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Derrida: tradução, testemunho e “otobiografia”

Derrida: Translation, Testimony and “Otobiography”

Resumo

O trabalho faz um percurso por passagens das obras de Santo Agostinho, Nietzsche e Walter Benjamin a partir de certos temas propostos por Jacques Derrida, com destaque para a questão da tradução e da escrita como inscrição de si. O problema (o Aufgabe benjaminiano, ou seja, tarefa necessária e impossível) é como traduzir o intraduzível, a saber, a vida, a necessidade e impossibilidade dessa tradução, narrada a partir da filosofia desses quatro autores.

Palavras-chave:
Tradução; testemunho; confissão; escrita de si; Verstellung

Abstract

This paper examines passages of works by Saint Augustine, Nietzsche and Walter Benjamin based on certain themes proposed by Jacques Derrida, with an emphasis on the issue of translation and writing as an inscription of the self. The problem (the Benjaminian Aufgabe, that is, a necessary and impossible task) is how to translate the untranslatable, namely, the life, the necessity and the impossibility of this translation, narrated from the philosophy of these four authors.

Keywords:
Translation; testimony; confession; writing of the self; Verstellung

Résumé

Le texte réalise un parcours à travers des passages des œuvres de Saint Augustin, Nietzsche et Walter Benjamin basés sur certains thèmes proposés par Jacques Derrida, en mettant l'accent sur la question de la traduction et de l'écriture comme inscription de soi. Le problème (Aufgabe Benjaminien, c'est-à-dire une tâche nécessaire et impossible) est de savoir comment traduire l'intraduisible, à savoir, la vie, le thème de la nécessité et l'impossibilité de cette traduction, racontée à partir de la philosophie de ces quatre auteurs.

Mots-clés:
traduction; témoignage; confession; auto-écriture; Verstellung

À primeira vista poderia parecer estranho tentar estabelecer um vínculo entre as obras de autores como Santo Agostinho, Nietzsche e Walter Benjamin - um dos pensadores centrais da doutrina católica, o “anticristo” defensor do esquecimento feliz e o teórico da história como catástrofe e da rememoração ativa. Todos os três, no entanto, são autores de obras que marcaram ao longo de algumas décadas (ou desde “sempre”) o pensamento do filósofo Jacques Derrida. Na leitura forte que ele fez daqueles autores, uma questão central sempre se faz presente: a relação entre a escritura e a “vida”. Neste entrecruzamento único de escrituras e vidas, forma-se um torvelinho intelectual no qual toda estrutura da filosofia (e da representação) é posta em movimento.

O conceito de escritura desenvolvido por Derrida desestrutura as concepções tradicionais de saber calcadas na representação, na adequação entre verba e res. Isto tanto pelo lado do objeto, que não pode mais ser visto como algo que se encontra “à disposição” do pensador, contido em si mesmo e passível de ser dominado pela grelha conceitual, como também pelo viés do meio de expressão, já que não se toma mais a linguagem como um instrumento dócil e indiferente ao mundo e aos sujeitos da representação como também, por último, do ponto de vista do sujeito, também ocorre uma inflexão, já que este passa a ser visto como entidade em constante movimento, como crise e não como ser dotado de identidade. A noção de escritura tende a fundir em um ponto - no punctum escritural - objeto, linguagem e sujeito. A escritura corpórea confunde-se com o mundo.

Os três autores mencionados também são solicitados na escritura de Derrida para auxiliar no seu trabalho de desconstrução da filosofia enquanto mera atividade filológica. Não que Derrida tenha descartado a filologia: ele mesmo foi um potente e rigoroso comentador de “clássicos” da história do pensamento como Platão, Rousseau, Kant, Hegel, Nietzsche, Husserl, Freud e de autores cronologicamente mais próximos de nós como Heidegger, Benjamin e Austin. O que nos interessa aqui é a sua passagem pela e para a escritura: refletir sobre a sua concepção de escritura como autobiotanatografia, como “bio-mitografia” (DERRIDA, 1991DERRIDA, J. “Circonfession”. In: DERRIDA, J.; BENNINGTON, G. Jacques Derrida, Paris: Seuil, 1991., p. 170), como écrypture (DERRIDA, 1978aDERRIDA, J. “Scribble”. In: WARBURTON, W. Essai sur les hiéroglyphes, Paris: Aubier-Flammarion, 1978a.), “autobiotanatoheterografia” (DERRIDA, 1991DERRIDA, J. “Circonfession”. In: DERRIDA, J.; BENNINGTON, G. Jacques Derrida, Paris: Seuil, 1991., p. 198). Se Benjamin foi o grande responsável pelo abandono do paradigma da tradução como mímesis no seu sentido de imitatio (que permanecia preso à estrutura metafísica do suplemento e da presença), Derrida foi aquele que procurou estender esta “descoberta” benjaminiana para todo o campo do saber. Uma vez rompido o círculo da representação, toda uma nova metaforologia deve ser criada para se produzir e reproduzir o saber. A questão, Aufgabe, da fidelidade deixa o campo da representação e migra para uma teoria da escritura. O universal deixa de comandar as regras do pensamento e se curva à “lei do exemplo”, daquilo que é sempre “irremplaçable” (DERRIDA, 1986DERRIDA, J. Schibboleth pour Paul Celan. Paris: Galilée, 1986., p. 18), intraduzível e deve ser traduzido, a saber, a “vida”/ a “morte”. O pensamento filosófico não por acaso se aproxima do pensamento literário: campo por excelência deste “irremplaçable”. Derrida lê, comenta, “incorpora” incessantemente inputs advindos da literatura. Nesta transformação da concepção dos modos de saber, Freud e a psicanálise são repensados também enquanto produtores de figuras e modelos de arquivamento (DERRIDA, 2014DERRIDA, J. Trace et archive, image et art. Bry-sur-Marne: INA Éditions, 2014., p. 49). Pois se podemos ver na literatura um modo “aberto” de escritura do histórico, na psicanálise lemos uma série de descrições de modos de “impressão, de inscrição, de reprodução, de formalização, de codificação e de tradução de marcas” (DERRIDA, 2001DERRIDA, J. Mal de arquivo. Uma impressão freudiana. Trad. C. de Moraes Rego, Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001., p. 26). Sair da clausura da representação não significa abandonar a questão da relação entre a escritura e as marcas; muito pelo contrário, este é justamente um dos temas centrais e recorrentes na pena de Derrida. Esta é a questão da inscrição (da Verdrängung freudiana, repressão, re-impressão), dos espectros, da tradução não metafísica, não idealista, que não acredita na separação pura e limpa entre o verbal e o real. Derrida pensa, com Freud e outros autores, a questão de como se “faz a verdade”, como Santo Agostinho o formulou nas suas Confissões (DERRIDA, 2001DERRIDA, J. Mal de arquivo. Uma impressão freudiana. Trad. C. de Moraes Rego, Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001., p. 77), o veritatem facere que está no cerne da confissão (CHRÉTIEN, 2002CHRÉTIEN, Jean-Louis. Saint Augustin et les actes de parole. Paris: PUF, 2002., p. 122).

Pensar a inscrição arquival das marcas implica considerar os limites da transcrição e a passagem para a transcriação (como diria Haroldo de Campos; CAMPOSCAMPOS, Haroldo de. Bere’shith. A cena da origem (e outros estudos de poética bíblica). São Paulo: Perspectiva, 1993., 1993, p. 11). Derrida, em um exercício que retoma em uma chave irônica os exercícios e jornais espirituais (da tradição católica/jesuítica), também escreveu sua “circonfession” “agostiniana” (DERRIDA, 1991DERRIDA, J. “Circonfession”. In: DERRIDA, J.; BENNINGTON, G. Jacques Derrida, Paris: Seuil, 1991.). O desafio consistiu em escrever e inscrever, na “margem interior, entre o livro de Geoffrey Bennington [“Derridabase”] e uma obra em preparação” (DERRIDA, 1991DERRIDA, J. “Circonfession”. In: DERRIDA, J.; BENNINGTON, G. Jacques Derrida, Paris: Seuil, 1991., p. 5). Derrida quis apresentar o “resto” estruturante a qualquer tentativa de se traduzir uma outra escritura: no caso, a sua própria, sendo apresentada/ traduzida por Bennington. Trata-se de um “resto” que não tem nada a ver com a ontologia. O que interessa a ele é a “restance”, o “restar”, “para além de toda ontologia” (DERRIDA, 2014DERRIDA, J. Trace et archive, image et art. Bry-sur-Marne: INA Éditions, 2014., p. 49). Neste jogo lúdico, podemos ler uma reflexão sobre a confissão e a aliança. Derrida cita-se largamente, a partir de um manuscrito iniciado em 1976, que é seu “Livro de Elias”. Este jogo de inscrição autorreferencial - típico de suas obras desde os anos 1970 - é levado às últimas consequências aqui. Elias é o próprio Derrida, segundo sua circonfissão, seu nome judaico que lhe foi atribuído em homenagem ao tio pelo lado paterno, Eugène Eliahou Derrida, que o portou no ritual da sua circuncisão. E é em torno deste ritual que a escritura de Derrida circula incessantemente neste texto circonfissional. Elias, o profeta bíblico, segundo a tradição, não morreu e ascendeu diretamente ao céu, após o que ele teria vencido o Anjo da Morte e redigido os feitos dos homens. Ele também é tomado como o Anjo da Aliança que presencia a circuncisão. Este texto em questão realiza, em parte, o sonho de Derrida, “depois da morte de meu pai”, de escrever um livro “de ‘circoncision’” (DERRIDA, 1991DERRIDA, J. “Circonfession”. In: DERRIDA, J.; BENNINGTON, G. Jacques Derrida, Paris: Seuil, 1991., p. 94). Um sonho que ele alimentou, colecionando passagens da história deste ritual: um arquivo sobre o corpo como inscrição e arquivo de uma aliança, de uma memória: que para ele não é mais do que a “memória de uma amnésia” (DERRIDA, 1991DERRIDA, J. “Circonfession”. In: DERRIDA, J.; BENNINGTON, G. Jacques Derrida, Paris: Seuil, 1991., p. 93). Circonfession também se inscreve como um palimpsesto não só temporal (da vida/morte), mas também textual. Santo Agostinho é citado em todos os seus 59 parágrafos/fragmentos. A obra constantemente solicitada é justamente as suas Confissões: pedra de toque da tradição autobiográfica na qual, entre outras passagens conhecidas, Santo Agostinho narra sua conversão e a morte de sua mãe, Santa Mônica. Circonfession narra também a agonia da mãe de Derrida: é sua confissão diante deste evento. De resto, pai e mãe são unidos nesta circonfissão: lei e escritura e, por outro lado, vida e morte.

A aliança e o testemunho

A aliança é pensada como corte, amputação e como confissão: “testemunho [aveu] sem verdade que gira em torno dele mesmo” que “deixa o círculo aberto” (DERRIDA, 1991DERRIDA, J. “Circonfession”. In: DERRIDA, J.; BENNINGTON, G. Jacques Derrida, Paris: Seuil, 1991., p. 16). A circuncisão é tomada por Derrida literalmente, como a expressão que a indica em hebraico, Berit Mila: aliança-prepúcio. A carne retirada do falo sela um pacto, uma aliança. Mas mais importante que seu sentido na tradição - de pacto com Deus e signo da aliança com Abraão - é o seu sentido fático e performático que está em questão: Derrida recorda a mezizah, momento no ritual de circuncisão em que o mohel (o responsável pela circuncisão) leva a ferida do falo a sua boca para estancar o sangramento. Esta parte do ritual foi abolida em 1843 e praticamente não é mais realizada deste modo. O que importa é que, para Derrida, a circuncisão vale como escritura do corpo, como inscrição e encriptamento de uma série de fatos da história judaica, familiar e individual. Pois ele escreve sobre a “perda do anel de meu pai, dois anos após sua morte [o que remete a outro anel-prepúcio mnemônico e paterno, do “pai” da psicanálise, cf. DERRIDA, 2001DERRIDA, J. Mal de arquivo. Uma impressão freudiana. Trad. C. de Moraes Rego, Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.], e o que se sucedeu, reconstituir tudo pelo menu, menu diminuído, o que comemos [e para Santo Agostinho “a memória é como o estômago do espírito”], o texto lido não é suficiente, precisa comê-lo, sugá-lo, como o prepúcio [...], o que ficará absolutamente em segredo neste livro, eu falo do segredo consciente” (DERRIDA, 1991DERRIDA, J. “Circonfession”. In: DERRIDA, J.; BENNINGTON, G. Jacques Derrida, Paris: Seuil, 1991., p. 77).

A linguagem do testemunho é tão performática quanto a do perdão, que também pontua a escritura circonfessional de Derrida: “sempre pedimos perdão quando escrevemos”, escreve o autor citando sua obra La carte postale, “perdão por nada” (DERRIDA, 1991DERRIDA, J. “Circonfession”. In: DERRIDA, J.; BENNINGTON, G. Jacques Derrida, Paris: Seuil, 1991., p. 47). O conceito de “témoin” já é central neste escrito e será retomado posteriormente em outros (e estava anunciado indiretamente já em De la Grammatologie, 1967DERRIDA, J. De la grammatologie. Paris: Les Éditions de Minuit, 1967b., na análise de outras Confissões de um outro “pai” da autobiografia, Rousseau, que via na escritura um perigoso suplemento à voz da natureza). Aqui o testemunho e a confissão são pensados como apresentação do corpo ferido, das escaras do corpo “real” de sua mãe e do seu próprio corpo. As feridas (scars) da doença de sua mãe são ao mesmo tempo reveladas como locais de sacrifício (DERRIDA, 1991DERRIDA, J. “Circonfession”. In: DERRIDA, J.; BENNINGTON, G. Jacques Derrida, Paris: Seuil, 1991., p. 90): pois escara significa tanto forno como o local do fogo e do altar. “[I]l me faut décrire l’escarre de ma vie” (DERRIDA, 1991DERRIDA, J. “Circonfession”. In: DERRIDA, J.; BENNINGTON, G. Jacques Derrida, Paris: Seuil, 1991., p. 97). A escara se desdobra e dilui nos seus “étimos bastardos”. Afinal, “uma confissão não tem nada a ver com a verdade” (DERRIDA, 1991DERRIDA, J. “Circonfession”. In: DERRIDA, J.; BENNINGTON, G. Jacques Derrida, Paris: Seuil, 1991., p. 103), “uma circonfissão é sempre simulada” (DERRIDA, 1991DERRIDA, J. “Circonfession”. In: DERRIDA, J.; BENNINGTON, G. Jacques Derrida, Paris: Seuil, 1991., p. 120). “[O] testemunho tem sempre parte com a possibilidade ao menos da ficção, do perjúrio e da mentira”, afirma Derrida. “Eliminada essa possibilidade, nenhum testemunho será possível e, de todo modo, não terá mais o sentido do testemunho.” (DERRIDA, 1998DERRIDA, J. Demeure. Maurice Blanchot. Paris: Galilée, 1998., p. 28). Mas, por outro lado, esta escritura do corpo, que busca o “intraduzível” (DERRIDA, 1991DERRIDA, J. “Circonfession”. In: DERRIDA, J.; BENNINGTON, G. Jacques Derrida, Paris: Seuil, 1991., p. 111), é verdade no seu próprio evento: na descrição do pênis e da circuncisão, no velar e revelar o testemunho - mesmo como avesso do real, como escritura literal na carne das letras e do papel. Assistimos, lemos à busca do “unpredictable e para G. e para mim, na escritura de uma circonfissão para agonia de minha mãe, em nada legível aqui, mas primeiro evento para se escrever da mesma maneira meu corpo, a contracicatriz exemplar” (DERRIDA, 1991DERRIDA, J. “Circonfession”. In: DERRIDA, J.; BENNINGTON, G. Jacques Derrida, Paris: Seuil, 1991., p. 115). Trata-se aqui de (mais um) “journal de bord” (DERRIDA, 1991DERRIDA, J. “Circonfession”. In: DERRIDA, J.; BENNINGTON, G. Jacques Derrida, Paris: Seuil, 1991., p. 159) de Derrida, a saber, de Elias, aquele que redige os feitos da humanidade... trata-se de escrever a partir da circuncisão como cicatriz que indica o corte como ato de aliança, de pertença, de estabelecimento e apagamento de fronteiras: de disseminação de sêmen e sangue.

Como todo testemunho, este também se inscreve na linha que bordeia o dentro e o fora, o interior e o público e revela uma face como passível de ser transformada e lida na outra: “ordem de nunca mostrar estes cadernos, de nunca publicá-los [lembremos do testamento de Kafka a seu amigo Max Brod: queime meus papéis...], narrativa, recircuncisão [récit, recirconcision] aqui agora, pintar com todas as cores, os gritos, as tripas de fora, a operação, como a dor imensa irresolúvel e também o gozo supremo para todos, antes de tudo para ele, eu, o bebê” (DERRIDA, 1991DERRIDA, J. “Circonfession”. In: DERRIDA, J.; BENNINGTON, G. Jacques Derrida, Paris: Seuil, 1991., p. 202): “ele, eu”, heteroautobiografia. Escritura enxertada, repleta de citações de “si mesmo”. Pois, afinal, “minha vida”, para Derrida, “não é nem um conteúdo a ser dissimulado nem uma interioridade do eu solitário, mas se finca na divisão entre duas subjetividades absolutas, [...] eu escrevo restituindo a estrutura compartimentada e transcendente da religião, de muitas religiões, na circuncisão interna da ‘minha vida’” (DERRIDA, 1991DERRIDA, J. “Circonfession”. In: DERRIDA, J.; BENNINGTON, G. Jacques Derrida, Paris: Seuil, 1991., p. 213). Esta escritura estrutural e desconstrutiva - do eu e das identidades - busca como superfície um suporte... e encontra apenas a pele, “uma pele maior que eu” (DERRIDA, 1991DERRIDA, J. “Circonfession”. In: DERRIDA, J.; BENNINGTON, G. Jacques Derrida, Paris: Seuil, 1991., p. 214), contraponto abjeto da pele-céu sublime de Santo Agostinho. Pele-corpo evidentemente intraduzível, resto (prepúcio?), assim como o corpo é o intraduzível na cena da escritura do sonho.1 1 “Ora, um corpo verbal não se deixa traduzir ou transportar numa outra língua. Ele constitui aquilo mesmo que a tradução deixa cair. Deixar cair o corpo, tal é a energia essencial da tradução. Quando ela reinstitui o corpo, ela é poesia. Nesse sentido, o corpo do significante, constituindo o idioma para toda a cena do sonho, o sonho é o intraduzível.” (DERRIDA, 1967a, p. 312).

“Otobiografia”: a orelha do coração e o Pentecostes como festa da tradução

Este texto críptico e lúdico, trágico e sério de Derrida é também, entre tantas outras coisas, uma “otobiografia” (Cf. DERRIDA, 1982DERRIDA, J. L'oreille de l'autre. otobiographies, transferts, traductions. Textes et débats avec Jacques Derrida. Montreal: VLB, 1982.). Derrida sempre se espanta diante da multiplicação de referências à orelha nas autobiografias, e ele também não esquece de mencioná-las. A confissão, ele sabe, sempre se dirige a alguém, mesmo que este alguém seja, antes de mais nada, “ele, eu”. A escritura enxertada de sua circonfissão calca-se em diferentes temporalidades (da sua “vida”, da morte da mãe, da história da filosofia...) e em diferentes textos: antes de mais nada, na sua “obra” e nas Confissões de Santo Agostinho. Não causa surpresa se um intérprete atual expuser a filosofia e teologia deste último a partir de atos de palavra na maioria muito caros à reflexão de Derrida: interrogar, escutar, traduzir, ler, mentir, confessar, testemunhar, prometer, perdoar, batizar, entre outros (CHRÉTIEN, 2002CHRÉTIEN, Jean-Louis. Saint Augustin et les actes de parole. Paris: PUF, 2002.). Também os atos “otobiográficos” são onipresentes na vasta obra de Santo Agostinho. E isso também responde a uma intertextualidade com os textos bíblicos: lembremos da passagem bíblica de Deus perfurando a orelha de seus seguidores com uma sovela (Ex. 21,6; cf. De 15,17); da descrição do sacrifício do novilho e do preceito que comanda que seu sangue deve ser posto na ponta da orelha direita de Arão e seus filhos (Ex. 29, 20); das palavras de Josué: “Ajuntai perante mim todos os anciãos das vossas tribos, e vossos oficiais, e aos vossos ouvidos falarei estas palavras, e contra eles por testemunhas tomarei os céus e a terra” (De. 31,28); “Inclinai os ouvidos, ó céus, e falarei” (último cântico de Moisés; De. 32,1); “Ouvindo-me algum ouvido, me tinha por bem-aventurado; vendo-me algum olho, dava testemunho de mim” (Jó 29, 11); “porque o ouvido prova as palavras, como o paladar prova a comida” (Jó 34,3); “Dá ouvidos às minhas palavras, ó Senhor; atende à minha meditação” (Sal. 5,1); “Têm veneno semelhante ao veneno da serpente; são como a víbora surda que tem tapado os seus ouvidos” (Sal. 58,4) etc. Estabelece-se nestas passagens um vínculo entre a audição e a entrega às palavras “que iluminam”, entre a fé e o canal auditivo que, por sua vez, é conjugado ao testemunho visual. O alimento (espiritual) vem da boca de Deus (que deve ser ruminado, diz Santo Agostinho), assim como - na aliança que une o fiel a ele - a boca daquele que confessa dirige-se aos ouvidos de Deus. A escuta transforma-se em manducação. O “Escuta Israel” (Shemá Israel, שמע ישראל)2 2 No nosso contexto é importante destacar que a prece central do judaísmo, o “Ouve Israel, ADO-NAI nosso Deus ADO-NAI é Um”, “Shemá Yisrael Ado-nai Elohênu Ado-nai Echad”, contém de modo críptico a ideia de “testemunhar”. O áyin, a letra final da palavra Shemá, e o dalet, no final da palavra echad (um), formam a palavra hebraica “ed”, testemunha (LIEBES, 1993, p. 157). Agradeço a Jan Assmann por ter me atentado para este fato em uma conversa em Yale no verão de 2004. dissemina-se em diversas falas de Santo Agostinho que utiliza também com freqüência a imagem das “orelhas do coração”, aures cordis, que ele diferencia das “orelhas da carne” (CHRÉTIEN, 2002CHRÉTIEN, Jean-Louis. Saint Augustin et les actes de parole. Paris: PUF, 2002., p. 34).3 3 Cf. passagens das Confissões como estas: “Donde poderia vir tudo isto, se os Vossos ouvidos não se inclinassem sobre o seu [de Mônica] coração?”; “Sim, os lábios de nosso coração abriam-se ansiosos para a corrente celeste da Vossa fonte”; “Poderei aproximar da Vossa boca o ouvido do coração, para ouvir vós, que sois verdade” (SANTO AGOSTINHO, 1987, p. 72, 206, 80): aqui nesta doutrina católica vem a mente a imagem da mezizah judaica, o que permite atribuir a ela um significado espiritual inaudito. Devemos lembrar que, para Santo Agostinho (e na tradição do Antigo Testamento), falava-se de uma “circuncisão do coração”. A escuta representa para ele a primeira hospitalidade e pressupõe a traduzibilidade das línguas entre si. Santo Agostinho tinha uma verdadeira veneração pela tradução da Bíblia “dos setenta”: a chamada septuaginta. Na sua meditação sobre o Pentecostes, ele interpreta o evento de Babel não apenas como um castigo, mas como uma benção - benedictus -, já que só assim pôde existir o milagre da glossolalia: ou seja, a capacidade dos apóstolos de uma comunicação milagrosamente universal (CHRÉTIEN, 2002CHRÉTIEN, Jean-Louis. Saint Augustin et les actes de parole. Paris: PUF, 2002., p. 69). O Pentecostes para ele se desdobra na igreja e é antes de tudo um Pentecostes de tradução. No sentido oposto ao da tradição judaica, que mantém o texto sagrado escrito como o não-traduzível por excelência, nesta tradição cristã a palavra de Deus é plurilíngue. A intraduzibilidade é vencida, no entanto, via milagre do Pentecostes e da tradução iluminada, idêntica das 72 versões. Ou seja: é graças à inspiração que a intraduzibilidade pôde ser superada. Permanece um double bind nesta visão agostiniana da tradução que afirma a possibilidade desta apenas via auxílio de Deus. (Cf. De Civitate Dei, XV, X-XIV4 4 Vale a pena ler o comentário de Santo Agostinho à passagem bíblica sobre a torre de Babel (De Civitate Dei, XVI, IV ss.) e confrontá-lo com as leituras de Benjamin (1972a) e de Derrida (1987). ). As diferenças entre o texto original e o da septuaginta, Santo Agostinho atribui à própria inspiração divina e justifica estas discrepâncias como necessárias: a tradução é diferente porque se dirige a um público diferente do texto original. (Id. XVIII, XLIII e De doctrina christiana, II, XV)5 5 Uma das passagens mais conhecidas das Confissões de Santo Agostinho narra a sua “passagem” pela memória em busca de Deus. Este seria o todo e, portanto, não pertenceria a um “lugar da memória” específico. A mesma universalidade da palavra divina repete-se nesta imagem da sua onipresença. É interessante aqui, neste paralelo entre os autores compatriotas, lembrar da doutrina retórica da mnemotécnica, tão conhecida de Santo Agostinho (professor de oratória) e que ele apresenta nas suas confissões ao descrever os “campos da minha memória”, nos quais as coisas e fatos da sua vida se encontram em imagens e gravadas. (1987, p. 234) Sem que ocorra uma menção específica a ela, esta doutrina dos loci memoriae e dos modos e técnicas de inscrição na mente tem um papel central no livro acima mencionado de Derrida, Mal de arquivo, que reflete sobre a psicanálise a partir de uma nova situação material nas técnicas de inscrição arquivistas na era digital.

Confissão e testemunho como conversão e metamorfose

Com relação à confissão, o confronto entre o texto de Derrida e o de seu compatriota magrebino não é menos frutífero. A confissão para Santo Agostinho, como recorda Jean-Louis Chrétien, é confissão de fé, dos pecados e de louvor. Que a palavra que confessa seja “grito, canto, pedido, questão, resposta, toda palavra cristã [...] não será o que ela é senão por ser, antes de mais nada e finalmente, confessional.” (CHRÉTIEN, 2002CHRÉTIEN, Jean-Louis. Saint Augustin et les actes de parole. Paris: PUF, 2002., p. 121) E mais: a palavra se torna confessional justamente pelo meio da circuncisão, do batismo: sendo que a segunda aliança reatualiza a primeira (do Antigo Testamento). (CHRÉTIEN, 2002CHRÉTIEN, Jean-Louis. Saint Augustin et les actes de parole. Paris: PUF, 2002., p. 121, 238). A palavra da confissão é sempre palavra de “conversão”: de circonfissão, dirá Derrida; é palavra-ação, ato de différance, momento de crise e de sutura, transbordamento e construção das bordas (metamorfose, diríamos depois de Kafka e a partir de uma visão diferencial da identidade e dinâmica das bordas e fronteiras). Para Santo Agostinho, a confissão implica o desnudar-se diante de Deus, coram Deo: como no ensaio derridiano L’animal que donc je suis, O animal que logo sou, o filósofo descreve-se (literalmente) nu - diante de sua gata. Aí ele buscou um (improvável) relato autobiográfico aquém da confissão, do cristianismo, de Santo Agostinho e de Rousseau (DERRIDA, 2002DERRIDA, J. O animal que logo sou (A Seguir). Trad. F. Landa. São Paulo: UNESP, 2002., p. 45), que pudesse dar uma voz (e um ouvido) para o ser-animal, animot: o intraduzível. Isso, mesmo destacando os riscos de toda autobiografia, uma vez que esta sempre visa uma salvação “do santo”, da “nudez virginal e intacta [...]. Nada corre o risco de ser mais envenenador quanto uma autobiografia”. (DERRIDA, 2002DERRIDA, J. O animal que logo sou (A Seguir). Trad. F. Landa. São Paulo: UNESP, 2002., p. 87) Aí ele tentou - em uma “zoo-auto-bio-bibliografia” (DERRIDA, 2002DERRIDA, J. O animal que logo sou (A Seguir). Trad. F. Landa. São Paulo: UNESP, 2002., p. 65) - articular a repressão do animal, dos animais (que logo somos) a um processo histórico e de crise da separação zoé/bios. O animal que je suis (que sou e que sigo, no jogo de palavras intraduzível) remete também a um fato central na confissão: ela é “resposta humana ao apelo de Deus” (CHRÉTIEN, 2002CHRÉTIEN, Jean-Louis. Saint Augustin et les actes de parole. Paris: PUF, 2002., p. 122), ou seja, um seguir fiel às suas palavras. Se a última página desse texto de Derrida sobre o animal põe em cena um espelho no qual ele mesmo vê sua nudez, e é posto diante de sua nudez, é porque na confissão - que ele não pode evitar, pois ele também quer atingir o veritaten facere - trata-se de uma troca de apresentação da nudez, do pacto e do preço da nudez: colocamo-nos nus diante Dele para que Ele mostre a verdade nua. A nudez volta-se a uma outra nudez.

A verdade aqui é também a da cena do tribunal: a autoapresentação visa a um testemunho, apresentar a vida para voltar à vida (revixit). “Acusa-te, glorifica-o”, escreve Santo Agostinho. Nesta cena, o dentro volta-se para fora. Pois, como Derrida recorda a partir de Santo Agostinho, a confissão apresenta não apenas o que sabemos de nós, mas também aquilo que ignoramos (SANTO AGOSTINHO, 1987Santo AGOSTINHO. Confissões. Trad. J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina. Petrópolis: Vozes, 1987., p. 221). O escondido, o esquecido, vem à tona: dá-se o Unheimlich. Em Santo Agostinho existe algo semelhante a um princípio de caridade que torna a confissão e o testemunho transparentes. Por outro lado, o sentido profundo da confissão e do testemunho é o da possibilidade de transformação de si. Ele repete de certo modo o batismo enquanto renascimento via ritual de emersão: mesmo (ou justamente por-) que do ponto de vista da doutrina, o batismo seja algo único, não iterável.6 6 Citemos as palavras de Santo Agostinho: “Se é verdade que na carne do homem circuncidado eu não posso encontrar o local onde repetir a circuncisão, pois o membro é único, ainda menos podemos encontrar o local em um coração onde se repetir o batismo de Cristo. É por causa disto que para vocês que querem duplicar o batismo, é absolutamente necessário que vocês procurem corações duplos.” (Epist. 23, 4, apud CHRÉTIEN, 2002, p. 238). Esta unicidade événementielle da circuncisão é central para a reflexão derridiana sobre este corte como escritura do corpo, como exemplo único, que não pode ser totalmente traduzido, mas que não cessa de se “duplicar” em outras escrituras. Neste ponto, podemos observar entrecruzamentos tanto com a história do romance - desde sempre condenado a ser (em um sentido positivo ou negativo) “romance de formação” (de “deformação”, metamorfose e aburguesamento do protagonista) - como também aproximações com a filosofia enquanto narração da autoconsciência do eu e do mundo, de Santo Agostinho, passando por Montaigne, Descartes, Nietzsche a Derrida. Se pensarmos na relação entre romance e a sua narrativa da história de uma morte - como Lukács e Benjamin -, fica ainda mais clara a relação deste gênero com a confissão, já que Santo Agostinho concebia o testemunho no sentido de martyr: este dá a vida pelo testemunho da verdade (CHRÉTIEN,2002CHRÉTIEN, Jean-Louis. Saint Augustin et les actes de parole. Paris: PUF, 2002., p. 146; cf. LIEBES, 1993LIEBES, Yehuda. Studies in Jewish Myth and Messianism. New York: State University of New York Press, 1993., p. 157). De resto, toda confissão, lembremos, visa à salvação: é adiantamento e busca de suspensão da morte.

Nietzsche: Ecce Homo

A confissão apresenta o “homem” na sua singularidade e ao mesmo tempo diante de um outro eu. Caberia pensar no caso de Derrida os vários “eus” interlocutores a que ele se dirige em seus vários escritos autorreferenciais. Se com Santo Agostinho pode-se perceber sua continuidade e ruptura com a tradição do testemunho e da confissão, com Nietzsche - outro autor de vários escritos e atos “autobiográficos” - podemos refletir sobre o papel deste gesto na filosofia contemporânea, pós era da representação. Em Ecce homo. Wie man wird, was man ist (Ecce Homo. Como nos tornamos o que somos), ele abre seu texto afirmando que não ficou “unbezeugt”, “não testemunhado”: e no entanto, devido à “pequenez” de seus contemporâneos, estes não lhe deram ouvidos ou olharam para ele (não o testemunharam). Nesta passagem, apreciada por Derrida (DERRIDA, 1982DERRIDA, J. L'oreille de l'autre. otobiographies, transferts, traductions. Textes et débats avec Jacques Derrida. Montreal: VLB, 1982., p. 20), Nietzsche afirma ainda: “Eu vivo com base no meu próprio crédito [auf meinen eignen Credit]”. Ele chega a duvidar de sua existência e sente-se na obrigação de dizer: “Escutem-me! pois eu sou isso e isso. Antes de mais nada não me confundam!” (NIETZSCHE, 1988aNIETZSCHE, F. “Ecce homo”. In: Kritische Studienausgabe. Org. G. Colli e M. Montinari, München: DTV; Berlin-New York: Walter de Gruyter, 1988a, v. 6., p. 257). Com este “Escuta Israel” (“Escutem Nietzsche”!) ele inicia esta apresentação da sua singularidade pontuada por rancor (paixão que ele condena antes de todas) e por ironia. “Eu sou uma cria do filósofo Dioniso, eu prefiro antes ser um Sátiro a um santo.” (1988aNIETZSCHE, F. “Ecce homo”. In: Kritische Studienausgabe. Org. G. Colli e M. Montinari, München: DTV; Berlin-New York: Walter de Gruyter, 1988a, v. 6., p. 258). Diferentemente do que se pensava, para Nietzsche, filosofia é “a vida espontânea no gelo das altas montanhas - a busca de tudo estrangeiro e questionável na existência”. Esta busca o levou a um “passeio no proibido” e lhe abriu a “história oculta dos filósofos, a psicologia de seus grandes nomes veio à luz para mim. - Quanta verdade suporta, quanta verdade ousa um espírito? Isto se converteu para mim cada vez mais na autêntica medida de valores.” (1988aNIETZSCHE, F. “Ecce homo”. In: Kritische Studienausgabe. Org. G. Colli e M. Montinari, München: DTV; Berlin-New York: Walter de Gruyter, 1988a, v. 6., p. 259) Logo fica clara a importância deste escrito como parte da estratégia de apresentação e defesa da sua obra máxima: “Aqui [em Assim falou Zaratustra] não fala um fanático, aqui não se ‘predica’, aqui não se exige [...] ninguém está livre para possuir orelhas para Zaratustra” (1988aNIETZSCHE, F. “Ecce homo”. In: Kritische Studienausgabe. Org. G. Colli e M. Montinari, München: DTV; Berlin-New York: Walter de Gruyter, 1988a, v. 6., p. 260). O sentido de autoescritura como autotanatobiografia fica explícito em Nietzsche quando ele alerta ainda seus leitores quanto à data da qual nasce seu escrito7 7 Nietzsche afirma que a “singularidade” da sua existência se assenta também no fato de ele ter uma dupla origem, “doppelte Herkunft”, na sua mãe (que ainda vive) e em seu pai (já falecido). (1988a, p. 264) Isto lhe dá uma “neutralidade”: um ser entre vida e morte, poderíamos pensar. Cf. DERRIDA, 1982, p. 28. : “Não em vão enterrei hoje meu quadragésimo quarto aniversário, foi-me permitido fazê-lo, - o que era vida nele está salvo, é imortal. A Transvaloração de todos os valores, os Ditirambos de Dioniso, o Crepúsculo dos ídolos - Tudo presente deste ano, na verdade do último quarto de ano! Como não dever permanecer agradecido por toda minha vida? E então narro minha vida.” (1988aNIETZSCHE, F. “Ecce homo”. In: Kritische Studienausgabe. Org. G. Colli e M. Montinari, München: DTV; Berlin-New York: Walter de Gruyter, 1988a, v. 6., p. 263). Assim como Derrida em seu Le monolinguisme de l’autre explicou a desconstrução a partir da sua vida, a saber, de sua tripla origem alienada: enquanto judeu sem ligação com a tradição judaica, magrebino sem contato possível com o mundo árabe e portador da língua e literatura francesas enquanto enxertos de cultura, do mesmo modo Nietzsche explica a sua transvaloração dos valores a partir da sua origem enquanto decadente e “polonês nobre puro sangue”. (1988aNIETZSCHE, F. “Ecce homo”. In: Kritische Studienausgabe. Org. G. Colli e M. Montinari, München: DTV; Berlin-New York: Walter de Gruyter, 1988a, v. 6., p. 268). Ele acentua os traços desta “raça” com “instintos puros” - e ao mesmo tempo se distancia de seus pais: “É se aparentado o menos possível com seus pais: seria o mais extremo sinal de vulgaridade ser aparentado com seus pais.” (1988aNIETZSCHE, F. “Ecce homo”. In: Kritische Studienausgabe. Org. G. Colli e M. Montinari, München: DTV; Berlin-New York: Walter de Gruyter, 1988a, v. 6., p. 268s.) O ressentimento é atacado como um sinal de fraqueza. Contra ele e a recordação - “die Erinnerung ist eine eiternde Wunde” (“a recordação é uma ferida purulenta”; 1988aNIETZSCHE, F. “Ecce homo”. In: Kritische Studienausgabe. Org. G. Colli e M. Montinari, München: DTV; Berlin-New York: Walter de Gruyter, 1988a, v. 6., p. 272) - ele propõe sua doutrina do fatalismo, do amor fati. Mas este não elimina seu próprio instinto guerreiro: ele procura opositores grandes para medir forças - antes de mais nada, o cristianismo. Contra este e sua doutrina ele critica também o sentimento de vergonha: conceito chave para se entender o jogo de reflexos, da nudez e do doar sua face ao outro no testemunho. Em Genealogia da moral, ele formulou, referindo-se aos primórdios da humanidade: “naquela época, quando a humanidade não se envergonhava ainda de sua crueldade, a vida na terra era mais contente do que agora, que existem pessimistas. O ensombrecimento do céu acima do homem aumentou à medida que cresceu a vergonha do homem diante do homem.” (NIETZSCHE, 1988bNIETZSCHE, F. “Zur Genealogie der Moral. Eine Streitschrift”. In: Kritische Studienausgabe. Org. G. Colli e M. Montinari. München: DTV; Berlin-New York: Walter de Gruyter, 1988b, v. 5., p. 302; 1998NIETZSCHE, F. Genealogia da Moral. Uma polêmica. Trad. Paulo C. Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998., p. 56). Não por acaso, Derrida vai escrever que Nietzsche “reanimaliza” as figuras na mesma medida em que chora - em uma imagem famosa de sua autobiografia - “sob o olhar ou contra a face de um cavalo” - que Derrida (2002DERRIDA, J. O animal que logo sou (A Seguir). Trad. F. Landa. São Paulo: UNESP, 2002., p. 67) ironicamente toma como a testemunha de Nietzsche e de sua compaixão (sentimento que Nietzsche também execrava: “Die Überwindung der Mitleid rechne ich unter die vornehmen Tugenden”; “Eu tomo a superação da compaixão entre as virtudes distintas”. (1988aNIETZSCHE, F. “Ecce homo”. In: Kritische Studienausgabe. Org. G. Colli e M. Montinari, München: DTV; Berlin-New York: Walter de Gruyter, 1988a, v. 6., p. 270). De resto, Nietzsche conta em Ecce homo o tipo de ambiente e alimentação que propiciaram a ele sua fortaleza. No capítulo intitulado “Warum ich so klug bin” (“Por que sou tão inteligente”) ele comenta ainda seu amor pela cultura francesa, desprezo pela formação germânica e se declara, ao lado de Heine, como “de longe os primeiros artistas da língua alemã”. (1988aNIETZSCHE, F. “Ecce homo”. In: Kritische Studienausgabe. Org. G. Colli e M. Montinari, München: DTV; Berlin-New York: Walter de Gruyter, 1988a, v. 6., p. 286 - Derrida também se orgulha de seu domínio do francês... provocação, mas também autoconsciência do ser escritural, estilístico e retórico da filosofia. Nietzsche também o sabia.) O que não impede de ele ser não compreendido pelos próprios alemães. Ao encerrar esse capítulo, ele justifica este fato da seguinte forma, indicando o porquê da necessária passagem do conceito para a narrativa da sua vida: “Se me perguntarem por que eu narro estas pequenezas e, segundo o juízo tradicional, coisas indiferentes; eu me prejudico tanto mais na medida em que estou determinado a representar grandes tarefas [Aufgaben]. Resposta: essas pequenas coisas - alimentação, local, clima, recreação, toda a casuística do egoísmo - são muito mais importantes do que todos os conceitos que até agora se tomaram por importantes. É justamente aqui que se deve começar a reaprender [umzulernen].” (1988aNIETZSCHE, F. “Ecce homo”. In: Kritische Studienausgabe. Org. G. Colli e M. Montinari, München: DTV; Berlin-New York: Walter de Gruyter, 1988a, v. 6., p. 295).

Mas isso não significa que vida e obra se confundam: “Das Eine bin ich, das Andre sind meine Schriften” (“Uma coisa sou eu, outra são os meus escritos”, 1988aNIETZSCHE, F. “Ecce homo”. In: Kritische Studienausgabe. Org. G. Colli e M. Montinari, München: DTV; Berlin-New York: Walter de Gruyter, 1988a, v. 6., p. 298). Nietzsche afirma, porém, que tanto ele não nasceu para sua época - “alguns nascem postumamente”, ele escreve - como também não chegou ainda o tempo para a compreensão de sua obra: “seria uma contradição completa da minha parte se eu esperasse para hoje orelhas e mãos para minhas verdades”. (1988aNIETZSCHE, F. “Ecce homo”. In: Kritische Studienausgabe. Org. G. Colli e M. Montinari, München: DTV; Berlin-New York: Walter de Gruyter, 1988a, v. 6., p. 298). Ocorre que a transvaloração de todos os valores gera, como era de se esperar, confusões. A incapacidade de compreensão da parte de seus concidadãos é explicada justamente porque eles não podem ainda acompanhar Nietzsche nesta jornada: não podem seguir os seus passos. Segui-lo: sê-lo. “Afinal de contas”, explica ele, “ninguém pode escutar das coisas, inclusive dos livros, mais do que já não saiba. Não temos orelha [Ohr] para aquilo que não temos acesso por meio da vivência.” (1988aNIETZSCHE, F. “Ecce homo”. In: Kritische Studienausgabe. Org. G. Colli e M. Montinari, München: DTV; Berlin-New York: Walter de Gruyter, 1988a, v. 6., p. 300) Ou seja: o trabalho do conceito existe e é efetivo apenas lá onde ele é acompanhado pela vivência. Vida, ação e saber são indissociáveis. Acredita-se que lá onde não se escuta/entende nada, não existe nada a ser compreendido. Daí as críticas a sua obra. Fundar uma nova língua significa saber manter as “orelhas pequenas” e ter a paciência para esperar o tempo de ser lido: ao menos na própria Alemanha, pois Nietzsche se orgulha da sua recepção em outros países. “Todos sabemos, alguns a partir da própria experiência, o que é um Langohr [um asno, um bate-orelhas]. Que seja, eu ouso afirmar que possuo as menores orelhas. Isto não interessa pouco às mulheres - creio que elas se sentem mais bem compreendidas por mim... eu sou o Antiasno por excelência e assim uma quimera na história universal, - eu sou, em grego, e não apenas em grego, o Anticristo...” (1988aNIETZSCHE, F. “Ecce homo”. In: Kritische Studienausgabe. Org. G. Colli e M. Montinari, München: DTV; Berlin-New York: Walter de Gruyter, 1988a, v. 6., p. 302). O oposto à tradição, o que exige novas orelhas e abre as suas para a sua verdade construída na e a partir da sua vida, sempre aprés-coup. Como Derrida também, é claro.8 8 Nos românticos de Iena, Friedrich Schlegel e Novalis, deu-se um culto da Verstellug, simulação, que era posta em confronto com a Vorstellung, representação que estava umbilicalmente ligada à visão de mundo iluminista. Em Nietzsche vemos uma crítica desta tradição romântica em um importante parágrafo da sua Gaia Ciência. Vale a pena citar um comentário de Derrida sobre a questão da simulação em Nietzsche, na qual a circuncisão já entra na cena de sua filosofia: “Por meio do elogio da simulação, do ‘prazer em simular’ (die Lust an der Verstellung), do histrionismo, do ‘perigoso conceito do artista’, a Gaia Ciência escala entre os artistas, que são sempre os especialistas em simulação, os Judeus e as mulheres. A associação do Judeu com a mulher provavelmente não é insignificante. Nietzsche trata-os frequentemente de modo paralelo, o que talvez nos reenvie ainda uma vez ao tema da castração e do simulacro, a saber, da castração simulacro da qual a circuncisão seria a marca, o nome da marca.” (1978b, p. 54). Nietzsche, no parágrafo 361 da Gaia ciência, aproxima não apenas mulheres e judeus da arte da simulação, mas também os pobres (que devem se virar para sobreviver e jogam o jogo de esconde-esconde eternamente, como os animais com seu princípio mimético) e os diplomatas. Os judeus são caracterizados como “povo da arte de adaptação par excellence”. (NIETZSCHE, 1988c, p. 609). Ou seja, eles teriam a capacidade da eterna substituição de suas identidades/moradias. O que, em termos derridianos, os condena a serem eternos hóspedes - e potenciais hostilizados. (Cf. DERRIDA, 1997). A lei da adaptação implica uma possibilidade infinita de substituição, o que não deixa de recordar a (trágica) autorreflexão de Derrida sobre o fato de ele mesmo ser um substituto de um irmão anterior falecido. (DERRIDA, 1991). Mas o amor também funcionaria pelo princípio da readaptação e troca, já que Derrida se vê amando sempre alguém “à la place [...] d’une figure inconnue de moi”, no lugar de outra pessoa desconhecida. O amor seria marcado por uma “remplacibilité essentielle”, substituição essencial (1991, p. 198): possibilidade de substituição que também remete, por sua vez, à doutrina benjaminiana da alegoria na qual os significantes se substituem em cadeia, podendo significar qualquer coisa ad libidum. A alegoria revela-se assim como simulacro e escritura libidinosa. Mas sempre também a partir da e não só contra a tradição. Não esqueçamos da origem filológica de Nietzsche, de seus cursos de retórica (como Santo Agostinho) em Basel. Não apaguemos seu estilo, sua arte de domar o idioma e transformá-lo em escritura de um novo saber. Esta estrema autoconsciência com relação à situação do filósofo e sua linguagem permitiu também as suas reflexões sobre as metáforas - revelando a verdade como um triunfo de figuras -, ideia que marcará definitivamente a filosofia derridiana.

Não sou Walter Benjamin

Nesta linha dos que anunciam sua filosofia a partir de uma (sempre) nova escritura e da “performatização” desta escritura enquanto jogo de vida/morte, Walter Benjamin desponta como uma referência central para compreendermos o intertexto derridiano. Derrida, de resto, não por acaso teve que afirmar “não sou Benjamin” (DERRIDA, 2002DERRIDA, J. O animal que logo sou (A Seguir). Trad. F. Landa. São Paulo: UNESP, 2002., p. 43), sem nunca ter precisado dizer que não é outro latente alter-ego. Ele sente uma atração quase que “irresistível” pelos textos da “metafísica de juventude” de Benjamin, como o sobre a tradução (de 1921 e publicado em 1923), o “Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem dos homens” (1916) e o “Zur Kritik der Gewalt” (1921). Além disso, Benjamin possui também uma série de textos diretamente engajados em apresentar e refletir sobre a apresentação da “vida”, tais como “A vida dos estudantes”, “Destino e caráter”, Rua de mão única, Crônica berlinense, Infância em Berlim, “Angesilaus Santander”, além de uma série de diários (sobretudo de viagem). Mais decisivo ainda é a centralidade do conceito de Erfahrung (experiência) na obra benjaminiana e seus desdobramentos, como por exemplo no imperativo de pensar a história e a historiografia a partir do mote da memória: o presente comanda a articulação do passado a partir das suas necessidades e sonhos. As próprias imagens que marcam a obra benjaminiana, como a do “Angelus Novus”, que se torna o anjo da história no seu texto “Sobre o conceito de história”, estão totalmente calcadas neste compromisso com o presente. A filosofia em Benjamin é - romanticamente - medium-de-reflexão que se executa enquanto leitura (comentário, crítica e tradução) de outros textos e enquanto filosofia da história e teoria da escritura. Nada mais próximo de Derrida.

Se, como vimos, Nietzsche afirmou no seu Ecce homo que não ficou “unbezeugt”, “não testemunhado”, Benjamin, por sua vez, escreveu que “Überzeugen ist unfruchtbar” (1972bBENJAMIN, Walter. “Einbahnstrasse”. In: Gesammelte Schriften. Hrsg. von Rolf Tiedemann und Hermann Schweppenhäuser, Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 1972b v. 4., p. 87). Não é fácil traduzir esta frase. Uma possível solução seria: “Convencer é infrutífero” e decerto este é um dos sentidos mais evidentes da frase de Benjamin. Mas existe também aqui um elemento de intraduzibilidade, de figurabilidade, de eco interno na língua alemã que permite aprofundar e desdobrar a afirmação em termos de uma reflexão sobre o testemunho. Überzeugen significa convencer assim como Überzeugung significa convicção. Já Zeugen em alemão significa tanto “testemunhar”, “testificar” como “procriar”, “gerar” algo. Assim podemos ouvir na frase de Benjamin também: “Gerar demais”, “procriar demais”, “é infrutífero” e ainda: “testemunhar demais é infrutífero”. Como a frase aparece isolada no livro Rua de mão única e sob o subtítulo “Für Männer” (“Para homens”), a leitura em termos sexuais é praticamente obrigatória. Se convencer é infrutífero, poderíamos pensar que o melhor é ser sutil e econômico nos argumentos. Mas se “gerar demais” é infrutífero, cabe perguntar infrutífero em que sentido: intelectual, em termos da vida... na verdade, os dois níveis de leitura devem se manter juntos e em suspensão. Benjamin desconfiava dos projetos realistas tanto literários como autobiográficos. Seus próprios textos sobre sua “vida” são uma mostra disso. No mesmo volume Rua de mão única podemos ler:

Somente quem soubesse considerar o próprio passado como fruto da coação e da necessidade seria capaz de fazê-lo, em cada presente, valioso ao máximo para si. Pois aquilo que alguém viveu é, no melhor dos casos, comparável à bela figura à qual, em transportes, foram quebrados todos os membros, e que agora nada mais oferece a não ser o bloco precioso a partir do qual ele tem de esculpir a imagem de seu futuro. (BENJAMIN, 1987BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas II. Rua de mão única. Trad. Rubens R. Torres Filho e José Carlos M. Barbosa, S.Paulo: Brasiliense, 1987., p. 41 s.).

O passado a ser testemunhado só é frutífero na sua relação direta e necessária com o presente/futuro. Depende do trabalho de leitura/escritura do presente traçar a face do passado. Na Crônica Berlinense podemos ler uma definição da escritura autobiográfica que também poderia muito bem ser aplicada a alguns textos de Derrida - sobretudo à sua Circonfissão:

Recordações, mesmo quando são ampliadas, não representam sempre uma autobiografia. [...] Pois a autobiografia tem a ver com o tempo, com o desenrolar e com aquilo que constitui o fluxo da vida. Mas aqui [ou seja, na Crônica Berlinense] trata-se de um espaço, de momentos e do inconstante. Pois, mesmo que surjam aqui meses e anos, eles o fazem sob a figura que eles têm no momento da rememoração. (BENJAMIN, 1985aBENJAMIN, Walter. “Berliner Chronik”. In: Gesammelte Schriften. Hrsg. von Rolf Tiedemann und Hermann Schweppenhäuser, Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 1985a v. 6., p. 488).

Ou seja, não se trata de uma narrativa de uma vida no sentido clássico da descrição da “formação” que se desdobra no tempo linear e contínuo. A essa fragmentação temporal em “momentos” corresponde um pensamento topográfico e também uma reflexão sobre o testemunho. Este, para Benjamin, na era da reprodução técnica, assume um significado totalmente novo. Como lemos no seu famoso ensaio sobre a obra de arte, nas obras pós-auráticas e marcadas pela possibilidade técnica da sua multiplicação, não é mais possível que a história inscreva as suas marcas na obra. (Cf. BENJAMIN, 2013BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. Trad. Gabriel Valladão Silva, revisão técnica Márcio Seligmann-Silva, 2013.). Esta ideia - que está na base da reflexão atual sobre as novas modalidades de arquivamento na era do ciberespaço e que decerto também marcou as reflexões de Derrida neste ponto - deve ser ainda aproximada de uma outra frase de Benjamin que afirma uma nova concepção de testemunho histórico ao escrever que “es ist niemals ein Dokument der Kultur, ohne zugleich ein solches der Babarei zu sein” (BENJAMIN, 2010BENJAMIN, Walter. Werk und Nachlaß. Kritische Gesamtausgabe. Über den Begriff der Geschichte. Ed. Gérard Raulet. Frankfurt-am-Main: Suhrkamp Verlag, 2010 v. 19., p. 34), “nunca existiu um documento da cultura que não fosse ao mesmo tempo um [documento] da barbárie”. É interessante ler a tradução do próprio Benjamin dessa famosa passagem das suas teses “Sobre o Conceito da História”: “Tout cela [l’héritage culturel] ne témoigne [pas] de la culture sans témoigner, en même temps, de la barbarie” (BENJAMIN, 2010BENJAMIN, Walter. Werk und Nachlaß. Kritische Gesamtausgabe. Über den Begriff der Geschichte. Ed. Gérard Raulet. Frankfurt-am-Main: Suhrkamp Verlag, 2010 v. 19., p. 63-64). Ou seja, toda obra testemunha ao mesmo tempo a cultura e a barbárie. Sendo que a visão da “história como catástrofe” em Benjamin permite ampliar esta ideia de barbárie, aproximando-a do conceito freudiano de trauma, como o próprio Benjamin o fez no seu ensaio Sobre alguns temas em Baudelaire. Benjamin pensa em uma topografia da história composta por cápsulas que mantêm o ocorrido congelado. Depende da capacidade do leitor/colecionador do passado se estes fragmentos serão captados nos momentos de entrecruzamento deles com o presente do intérprete. A estrutura complexa do interno/externo, dentro/fora que é a marca da reflexão derridiana sobre a cripta e a escritura do corpo pode ser lida também nas pegadas de Benjamin desde sua reflexão sobre a alegoria e a escritura hieroglífica barroca até a sua teoria (e prática) da historiografia como montagem de ruínas.

Por último, vale a pena recordar um pequeno texto de Benjamin (preservado em duas versões) de cunho autobiográfico. Trata-se do seu “Angesilaus Santander” que ele redigiu durante a sua estadia em Ibiza em 1933. Apesar de seu amigo Gershom Scholem já ter escrito um inspirado ensaio sobre este fragmento (1983SCHOLEM, Gershom. Walter Benjamin und sein Engel. Vierzehn Aufsätze und kleine Beiträge. Frankfurt/M.: Suhrkamp, 1983., p. 35-72), ele permanece obscuro e enigmático, na mesma medida em que se calca sobre experiências da sua vida. Benjamin escreve neste texto que seus pais, pensando que eventualmente ele se tornaria um escritor, deram-lhe além do nome Walter Benjamin mais dois prenomes que ele poderia utilizar nas suas publicações para não se revelar como judeu. Ele diz no texto que ele não quer divulgar (ou trair: verraten, BENJAMIN, 1985bBENJAMIN, Walter. “Angesilaus Santander”. In: Gesammelte Schriften. Hrsg. von Rolf Tiedemann und Hermann Schweppenhäuser, Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 1985b, Band. 6., p. 520) estes nomes e não escreve quais eles seriam. A ironia da história é que aquilo que seus pais “acharam ser remotamente possível”, ou seja, uma escalada do anti-semitismo, de fato se concretizara (estamos em 1933), mas Benjamin não utilizara aquele escudo que seus nomes ocultos poderiam significar. Benjamin afirma que ele velou estes nomes e os manteve secretos, assim como um judeu o faz com seu nome hebraico, que ele deve revelar apenas no dia em que atinge a virilidade. Scholem notou que Benjamin cometeu algumas simplificações na sua descrição do nome ritual judaico. Na verdade, este nome é dado no ato da circuncisão e nas famílias religiosas ele permanece público. Talvez em algumas famílias judaicas assimiladas possa se aceitar que este nome permanecia desconhecido (e, neste sentido, oculto) ao seu portador até o dia do seu Bar-mitzva, a cerimônia que se realiza aos 13 anos e indica a passagem para a puberdade, quando o rapaz deve ler o texto hebraico da Thora e é chamado publicamente por seu nome ritual. Benjamin fala ainda no seu texto de 1933 de “um novo tornar-se púbere”, o que Scholem interpreta como uma referência aos seus novos amores. Os editores das obras de Benjamin confirmam esta interpretação e publicaram no aparato crítico referente a estes fragmentos cartas de Benjamin à sua amada de então.

Um outro dado biográfico de Benjamin veio à tona apenas mais próximo de nós: de fato ele possuía dois prenomes que nunca utilizou em suas publicações ou contou aos amigos: Benedix Schönflies. Mas este fato não deixa o texto em questão mais claro, sobretudo suas alusões ao “Novo anjo” (que remetem ao quadro Angelus Novus de Klee), ao seu nascimento sob o signo de Saturno - “o Planeta da rotação lenta, o astro da hesitação e do atraso” (BENJAMIN, 1985bBENJAMIN, Walter. “Angesilaus Santander”. In: Gesammelte Schriften. Hrsg. von Rolf Tiedemann und Hermann Schweppenhäuser, Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 1985b, Band. 6., p. 521) - e à cabala, no contexto do seu novo tornar-se púbere. Talvez Scholem esteja certo ao insistir na interpretação do título do fragmento, como sendo um anagrama de “Der Angelus Satanas”. Ele nota também que seria inocente da parte de Benjamin se ele de fato acreditasse que Benedix Schönflies não é um nome judeu, pois ele evidentemente o é. Mas não é isso que importa aqui. O que importa é a referência de Benjamin a estes nomes oculto e secretos, ao seu nom caché, como escreve Derrida com relação a seu nome judaico Élie e que ele interpreta também como um dom (como todo nome, só que este sendo um dom/nome secreto), signo de eleição (só que positivo e não negativo, luciferiano, como em Benjamin), de nobreza: “un signe d’élection, je suis celui qu’on élit, ceci joint à l’histoire du thaleth blanc (à raconter ailleurs) et à quelques autres signes de bénédiction sécrète” [“um signo de eleição, eu sou aquele que se elege, isso ao lado da história do thaleth branco (a ser narrada em outro lugar) e de alguns outros signos de benção secreta”]. (DERRIDA, 1991DERRIDA, J. “Circonfession”. In: DERRIDA, J.; BENNINGTON, G. Jacques Derrida, Paris: Seuil, 1991., p. 82-83). Abrindo um pouco nossas orelhas, podemos ler esta passagem sobre a eleição de Derrida como um diálogo com outros nomes ocultos. Ele também mantém em segredo algo, uma história de um tallit branco, cujo ocultamento é figurado na escritura pelos parênteses. Tallit, o tecido quadrado de algodão, normalmente branco ou azul, é uma indumentária ritual judaica que deve ser portada no momento das rezas (sendo que o assim chamado pequeno tallit pode ser sempre carregado sob a vestimenta, mas nunca em contato com a pele). Parte essencial do tallit são os zizit, fios que estão ligados às suas pontas e que devem servir para recordar “os mandamentos do senhor” (Num. 15, 39). O pacto e a aliança/circuncisão de memória são reatualizados no tallit. O segredo desta história não revelada por Derrida (uma memória ocultada) duplica o segredo deste nome Élie que, segundo ele, não foi inscrito “(como se quisessem escondê-lo, mais ainda que os outros nomes hebraicos, postos após os outros)”. (1991DERRIDA, J. “Circonfession”. In: DERRIDA, J.; BENNINGTON, G. Jacques Derrida, Paris: Seuil, 1991., p. 86). Ele foi como que “apagado, contido”, e significava muitas coisas: “antes de tudo que queriam me esconder como um príncipe de quem se dissimula [cf. Verstellen, simular, dissimular, em Nietzsche] provisoriamente a filiação para guardá-lo com vida [... longo duplo parêntesis sobre o irmão falecido Paul Moïse...], guardá-lo com vida até o dia em que sua realeza poderia [...] exercer-se em plena luz do dia, sem risco para a preciosa semente; em seguida eu não devia portar à luz do dia o signo judeu” (1991DERRIDA, J. “Circonfession”. In: DERRIDA, J.; BENNINGTON, G. Jacques Derrida, Paris: Seuil, 1991., p. 88). Ou seja, trata-se aqui de outra dissimulação da semente, do sema judaico. Vemos outra história de salvamento realizada pelos pais enquanto nomeadores de seus filhos. Trata-se também da cena de um outro “mot de passe” como o schibboleth bíblico que permitia identificar os pertencentes e os não pertencentes à tribo. (Cf. DERRIDA, 1986DERRIDA, J. Schibboleth pour Paul Celan. Paris: Galilée, 1986.). Trata-se, enfim, de outra otobiografia simulada, “confession sans vérité”. (1991DERRIDA, J. “Circonfession”. In: DERRIDA, J.; BENNINGTON, G. Jacques Derrida, Paris: Seuil, 1991., p. 86). Mas nela ecoa, como afirmei, um outro nome, numa passagem, senha, “mot de passe” entre temporalidades, textos e identidades. Toda circonfissão está plena de marcas de histórias e tempos reais. Pois, abrindo-se bem nossos ouvidos, ouvimos que Élie (Elijah em hebraico, “meu Deus é Yaweh”) elege bem as palavras ao mencionar que além deste nome existem outros sinais seus “de bénédiction sécrète” (DERRIDA, 1991DERRIDA, J. “Circonfession”. In: DERRIDA, J.; BENNINGTON, G. Jacques Derrida, Paris: Seuil, 1991., p. 83). Uma benedictio, boa fala secreta: Benedix.

Maria Torok, comentando a nossa vida psíquica, observa: “quantos túmulos na vida do Ego” (ABRAHAM; TOROK, 1995ABRAHAM, N.; TOROK, M. A casca e o núcleo. Trad. M. José Coracini. São Paulo: Escuta, 1995., p. 223), ou seja, quantas criptas, nódulos de memória, objetos incorporados e não introjetados. Estes túmulos levam consigo locais e datas. Do mesmo modo, podemos observar quantos “signos de benção secreta” na vida e escritura de alguém que recebeu um dom: Élie e Benedix Schönflies encontram-se também na data comemorativa do dia 15 de julho, todo ano, a cada volta do anel.

Referências

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  • Santo AGOSTINHO. On Christian Doctrine <https://faculty.georgetown.edu/jod/augustine/ddc2.html> (consultado em 07/05/2020)
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  • SCHOLEM, Gershom. Walter Benjamin und sein Engel. Vierzehn Aufsätze und kleine Beiträge Frankfurt/M.: Suhrkamp, 1983.
  • 1
    “Ora, um corpo verbal não se deixa traduzir ou transportar numa outra língua. Ele constitui aquilo mesmo que a tradução deixa cair. Deixar cair o corpo, tal é a energia essencial da tradução. Quando ela reinstitui o corpo, ela é poesia. Nesse sentido, o corpo do significante, constituindo o idioma para toda a cena do sonho, o sonho é o intraduzível.” (DERRIDA, 1967aDERRIDA, J. “La scène de l’écriture”. In: L’écriture et la différence. Paris: Éditions du Seuil, 1967a., p. 312).
  • 2
    No nosso contexto é importante destacar que a prece central do judaísmo, o “Ouve Israel, ADO-NAI nosso Deus ADO-NAI é Um”, “Shemá Yisrael Ado-nai Elohênu Ado-nai Echad”, contém de modo críptico a ideia de “testemunhar”. O áyin, a letra final da palavra Shemá, e o dalet, no final da palavra echad (um), formam a palavra hebraica “ed”, testemunha (LIEBES, 1993LIEBES, Yehuda. Studies in Jewish Myth and Messianism. New York: State University of New York Press, 1993., p. 157). Agradeço a Jan Assmann por ter me atentado para este fato em uma conversa em Yale no verão de 2004.
  • 3
    Cf. passagens das Confissões como estas: “Donde poderia vir tudo isto, se os Vossos ouvidos não se inclinassem sobre o seu [de Mônica] coração?”; “Sim, os lábios de nosso coração abriam-se ansiosos para a corrente celeste da Vossa fonte”; “Poderei aproximar da Vossa boca o ouvido do coração, para ouvir vós, que sois verdade” (SANTO AGOSTINHO, 1987Santo AGOSTINHO. Confissões. Trad. J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina. Petrópolis: Vozes, 1987., p. 72, 206, 80): aqui nesta doutrina católica vem a mente a imagem da mezizah judaica, o que permite atribuir a ela um significado espiritual inaudito. Devemos lembrar que, para Santo Agostinho (e na tradição do Antigo Testamento), falava-se de uma “circuncisão do coração”.
  • 4
    Vale a pena ler o comentário de Santo Agostinho à passagem bíblica sobre a torre de Babel (De Civitate DeiSanto AGOSTINHO. De civitate Dei. <http://www.intratext.com/ixt/lat0395/_pc2.htm> Consultado em 07/05/2020
    http://www.intratext.com/ixt/lat0395/_pc...
    , XVI, IV ss.) e confrontá-lo com as leituras de Benjamin (1972aBENJAMIN, Walter. “Die Aufgabe des Übersetzers”. In: Gesammelte Schriften. Hrsg. von Rolf Tiedemann und Hermann Schweppenhäuser, Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 1972a v.4.) e de Derrida (1987DERRIDA, J. “Des tours de Babel”. In: Psyché. Inventions de l’autre. Paris: Galilée, 1987.).
  • 5
    Uma das passagens mais conhecidas das Confissões de Santo Agostinho narra a sua “passagem” pela memória em busca de Deus. Este seria o todo e, portanto, não pertenceria a um “lugar da memória” específico. A mesma universalidade da palavra divina repete-se nesta imagem da sua onipresença. É interessante aqui, neste paralelo entre os autores compatriotas, lembrar da doutrina retórica da mnemotécnica, tão conhecida de Santo Agostinho (professor de oratória) e que ele apresenta nas suas confissões ao descrever os “campos da minha memória”, nos quais as coisas e fatos da sua vida se encontram em imagens e gravadas. (1987Santo AGOSTINHO. Confissões. Trad. J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina. Petrópolis: Vozes, 1987., p. 234) Sem que ocorra uma menção específica a ela, esta doutrina dos loci memoriae e dos modos e técnicas de inscrição na mente tem um papel central no livro acima mencionado de Derrida, Mal de arquivo, que reflete sobre a psicanálise a partir de uma nova situação material nas técnicas de inscrição arquivistas na era digital.
  • 6
    Citemos as palavras de Santo Agostinho: “Se é verdade que na carne do homem circuncidado eu não posso encontrar o local onde repetir a circuncisão, pois o membro é único, ainda menos podemos encontrar o local em um coração onde se repetir o batismo de Cristo. É por causa disto que para vocês que querem duplicar o batismo, é absolutamente necessário que vocês procurem corações duplos.” (Epist. 23, 4, apud CHRÉTIEN, 2002CHRÉTIEN, Jean-Louis. Saint Augustin et les actes de parole. Paris: PUF, 2002., p. 238). Esta unicidade événementielle da circuncisão é central para a reflexão derridiana sobre este corte como escritura do corpo, como exemplo único, que não pode ser totalmente traduzido, mas que não cessa de se “duplicar” em outras escrituras.
  • 7
    Nietzsche afirma que a “singularidade” da sua existência se assenta também no fato de ele ter uma dupla origem, “doppelte Herkunft”, na sua mãe (que ainda vive) e em seu pai (já falecido). (1988aNIETZSCHE, F. “Ecce homo”. In: Kritische Studienausgabe. Org. G. Colli e M. Montinari, München: DTV; Berlin-New York: Walter de Gruyter, 1988a, v. 6., p. 264) Isto lhe dá uma “neutralidade”: um ser entre vida e morte, poderíamos pensar. Cf. DERRIDA, 1982DERRIDA, J. L'oreille de l'autre. otobiographies, transferts, traductions. Textes et débats avec Jacques Derrida. Montreal: VLB, 1982., p. 28.
  • 8
    Nos românticos de Iena, Friedrich Schlegel e Novalis, deu-se um culto da Verstellug, simulação, que era posta em confronto com a Vorstellung, representação que estava umbilicalmente ligada à visão de mundo iluminista. Em Nietzsche vemos uma crítica desta tradição romântica em um importante parágrafo da sua Gaia Ciência. Vale a pena citar um comentário de Derrida sobre a questão da simulação em Nietzsche, na qual a circuncisão já entra na cena de sua filosofia: “Por meio do elogio da simulação, do ‘prazer em simular’ (die Lust an der Verstellung), do histrionismo, do ‘perigoso conceito do artista’, a Gaia Ciência escala entre os artistas, que são sempre os especialistas em simulação, os Judeus e as mulheres. A associação do Judeu com a mulher provavelmente não é insignificante. Nietzsche trata-os frequentemente de modo paralelo, o que talvez nos reenvie ainda uma vez ao tema da castração e do simulacro, a saber, da castração simulacro da qual a circuncisão seria a marca, o nome da marca.” (1978bDERRIDA, J. Éperons. Les styles de Nietzsche. Paris: Flammarion, 1978b., p. 54). Nietzsche, no parágrafo 361 da Gaia ciência, aproxima não apenas mulheres e judeus da arte da simulação, mas também os pobres (que devem se virar para sobreviver e jogam o jogo de esconde-esconde eternamente, como os animais com seu princípio mimético) e os diplomatas. Os judeus são caracterizados como “povo da arte de adaptação par excellence”. (NIETZSCHE, 1988cNIETZSCHE, F. “Die fröhliche Wissenschaft”. In: Kritische Studienausgabe. Org. G. Colli e M. Montinari. München: DTV; Berlin-New York: Walter de Gruyter, 1988c, v. 3., p. 609). Ou seja, eles teriam a capacidade da eterna substituição de suas identidades/moradias. O que, em termos derridianos, os condena a serem eternos hóspedes - e potenciais hostilizados. (Cf. DERRIDA, 1997DERRIDA, J. De l'hospitalité. Paris: Calmann-Lévy, 1997.). A lei da adaptação implica uma possibilidade infinita de substituição, o que não deixa de recordar a (trágica) autorreflexão de Derrida sobre o fato de ele mesmo ser um substituto de um irmão anterior falecido. (DERRIDA, 1991DERRIDA, J. “Circonfession”. In: DERRIDA, J.; BENNINGTON, G. Jacques Derrida, Paris: Seuil, 1991.). Mas o amor também funcionaria pelo princípio da readaptação e troca, já que Derrida se vê amando sempre alguém “à la place [...] d’une figure inconnue de moi”, no lugar de outra pessoa desconhecida. O amor seria marcado por uma “remplacibilité essentielle”, substituição essencial (1991DERRIDA, J. “Circonfession”. In: DERRIDA, J.; BENNINGTON, G. Jacques Derrida, Paris: Seuil, 1991., p. 198): possibilidade de substituição que também remete, por sua vez, à doutrina benjaminiana da alegoria na qual os significantes se substituem em cadeia, podendo significar qualquer coisa ad libidum. A alegoria revela-se assim como simulacro e escritura libidinosa.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Dez 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    07 Maio 2020
  • Aceito
    31 Jul 2020
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