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Yoko Ono: impasses e instruções

Yoko Ono: Impasses and Instructions

Resumo

Neste trabalho investigo a prática performática de Yoko Ono em diversos impasses que ela coloca, a saber: criar e exteriorizar a produção, impasse entre crise e percepção/representação, entre instrução e a desalienação e entre a experiência do olhar e iluminação total. A prática performática de Yoko Ono se apresenta como uma experiência crítica de pensamento. Para isso, debaterei estudos sobre performance de RoseLee Goldberg e Marvin Carlson, estudos sobre as instruções de uso de Belén Gache, e da relação experiência do olhar e iluminação de Jonathan Crary. Isso com objetivo de mostrar como a performance/drama é uma experiência textual capaz de inserir um espaço de política no teatro.

Palavras-chave
Yoko Ono; Performance; Instruções; Impasse e teatro

Abstract

In this paper, I research Yoko Ono’s performance work in the various impasses that she establishes, such as creating and externalizing the production, or the impasse between crisis and perception/representation, between instruction and dealienation and between the experience of seeing and total enlightenment. Yoko Ono’s performance art presents itself as a critical thinking experience. Thus, I propose to discuss RoseLee Goldberg and Marvin Carlson’s studies on performance, as well as Belén Gache’s studies on instructions for use, and also Jonathan Crary’s concepts of the experience of seeing and enlightenment. The aim is to show how performance/drama is a textual experience that is capable of inserting a political space into the theater.

Keywords
Yoko Ono; Performance; Instructions; Impasse and theater

Résumé

Dans ce travail j’étudie la pratique performatique de Yoko Ono dans plusieurs impasses qu’elle pose, à savoir: l’impasse entre créer et extérioriser la production, celle entre crise et perception/représentation, celle entre mode d’emploi et désaliénation et celle entre expérience du regard et éclairage total. La pratique performatique de Yoko Ono se présente comme une expérience critique de pensée. Pour ce faire, je discuterai des études sur la performance de RoseLee Goldberg et Marvin Carlson, sur les modes d’emploi de Belén Gache et sur le rapport entre expérience du regard et éclairage de Jonathan Crary. Cela dans le but de montrer comment la performance/drame est une expérience textuelle capable d’insérer un espace de politique dans le théâtre.

Mots-clés
Yoko Ono; Performance; Modes d’emploi; Impasse et théâtre

Todos os sons a nossa volta

Em entrevista a Hans Ulrich Obrist, ao falar um pouco sobre seu “início” - a mania da origem - Yoko Ono diz que “Tudo começou com a música. Recebi educação musical desde o pré-escolar” (ONO apudOBRIST, 2009OBRIST, Hans Ulrich. Entrevistas volume 1. Rio de Janeiro: Cobogó, Belo Horizonte: Inhotim, 2009., p. 32). Ela continua, contando que antes de entrar para o ensino básico sua mãe a matriculou numa escola chamada Jiyu-Gakuen (“Jardim do Aprendizado da Liberdade” em português). Foi nesse “jardim” - na década de trinta do século passado - que Yoko recebeu “rudimentos de educação musical”, aprendendo a “identificar os tons, a tocar piano e a compor canções simples”. A artista lembra que “uma das coisas mais importantes que aprendi lá, embora só tenha me dado conta disso tempos depois, foi a ouvir os sons do ambiente”. A educação musical de Jiyu-Gakuen baseava-se também “em deveres de casa que consistiam em executar o som do dia e traduzir cada som em notas musicais”. “Isso fez de mim uma pessoa que, por hábito, constantemente traduz em notas musicais os sons a sua volta” (Idem, p. 32, grifos meus). Ao fim da resposta, Obrist complementa: “Os sons da cidade e os sons da sua vida...”. E Yoko responde assim: “Os sons da cidade e os sons da vida naquele dia em particular. Então tínhamos que transformá-los em notação musical. Não é incrível?” (Ibidem, grifos meus)

Incrível, sim, uma vez que Yoko está ligada ao presente - “a sua volta” e “naquele dia em particular” - como uma antena de uma estação de rádio. Posso dizer: um corpo atento: em consonância consigo próprio - escutando as batidas do coração, a respiração pulmonar ou o som que o vento faz quando toca nossos cabelos - e com o espaço da cidade - o ruído dos carros e aviões, as pessoas falando, o som dos rios e tantos outros sons. Melhor seria dizer, um corpo atento e presente: “Então ao longo da infância, eu estava sempre fazendo isso dentro da minha cabeça. Quando o relógio soava blim, blim, blim, eu logo na sequência repetia mentalmente esses sons” (ONO apudOBRIST, 2009OBRIST, Hans Ulrich. Entrevistas volume 1. Rio de Janeiro: Cobogó, Belo Horizonte: Inhotim, 2009., p 33, grifos meus). Incrível e, sobretudo, instigante, lembrando que estamos na década de trinta do século passado. Yoko tem essa consciência: “Olhando para trás, era uma exercício particularmente interessante. Todo o conceito de transformar ruídos em notações como John Cage fez depois... mas era apenas o dever de casa de um jardim e infância de iniciação musical” (Idem, grifos meus). Já morando em Nova York, na casa dos pais, a artista lembra que foi acordada por “um maravilhoso coro de pássaros do lado de fora da minha janela”. A reação foi quase automática - tentar traduzir os sons em notas musicais. Mas Yoko percebe “que o canto dos pássaros era tão complexo, que não havia como traduzi-los em notações” (Idem, ibidem). Inicialmente, ela pensa não ter capacidade para isso, porém percebe “que não era uma questão da minha capacidade, o que estava errado era o modo tradicional de escrever música. Alguma coisa se perdia na tradução quando tentávamos fazer a notação do coro dos pássaros” (Ibidem). A distância entre o real - “os sons da cidade e os sons da sua vida” - e as notações apresentam um impasse para Yoko. Aquilo que se perde na tradução parece - nessa leitura do presente sobre a “origem” - é constitutivo de sua prática artista.

Esse gap a faz decidir “combinar notas com instruções” em um gesto que a filia a, pelo menos, quatro gerações da história da arte/da literatura. Lembre-se da “consciência” de Yoko em abordar conceitos e citar John Cage para explicar o exercício de casa de uma criança, que chamo de ficcionalização. Além das notações musicais como procedimento-base do trabalho nas instruções. Mas há a distância, aquilo que se perde na tradução, é, não há dúvida, uma parte do procedimento artístico do trabalho de Yoko Ono1 1 É Yoko mesmo, que na ficcionalização crítica de sua origem faz um pouco essa família: “Os compositores que criaram a musique concrète devem ter experimentado as mesmas sensações que tive naquela ocasião” (p. 33). . Isso gera outro impasse: o da língua-materna e o inglês. Da tradução da própria obra, que é contada de maneira indireta. Seus “quadros de instrução” foram exibidos pela primeira vez em Nova York na AG Gallery em 1961. Yoko diz: “Mas naquela época não incorporei a expressão [“instrução”] ao título, e portanto tive muitas dificuldades depois”. Yoko completa: “vários artistas fizeram afirmações como “Ah, aquela sua exposição na AG foi apenas uma exposição de caligrafia” ou coisas do tipo” E finaliza: “Recebi apenas uma pequena menção num jornal obscuro, que dizia se tratar de uma exposição de quadros de instruções” (ONO apudOBRIST, 2009OBRIST, Hans Ulrich. Entrevistas volume 1. Rio de Janeiro: Cobogó, Belo Horizonte: Inhotim, 2009., p. 38).

Ao mesmo tempo, é possível dizer que o corpo percebe a distância - por exemplo, precisando das instruções como suplemento ao canto dos pássaros - justo pela proximidade dele com o mundo, pela sua presença presente: “É verdade que as ideias me vinham como se eu sintonizasse alguma estação de rádio celestial. Então eu estava sempre frustrada por não poder realizar a maior parte delas” (ONO apudOBRIST, 2009OBRIST, Hans Ulrich. Entrevistas volume 1. Rio de Janeiro: Cobogó, Belo Horizonte: Inhotim, 2009., p. 34). Mais interessante do que “os artistas são a antena da raça” - afirmação de Ezra Pound -, a expressão “estação de rádio celestial” se desdobra. Relativo ao céu, o que aí aparece ou habita, relativo às divindades e ao sobrenatural e, por extensão de sentidos, diz-se celestial para algo “cuja tonalidade assemelha-se ao céu claro, sem nuvens (diz-se da cor azul)”2 2 Definição adaptada do Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 2001, p. 668. . Apesar do tom místico, o celestial não se apresenta como lugar romântico de criação, pois Yoko se coloca como um corpo-antena que recebe as transmissões do céu azul na terra - ela é um ponto de contato ente as frequências de cima e de baixo: é um corpo atento, habituado a escutar os sons ao redor, e relaxado, uma vez que há a frustração de não poder realizar “a maior parte” das ideias percebidas. Parece-me um segundo impasse, ou um impasse quase gêmeo do primeiro, esse aí descrito pela artista. Porém a afirmação do corpo frustrado é a possibilidade de solicitações de outros corpos que, de alguma forma, se colocam também em sintonia com a “estação de rádio celestial” porque são - virtualmente - capazes de realizar as instruções. Na mesma entrevista, Yoko explica o processo assim:

Mas ao instrucionalizar meus trabalhos artísticos, eu na verdade delegava a terceiros o seu resultado final. Isso desanuviou a minha cabeça, que estava abarrotada de ideias. Até aquele momento - às vezes por questões financeiras, às vezes por dificuldades técnicas -, eu nunca conseguia realizar todas essas ideias, que literalmente me bombardeavam. Mas agora eu podia apenas escrever instruções. Isso me libertou. Fiquei cada vez mais ousada. As instruções também se tornaram cada vez mais conceituais. No mundo conceitual, não era preciso pensar em como uma ideia poderia ser viabilizada fisicamente. Eu podia ser totalmente ousada (ONO apudOBRIST, 2009OBRIST, Hans Ulrich. Entrevistas volume 1. Rio de Janeiro: Cobogó, Belo Horizonte: Inhotim, 2009., p. 35).

Essa noção do corpo como “estação de radio celestial” parece ser outra ficcionalização, que não perde a beleza de um corpo que recebe as transmissões do céu azul na terra. É possível falar em internacionalização dos trabalhos de Yoko, e as pistas são muitas: a confusão na exposição da AG Gallery, a menção de um jornal obscuro, a noção de conceito dado a posteriori para exercícios de criança e o nome John Cage. Parece um pulo da língua-materna ao inglês, mas um pulo - como quase todos - com um objetivo: ampliar a recepção das instruções - anotá-las em inglês e não mais em quadros em japonês. Ampliar, nesse caso, condiz com o par notação musical-instrução, com toda sua ideia de tensão e afrouxamento das “traduções”. Yoko explica: “Em música, escrevemos uma partitura e o executante tenta interpretá-la como a maior fidelidade possível. Mas o resultado é uma mera interpretação.” Depois exemplifica: “Quando a partitura indica pianíssimo, qual o grau de pianíssimo que se deve adotar? Dependa da interpretação do músico” (Idem, p. 34). Ampliar, portanto, desvia o foco da caligrafia, que estava longe de ser a intenção de Yoko, e o aproxima da tensão da íngua japonesa e da inglesa, notação musical e instrução, recepção e público. Em outras palavras, torna seus trabalhos mais instigantes, mais cheios de impasses.

Educação musical, sons da cidade e da vida, notações, impasses na transcrição, tensionamento entre os espaços de dentro (“da minha cabeça”) e o real (“do lado de fora da minha janela”), uma escrita suplementar - ou híbrida - daí resultante, a relação com o presente e a percepção envolvida, um corpo no meio disso, estações de rádio, um céu azul, a capacidade de libertar-se (que ecoa no “Jardim do Aprendizado da Liberdade”) ou uma ousadia, a solicitação de terceiros, ouvintes e, ao mesmo tempo, praticantes das instruções - tudo isso figura, sem muitas novidades, a criação de um procedimento artístico/literário ou de uma experiência moderna em arte. Desanuviado, porém, de um modo de leitura, esses gestos todos de Yoko podem sugerir uma tentativa de compreensão da performance, como se eles fossem um começo de inventário dessa “arte” que se apresenta com potência a partir do começo do século passado. Poderia dizer, em outras palavras, que a radicalidade de Yoko não é mera retórica provocativa, não ousando em afirmar que os procedimentos colocados em prática são, por um lado, entradas instigantes para a leitura da performance do século vinte. Por outro, e justamente por isso, como a artista ainda provoca curtos-circuitos no pensamento, tanto em relação aos estudos da performance quanto em relação aos estudos contemporâneos da tradução e dos estudos da percepção.

Crise e percepção

Em Performance: uma introdução crítica, Marvin Carlson afirma que “nos últimos anos” - as duas últimas décadas - “tem crescido um corpo complexo de estudos sobre a performance”. A partir de diálogos com outras leituras, lembra que a performance é “um conceito essencialmente contestado”, sendo uma experiência de “valor crítico potencial permanente” capaz de desenvolver uma “atmosfera de desentendimento sofisticado” (CARLSON, 2010CARLSON, Marvin. Performance: uma introdução crítica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010., p. 11-12). Posso dizer que a performance é uma noção - um conceito - em crise, em fuga, uma vez que é pensada como “desentendimento”. Uma noção crítica, porque em crise3 3 A relação crítica e crise é explorada em inúmeros ensaios, livros e filmes. Mas me lembro de uma passagem de Jean-Luc Godard, em Introdução a uma verdadeira história do cinema, em que ele diz que um “filme crítico” é um “filme que pode mostrar elementos de alguma coisa e que pode ajudar a dirigir um olhar considerado crítico”. A passagem mais interessante é a seguinte, onde Godard explica os sentidos de crítico: “Há muitos sentidos: crítico é também o ponto crítico, o ponto de mudança, o ponto de ebulição da água... ou também um momento na situação dramática... a palavra “crítica” é isso: uma situação crítica (...)” (GODARD, 1989, p. 204, grifos meus). , que nesse movimento, por um lado, fica à deriva de pensamentos rígidos e, assim, funciona como “uma espécie de suporte crítico”, extrapolando as leituras artísticas - teatrais - “em direção a quase todos os aspectos das tentativas modernas de compreender nossa condição e nossas atividades”, promovendo interseções “em direção a quase todos os ramos das ciências humanas - sociologia, antropologia, etnografia, psicologia e linguística” (Ibidem, p. 17) Por outro lado, Carlson, ao examinar, além da crítica, práticas e procedimentos, identifica movimentos e experiências recorrentes que se comportam, modularmente, como linhas de força. Eis três delas.

Em primeiro lugar, o pensamento sobre as ações que acontecem: livrando-nos assim da “estrutura do teatro versus vida real” (Ibidem, p. 15). Daí desdobrado, em segundo lugar, a performance como “ação executada para alguém” que é afetado, no sentido de ser provocado, sem a necessidade dos dispositivos - clássicos - do teatro. Por fim, a performance estimula, colocando em cena, questões de subjetividade e identidade, em tentativas de “encontrar estratégias de posicionamento social, político e cultural significativos”, que Carlson acredita ser o “desafio mais crítico que a performance enfrenta hoje e certamente o lugar onde a discussão mais viva e interessante” acontece agora (CARLSON, 2010CARLSON, Marvin. Performance: uma introdução crítica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010., p. 20). . A meu ver, a possibilidade de se livrar de uma “estrutura teatral” - um espaço que se configura a partir da divisão palco e plateia, fazendo com que o performer use apenas as “adjacências cênicas elaboradas pelo palco principal”, “alguns poucos elementos de prop e alguma mobília” e “uma vestimenta qualquer” (Ibidem, p. 17) - está no centro da constelação de procedimentos sugeridos como caracterizadores da performance. Posso dizer que é a partir dessa tomada de posição - de certa maneira espacial - que a performance é uma crise no drama, uma vez que é efeito de uma crise na experiência representativa.

RoseLee Goldberg, em seu A arte da performance: Do futurismo ao presente, escreve um “Prefácio” interessante nesse sentido. Para ela, a postura radical da performance a fez “um catalisador na história da arte do século XX, sempre que determinada escola”, seja ela qual for, “parecia ter chegado a um impasse, os artistas se voltavam para a performance como um meio de demolir categorias e apontar novas direções” (GOLDBERG, 2006GOLDBERG, RoseLee. A arte da performance: do futurismo ao presente. São Paulo: Martins Fontes, 2006., p. VI, grifos meus). Assim a performance tem sido “expressão de dissidentes”, que apontam para uma crise no drama. A história da performance seria então a colocação desse impasse em cena e a observação de seus desdobramentos. Melhor dizendo, “é a história de um meio de expressão maleável e indeterminando, com infinitas variáveis, praticada por artistas impacientes com as limitações das formas mais estabelecidas e decididos a pôr sua arte em contato direto com o público” (GOLDBERG, 2006GOLDBERG, RoseLee. A arte da performance: do futurismo ao presente. São Paulo: Martins Fontes, 2006., p. IX, grifos meus) Público que vê “o artista, raramente um personagem, como acontece com os atores, e o conteúdo raramente segue um enredo ou uma narrativa tradicional” (Ibidem, p. 8). As afirmações de Goldberg fazem coro, ou influenciaram as de Carlson, e confirmam a abertura de uma série de questões pertinentes ao estudo da performance e desses artistas. A possibilidade de, impacientemente, se livrar de formas estabelecidas, por um lado, relacionadas ao espaço teatral e todas as suas “exigências” também sugere, por outro lado, um agenciamento dos artistas “para se libertarem dos meios de expressão dominantes - a pintura e a escultura - e das limitações de se trabalhar dentro dos sistemas de museus e galerias” (Ibidem, 2006, p. IX). A performance, assim, pode acontecer em qualquer lugar e solicitando diversos meios de expressão - parece haver uma crise que, sendo de representação, é de percepção também. A relação com o espaço-tempo fica, a partir de uma série de motivos, desgastada ou, de alguma forma, limitada: na história do drama a performance se apresenta como a tentativa de dar um passo além, ultrapassar o impasse, mesmo que esse volte mascarado de outros desgastes perceptivos e representacionais.

Há uma crise - de representação - na fala de Yoko: aqueles mesmos elementos que figuram uma experiência moderna em arte estão de certa maneira relacionadas à crise. A dificuldade na notação do canto dos pássaros é um primeiro momento. Mais radical a cabeça “abarrotada de ideias” - sendo bombardeada pelas ideias -, as dificuldades, sobretudo as técnicas, tudo isso sugere um impasse. Minha sugestão é pensar na crise como uma incapacidade - e/ou frustração - de lidar corporalmente com a quantidade de ideias (...)“eu nunca conseguiria realizar todas essas ideias (...)”, diz Yoko, isto é, de como a distância entre linguagem e real afeta o corpo, que precisa “desanuviar” a partir da escrita, com a ajuda de outro corpo e a partir de instruções. Frustação ou incapacidade talvez sejam palavras que puxem - no sentido de contexto semântico - outras como, por exemplo, “inaptidão”, “insuficiência” e até mesmo “paralisia” que, por extensão, se relaciona com ausência de atividades. Não é o que aconteceu com Yoko Ono - corpo-antena que recebe as transmissões da “rádio celestial”, tendo ideias o tempo todo e buscando um jeito de se libertar delas, libertando-as de dentro da sua cabeça para fora. Para um livro chamado Grapefruit4 4 Não há ainda edição brasileira de Grapefruit. Há uma tradução para o português feita pela Professora Assistente Giovanna Viana Martins (Departamento de Artes Plásticas da Universidade Federal de Minas Gerais) e da graduanda Mariana de Matos Moreira Barbosa (Escola Guignard, Universidade do Estado de Minas Gerais) através do Programa de Bolsa de Iniciação Científica FAPEMIG/UEMG, 2008/2009. Disponível em: <https://monoskop.org/images/9/95/Ono_Yoko_Grapefruit_O_Livro_de_Instrucoes_e_Desenhos_de_Yoko_Ono.pdf>. Acesso em: 10/08/2018. As traduções para o português são desse trabalho. Elas não têm páginas, nem as da versão original. , que reúne as instruções e desenhos escritos nos primeiros anos da década de sessenta, a primeira parte se chama “Música” é algo importante. Há lá muita coisa:

“Peça do riso” Passe uma semana rindo. Inverno de 1961 “Peça de tosse” Passe um ano tossindo. Inverno de 1961 “Peça de voz para soprano” Grite. contra o vento contra a parede contra o céu Outono de 1961 “Peça de parede para Orquestra para Yoko Ono” Bata numa parede com sua cabeça. Inverno de 1962 (Ono, 2008/2009ONO, Yoko. Grapefruit. Disponível em: <Disponível em: https://monoskop.org/images/9/95/ono_yoko_grapefruit_o_livro_de_instrucoes_e_desenhos_de_yoko_ono.pdf >. Acesso em: 10/08/2018.
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Em todas as peças - as instruções - o corpo é colocado em uma situação-limite. Nas três primeiras é a partir da voz - o som e todo o sistema vocal aí envolvido - que se propõe uma experiência sobre-humana: a relação temporal, de uma semana, aumenta, passando para um ano. Ao encenar essas experiências, imagina-se que o corpo enfrente uma série de desgastes - nenhum riso se mantém riso por uma semana, nenhuma tosse continua tosse por um ano. A resposta da fisiologia: são ações humanas impossíveis. Porém elas são emblemáticas mesmo em um nível radical: um corpo, gestos “simples” da vida, outros corpos envolvidos fora da “estrutura” teatral, quase nenhum elemento cênico. Cena perfeitamente imaginável a partir dos anos sessenta. Assim também com as duas últimas peças. Na primeira, o tom de voz mais aguda “encontra” obstáculos para sua propagação que, paradoxalmente, podem duplicá-las, no caso do eco, ou propagá-las até que sumam. Não há, na peça, indicação de tempo dos gritos, nenhuma rubrica, o que a torna menos impossível, mas aparentemente sem sentido. Claro, deve-se pensar que gritar é colocar algo para fora, desanuviar a cabeça (lembro que em inglês esse verbo (unwind) significa desfazer laços, desembaraçar). Na segunda, o som é obtido com a batida da cabeça no muro - a violência da cena orquestrada é visceral, mas outra vez parece ter a intenção de colocar algo para fora, em uma espécie de libertação das ideias aí abarrotadas, presas e/ou estocadas.

Instruções de uso

A artista hispano-argentina Belén Gache, em Instruções de uso5 5 A inserção do livro de Gache remete, diretamente, a seção anterior, “Crise e percepção”, onde há notas sobre a performance em diálogo com Marvin Carlson e RoseLee Goldberg em seus respectivos Performance: uma introdução crítica e A arte da performance. Além disso, num misto de história e ensaio, ela reconhece Yoko Ono como pioneira nas instruções: “A artista Yoko Ono foi uma das primeiras a trabalhar com a forma “instrução”” (GACHE, 2017, p. 11). Foi possível, assim, a partir de uma história da performance com foco na instrução - que Gache identifica desde os dadaístas - um diálogo com o seu livro. Diálogo que me permitiu, ao menos, montar uma filiação para o trabalho de Yoko Ono. Porém, é importante destacar, a ausência de alguns textos de Julio Cortázar em História de cronópios e de famas publicado em 1970, mesmo ano da edição norte-americana de Grapefruit. E do comentário da pioneira edição argentina de Pomelo, de Ediciones de la flor, na tradução de Pirí Lugones. Em 2016, por ocasião da exposição Yoko Ono. Dream come true, apresentada no Malba, entre junho e outubro desse ano, foi reimpresso uma edição que “respeita a tradução, o desenho da capa e a diagramação” da edição dos anos setenta, como uma espécie de homenagem. , lembra que as instruções, protocolos, modos de usar e partituras apresentam-se sob a forma de dupla instância, associando-se a “duas grandes temáticas do pensamento contemporâneo, a da sociedade alienada (toda sociedade responde a um conjunto de regras preestabelecidas mais ou menos) imperativas ou arbitrárias que deve pôr em prática” e, ao mesmo tempo, “a de noção de linguagem como máquina (a partir de noções como código, algoritmo, programa)” (GACHE, 2017GACHE, Belén. Instruções de uso. Florianópolis: Par(ent)esis, 2017., p. 3). Yoko se insere nessa dupla instância, fazendo uma fronteira do conceitualismo com a poesia. Porém a prática, segundo Gache, é mais antiga. Essa experiência fronteiriça com a poesia aparece no manifesto dadá de 1919 com a “Receita para compor um poema dadá”, de Tristan Tzara: “Pegar um jornal, pegar umas tesouras, cortar palavras de qualquer um dos artigos, colocá-las em um saco, agitar o saco tirar dele palavras, uma a uma, e colocá-las na ordem em que vão saindo. Copiá-las numa folha e já está pronto o poema” (Ibidem, p 21) Não só Tzara, mas Man Ray e recentemente Dick Higgins com sua série Danger music e Nan June Paik. Não só na poesia, mas na pintura, temos instruções de como as Do-it-yourself de Andy Warhol, na década de sessenta, e os “desenhos de parede” de Sol Lewitt: “Com um lápis desenhe mil linhas retas de maneira aleatória, de 10 polegadas de cumprimento, todo dia, durante 10 dias, num quadrado de 10x 10 pés” (GACHE, 2017GACHE, Belén. Instruções de uso. Florianópolis: Par(ent)esis, 2017., p. 21). Todos eles e elas produzindo no impasse da crítica da alienação e também na crítica da linguagem como máquina, como se ao entrarem nesses mecanismos instrucionais solicitassem um além deles, um desnudar aquilo que está envolvido na dupla estância.

Gache insiste na relação da instrução com os protocolos da sociedade e a definição que ela traz de protocolo é interessante para o debate: “que se trata de um conjunto de ações e métodos combinados à observação de determinadas regras convencionais; constitui um procedimento planificado e estruturado a padronizar um comportamento, quer seja humano, quer seja artificial diante de uma situação específica” (GACHE, 2017GACHE, Belén. Instruções de uso. Florianópolis: Par(ent)esis, 2017., p. 8). A insistência dela não está apenas em historicizar o protocolo/instrução, mas em relacioná-los à vida cotidiana e a alienação6 6 Quanto à alienação, Gache lembra-se de uma afirmação do performer Allan Kaprow, que diz: “Comecei a prestar atenção no ato de escovar os dentes, sobre como esse ato havia se tornado rotineiro ao ponto de transformar-se em uma ação inconsciente. Comecei a ver que 99% das ações da minha rotina diária haviam se tornado igualmente inconscientes, que minha mente estava sempre em outro lugar e que as centenas de sinais que meu corpo enviava-me passavam despercebidas por mim” (KAPROW apudGACHE, 2017, p. 26). . E pensar que práticas artísticas se colocaram como forma de enfrentá-las. Daí Gache lembra-se dos grupos Situacionismo, liderado por Guy Debord, e do grupo Fluxus, do qual Yoko participou. Debord, em 1961, escreveu o texto Perspectivas de modificações conscientes na vida cotidiana, livro que influenciou uma série de artistas e que solicitava, nesse contexto, “um despertar da consciência a partir de estratégias como a deriva (que implicava o abandono das rotinas, metas e trajetórias preestabelecidas cotidianamente e um flanar sem rumo preestabelecido pelas diferentes geografias urbanas)” e o desvio que, segundo ela, “consiste em mudar o sentido de mensagens sociais a partir de diferentes intervenções nelas mesmas” (GACHE, 2017GACHE, Belén. Instruções de uso. Florianópolis: Par(ent)esis, 2017., p. 10). Do grupo Fluxus uma preocupação semelhante ao corpo em espaços e tempo de alienação e de endereçamento às pessoas que vivem nesses espaços, em situações de quase inconsciência. Yoko tem várias peças nesse sentido.

“Peça de mapa” Desenhe um mapa imaginário. Marque um ponto aonde deseja ir. Caminhe por uma rua verdadeira segundo seu mapa. Se não existe rua onde deveria haver segundo o mapa, faça uma colocando de lado os obstáculos. Quando alcançar a meta, pergunte o nome da cidade e dê flores à primeira pessoa que conhecer. O mapa deve ser seguido exatamente, ou o evento deverá ser totalmente abandonado. Peça aos amigos que escrevam mapas. Dê mapas aos amigos Verão 1962 “Peça do relógio” Adiante todos os relógios do mundo dois segundos sem que ninguém tome conhecimento. Outono de 1963 (ONO, 2008/2009ONO, Yoko. Grapefruit. Disponível em: <Disponível em: https://monoskop.org/images/9/95/ono_yoko_grapefruit_o_livro_de_instrucoes_e_desenhos_de_yoko_ono.pdf >. Acesso em: 10/08/2018.
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As peças do mapa e do relógio são seguidas por outras peças de mesmo nome que sugerem experiências tão radicais com essas aí apresentadas. Na outra “Peça de mapa” de 1964, lemos: “Desenhe um mapa para perder-se”. Já na outra “Peça do relógio” de 1963, a solicitação é essa: “Roube todos os relógios de mesa ou de pulso / do mundo. / Destrua-os”. Assim como nas peças em que o corpo é colocado em situações-limite, sugerindo uma crise da percepção, nessas há também situações impossíveis para um corpo/pessoa apenas, mas possível para uma ação coletiva, um agitprop - adiantar os relógios e destruí-los e causar uma pane no sistema de produção, circulação e trocas do capitalismo. A ação seria uma forma de produzir na sociedade um momento de desalienação até que outros relógios fossem construídos e o sistema voltasse a funcionar. Porém, antes de levar ao pé da letra, a sabotagem solicitada já se constituiria na abertura de espaço de crise, logo de crítica, aos ritmos e rumos tomados quando a vida é definida por um tempo que o corpo não aguenta, um tempo quase sem intervalos de respiração e outros afetos. Quase a mesma solicitação no mapa desenhado para se perder e no mapa imaginário: uma inversão nas propriedades de orientação de um mapa e a solicitação da deriva ou do desvio, assim como o grupo Situacionista chegava a propor. É a criação de outro impasse e, portanto, de outra crise na cidade calculada e nos caminhos previstos - caminhos que se repetem ad infinitum - na vida de um cidadão comum. Yoko, nesse sentido, através da performance, solicita a deriva e o desvio - práticas artísticas que colocam em tensão a biosfera e a política, o espaço e o tempo, a instrução e as formas protocolares. Assim, a partir da imaginação e/ou do pedido tácito para imaginar, as subjetividades se expandem e conscientizam-se.

Interessante no livro de Gache é seu desejo de “apontar denominadores comuns que podemos encontrar nesses textos e noções, para ver de que modo podem se constituir como estratégias a serem adotadas pela literatura experimental” (GACHE, 2017GACHE, Belén. Instruções de uso. Florianópolis: Par(ent)esis, 2017., p. 29). E como Yoko “foi uma das primeiras a utilizar com a forma instrução” (Ibidem, p. 11), segundo ela mesma afirma, é possível pensar seu trabalho, sobretudo em Grapefruit, como um dos responsáveis pela utilização da instrução como gesto performático e influenciador de outras práticas nesse sentido. Outra questão importante que Gache aponta é a dessubjetivação das práticas instrucionais: o artista não mais escreve essas peças de “modo único e final”, porque elas “concretizam-se na interação com o leitor e suas diferentes leituras, e ainda nas atuações que elas geram” (Ibidem, p. 31). Assim, ao comentar o Fluxus - grupo de qual Yoko fez parte -, ela afirma: “cada leitor produz, em vez de uma réplica do poema ou da ação proposta, uma versão própria desse poema e/ou dessa ação” (Ibidem). E uma “versão própria” significa uma prática crítica de trazer essa ação para sua vida, a ser convidado para participar sem medo do processo enunciativo do autor/a. Além disso, Gache chama a atenção para a “recorrente experimentação com tempos, que traz uma vontade implícita de desconstrução do esquema narrativo clássico (Ibidem) Todos esses impasses, ou estados de “impaciência”, para lembrar expressão de Goldberg, são encenadas no trabalho de Yoko Ono: tempo, narratividade clássica, interação com o leitor/a, além do impasse, entre a quantidade de ideias e a maneira de colocá-las para fora são aspectos que garantem a ela um lugar especial, e crítico, na história da performance.

O céu ainda é azul, você sabe...

No decurso do seu conto, Poe faz com que anoiteça. Ele se demora na cidade à luz de gás. O fenômeno da rua como interior, fenômeno em que se concentra a fantasmagoria do flâneur, é difícil de separar da iluminação a gás. As primeiras lâmpadas a gás arderam nas galerias. Na infância de Baudelaire fez-se a tentativa de utilizá-las a céu aberto; colocaram-se candelabros na Place Vendôme. Sob Napoleão III cresce mais rapidamente o número de lampiões a gás. Isso elevou o grau de segurança da cidade; fez a multidão em plena rua sentir-se, também à noite, como em sua própria casa; removeu do cenário grande o céu estrelado e o fez de modo mais radical que os seus prédios altos. “Corro as cortinas contra o Sol que agora foi dormir, como de hábito; doravante não vejo outra luz senão a da chama do gás”. A lua e as estrelas já não são mais dignas de menção.

Walter Benjamin, Paris do Segundo Império.

(BENJAMIN, 1994BENJAMIN, Walter. Paris do Segundo Império. In: Obras escolhidas III: Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. 3a. edição. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994., p. 47)

A passagem de Walter Benjamin é significativa quanto ao uso da luz artificial na noite de Paris e, acrescento, nas noites das grandes cidades. No conto de Poe, “O homem da multidão”, a rua se faz interior. Sob o império de Napoleão a mesmíssima coisa: a multidão sente-se em casa, segura com a luz a gás. Julien Lamer, em Paris a gás, faz essa aproximação da luz do Sol com a luz a gás, cerrando as cortinas. Porém, a passagem mais interessante nesse sentido é a consequência apresentada por Benjamin: “A lua e as estrelas já não são dignas de menção”. A experiência de olhar já tinha se deslocado de cima para as vitrines em meados do século XIX, as passagens são agora a poesia do flâneur. Quase na virada do XIX para o século XX, a luz elétrica então, ao mesmo tempo em que aumentou bastante a segurança, já quase sentencia a lua e as estrelas que Benjamin parece já sentir falta nos relatos sobre Paris.

Mais de cem anos depois, Jonathan Crary, em 24/7 Capitalismo tardio e os fins do sono, em um dos exemplos extremos para formar o cenário 24/7, lembre-se de “um consórcio espacial russo-europeu”, que anunciou, em fins de 1990, “seus planos de construir e colocar na órbita terrestre satélites que refletiriam a luz do Sol para a Terra”. Crary continua: “cada satélite espelho com duzentos metros de diâmetro, teria a capacidade de iluminar uma área de 25 quilômetros quadrados da terra com uma luminosidade quase cem vezes maior do que a da Lua”. O objetivo inicial da empresa era fornecer iluminação artificial para a exploração industrial na Sibéria e no leste da Rússia. Curioso era o slogan da empresa: “luz do dia a noite toda”. Felizmente, o projeto não deu certo. Interessante foi a oposição ao projeto que “surgiu imediatamente e de diversas direções”. Uma delas, de “grupos culturais e humanitários”, alegava que “o céu noturno é um bem comum ao qual toda a humanidade tem direito, e que desfrutar da escuridão da noite e observar as estrelas é um direito humano básico que nenhuma empresa pode anular” (CRARY, 2014CRARY, Jonathan. 24/7 Capitalismo tardio e os fins do sono. São Paulo: Cosac Naify, 2014., p. 13-4). Se esse direito vem sendo violado desde meados do século XIX e continua hoje, pois mais da metade da população mundial nas cidades “estão continuamente envoltas em uma penumbra de poluição e iluminação de alta intensidade” (CRARY, 2014CRARY, Jonathan. 24/7 Capitalismo tardio e os fins do sono. São Paulo: Cosac Naify, 2014., p. 14) chama a atenção a solicitação implícita de Benjamin e Crary de poder olhar para cima e se deparar com a lua e as estrelas. Causas diferentes nas solicitações de ambos, mas o “direito humano básico” é reclamado.

O céu ainda é azul, você sabe... é o título da retrospectiva de Yoko Ono que aconteceu em 2017 no Instituto Tomie Ohtake em São Paulo. Há alguma coisa de estranho nesse título. Por um lado, o advérbio “ainda” sugere que “até agora”, “até este momento” ele é azul, podendo não ser mais azul depois disso. Por outro lado, há uma espécie de ironia no complemento “você sabe...” - esse não reafirmaria, apenas, a primeira frase, sendo um pouco redundante, mas deixaria no ar alguma coisa. Uma hipótese de leitura, entre outras, seria imaginar o “você sabe...” como “você sabe” o que pode acontecer com o céu. Nesse sentido, o “você sabe...” pode se apresentar como um pedido: olhe o céu enquanto ele ainda é azul. O céu ainda é azul, você sabe... lido em conjunto com as “reclamações” de Benjamin e Crary pode reforçar o pedido deles: mesmo que no título o céu seja diurno, azul, é preciso olhar para cima, contemplá-lo, porque ele é - assim como o céu noturno - um “direito humano básico”, digno de menção, como afirma Benjamin em relação à lua e as estrelas. Olhar para cima, olhar o céu azul, no contexto atual, talvez seja tirar um pouco os olhos das telas dos celulares, que hipnotizam as pessoas. Pode ser então um pedido para imaginar: parar, levantar os olhos e imaginar. Isso tem a ver, em primeiro lugar, com uma série de questões que atravessam a obra de Yoko: a relação dela com a quantidade de ideias, a própria ideia de crise de percepção e com as possibilidades da criação desse espaço de olhar - para cima, para o céu - ser um motivo desalienante. Em segundo lugar, o céu ocupa esse espaço de diálogo com o leitor/espectador das peças de Yoko, a sua entrada como participador, como aquele/a que cria uma versão própria do poema ou da ação aí solicitada. Há muito olhares para o céu no trabalho de Yoko:

“Pintura para ver os céus” Corte dois buracos num tecido. Pendure-o onde se possa ver o céu. (Mudá-lo de lugar: experimentar nas janelas da frentes e nas de trás para ver se os céus são diferentes) Verão 1961 “Uma pintura para ver os céus III” Veja o céu através das coxas de uma mulher. Veja o céu através de suas próprias coxas. Veja o céu através de seus pertences pessoais fazendo buraco neles. p. ex., pantalonas, casacos, camisetas, meias, etc. Outono de 1962 “Peça de contar II” Conte o número de estelas do céu todos os dias. Faça uma lista com os números e envie aos amigos. Inverno de 1962 (ONO, 2007/2008ONO, Yoko. Grapefruit. Disponível em: <Disponível em: https://monoskop.org/images/9/95/ono_yoko_grapefruit_o_livro_de_instrucoes_e_desenhos_de_yoko_ono.pdf >. Acesso em: 10/08/2018.
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, s/p).

A solicitação para imaginar está feita ou um acordo tácito entre autora e leitor/espectador da performance. É a partir dessas solicitações que cada uma das instruções coloca em cena que vemos o céu. Interessante é que, nas duas primeiras “pinturas”, o céu é visto através de algo: um tecido cortado, janelas, coxas, peças de roupas com buracos nelas. Isso pode sugerir que essas pinturas trazem algo da vida de quem participa das performances - é através de um processo de encontro de duas ou mais subjetividades que a imaginação acontece. Imagina-se, assim, através de algo e isso tem uma dupla estância: algo que recorta o campo visual - o buraco nas peças de roupa ou tecido - e algo que faz parte da minha vida. Não há muito mistério para olhar o céu, apenas algumas pequenas instruções para ajustar o processo. Parece que dessa vez as cortinas não são mais cerradas, mas agora recortadas para que algo possa ser visto. Na “Peça de contar II”, as estrelas do céu são contadas e logo depois enviadas como lista para amigos. Outra vez a interação de duas ou mais subjetividades: o processo enunciativo instrucional de Yoko, a pessoa que enumera as estrelas e os amigos. Isso cria uma espécie de comunidade imaginativa capaz de abrir um espaço de respiração no tempo acumulado do capitalismo e/ou no tempo sem tempo das telas ofuscantes. A produtividade é imensa - a arte criando alternativas, e não soluções, para outro momento de impasse, o da percepção e, portanto, o da representação. O céu, como tempo de imaginação - que é, na verdade, aquilo que atravessa as instruções de Grapefruit - ou como “direito humano básico” torna possível, outra vez, olhar o céu, contar as estrelas e assim constituir uma forma dramática ou uma teatralidade capaz de libertar, mesmo que por pouco tempo, a subjetividade da alienação. E você sabe como isso, no cenário atual, é importante.

Referências

  • BENJAMIN, Walter. Paris do Segundo Império. In: Obras escolhidas III: Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo 3a. edição. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994.
  • CARLSON, Marvin. Performance: uma introdução crítica Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.
  • CRARY, Jonathan. 24/7 Capitalismo tardio e os fins do sono São Paulo: Cosac Naify, 2014.
  • GACHE, Belén. Instruções de uso Florianópolis: Par(ent)esis, 2017.
  • GODARD, Jean-Luc. Introdução a uma verdadeira história do cinema São Paulo: Martins Fontes, 1989.
  • GOLDBERG, RoseLee. A arte da performance: do futurismo ao presente São Paulo: Martins Fontes, 2006.
  • OBRIST, Hans Ulrich. Entrevistas volume 1 Rio de Janeiro: Cobogó, Belo Horizonte: Inhotim, 2009.
  • ONO, Yoko. Grapefruit Disponível em: <Disponível em: https://monoskop.org/images/9/95/ono_yoko_grapefruit_o_livro_de_instrucoes_e_desenhos_de_yoko_ono.pdf >. Acesso em: 10/08/2018.
    » https://monoskop.org/images/9/95/ono_yoko_grapefruit_o_livro_de_instrucoes_e_desenhos_de_yoko_ono.pdf
  • 1
    É Yoko mesmo, que na ficcionalização crítica de sua origem faz um pouco essa família: “Os compositores que criaram a musique concrète devem ter experimentado as mesmas sensações que tive naquela ocasião” (p. 33).
  • 2
    Definição adaptada do Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 2001, p. 668.
  • 3
    A relação crítica e crise é explorada em inúmeros ensaios, livros e filmes. Mas me lembro de uma passagem de Jean-Luc Godard, em Introdução a uma verdadeira história do cinema, em que ele diz que um “filme crítico” é um “filme que pode mostrar elementos de alguma coisa e que pode ajudar a dirigir um olhar considerado crítico”. A passagem mais interessante é a seguinte, onde Godard explica os sentidos de crítico: “Há muitos sentidos: crítico é também o ponto crítico, o ponto de mudança, o ponto de ebulição da água... ou também um momento na situação dramática... a palavra “crítica” é isso: uma situação crítica (...)” (GODARD, 1989GODARD, Jean-Luc. Introdução a uma verdadeira história do cinema. São Paulo: Martins Fontes, 1989. , p. 204, grifos meus).
  • 4
    Não há ainda edição brasileira de Grapefruit. Há uma tradução para o português feita pela Professora Assistente Giovanna Viana Martins (Departamento de Artes Plásticas da Universidade Federal de Minas Gerais) e da graduanda Mariana de Matos Moreira Barbosa (Escola Guignard, Universidade do Estado de Minas Gerais) através do Programa de Bolsa de Iniciação Científica FAPEMIG/UEMG, 2008/2009. Disponível em: <https://monoskop.org/images/9/95/Ono_Yoko_Grapefruit_O_Livro_de_Instrucoes_e_Desenhos_de_Yoko_Ono.pdf>. Acesso em: 10/08/2018. As traduções para o português são desse trabalho. Elas não têm páginas, nem as da versão original.
  • 5
    A inserção do livro de Gache remete, diretamente, a seção anterior, “Crise e percepção”, onde há notas sobre a performance em diálogo com Marvin Carlson e RoseLee Goldberg em seus respectivos Performance: uma introdução crítica e A arte da performance. Além disso, num misto de história e ensaio, ela reconhece Yoko Ono como pioneira nas instruções: “A artista Yoko Ono foi uma das primeiras a trabalhar com a forma “instrução”” (GACHE, 2017GACHE, Belén. Instruções de uso. Florianópolis: Par(ent)esis, 2017., p. 11). Foi possível, assim, a partir de uma história da performance com foco na instrução - que Gache identifica desde os dadaístas - um diálogo com o seu livro. Diálogo que me permitiu, ao menos, montar uma filiação para o trabalho de Yoko Ono. Porém, é importante destacar, a ausência de alguns textos de Julio Cortázar em História de cronópios e de famas publicado em 1970, mesmo ano da edição norte-americana de Grapefruit. E do comentário da pioneira edição argentina de Pomelo, de Ediciones de la flor, na tradução de Pirí Lugones. Em 2016, por ocasião da exposição Yoko Ono. Dream come true, apresentada no Malba, entre junho e outubro desse ano, foi reimpresso uma edição que “respeita a tradução, o desenho da capa e a diagramação” da edição dos anos setenta, como uma espécie de homenagem.
  • 6
    Quanto à alienação, Gache lembra-se de uma afirmação do performer Allan Kaprow, que diz: “Comecei a prestar atenção no ato de escovar os dentes, sobre como esse ato havia se tornado rotineiro ao ponto de transformar-se em uma ação inconsciente. Comecei a ver que 99% das ações da minha rotina diária haviam se tornado igualmente inconscientes, que minha mente estava sempre em outro lugar e que as centenas de sinais que meu corpo enviava-me passavam despercebidas por mim” (KAPROW apudGACHE, 2017GACHE, Belén. Instruções de uso. Florianópolis: Par(ent)esis, 2017., p. 26).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Out 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    14 Jan 2020
  • Aceito
    30 Abr 2020
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