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Piglia e a igreja de Arlt1 1 O presente artigo faz parte do projeto de pesquisa Literatura brasileira e latino-americana: questões de inserção no cenário contemporâneo apoiada pela FAPERJ no programa Jovem Cientista do Nosso Estado (JCNE). Agradeço a Antônio Marcos Pereira o convite para a escrita deste artigo e por sua atenta leitura.

Piglia and Arlt’s Church

Resumo

É conhecida a imagem de Arlt morto, seu caixão sendo retirado pela janela de um quarto de um prédio pobre de Buenos Aires. Um corpo tão grande, um caixão tão grande, que as escadarias não suportam sua passagem. É conhecida também a assinatura dessa imagem: Ricardo Piglia. E é a partir dela que Roberto Bolaño, em “Derivas de la pesada”, associa Arlt a Jesus Cristo e Piglia a São Paulo: “Arlt teve seu São Paulo. O São Paulo de Arlt, o fundador de sua igreja, é Ricardo Piglia”. O presente texto quer explorar a sobreposição dessas figuras, como naqueles álbuns fotográficos que existiam antes do cinema “cujas imagens, rapidamente viradas pelo polegar, mostravam ao espectador lutas de boxe ou partidas de tênis”, dos quais falava Benjamin no conhecido ensaio “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”. Essa exploração deve permitir pensar o efeito de leitura que esses “últimos leitores” alcançam na produção e disseminação de imagens de seus autores prediletos. Uma coleção escrita que conta diferentes versões de mitos habilmente forjados.

Palavras-chave
Piglia; Bolaño; Arlt; América Latina; Leitor; Mito

Abstract

The image of Arlt’s dead body is well-known: his coffin being removed through the window of a room in a poor building in Buenos Aires. Such a large body, such a large coffin, that the stairs cannot support its passage. The signature in this image is also well-known: Ricardo Piglia. And it is based on this image that, in his essay “Vagaries of the Literature of Doom”, Roberto Bolaño associates Arlt with Jesus Christ and Piglia with Saint Paul: “Arlt had his Saint Paul. Arlt’s Saint Paul, the founder of his church, is Ricardo Piglia”. The present text intends to explore the superposition of these figures, as in those photographic albums that existed before cinema, those “little books of photos that could be made to flit past the viewer under the pressure of the thumb, presenting a boxing match or a tennis match”, of which Benjamin spoke in his well-known essay “The Work of Art in the Age of Mechanical Reproduction”. This exploration will enable us to consider the reading effect that these “last readers” achieve in the production and dissemination of images of their favorite authors, a written collection that tells different versions of skillfully woven myths.

Keywords
Piglia; Bolaño; Arlt; Latin America; Reader; Myth

Resumen

Es conocida la imagen de Arlt muerto, en su ataúd llevado por la ventana de una habitación de un pobre edificio de Buenos Aires. Un cuerpo tan grande, un ataúd tan grande, que las escaleras no soportaron su pasaje. Es conocida también la firma de esa imagen: Ricardo Piglia. Será desde ella que Roberto Bolaño, en “Derivas de la pesada”, asocia Arlt a Jesus Cristo y Piglia a San Pablo: “Arlt tuvo su San Pablo. El San Pablo de Arlt, el fundador de su iglesia, es Ricardo Piglia”. Este texto intenta hacer una reflexión acerca de la superposición de estas figuras, como en aquellos álbumes fotográficos que existían antes del cine “cuyas imágenes, a golpe de pulgar, hacían pasar ante la vista a la velocidad del rayo una lucha de boxeo o una partida de tenis” de los cuales decía Benjamin en su reconocido ensayo “La obra de arte en la época de su reproducibilidad técnica”. Dicha investigación intenta pensar el efecto de lectura que estos “últimos lectores” logran en la producción y en la difusión de las imágenes de sus autores predilectos. Una colección escrita que cuenta diferentes versiones de mitos hábilmente forjados.

Palabras clave
Piglia; Bolaño; Arlt; Latinoamérica; Lector; Mito

A cena

“Uma tarde Juan C. Martini Real me mostrou uma série de fotos do velório de Roberto Arlt. A mais impressionante era uma tomada do caixão pendurado no ar por cabos e suspenso sobre a cidade. Haviam armado o caixão no quarto dele, mas tiveram de retirá-lo pela janela com aparelhos e roldanas porque Arlt era grande demais para passar pelo corredor.

Aquele caixão suspenso sobre Buenos Aires é uma boa imagem do lugar de Arlt na literatura Argentina. Morreu aos 42 anos e sempre será jovem e sempre estaremos tirando seu cadáver pela janela” (PIGLIA, 2004PIGLIA, Ricardo. Formas breves. Trad. José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Cia. das Letras, 2004., p. 33).

A diatribe

“Pero no se acabo todo, porque, al igual que Jesucristo, Arlt tuve a su san Pablo. El San Pablo de Arlt, el fundador de su iglesia, es Ricardo Piglia. A menudo me pregunto: qué hubiera pasado si Piglia, en vez de enamorar-se de Arlt, se hubiera enamorado de Gombrowicz? Por qué Piglia não se enamoró de Gombrowicz y si de Arlt? Por qué Piglia no se dedicó a publicitar la buena nueva gombrowicziana o no se especializó en Juan Emar, ese escritor chileno similar al monumento al soldado desconocido? Misterio. Pero en cualquier caso es Piglia quien eleva a Arlt dentro de su propio ataúd, sobrevolando Buenos Aires, en una imagen muy pigliana o muy arltiana, pero que, en rigor, sólo sucede en la imaginación de Piglia y no en la realidad. No fue una grúa la que bajó el ataúd de Arlt, la escalera era lo suficientemente ancha como para maniobrar, el cadáver de Arlt no era el de um campeón de los pesos pesados” (BOLAÑO, 2004BOLAÑO, Roberto. Entre paréntesis. Ensayos, artículos y discursos (1998-2003). Barcelona: Anagrama, 2004., p. 27)2 2 Optamos, neste texto, por manter as citações na língua original quando não houver tradução ao português. .

A construção da igreja

Na segunda parte de Respiração artificial, romance que projetou Ricardo Piglia internacionalmente, Emilio Renzi vai a Concórdia ao encontro de Marcelo Maggi, o tio que desapareceu quando Renzi era apenas um garoto, sobre o qual sabe muitas coisas entre verdadeiras e falsas e com quem se corresponde há algum tempo, tendo em comum um objeto específico: certos papéis que pertenceram a Enrique Ossório, outra personagem envolta em mistério e mal-entendidos de toda ordem. Emilio Renzi vai a Concórdia, então, para encontrar o tio e enquanto o espera no Clube Social, conversa com Tardewski, um polonês exilado, que a crítica convencionou associar a Gombrowicz, e bebe genebra. Aos poucos, vemos várias personagens do clube e seus infortúnios e, também aos poucos, outros vão se juntando à conversa e à genebra. O primeiro deles é o conde Tokray, que chega pedindo dinheiro emprestado para levar flores ao túmulo de um amigo morto e que se ressente pelo apagamento de seu título num convite oficial para um jantar na embaixada russa no Paraná. Chega quando os outros dois estão falando de Lugones e de Macedônio Fernández. Um conde decadente. Lugones. Macedônio. Então Tokray se afasta e Renzi e Tardewski passam a falar de Borges. De como em “Pierre Menard” Borges ri do crítico Paul Groussac, prova-o a teoria do Professor - ou seja, Maggi - nas palavras de Tardewski.

Talvez seja interessante anotar aqui a tal teoria, já que ela dará ensejo em seguida para pensar Borges em contraponto com Arlt e, me parece, essa teoria, que traz um problema de mil dobras no romance, a enlaçar todas as personagens, estrangeiros fracassados ou estrangeiros altivos, mas estrangeiros todos em alguma medida, vai ganhando corpo nas páginas seguintes. Diz Tardewski que pensa o professor Maggi que Groussac era o crítico

mais representativo desses intelectuais transplantados, antes de mais nada porque ele atuara no momento preciso, exatamente quando o europeísmo constituiu-se em elemento hegemônico. Groussac é o intelectual da década de 80 por excelência, dizia o professor; mas é sobretudo o intelectual europeu na Argentina por excelência. Graças a isso pudera desempenhar aquele papel de árbitro, juiz e verdadeiro ditador cultural. Aquele crítico implacável, a cuja autoridade todos se submetiam, era irrefutável porque era europeu. Tinha o que se pode chamar de um olhar europeu autenticado, e dali julgava as realizações de uma cultura que se esforçava por parecer europeia. Um europeu legítimo divertia-se às custas daqueles nativos fantasiados. Ria-se de todos eles, pareciam-lhe meros literatos sul-americanos. (PIGLIA, 1987PIGLIA, Ricardo. Respiração artificial. Trad. Heloisa Jahn. São Paulo: Iluminuras, 1987., p. 116)

A “verdade” sobre a criação de “Pierre Menard, autor de Quixote” - ou “a chave” para a leitura, dependendo do ponto de vista teórico que se adote - é que Borges ri de Groussac, que teria escrito o livro Un enigme littéraire, para provar que o verdadeiro autor de um livro chamado Quixote apócrifo teria sido um tal de José Marti “(homônimo desconhecido e completamente involuntário do herói cubano”) (p. 117), onde demonstra com “lógica mortífera”, e sem ironia, mas por simples engano, que o autor é um homem que morreu antes da publicação do verdadeiro Quixote. Foi na verdade Groussac e não Borges quem inaugurou, por engano, a técnica do anacronismo deliberado e das atribuições errôneas. Quando Borges nos apresenta Pierre Menard, não apresenta uma teoria do leitor, nem uma teoria da linguagem, nem mesmo um novo modo de ler a história. Borges caçoa do erro de seu antecessor. A consequência imediata da anedota é a abertura de uma perspectiva crítica sul-americana, que nada deve ao “europeu legítimo”, num momento em que o “europeu legítimo” toma a figura de um conde decaído, de um estrangeiro fracassado em pleno exílio ou se mistura com um poeta de província às voltas com a forma herdada. Anoto aqui que o tema da dependência está entre as primeiras preocupações de Piglia, como o demonstraria uma leitura a partir desse viés do seu ensaio de 1973PIGLIA, Ricardo. “Roberto Arlt: una crítica de la economía literaria”. Los libros, n. 29, p. 55-71, 1973. “Roberto Arlt: una crítica de la economía literaria” e algumas páginas de Nome falso, comentados adiante, porém em outra direção.

Ora, é essa discussão que aproxima a personagem de Marconi, o escritor de sonetos, também jornalista, e que está preocupado em integrar o quadro da “jovem literatura argentina”. É aqui, e pela singeleza da frase “Não se preocupe, Marconi, disse Renzi, a literatura argentina não existe mais” (p. 119), que entra Arlt e que a tal igreja começa a ser construída.

Retenhamos as imagens deste álbum: o interior de um clube. Várias mesas; numa delas, dois homens conversam sobre Macedônio e Lugones, estão, portanto, meio reverentes; deles se aproxima um conde decadente a fim de pedir dinheiro emprestado e está incomodado com um convite oficial onde está escrito “senhor” e não “conde”. Fim de uma sequência. Os dois homens voltam a estar sós, estão alegres, bebem genebra e falam de Borges, que ri de um crítico europeu, que erra do alto de seu pedantismo; voltam a estar em três, Marconi, 36 anos, um escritor de sonetos da província, nos anos 1980, está de pé e pede licença para sentar-se. Alguma garrafa de genebra vazia sobre a mesa. Embora não se fale em cigarros, se pode ver a fumaça naquele clube de homens. Esses personagens manuseiam um álbum onde estão Borges, Arlt, Groussac, Macedônio, Lugones. E as “pequenas mãos hábeis” de uma mulher, como na cena de Anna kariênina lendo no trem rumo a Moscou [como aparece no ensaio de O último leitor] monta a coleção e faz você virar as páginas de Piglia, de Bolaño, de Borges, de Arlt…

Para construir a igreja de Arlt, Renzi precisa se fazer entender sobre o fim da literatura Argentina. E o fim começa com Borges. Borges teria sido um escritor do século 19, aquele que coloca fim a uma literatura de duas tradições: por um lado a literatura de cuteleiros, de gauchos; por outro a das cadeias de citações forjadas, falsas, desviadas, inaugurada por Sarmiento. Borges teria integrado as duas linhas, conscientemente, para fechar essas duas tradições. Beatriz Sarlo, em Borges, um escritor en las orillas, contra o que ela pensa ser o assalto internacionalista de Borges, mostra como é possível lê-lo dentro dessas duas tradições: uma nacional, contextual, tradicional, popular; outra cosmopolita, descontextual, inteiramente orquestrada no jogo das citações, no intertexto, no trabalho com a linguagem. Essas páginas da conversa no clube não são menos convincentes, mas concluem de outro modo que “Borges é anacrônico, põe fim, olha para o século 19” (p. 122). Somente assim a disputa entre a Boedo e a Florida ganha outra dimensão. Não será necessário demolir uma igreja para construir outra. Uma está voltada para um século, outra para outro: “O que abre, o que inaugura [a literatura argentina moderna], é Roberto Arlt. Arlt começa de novo: é o único escritor verdadeiramente moderno que a literatura argentina do século 20 produziu” (p. 122).

É nessa proposição que Ricardo Piglia, nas palavras e na imagem e na voz de Emilio Renzi, relatadas por Tardewski, começa, neste livro, a levantar do chão a igreja de Arlt. O diálogo mais engraçado de um livro sério está na defesa dessa teoria por Renzi e no ataque de Marconi ao estilo de Arlt defendido por Renzi. Uma próxima imagem, que paira sobre a cena mas que não chega a ser materializada, é de dois escritores, leitores críticos bastante lúcidos ainda que apaixonados, levantando-se da mesa fazendo balançar os copos de genebra vazios, arregaçando as mangas, prontos para a troca de socos.

A exposição da teoria de Renzi sobre a importância de Arlt começa já sob ataque de Marconi: “Porque eu afirmo, com o perdão dos presentes: que mais era Arlt senão um cronista de El mundo?” Ao que Renzi rebate: “Era, isso, justamente, um cronista do mundo” (p. 122). A crítica que o condena é a mesma que o consagra. A questão para ambas é que Arlt escrevia mal. Vejamos o diálogo no relato de Tardewski:

Depois do que, você me dirá, sem dúvida, que podia ser um cronista do caralho, mas que escrevia mal. Exatamente, disse Marconi, nessa parte eu lhe digo que Arlt escrevia mal e dessa maneira, suponho, dou a partida para sua veloz carreira teórica. Mas aparte isso, disse Marconi, o fato é que escrevia feito um cu. Quem, disse Renzi. Arlt? Não, Joyce, disse Marconi. Arlt, é claro, Arlt, disse. Acho que ele merece o maior respeito, pobre cristo, disse Marconi, mas a verdade é que escrevia como se quisesse estragar a vida, desprestigiar-se a si mesmo (…) Arlt escrevia para humilhar-se. (p. 122-23)

A esse ataque (e não é o acaso que traz Joyce à conversa), Renzi responde com a fundação da igreja: 1. Arlt escrevia mal, mas no sentido moral da palavra. “Sua escritura é má, uma escritura perversa.” “É um estilo criminoso”; 2. Arlt é inimitável. “Qualquer professora de escola primária, inclusive minha tia Margarida, disse Renzi, pode corrigir uma página de Arlt, mas ninguém é capaz de escrevê-la”; 3. “Arlt escreve contra a ideia de estilo literário, ou seja, contra o que nos ensinaram que devia entender-se por escrever bem, ou seja, escrever bonito, caprichadinho, sem gerúndios, não é? Sem palavras repetidas”; e 4. “O estilo de Arlt, disse Renzi, é o que se reprimiu na literatura Argentina”. (p. 123)

A estrutura dessa construção é dada claro, pela linguagem. Diante do terreno onde se apresenta, com Lugones, um estilo literário que concebe a literatura como a pureza da língua, a proteção da língua nacional contra os ataques da corrupção da linguagem misturada do imigrante, Arlt vê o terreno onde se amontoam os restos, as sobras, os fragmentos, a mistura.

Para Arlt a língua nacional é o lugar onde convivem e se enfrentam diferentes linguagens, com seus registros e tons. E é esse o material sobre o qual constrói seu estilo. É esse o material que ele transforma, que faz entrar na “máquina polifacética”, para citá-lo, de sua escritura. Arlt transforma, não reproduz. Em Arlt não há cópia da fala. Arlt não sofria dessa ilusão que abunda entre os escritores que cercam Borges, como Bioy, Peyrou, o primeiro Cortázar, que por um lado escreviam “bem”, pulcramente, com “elegância”, e por outro mostravam que eram capazes de transcrever e de copiar a fala pitoresca das classes “baixas”. O estilo de Arlt é uma massa em ebulição, uma superfície contraditória, onde não há cópia da fala, transcrição crua do oral. Arlt, então, trabalha essa língua atomizada, percebe que a língua nacional não é unívoca, que são as classes dominantes que impõem, a partir da escola, um determinado manejo da língua como sendo o correto; percebe que a língua nacional é um conglomerado. (p. 125)

Ainda diante da plateia silenciosa, Renzi irá tecer o outro lado da questão da língua, lembrando que Arlt só lia traduções, o que é tema e problema em Nome falso. Assim, teria escapado também da tradição do bilinguismo. Como leitor de traduções, Arlt receberia a influência estrangeira já peneirada de sua linguagem original. E Renzi termina dizendo que “não há nada tão agressivo quanto o estilo de Arlt”. E isso porque “o estilo de Arlt é feito, no plano linguístico, do mesmo material com que constrói o tema de seus romances” (p. 126).

E então, nas palavras de Marconi aparece a mesma objeção que estará presente muitos anos depois na diatribe de Bolaño: “‘É claro que se a gente lê Arlt como você lê, não pode ler Borges’, disse Marconi. ‘Ou pode lê-lo de outro modo, disse Renzi, lê-lo, por exemplo, a partir de Arlt. Seria melhor, disse Marconi, melhor ler Borges a partir de Arlt, porque se lemos Arlt a partir de Borges não sobra nada’” (p. 127). E em Bolaño:

Piglia me parece uno de los mejores narradores actuales de Latinoamérica. Lo que pasa es que me hace difícil de soportar el desvarío - un desvarío gangsteril, de la pesada - que Piglia teje alrededor de Arlt, probablemente el único inocente en este asunto. No puedo estar de nenhuma manera a favor de los malos tradutores del ruso (…) e no puedo aceptar el plagio como una de las Belas Artes. La literatura de Arlt, considerada como armario o subterráneo, está bien. Considerada como salón de la casa es una broma macabra. Considerada como cocina, nos promete el envenenamiento. Considerada como lavabo nos acabará produciendo sarna. Considerada como biblioteca es una garantía de la destrucción de la literatura. (BOLAÑO, 2004BOLAÑO, Roberto. Entre paréntesis. Ensayos, artículos y discursos (1998-2003). Barcelona: Anagrama, 2004., p. 27-28)

Estaria Bolaño, em “Derivas de la pesada”, texto lido em Barcelona, em 2002, respondendo a essa conversa entre Marconi e Renzi, no Clube Social de Concórdia, província de Entre Ríos, e publicada pouco mais de vinte anos antes? Certo que sim. Para além da resposta direta sobre as más traduções do russo, que Renzi aponta serem o material de construção de Arlt - “Daí que o modelo de estilo literário - onde ele vai encontrar? Encontra-o onde pode ler, ou seja, nas traduções espanholas de Dostoiévski, de Andreiev. Encontra-o no estilo dos péssimos tradutores espanhóis, nas edições baratas de Tor” (PIGLIA, 1987PIGLIA, Ricardo. Respiração artificial. Trad. Heloisa Jahn. São Paulo: Iluminuras, 1987., p. 126) - toma a conversa de onde pararam Marconi e Renzi.

Renzi fala em linhas, duas linhas em Borges, linhas que se entrecruzam e se fecham. Outra linha seria de Arlt, mas Arlt morre em 1942. O que vem depois? “Daí, diz Renzi, partimos desse pressuposto, Borges é um escritor do século 19, fecha, encerra, etc. etc. Arlt, por sua vez, morreu em 1942. Quem seria, pergunto eu agora, disse Renzi, o escritor atual que poderíamos considerar para resolver se a literatura argentina morreu ou não?” (p. 129).

Bolaño vai responder a essa pergunta. Parte do princípio de que “com Borges vivo la literatura argentina se convierte en lo que la mayoría de los lectores conoce como literatura argentina (…) Cuando Borges se muere, se acaba de golpe todo.” (BOLAÑO, 2004BOLAÑO, Roberto. Entre paréntesis. Ensayos, artículos y discursos (1998-2003). Barcelona: Anagrama, 2004., p. 24). E então passa à resposta:

La literatura argentina actual, lamentablemente, tiene tres puntos de referencia. Dos de ellos son públicos. El tercero és secreto. Los tres, de alguna manera, son reacciones antiborgeanas. Los tres, en el fondo, representam un retroceso, son conservadores y no revolucionarios, aunque los tres, o al menos dos de ellos, se postulen como alternativas de un pensamiento de izquierda. (p. 25)

As três linhas, os três pontos de referência, são 1. Osvaldo Soriano, que ele coloca no rol dos escritores de mercado, “un poco de humor, mucha solidariedade, amistad portenha, algo de tango, boxeadores tronados y Marlowe viejo pero firme” (p. 25); 2. a mais complexa, justamente a que se inicia com Roberto Arlt e que teria acabado com sua morte, não fosse a igreja construída por Piglia; 3. a terceira se inicia com Oswaldo Lamborghini, que é a corrente secreta, e em vez da metáfora da igreja, Bolaño constrói uma outra, bem menos sagrada, para colocar César Aira: “tan secreta como fue la vida de Lamborghini, que murió em Barcelona en 1985, si no recuerdo mal, y dejó como albacea literario a su discípulo más querido, César Aira, que viene a ser lo mismo que si una rata deja como albacea testamentario a un gato con hambre (p. 28). É muito justo o que ele fala aqui sobre Aira, ainda que não seja esta sua única opinião sobre ele3 3 “Aira es un excéntrico, pero también es uno de los tres o cuatro mejores escritores de hoy en lengua espanhola”, pode-se ler em “El increíble César Aira” (2004, p. 137). , assim como muda em relação a Piglia: Os amigos de Lamborghini estão condenados a plagiá-lo e também a escrever mal, péssimo “excepto Aira, que mantiene una prosa uniforme, gris, que en ocasiones, cuando es fiel a Lamborghini, cristaliza en obras memorables, como el cuento “Cecil Taylor” o la nouvelle Cómo me hice monja, pero que en su deriva neovanguardista y rousseliana (y absolutamente acrítica) la mayor parte de las vezes sólo és aburrida” (p. 30).

A conclusão de Bolaño é que é preciso voltar a Borges. Que a linha do escrever mal e o que ele diz ser a literatura a que falta equilíbrio, a que se desviou no submundo, não são fortes o suficiente. O “desespero dionisíaco” não tem força para manter viva a literatura argentina. A literatura antiborgeana é débil.

O mais intrigante nisso tudo é que, se essa é uma resposta a Piglia, a Respiração Artificial, de Piglia, há alguma coisa que não bate. Alguma coisa secreta que une esses dois escritores naquilo que ambos têm em sua relação com Borges e com Arlt. Porque quando lemos Respiração artificial e Detetives selvagens poderíamos dizer qual deles deve mais a Borges e qual deve mais a Arlt? Se diríamos alguma coisa, diríamos que Borges está muito mais em Piglia do que está em Bolaño. E Bolaño está muito mais próximo da vertente dionisíaca de Arlt do que do lado apolíneo de Borges, para retomar sua orientação nesse pêndulo que vem de Nietzsche. Como bem percebe Jorge Tellier, lendo esse texto de Bolaño,

Para decirlo con los mismos términos que Bolaño toma, supongo, de Nietzsche: como lector, califico a Bolaño como dionisíaco y Piglia como apolíneo. No sólo en sus libros sino en sus personalidades, en sus conferencias, en sus críticas. El contraste Reyes-Macedonio [tomado de uma conversa entre os dois4 4 Disponível em https://elperiodico.com.gt/elacordeon/2017/01/22/roberto-bolano-y-ricardo-piglia-una-conversacion/“Piglia: Macedonio es un escritor excepcional […]; Borges aprendió todo de él, sobre todo, la inutilidad de desarrollar un argumento que se puede resumir y contar como si ya estuviera escrito. Bolaño: Borges no lo aprende todo de Macedonio, sino también, una parte importante, de Alfonso Reyes, quien lo cura para siempre de cualquier veleidad vanguardista. Macedonio es el riesgo, la audacia, el vanguardismo y el criollismo juntos, pero Alfonso Reyes es el escritor, la biblioteca, y el peso que tiene sobre Borges es importantísimo, tanto en el desarrollo de su poesía como en su prosa. Digamos que Reyes proporciona el elemento clásico a Borges, la mesura apolínea, y eso de alguna manera lo salva, lo hace más Borges.” Última consulta: jan. 2020. ] funciona tan bien como el de Borges-Arlt. En Piglia he visto siempre la elegancia y la biblioteca; en Bolaño, el exceso, el riesgo, la audacia5 5 Disponível em http://www.letraslibres.com/mexico-espana/piglia-y-bolano-mano-mano. Última consulta: jan. 2020. ”.

Pequeno desvio sobre o corpo

Talvez um relato de Renzi, contado por Tardewski e vivido por Marconi - o que produz aquela deliciosa frase recorrente no romance inteiro “disse a mulher, contou Marconi, me diz Tardewski” - ofereça algo como o segredo que une Piglia e Bolaño: um modo muito particular de conceber a experiência.

Trata-se da história de Marconi como destinatário de diversas cartas de mulheres, contando as mais fascinantes aventuras, seu passado sexual, seu desejo de ser escritoras, enfim, Marconi recebe muitas dessas cartas no jornal no qual trabalha e tem por princípio nunca respondê-las ou comentá-las. Porém, passa a receber as cartas de uma mulher cujo estilo é perfeito. No início pensa que são escritas por um homem, por “um escritor de um talento absolutamente incomum”, cartas escritas num “espanhol puro e cristalino”, num espanhol “levemente arcaico, quase quevediano” e sente que a mera possibilidade de comparar aquelas cartas com qualquer coisa que ele escreve faria com que ele parecesse tosco e desajeitado. A mulher não falava de si mesma nas cartas, contava outras histórias, parábolas ou relatos e assinava com um “Sua”, seu nome, seu telefone e endereço. Embora as cartas fossem de uma perfeição literária invejável, Marconi acabou respondendo, ao final de três meses, com o desprezo: dizendo a ela que “o que ela escrevia, aquelas parábolas imbecis, não passavam de péssima literatura” (PIGLIA, 1987PIGLIA, Ricardo. Respiração artificial. Trad. Heloisa Jahn. São Paulo: Iluminuras, 1987., p. 146). A mulher continuou escrevendo e, numa tarde em que Marconi estava “num estado de ânimo muito particular”, decidiu vê-la. Telefonou e uma hora depois a mulher estava na sua casa.

Como comecei este texto com a ideia de fotografias, de retratos, de álbum de figuras - mais precisamente, com fotografias dessas figuras em um movimento produzido unicamente pelo leitor - é preciso fazer uma parada nesse homem, Marconi, em pé abrindo a porta para a mulher que espera, um homem que recém tomou banho e vestiu uma gravata. Ele abre a porta com um copo de uísque na mão. A fotografia, porém, imprime nele o seguinte estado de ânimo, muito particular: “Estava num estado de ânimo tão particular que precisava que aquela mulher e nenhuma outra pessoa no mundo me dissesse: O senhor é o maior, o melhor, não há outro poeta como o senhor” (p. 147). Quando ele abre a porta, encontra uma mulher “incrivelmente feia, de uma feiúra fascinante, quase perversa”. Ele sente o gelo tremendo, batendo contra o copo. Ele deixa o uísque sobre um móvel. Ele conversa com a mulher durante quatro horas. E ele é de uma perversidade insuportável. A fotografia da mulher aparece assim: “Era um monstro, mas tinha uma inteligência refinadíssima” (p. 148). A mulher, então, depois de dizer que gostava dos sonetos de Marconi, “embora visse neles um excessivo desejo de impressionar através da destreza técnica”, passou a falar de seu fracasso, ou do que ela acreditava ser seu fracasso diante da ideia de ser uma escritora. Diz ela, contou Marconi, está contando Tardewski, relata Renzi:

Sobre que um escritor pode construir sua obra senão sobre sua própria vida? Sobre que, senão sobre sua própria vida?, disse. E sua vida, disse, era uma coisa tão abominável quanto seu corpo, e portanto era impossível que pudesse dedicar-se à literatura, porque para ela escrever era justamente esquecer-se daquilo que deveria ser o tema de sua obra. Escrevera aquelas cartas, disse, porque às vezes, à noite, não aguentava mais. Às vezes, à noite, não aguentava mais e escrever aquelas cartas aliviava-a, permitia-lhe que durante algum tempo descuidasse de si mesma e de sua vida. (…) Ela o pressentia, disse, sabia que eram péssima literatura porque a literatura só pode ser escrita com a trama de uma vida. A gente escreve, disse a mulher, e as palavras são nosso corpo. (p. 148)

Embora Marconi tivesse achado aquela teoria ridícula, aconselhou-a a se dedicar ao bordado de toalhas ou alguma outra coisa impessoal. Disse que ela tinha razão, “que a literatura era sempre autobiográfica e que ela devia esquecer para sempre essa tentação” (p. 149). Ecos de Piglia, dizendo que tudo, absolutamente tudo o que um escritor escreve é autobiográfico em alguma medida. Ecos dos temas de Arlt. Ecos da desestabilização que produz Arlt na língua. Enquanto a mulher continua falando algo como, “ninguém sabe o que é ter nojo de si mesmo como eu sei”, Marconi vive o

sórdido temor de que a mulher não se deixasse convencer. Porque se não consigo convencê-la, pensava, e esta mulher, este monstro, resolve publicar qualquer coisa que escreva, quem vai ter que parar inteiramente de escrever sou eu. Se esta mulher continua escrevendo, ninguém, nos anos vindouros, ninguém jamais ia lembrar que existira um poeta chamado Bartolomé Marconi. (p. 149)

O relato acaba com a estupefação e a repetição: “Só se pode escrever sobre o nosso corpo, gravar os livros na carne de nosso corpo, mas meu corpo é tão abominável e eu o odeio como ninguém jamais pôde odiar nada nesse mundo” (p. 149). Acabado este assunto, este relato, Tardewski passa a falar sobre o fracasso, remetendo outra vez ao conto de Arlt (1996ARLT, Roberto. “Escritor fracassado”. In: ARLT, Roberto. As feras. Trad. Sérgio Molina. São Paulo: Iluminuras, 1996.) “Escritor fracassado”.

Corpo, experiência, literatura. O que faz esse relato, essa anedota, no meio de uma noite em que se fala unicamente de escritores e filósofos? O que faz esse corpo feio de mulher ali? Por que é o corpo justamente de uma mulher? O que isso tem a ver com Piglia e Bolaño? Com Arlt e Borges?

O enredo de Respiração artificial é todo construído sobre o corpo de um suicida sobre um túmulo - o de Enrique Ossorio -; o corpo de um político que ficou paralítico por causa de um tiro durante um discurso - o de Luciano Ossorio; - o corpo de um gordo que tem dificuldade de locomoção - Marcelo Maggi. Emilio Renzi se move entre esses corpos, seguindo as pegadas de suas experiências anotadas em cartas, pastas, diários. Encontra escritores e filósofos fracassados na província. Sem falar que respiração artificial é a própria luta perdida do corpo pela sobrevivência na escassez de ar. Toda a filosofia e todo o fracasso de Tardewski estão inscritos nesse corpo que treme de frio no exílio argentino, depois de ser roubado enquanto comemorava a publicação de um texto que poderia impedir o roubo de uma ideia. E, em Bolaño, como não pensar em Cesárea Tinajero e seu imenso corpo baleado no deserto? No imenso, gordo, corpo de uma poeta que defende das balas os corpos magros de dois poetas perdidos no deserto?:

Quando chegamos havia só três lavadeiras. Cesárea estava entre elas, nós a reconhecemos na hora. Vista de costas, debruçada sobre o tanque, Cesárea não tinha nada de poética. Parecia uma pedra ou um elefante. Suas nádegas eram enormes e se mexiam ao ritmo que seus braços, dois troncos de carvalho, imprimiam ao esfregar e enxaguar a roupa. (BOLAÑO, 2006BOLAÑO, Roberto. Os detetives selvagens. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. , p. 615)

Marconi aconselhou a escritora feia que lhe enviava cartas a bordar. Cesárea, a imensa e feia poeta, lava. A poesia não é bela.

Quando tornei a levantar a cabeça do banco traseiro, vi o polícia e Lima rolando no chão até pararem na beira da estrada, o polícia em cima de Ulises, a pistola na mão do polícia apontando para a cabeça de Ulises, e vi Cesárea, vi a massa enorme de Cesárea Tinajero, que mal podia correr mas que corria, abatendo-se sobre eles, ouvi mais dois tiros e saí do carro. Custou-me apartar o corpo de Cesárea dos corpos do polícia e do meu amigo.// Os três estavam manchados de sangue, mas só Cesárea estava morta. (BOLAÑO, 2006BOLAÑO, Roberto. Os detetives selvagens. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. , p. 617-18)

A poesia morreu com um nome bastante sugestivo para um leitor de Borges. Cesárea. E lemos em Arlt: “Busco un poema que no encuentro, el poema de un cuerpo a quien la desesperación pobló súbitamente en su carne, de mil bocas grandiosas, de dos mil labios gritadores” (ARLT, 1995ARLT, Roberto. El juguete rabioso. Buenos Aires: Losada, 1995., p. 63).

Todo o diário de Garcia Madero, toda a iniciação dos poetas mexicanos se dá entre o corpo e a poesia. Em Detetives selvagens, a poesia está inscrita no corpo, gravada na carne, como diz a escritora da experiência de Marconi, que enlaça Tardewski e Renzi nessa noite, já na casa de Tardewski e não mais no Clube Social.

Os dois escritores - Bolaño e Piglia - são leitores um do outro. Atualizam questões um do outro, leem os mesmos autores. De todos os modos, é senso comum pensar Borges como cabeça pensante, sem corpo, e pensar Arlt como corpo, sem cabeça pensante. Basta lembrar o que diz Marconi “escreve como um cu”. É também o que faz Bolaño, pensando Borges como apolíneo e Arlt como dionisíaco. E se Bolaño, como é fácil ver em seus livros, é tão corpo, é tão dionisíaco, por que investe tanto na destruição da igreja de Arlt construída por Piglia?

A questão de Bolaño, muito mais do que ser uma questão entre Arlt e Borges, é uma questão de uma continuidade corrompida pelo mercado. Ali onde Arlt era transgressor, agora há uma literatura fácil. A leitura do texto, no Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona, é precedida por algumas palavras que tornam mais claro o ataque:

El texto se limita entonces a la deriva que ha tenido la literatura argentina tras la muerte de Borges. Lamentablemente, esta literatura gangsteril o de la pesada es la más viva, la más rica. A mí personalmente no me entusiasma gran cosa, en gran medida porque estoy harto de la literatura de la pesada, pero sin la menor duda esta literatura es la que está más viva y la que más está influyendo en el resto de la literatura latinoamericana. La pesada, como ya he dicho, es esa especie de submundo o inframundo fuera da ley. (BOLAÑO, 2004BOLAÑO, Roberto. Entre paréntesis. Ensayos, artículos y discursos (1998-2003). Barcelona: Anagrama, 2004., p. 346)

Onde há homogeneidade é preciso destruí-la. Onde está uma linha de força produzida pela moda ou pela acomodação, é preciso destruí-la. Quando o mercado adota um tipo de literatura, é preciso destruí-la. Mas também onde há um escritor contemporâneo que pode ser mais visível e melhor legitimado que Bolaño, é preciso atacar. Não é o acaso que o leva a falar da literatura argentina e não da chilena, e não da espanhola, e não da mexicana, e também não da latino-americana.

Bolaño pede autenticidade à figura do escritor. Assim, se Arlt foi uma espécie de maldito, um escritor menor, um escritor do submundo, que construiu seu estilo contra o estilo hegemônico, a linhagem que dele se segue seria a de escritores que o imitam mas que não vivem o submundo:

Aunque con el paso de los años es legítimo preguntar-se hasta qué punto la pesadilla o la piel de la pesadilla es tan radical como enunciaban sus cultores. Mucho de ellos viven mucho mejor que yo. En este sentido que puedo permitir afirmar que yo soy una rata apolínea y que ellos cada día se asemejan más a unos gatos de angora o gatos siameses despulgados eficientemente por un collar marca Aimé o marca Dionisos, que esta altura da historia viene a ser lo mismo. (BOLAÑO, 2004BOLAÑO, Roberto. Entre paréntesis. Ensayos, artículos y discursos (1998-2003). Barcelona: Anagrama, 2004., p. 24-25)

E, definitivamente: “La literatura de la pesada tiene que existir, pero si sólo existe ella, la literatura se acaba.” (BOLAÑO, 2004BOLAÑO, Roberto. Entre paréntesis. Ensayos, artículos y discursos (1998-2003). Barcelona: Anagrama, 2004., p. 28).

De volta à igreja de Arlt

Em “Sobre Roberto Arlt”, entrevista concedida a Ricardo Kunis, publicada antes no Clarin e depois recolhida no livro Crítica y Ficción, à pergunta “Quien es Roberto Arlt?” Piglia responde:

Alguien que no es un clásico, es decir, alguien cuya obra no está muerta. Y el mayor riesgo que corre hoy la obra de Arlt es el de la canonización. Hasta ahora su estilo lo há salvado de ir parar al museo: es difícil neutralizar esa escritura, no hay profesor que la resista. Se opone frontalmente a la norma pequeño burguesa de la hipercorrección que ha servido para definir el estilo medio de nuestra literatura. (PIGLIA, 1986PIGLIA, Ricardo. Crítica e ficción. Barcelona: Anagrama, 1986., p. 21)

Que diferença há entre o museu e a igreja? Os dois são lugares de adoração, os dois são lugares do sagrado. Se pensarmos com Benjamin, o museu sucede a igreja na história da obra de arte - do valor de culto ao valor de exposição. Do sagrado à secularização. No entanto, fora da história da arte, no texto de Bolaño, há algo de circunstancial e a igreja remete ao lugar de consagração do mártir. Uma forma de canonização. A diferença para o museu tem a ver com mundanização. O museu é um lugar de consagração maior que a igreja; a igreja é onde qualquer um pode entrar, onde qualquer um que nada entenda pode entrar. A igreja é mais mundana que o museu. A resistência ao museu, na proposição de Piglia, é a resistência à morte. O museu neutraliza a escritura. O museu retira da escritura o que ela tem de incômodo, de estranheza, se levarmos em conta a segunda questão a que Piglia responde, sobre o estilo de Arlt e que de certa forma repete o que já está em Respiração artificial, mas com um acréscimo interessante: “El fraseo del estilo de Arlt está como condensado en su apellido: cargado de consonantes, difícil de pronunciar, inolvidable” (p. 21).

Igreja, museu, cânone, clássico. Entre o plagiário, o mau escritor, e o transgressor da norma, o corruptor do estilo, Arlt como o Jesus Cristo de Piglia é “um clásico sem legitimidade” (p. 22), como o reconhece Piglia na mesma entrevista. “Todos son un poco condescendientes con Arlt. Pienso que este lugar desplazado, ilegítimo, que siempre tuvo, definió su ideologia y lo radicalizó” (p. 22). Se tudo mudou na Argentina atual, Arlt manteve a marca dessa ilegitimidade. É isso que o salva do museu e é isso que permite a construção de sua igreja, uma igreja dos desclassificados. Mas Piglia lembra que o que “salvou” a obra de Arlt do esquecimento - e nisso vale dizer do museu, da morte, do fechado - foram os leitores. “Se lo ha leído siempre y se lo lee hoy y desde hace cinquenta años es un escritor actual.” (p. 22).

Em Nome falso - homenagem a Roberto Arlt - essa atenção para o “legado” de Arlt é encenada na preocupação de Kostia com o estilo limpo de um conto inédito que, se publicado, poderia “colocá-lo à altura dos outros boçais. Demonstrar que ele escrevia como se…” (PIGLIA, 1988PIGLIA, Ricardo. Nome falso. Trad. Heloisa Jahn. São Paulo: Iluminuras , 1988., p. 56). Kostia sustenta que o manuscrito está imperfeito porque Arlt não teria tido tempo de estragá-lo, de sujá-lo, ou seja, não teria tido tempo de imprimir no escrito o seu verdadeiro estilo: “Gostaria que isso ficasse claro: ele não quis publicá-lo. Disso o senhor pode ter certeza. E sabe por quê? Porque ele não queria publicar nada enquanto não ficasse sujo, despedaçado, cheio de restos, de detritos: para ele, literatura era isso” (p. 53). E acaba por desenhar-lhe o perfil no papel de grande amigo que cumpre no conto de Piglia:

Era um escritor assombroso, difícil, ninguém pior do que ele, mas o que era bastou para que fosse o único escritor que este país de merda produziu. Tinha sua própria ideia do que fosse escrever; uma estranha ideia. Quando começava a corrigir estragava, sujava tudo. Estragava, se o senhor considera as coisas do ponto de vista do estilo. Se o senhor se põe na cabeça de um medíocre. De um sujeito como o senhor ou como eu. Entende? (p. 53)

Mas é antes ainda de Nome falso, no ensaio “Roberto Arlt: una crítica de la economía literaria”, publicado en março de 1973 no número 29 da revista Los libros, que Piglia coloca o primeiro pilar da igreja de Arlt. Nesse ensaio em que persegue as marcas do dinheiro em sua escrita, Piglia mostra como em El juguete rabioso estamos diante de uma “Escritura donde todo se paga”, e que, afinal, é este o procedimento que “define, al mismo tiempo, el espacio literario de Arlt y su ‘moral’ de escritor”. E cita Arlt: “Se dice de mí que escribo mal. Es posible”. Para Piglia, “Esta confesión es ambigua. Para escribir ‘bien’ hay que disponer de ‘ocio, rentas, vida holgada’, hacerse responsable del derroche que significa cultivar un estilo. En Arlt, este lujo se paga caro, el desinterés elimina la oferta: se escribe por nada, para nada” (PIGLIA, 1973PIGLIA, Ricardo. “Roberto Arlt: una crítica de la economía literaria”. Los libros, n. 29, p. 55-71, 1973., p. 57).

Desde este, que é seu primeiro ensaio sobre Arlt, o estilo apressado, mal acabado, a imputação do escrever mal, é tomado por Piglia de maneira a torcer o raciocínio depreciativo para evidenciar um traço incomum e elevá-lo à altura dos melhores escritores argentinos. É esse incomum de uma linguagem que ele dirá “com as marcas de classe” associado a sua devoração incondicional pelo grande público que fazem de Arlt, Arlt.

La insistencia sobre las faltas de Arlt no son otra cosa que las marcas de un descrédito: manejar mal la ortografía, la sintaxis es de hecho una señal de clase. Se usan mal los códigos de posesión de una lengua: los errores son - otra vez - el lapsus, se pierden los títulos de propiedad y se deja ver una condición social. (PIGLIA, 1973PIGLIA, Ricardo. “Roberto Arlt: una crítica de la economía literaria”. Los libros, n. 29, p. 55-71, 1973., p. 58)

É “uma escritura desacreditada” no meio literário e nada melhor que um crítico de prestígio para creditá-la. E o crédito de um acaba dando crédito ao outro numa via de mão dupla, já que nada melhor do que um investimento na contra-mão para fazer de um crítico um grande crítico. Operação de valores que colocam Arlt como um pilar de Piglia.

“Roberto Arlt: una crítica de la economía literaria” e Nome falso foram escritos quase ao mesmo tempo (o ensaio é de 1973 e o livro foi publicado pela primeira vez em 1975) e deixam mostrar, ambos, toda uma teoria de Piglia sobre o entrelaçamento entre o dinheiro e a literatura. Corroborando o que está no ensaio, em Nome falso, o narrador - que, já no final da peripécia com o manuscrito, numa ligação que faz a Kostia se nomeia, “Diga-lhe que Ricardo Piglia telefonou. Quem está falando?” (p. 60), antes de se autoapresentar como Emilio Renzi, portanto - nos dá notícias do conteúdo de duas cartas trocadas entre Arlt e seu amigo Kostia. A carta de Arlt trata da busca de uma patente para seu grande “experimento laboratorial” - também chamado procedimento, numa nota explícita ao formalismo russo e sua preocupação com a materialidade e organicidade da forma na literatura -, um “Novo sistema industrial para produzir uma meia de mulher cujo ponto não corre na malha”. Essa aposta num produto industrial e lucrativo, feito à base de borracha, permitiria ao Arlt do conto um bom respiro para depois de ter ganho dinheiro poder se dedicar à literatura. E a imagem mais interessante dele é a de um cientista meio atrapalhado que aparece na casa de Andrés Martina - que tinha alugado a ele um galpão para a instalação do laboratório para os experimentos com as meias: “Um dia um de seus tubos de oxigênio explodiu, quase se queima vivo. Lembro-me de que apareceu na cozinha de minha casa com o rosto preto e as sobrancelhas chamuscadas, abatido e humilhado” (PIGLIA, 1988PIGLIA, Ricardo. Nome falso. Trad. Heloisa Jahn. São Paulo: Iluminuras , 1988., p. 15). Bela imagem para o álbum.

A carta de Kostia associa os dois produtos: a meia é mal acabada, mas pode render muito mais do que as meias de seda se for destinada a um outro uso. Ou seja, se entenderem para que serve - comprimir varizes - poderá enriquecer o autor do feito. Já o conto é de primeira. Então Kostia se reveste aqui da voz dos críticos de Arlt e o que temos é o reforço do pensamento de Arlt, conforme quer dar a ver Piglia, sobre escrever por dinheiro, ou sobre para que serve a literatura: “Tenho a impressão de que você nunca vai entender que é preciso separar a literatura e a grana” (p. 36). E adiante coloca lado a lado a meia e o conto:

É o mesmo que acontece com sua invenção das meias: você acha que alguém vai querer comprar essa espécie de barriga de peixe? Por quê? Porque você investe tempo, dinheiro, etc.? Se você trabalhasse nas meias a troco de nada, só pra se distrair, ainda dava pra entender (…) Mas vendê-las? Fabricá-las para ganhar dinheiro? O mesmo acontece com a literatura: a profissão de escritor não existe, pare de encher o saco de uma vez por todas. Ninguém escreve porque gosta ou porque lhe dão dinheiro, escreve porque… você sabe. (PIGLIA, 1988PIGLIA, Ricardo. Nome falso. Trad. Heloisa Jahn. São Paulo: Iluminuras , 1988., p. 36)

Uma das primeiras declarações sobre o valor de Arlt dadas por Kostia remete a “Escritor fracassado”, conto em que são ensaiadas e refutadas justamente as várias possíveis respostas à questão do para que serve ou do para que se escreve literatura: “Leia Escritor fracassado: é a melhor coisa que Arlt escreveu em toda sua vida. A história de um cara que não consegue escrever nada de original, que rouba sem perceber…” E arremata: “Tudo falso, falsificações de falsificações, Arlt percebeu que tinha que escrever sobre isso, enfiado até o pescoço” (PIGLIA, 1988PIGLIA, Ricardo. Nome falso. Trad. Heloisa Jahn. São Paulo: Iluminuras , 1988., p. 47). Não é outro o procedimento de Piglia em Nome falso. Mas o interessante da recomendação se dá por outra volta: “Olhe - disse -, faça um teste, compare Escritor fracassado com aquele conto do Borges, com Pierre Menard: são a mesma coisa” (p. 47). Estamos de novo de onde partimos: em Respiração artificial, na obsessão comparativa entre esses dois autores. Naquele que é o ponto de partida a exigir o que Bolaño chamou pejorativamente de “a igreja de Arlt”.

Julio Schvartzman, numa das seções de seu ensaio “Emilio Renzi. La literatura, una politica alternativa”, nos faz notar que quase um quarto de século depois, nas suas aulas abertas sobre Borges6 6 As aulas estão disponíveis em: http://www.tvpublica.com.ar/programa/borges-por-piglia/ , em 2013, Piglia retira Borges do século 19, onde o havia colocado em Respiração artificial e o conecta com a literatura moderna do século que seria de Arlt: “Piglia corrige a Renzi y hace justicia, nombrando a dos escritores como cifra del siglo XX: Borges y Kafka” (SCHVARTZMAN, 2017SCHVARTZMAN, Julio. Emilio Renzi. La literatura, una politica alternativa. Revista Landa, Florianópolis, v. 5, n. 2, p. 132-143, 2017., p. 137). É ainda Schvartzman quem aponta para uma anotação nos Diários, que remete outra vez ao enlace Borges-Arlt de Respiração artificial: “Todos nosotros nacemos en Roberto Arlt: el primero que consiga engancharlo con Borges habrá triunfado”. E comenta:

En 1994 la edición definitiva de Nombre falso lleva como epígrafe general la frase “Solo se pierde lo que realmente no se ha tenido”, atribuida a Roberto Arlt. En realidad, pertenece a “Nueva refutación del tiempo”, de Borges (en Otras inquisiciones, 1952), que la reformula en el poema “1964” de El otro, el mismo: “Nadie pierde (repites vanamente) / sino lo que no tiene y no ha tenido”. La falsa atribución termina de producir el enganche proyectado en 1970”. E nos pergunta Schvartzman: “¿Habrá triunfado?” (SCHVARTZMAN, 2017SCHVARTZMAN, Julio. Emilio Renzi. La literatura, una politica alternativa. Revista Landa, Florianópolis, v. 5, n. 2, p. 132-143, 2017., p. 137-138)

Ou, como diz Luba, a personagem do conto inédito de Arlt do qual trata Nome falso, “Não, querido, você mesmo tem que construir sua igreja. Sua inocência não vale nada” (PIGLIA, 1988PIGLIA, Ricardo. Nome falso. Trad. Heloisa Jahn. São Paulo: Iluminuras , 1988., p. 84).

Referências

  • ARLT, Roberto. El juguete rabioso Buenos Aires: Losada, 1995.
  • ARLT, Roberto. “Escritor fracassado”. In: ARLT, Roberto. As feras Trad. Sérgio Molina. São Paulo: Iluminuras, 1996.
  • BOLAÑO, Roberto; PIGLIA, Ricardo. Roberto Bolaño y Ricardo Piglia, una conversación. El Periódico, 22/01/2017. Disponivel em: <https://elperiodico.com.gt/elacordeon/2017/01/22/roberto-bolano-y-ricardo-piglia-una-conversacion/>
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  • BOLAÑO, Roberto. Os detetives selvagens Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
  • BOLAÑO, Roberto. Entre paréntesis. Ensayos, artículos y discursos (1998-2003). Barcelona: Anagrama, 2004.
  • PEREIRA, Maria Antonieta. Ricardo Piglia y sus precursores Buenos Aires: Corregidor, 2001.
  • PIGLIA, Ricardo. “Roberto Arlt: una crítica de la economía literaria”. Los libros, n. 29, p. 55-71, 1973.
  • PIGLIA, Ricardo. Formas breves Trad. José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Cia. das Letras, 2004.
  • PIGLIA, Ricardo. Respiração artificial Trad. Heloisa Jahn. São Paulo: Iluminuras, 1987.
  • PIGLIA, Ricardo. Crítica e ficción Barcelona: Anagrama, 1986.
  • PIGLIA, Ricardo. Nome falso Trad. Heloisa Jahn. São Paulo: Iluminuras , 1988.
  • PIGLIA, Ricardo. O último leitor Trad. Heloisa Jahn. São Paulo: Cia das Letras, 2006.
  • SCHVARTZMAN, Julio. Emilio Renzi. La literatura, una politica alternativa. Revista Landa, Florianópolis, v. 5, n. 2, p. 132-143, 2017.
  • TELLES, Jorge. Piglia e Bolaño mano a mano. Letras Libres, 26/09/2011. Disponível em: <http://www.letraslibres.com/mexico-espana/piglia-y-bolano-mano-mano>
    » http://www.letraslibres.com/mexico-espana/piglia-y-bolano-mano-mano
  • 1
    O presente artigo faz parte do projeto de pesquisa Literatura brasileira e latino-americana: questões de inserção no cenário contemporâneo apoiada pela FAPERJ no programa Jovem Cientista do Nosso Estado (JCNE). Agradeço a Antônio Marcos Pereira o convite para a escrita deste artigo e por sua atenta leitura.
  • 2
    Optamos, neste texto, por manter as citações na língua original quando não houver tradução ao português.
  • 3
    “Aira es un excéntrico, pero también es uno de los tres o cuatro mejores escritores de hoy en lengua espanhola”, pode-se ler em “El increíble César Aira” (2004, p. 137).
  • 4
    Disponível em https://elperiodico.com.gt/elacordeon/2017/01/22/roberto-bolano-y-ricardo-piglia-una-conversacion/“Piglia: Macedonio es un escritor excepcional […]; Borges aprendió todo de él, sobre todo, la inutilidad de desarrollar un argumento que se puede resumir y contar como si ya estuviera escrito. Bolaño: Borges no lo aprende todo de Macedonio, sino también, una parte importante, de Alfonso Reyes, quien lo cura para siempre de cualquier veleidad vanguardista. Macedonio es el riesgo, la audacia, el vanguardismo y el criollismo juntos, pero Alfonso Reyes es el escritor, la biblioteca, y el peso que tiene sobre Borges es importantísimo, tanto en el desarrollo de su poesía como en su prosa. Digamos que Reyes proporciona el elemento clásico a Borges, la mesura apolínea, y eso de alguna manera lo salva, lo hace más Borges.” Última consulta: jan. 2020.
  • 5
    Disponível em http://www.letraslibres.com/mexico-espana/piglia-y-bolano-mano-mano. Última consulta: jan. 2020.
  • 6

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Out 2020
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2020

Histórico

  • Recebido
    15 Jan 2020
  • Aceito
    30 Abr 2020
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