editores Convidados. Acerca dos Estudos Coloniais
    Words from Guest Editors. On Colonial Studies

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Mar 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2020

Histórico

  • Recebido
    31 Out 2019
  • Aceito
    04 Nov 2019
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