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Derrida e as portas abertas da memória, do arquivo e do testemunho

Derrida and the Open Doors of Memory, Archive and Testimony

Resumo

O percurso intelectual de Jacques Derrida está marcado por seu engajamento e por sua militância. Muitas das suas intervenções políticas estão relacionadas à memória e à reflexão sobre as heranças da Shoah. Este artigo pretende analisar a contribuição conceitual de Derrida no horizonte desse debate.

Palavras-chave:
Derrida; Shoah; memória; arquivo; testemunho

Abstract

Jacques Derrida’s intellectual journey is marked by his engagement and militancy. Many of his political interventions are related to memory and reflection on Shoah’s heritage. This article intends to analyze Derrida’s conceptual contribution to the debate.

Keywords:
Derrida; Shoah; memory; archive; testimony

Résumé

Le parcours intelectual de Jacques Derrida est marqué par son engajement et par sa militance. Plusieurs de ses interventions politiques sont liées à la mémoire et à la refléxion sur les héritages de la Shoah. Cet article prétend analyser la contribution conceptuelle de Derrida à l’horizon de ce débat.

Mots-clé:
Derrida; Shoah; mémoire; archives; témoignage

À Eva e ao Fabio Landa, sempre com suas portas abertas

Nous n’accepterons plus de vivre dans un monde qui non seulement tolère les violences illégales mais viole la mémoire et organise l’amnésie de ses forfaits. Notre témoignage critique doit transformer l’espace public, le droit, la police, la politique de l’archive, des médias et de la mémoire vive.

Jacques Derrida

Filosofia, engajamento e militância

A atividade intelectual de Jacques Derrida está intrinsecamente marcada pelo engajamento e pela militância política. Em seu longo percurso acadêmico, o filósofo realizou inúmeras intervenções, lecionando, escrevendo, participando de debates sobre conceitos relacionados às questões sociais e organizando grupos de estudos, coletivos e conselhos em defesa dos direitos humanos.

Desde 1952, quando começa a estudar na ENS (École Normale Supérieure), Derrida milita de forma intermitente em grupos de extrema esquerda não comunistas (DERRIDA; PAOLETTI, 1999DERRIDA, Jacques; PAOLETTI, Catherine. Sur parole. Instantanés philosophiques. Paris: Éditions de l’Aube, 1999. , p. 40). Em 1968, o filósofo organiza a primeira assembleia geral na ENS (DERRIDA; FERRARIS, 2001DERRIDA, Jacques; FERRARIS, Maurizio. A taste for the secret. Trad. Giacomo Donis. Cambridge: Polity Press, 2001., p. 50). Em 1981, abre com Jean-Pierre Vernant a filial francesa da Associação Jan Hus, que visa colaborar com intelectuais tchecos dissidentes e perseguidos.1 1 Em Donner la mort, publicado em 1999, Derrida discute os trabalhos de Jan Patočka, filósofo tcheco torturado e assassinado em 1977. Nesse ano, é preso em Praga ao comparecer num seminário clandestino sobre Descartes.2 2 Em 1981-1982, o seminário de Derrida na ENS tratava de Descartes. Em 1983, Derrida publica o ensaio “La langue et le discours de la méthode”, no livro Recherches sur la philosophie du langage. Em 1983, participa da Associação de Artistas contra o apartheid e do Comitê de escritores em defesa de Nelson Mandela.3 3 No ensaio “Le dernier mot du racisme”, de 1983, Derrida investiga o apartheid. Em “Admiration de Nelson Mandela, ou les lois de la réflexion”, de 1986, Derrida analisa as posições políticas de Mandela. Esses textos foram republicados em 1987, nos volumes do livro Psyché. Em 1988, encontra-se com intelectuais palestinos em Jerusalém e apresenta a conferência “Interpretations at War”, na Primeira Intifada contra a ocupação israelense.4 4 Essa conferência foi publicada em 2002, no livro Acts of religion. A partir de 1989, passa a integrar um seminário na Universidade de Sussex, cujo objetivo era discutir as fronteiras nacionais depois da queda do muro de Berlim.5 5 Em Le Passage des fronteires, publicado em 1993, Derrida apresenta sua contribuição para o seminário. Com algumas reformulações, esse texto foi republicado em 1998, com o título Apories. Também em 1989, colabora com o Collectif 89, que na época defendia o direito dos sans-papiers ao voto.6 6 Em “Manquements du droit à la justice”, publicado em 1997, na coletânea Marx en jeu, Derrida retoma o debate sobre os sans-papiers e o direito à hospitalidade. Em 1990, convidado pela Academia de Ciências da URSS, debate com intelectuais russos as possibilidades da perestroika e da glasnost.7 7 As conferências que Derrida fez na Rússia foram publicadas em 1995, no livro Moscou aller-retour. Em 1993, após uma série de assassinatos de escritores, jornalistas e professores argelinos, Derrida ajuda a compor o Parlamento Internacional de Escritores, que tem a finalidade de proteger intelectuais ameaçados.8 8 Em maio de 1990, esses escritores realizam, em Turim, o colóquio “L’identité culturelle européenne”. Nesse colóquio, Derrida apresenta a conferência “L’autre cap - mémories, réponses et responsabilités”, publicada em 1991, no livro L’autre cap. Em 1996, redige “Cosmopolites des tous les pays, encore un effort!”,9 9 Esse texto foi publicado em 1997, num livro com o mesmo título. sua contribuição para o primeiro congresso sobre as cidades-refúgio, organizado pelo Parlamento Internacional de Escritores e realizado no Conselho da Europa, em Estrasburgo.

Em entrevistas, Derrida destaca a presença da política nos seus trabalhos e na sua maneira de compreender a filosofia e o seu ensino (DERRIDA; PAOLETTI, 1999DERRIDA, Jacques; PAOLETTI, Catherine. Sur parole. Instantanés philosophiques. Paris: Éditions de l’Aube, 1999. , p. 23; DERRIDA; FREIRE, 1995DERRIDA, Jacques; FREIRE, Vinicius. O intelectual da discordância. Trad. Vinicius Freire. Folha de São Paulo. Caderno mais!, São Paulo, p. 5-4, dezembro de 1995. Disponível em: Disponível em: http://almanaque.folha.uol.com.br/entrevista_filosofia_derrida.htm . Acesso em: 22 abril 2020.
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, p. 5-4). À revelia da perspectiva hegemônica, Derrida procura incorporar questões que foram marginalizadas ou negadas pela história da filosofia ocidental. Entre suas atividades acadêmicas, Derrida teve papel decisivo na criação do GREPH (Groupe de Recherches sur L’Enseignement Philosophique), em 1974, na organização do États Généraux de la Philosophie, em 1979, e na fundação do Collège International de Philosophie, em 1983. As premissas fundamentais desses projetos eram a abertura da filosofia para novos objetos e o intercâmbio com as disciplinas científicas, literárias e artísticas (DERRIDA, 1990DERRIDA, Jacques. Du droit à la philosophie. Paris: Éditions Galilée, 1990. ).10 10 Na coletânea Le droit à la philosophie, Derrida trata desses três projetos político-educacionais. O título do livro faz alusão a duas questões: quem legitima o discurso filosófico e quem tem direito de estudar e de fazer filosofia (DERRIDA, 1990, p. 10). Ao alinhavar análises cuidadosas de temas complexos da filosofia, da literatura e das artes às questões políticas sobre a cidadania, a nacionalidade, o direito ao asilo, o direito internacional, as instituições internacionais, etc., Derrida não intervém, apenas, como cidadão, mas como intelectual, acadêmico, escritor e filósofo (DERRIDA; FREIRE, 1995DERRIDA, Jacques; FREIRE, Vinicius. O intelectual da discordância. Trad. Vinicius Freire. Folha de São Paulo. Caderno mais!, São Paulo, p. 5-4, dezembro de 1995. Disponível em: Disponível em: http://almanaque.folha.uol.com.br/entrevista_filosofia_derrida.htm . Acesso em: 22 abril 2020.
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, p. 5-4).11 11 Num texto sobre a universidade e o trabalho acadêmico, Derrida relaciona o professar (professer) ao engajamento (engagement); no sentido forte da palavra, professar é dar um testemunho (donner un gage), fazer uma promessa, um juramento, comprometer-se com a verdade (2001, p. 35).

Mesmo reconhecendo a necessidade de ir às ruas, de se engajar com o corpo, com a voz, com os pés e com as mãos, Derrida sustenta que a ação política passa pelo discurso e pelo texto (DERRIDA; PAOLETTI, 1999DERRIDA, Jacques; PAOLETTI, Catherine. Sur parole. Instantanés philosophiques. Paris: Éditions de l’Aube, 1999. , p. 34). As intervenções por meio do ensino e da escrita precisam propor novos pontos de referência, novos contratos e novas interpretações que possam ser identificadas e acolhidas pelos outros (DERRIDA; PAOLETTI, 1999DERRIDA, Jacques; PAOLETTI, Catherine. Sur parole. Instantanés philosophiques. Paris: Éditions de l’Aube, 1999. , p. 50). Como estratégia, Derrida procura “deslocar o código político, falar uma língua política que não seja imediatamente traduzível pelo código dominante” (DERRIDA; FREIRE, 1995DERRIDA, Jacques; FREIRE, Vinicius. O intelectual da discordância. Trad. Vinicius Freire. Folha de São Paulo. Caderno mais!, São Paulo, p. 5-4, dezembro de 1995. Disponível em: Disponível em: http://almanaque.folha.uol.com.br/entrevista_filosofia_derrida.htm . Acesso em: 22 abril 2020.
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, p. 5-4). Trata-se de politizar outras áreas do discurso, trabalhando com a articulação de temas, questões e conceitos aparentemente estranhos à reflexão política. Essa forma de engajamento visa a responder às urgências políticas que, por vezes, figuram como urgências do acontecimento, como momentos propícios para rupturas e transformações, oportunidades para o imprevisto e o inaudito (DERRIDA; PAOLETTI, 1999DERRIDA, Jacques; PAOLETTI, Catherine. Sur parole. Instantanés philosophiques. Paris: Éditions de l’Aube, 1999. , p. 50). Contra certa tradição ontológica e fenomenológica, para a qual tudo se anuncia num horizonte finito ou infinito, Derrida assevera que a ausência de horizonte pode ser uma brecha histórica ao porvir, uma condição para que despontem o acontecimento e a experiência (DERRIDA, 1994DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx. O Estado da dúvida e a nova Internacional. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994., p. 223).

A Shoah em debate

A filosofia e o engajamento de Derrida foram marcados pela catástrofe e pelos horrores da Shoah. Numa entrevista sobre esse tema à filósofa Michal Ben-Naftali, Derrida afirma que a memória consciente ou inconsciente desse acontecimento está presente em toda cultura, em toda sua vida e nos membros da sua geração (DERRIDA; BEN-NAFTALI, 1998DERRIDA, Jacques; BEN-NAFTALI, Michal. An Interview with professor Jacques Derrida. Trad. Moshe Ron. Yad Vashem - The World Holocaust Remembrance Center, Jerusalem, p. 1-12, 1998. Disponível em: Disponível em: https://www.yadvashem.org/odot_pdf/Microsoft%20Word%20-%203851.pdf . Acesso em: 14 abril 2020.
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, p. 1-2). Para o filósofo, o Holocausto pode ser compreendido como “uma tentativa de apagar os nomes, de apagar os nomes próprios, não apenas de levar pessoas à morte, mas de destruir o arquivo” (DERRIDA; BEN-NAFTALI, 1998DERRIDA, Jacques; BEN-NAFTALI, Michal. An Interview with professor Jacques Derrida. Trad. Moshe Ron. Yad Vashem - The World Holocaust Remembrance Center, Jerusalem, p. 1-12, 1998. Disponível em: Disponível em: https://www.yadvashem.org/odot_pdf/Microsoft%20Word%20-%203851.pdf . Acesso em: 14 abril 2020.
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, p. 10; DERRIDA, 2007DERRIDA, Jacques. Força de lei. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007., p. 140). O antissemitismo provocou-lhe traumas pessoais. No início dos anos quarenta, residindo na Argélia com sua família, Derrida foi banido da escola primária por ter origem judaica:

É outubro de 1942, pouco tempo antes do desembarque dos Aliados na África do Norte, quando as leis do numerus clausus foram aplicadas no meu liceu. Elas já tinham sido aplicadas anteriormente, minha irmã e meu irmão tinham sido expulsos da escola. Por alguma razão que eu ignoro, concederam-me um ano a mais, mas no primeiro dia do reinício das aulas no liceu Ben Aknoun, o supervisor geral me chamou no seu escritório e me disse: “Você vai voltar para casa, seus pais lhe explicarão” (DERRIDA; PAOLETTI, 1999DERRIDA, Jacques; PAOLETTI, Catherine. Sur parole. Instantanés philosophiques. Paris: Éditions de l’Aube, 1999. , p. 13).12 12 O regime de Vichy recrudesceu as leis antissemitas, especialmente nas colônias francesas. Entre as medidas restritivas estava a ampliação do numerus clausus, o número limite de judeus que poderiam frequentar as escolas, que passou de 14 para 7 por cento dos estudantes (OFRAT, 2001, p. 11).

Nesse período, Derrida tinha, apenas, doze anos de idade. Seus pais não lhe explicaram o motivo da expulsão, como também não explicaram os insultos, as injúrias, as ameaças e os tabefes que o filho recebeu de outros meninos que o chamavam de “judeu sujo”. Suas recordações da infância estão permeadas por silêncios, prantos, gritos, risos sarcásticos, desamparo e um sofrimento extremo:

Com frequência, tento me lembrar, além dos fatos documentados e das marcas subjetivas, o que eu podia pensar, sentir, sofrer (ressentir) naquele momento, mas essas tentativas normalmente fracassam. Por isso reconstruo. Sempre reconstruímos. Nesse caso, porém, muitas vezes a reconstrução torna-se abstrata. (DERRIDA; PAOLETTI, 1999DERRIDA, Jacques; PAOLETTI, Catherine. Sur parole. Instantanés philosophiques. Paris: Éditions de l’Aube, 1999. , p. 13). 13 13 No ensaio “Fé e saber”, Derrida engendra a expressão “mal de abstração”, referindo-se à possibilidade de uma abstração radical, de uma extração radical e de um desenraizamento provocado por essa abstração (DERRIDA, 2000, p. 12).

Essa experiência traumática provoca duas reações: por um lado, Derrida deseja ser aceito novamente pelos companheiros, por suas famílias e pelas pessoas não judias da redondeza; por outro lado, ele deseja romper com o impulso gregário despertado nele como forma de defesa às agressões (DERRIDA; PAOLETTI, 1999DERRIDA, Jacques; PAOLETTI, Catherine. Sur parole. Instantanés philosophiques. Paris: Éditions de l’Aube, 1999. , p. 15). Após a expulsão da escola, sua família o inscreve no Maimônides, para onde migram alunos e professores judeus excluídos dos outros liceus, “juntaram-se para fundar um lugar de ensino destinado a todos aqueles párias” (DERRIDA; ROUDINESCO, 2004DERRIDA, Jacques; ROUDINESCO, Elisabeth. De que amanhã... Diálogo. Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004. , p. 135). O menino gazeteou por quase um ano até aceitar frequentar assiduamente o novo liceu: “não suportava o aprisionamento nessa comunidade, por conseguinte, ocorreu em mim uma ruptura afetiva profunda” (DERRIDA; PAOLETTI, 1999DERRIDA, Jacques; PAOLETTI, Catherine. Sur parole. Instantanés philosophiques. Paris: Éditions de l’Aube, 1999. , p. 15). Entre os traços dessa experiência, Derrida admite ter se tornado incapaz de desfrutar de qualquer forma de pertencimento comunitário (DERRIDA; ROUDINESCO, 2004DERRIDA, Jacques; ROUDINESCO, Elisabeth. De que amanhã... Diálogo. Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004. , p. 135). No entanto, esse trauma também teve efeitos sociais e políticos, transformando-o numa pessoa “vulnerável e hipersensível a toda manifestação de antissemitismo e de racismo” (DERRIDA; PAOLETTI, 1999DERRIDA, Jacques; PAOLETTI, Catherine. Sur parole. Instantanés philosophiques. Paris: Éditions de l’Aube, 1999. , p. 15).

A entrevista à filósofa Michal Ben-Naftali ocorre em Jerusalém, quando da visita que Derrida fez ao Yad Vashem - The World Holocaust Remembrance Center, em janeiro de 1998DERRIDA, Jacques; BEN-NAFTALI, Michal. An Interview with professor Jacques Derrida. Trad. Moshe Ron. Yad Vashem - The World Holocaust Remembrance Center, Jerusalem, p. 1-12, 1998. Disponível em: Disponível em: https://www.yadvashem.org/odot_pdf/Microsoft%20Word%20-%203851.pdf . Acesso em: 14 abril 2020.
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. Nessa oportunidade, o filósofo discute as implicações políticas dos conceitos de memória, arquivo e testemunho. Segundo Derrida, mesmo os registros físicos preservados em Auschwitz - as toneladas de cabelos, sapatos e óculos das centenas de milhares de vítimas - passam a ser questionados pelos revisionistas sob a alegação de que aquilo tudo foi construído, que não prova nada. Até mesmo a veracidade dos testemunhos pode ser questionada. De todo modo, argumenta o filósofo, a preservação dos registros da Shoah é fundamental:

Quando um arquivo como Yad Vashem é criado e mantido, um ato de piedade e memória é realizado para impedir que aquilo seja apagado. Mas, ao mesmo tempo, o que é ambíguo e horrível; de alguma maneira, o próprio ato de arquivar contribui para classificação, relativização e esquecimento. (...) Por ser mantido, consignado à exterioridade de arquivos, porque está aqui entre paredes, tudo foi gravado, um CD Rom foi feito, os nomes estão em placas, porque está mantido assim, bem, pode ser perdido, pode ser esquecido (DERRIDA; BEN-NAFTALI, 1998DERRIDA, Jacques; BEN-NAFTALI, Michal. An Interview with professor Jacques Derrida. Trad. Moshe Ron. Yad Vashem - The World Holocaust Remembrance Center, Jerusalem, p. 1-12, 1998. Disponível em: Disponível em: https://www.yadvashem.org/odot_pdf/Microsoft%20Word%20-%203851.pdf . Acesso em: 14 abril 2020.
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, p. 11).

O revisionismo e o negacionismo retornam ao debate acadêmico francês no início dos anos 1980, especialmente com a publicação dos artigos de Robert Faurrison, professor de literatura em Lyon, que pretendia denunciar o “boato” de Auschwitz (DERRIDA; ROUDINESCO, 2004DERRIDA, Jacques; WEBER, Elisabeth. A testimony given... In: WEBER, Elisabeth. Questioning judaism: Interviews by Elisabeth Weber. Trad. Rachel Bowlby. Stanford: Stanford University Press, 2004, p. 39-58., p. 158). Prontamente, o historiador e helenista Pierre Vidal-Naquet publica uma série de artigos contra os argumentos de Faurrison, textos que foram reunidos na coletânea Les Assassins de la mémóire. O título desse livro foi pego de empréstimo da conferência “Réflexions sur l’oubli”YERUSHALMI, Yosef. Réflexions sur l’oubli. In: YERUSHALMI, Yosef (org.) Usages de l’oubli. Paris: Éditions du Seuil, 1988, p. 7-22., do historiador da cultura judaica Yosef Yerushalmi, publicada na coletânea Usages de l’oubli. Em 1983, o filósofo François Lyotard entra nesse debate com a publicação do livro Le Différend (DERRIDA, 2005DERRIDA, Jacques. Poétique et politique du témoignage. Paris: Éditions de L’Herne, 2005., p. 26). Lançado em 1985, o filme Shoah, do editor, jornalista e cineasta Claude Lanzmann, também contribui para esse debate, contando a história de Auschwitz a partir dos testemunhos de inúmeros ex-prisioneiros (DERRIDA; DE BAECQUE; JOUSSE, 2001DERRIDA, Jacques; DE BAECQUE, Antoine; JOUSSE, Thierry. Entretien avec Jacques Derrida: le cinema et ses fantômes. Cahiers du Cinéma, Paris, n. 556, p. 75-85, abril 2001., p. 80).

Esse debate, provocado pelos revisionistas e pelos negacionistas, desperta duas grandes preocupações em Derrida: a de que arquivos e testemunhos sejam insuficientes para manter viva a memória da Shoah e a de que “a sociedade francesa permanece receptiva ao retorno dos velhos demônios” (DERRIDA; ROUDINESCO, 2004DERRIDA, Jacques; WEBER, Elisabeth. A testimony given... In: WEBER, Elisabeth. Questioning judaism: Interviews by Elisabeth Weber. Trad. Rachel Bowlby. Stanford: Stanford University Press, 2004, p. 39-58., p. 134). Em entrevista concedida à filósofa Elisabeth Weber sobre o judaísmo, Derrida sustenta que esse debate não será vencido e encerrado com provas documentais ou testemunhais (DERRIDA; WEBER, 2004DERRIDA, Jacques; WEBER, Elisabeth. A testimony given... In: WEBER, Elisabeth. Questioning judaism: Interviews by Elisabeth Weber. Trad. Rachel Bowlby. Stanford: Stanford University Press, 2004, p. 39-58., p. 52). Os revisionistas, os negacionistas e seus simpatizantes são motivados por convicções políticas. A batalha não pode girar, apenas, em torno de números, relatos de vítimas, etc. A batalha deve implicar a palavra e o compromisso de se contrapor à barbárie. Para enfrentar essa questão, Derrida promove uma reflexão filosófica sobre os conceitos de memória, arquivo e testemunho.

Os conceitos de memória, arquivo e testemunho

Os conceitos de memória, arquivo e testemunho estão presentes em muitos trabalhos de Derrida. Em duas conferências proferidas em meados dos anos 90, a abordagem que o filósofo oferece desses conceitos está diretamente relacionada ao debate com revisionistas e negacionistas: “Mal d’Archive”, realizada em 5 de junho de 1994, no Freud Museum, em Londres, e “Demeure. Fiction et témoignage”, realizada em 24 de julho de 1995, na Université Catholique de Louvain, na Bélgica.14 14 Esses dois textos possuem traduções para o português: Mal de arquivo: uma impressão freudiana, publicado em 2001, pela Relume Dumará, e Demorar: Maurice Blanchot, publicado em 2015, pela Editora da Universidade Federal de Santa Catarina. O conceito de testemunho volta a ser o objeto central de suas reflexões no texto “Poétique et politique du témoignage” (2005DERRIDA, Jacques. Poétique et politique du témoignage. Paris: Éditions de L’Herne, 2005.), produzido para uma coletânea em homenagem ao crítico literário Murray Krieger.15 15 Esse texto foi originalmente publicado em inglês, a partir da tradução de Rachel Bowlby, com o título “‘A Self-Unsealing Poetic Text’: Poetics and Politics of Witnessing”, no livro Revenge of the Aesthetic, editado por Michael Clark.

Numa nota de rodapé para a publicação da conferência sobre o mal de arquivo, Derrida destaca que sua fala se orientará, permanentemente, pela questão da política do arquivo (1995DERRIDA, Jacques. Mal d’Archive: une impression freudienne. Paris: Éditions Galilée , 1995. , p. 15). Para o filósofo, essa é uma questão que atravessa a totalidade do campo da política, entendida como res publica: “Nenhum poder político sem controle do arquivo, senão, da memória. A democratização efetiva se mede sempre por este critério essencial: a participação e o acesso ao arquivo, à sua constituição e à sua interpretação.” (1995DERRIDA, Jacques. Mal d’Archive: une impression freudienne. Paris: Éditions Galilée , 1995. , p. 15).

No início da conferência, Derrida aponta para o fato de que sua comunicação ocorre no lugar que foi o domicílio de Freud, portanto, num espaço institucional privado, posteriormente transformado num espaço institucional público. No parágrafo anterior, o filósofo lembra que a palavra arquivo remete ao termo grego arkheion, que significa: casa, domicílio ou residência dos magistrados superiores, os arcontes, aqueles que no mundo antigo detinham o poder de criar e de representar a lei (DERRIDA, 1995DERRIDA, Jacques. Mal d’Archive: une impression freudienne. Paris: Éditions Galilée , 1995. , p. 13). Além disso, os arcontes faziam a segurança física desses arquivos jurídicos e eram os responsáveis por sua interpretação. Para Derrida, por ter interrogado os limites entre o público e o privado, as relações entre o secreto e o não-secreto, os direitos de publicação e de reprodução e a institucionalização do poder de arquivamento e de consignação, Freud e a psicanálise dialogam diretamente com esse tema.

Uma ciência do arquivo deve incluir a teoria desta institucionalização, isto é, ao mesmo tempo, da lei que aí se inscreve e do direito que a autoriza. Este direito impõe ou supõe um conjunto de limites que têm uma história, uma história desconstrutível e a cuja desconstrução a psicanálise não ficou alheia, para dizer o menos (1995DERRIDA, Jacques. Mal d’Archive: une impression freudienne. Paris: Éditions Galilée , 1995. , p. 16).

Pelas análises de Joel Birman, o objetivo de Derrida é operar uma desconstrução da versão clássica de arquivo, segundo a qual ele seria “o reflexo do que ocorreu de fato na experiência histórica” (2008BIRMAN, Joel. Arquivo e mal de arquivo: uma leitura de Derrida sobre Freud. Natureza Humana, v. 10, n. 1, p. 105-108, 2008., p. 109). Nessa versão, difundida por muitos historiadores e filósofos, o arquivo seria um monumento da tradição, cuja pretensa objetividade estaria suportada pela materialidade dos registros do passado.

Ainda acompanhando a etimologia, Derrida ressalta que a palavra arquivo também nos remete ao termo grego arkhé, que significa, ao mesmo tempo, começo e comando (1995DERRIDA, Jacques. Mal d’Archive: une impression freudienne. Paris: Éditions Galilée , 1995. , p. 12). A arkhé coordena dois princípios: o natural, histórico ou ontológico, responsável por indicar onde as coisas começam, e o nomológico, responsável por indicar os deuses e homens que teriam a autoridade para comandar. Esse é um dos pontos centrais da desconstrução proposta por Derrida. O arquivo nunca é, apenas, reflexo do que ocorreu de fato. O poder de consignação implica nas decisões políticas daqueles que têm autoridade para isso. Aqueles que decidem qual será o conteúdo arquivável determinam os elementos do passado que poderão ser retomados no futuro (1995DERRIDA, Jacques. Mal d’Archive: une impression freudienne. Paris: Éditions Galilée , 1995. , p. 34). Os exercícios de memória e de narrativa, comuns no trabalho psicanalítico, trazem à tona um tipo semelhante de poder:

Quando falo do meu passado, voluntariamente ou não, seleciono, inscrevo e excluo. Conservo e confisco. Não creio que existam apenas arquivos conservadores, é isso o que procuro destacar num pequeno livro, Mal de arquivo. O arquivo é uma violenta iniciativa de autoridade, de poder, é uma tomada de poder para o futuro, pois pre-ocupa o futuro; confisca o passado, o presente e o futuro. Sabemos muito bem que não existem arquivos inocentes (DERRIDA; DE BAECQUE; JOUSSE, 2001DERRIDA, Jacques; DE BAECQUE, Antoine; JOUSSE, Thierry. Entretien avec Jacques Derrida: le cinema et ses fantômes. Cahiers du Cinéma, Paris, n. 556, p. 75-85, abril 2001., p. 85).

Na interpretação de Derrida, a principal contribuição de Freud na desconstrução da versão clássica de arquivo está atrelada à formulação da hipótese da pulsão de morte: faria parte do aparelho psíquico uma pulsão de agressão ou de destruição que leva ao esquecimento, à amnésia ou mesmo à própria aniquilação da memória (1995DERRIDA, Jacques. Mal d’Archive: une impression freudienne. Paris: Éditions Galilée , 1995. , p. 26). Por certo, salienta Derrida, não haveria “desejo de arquivo sem a finitude radical, sem a possibilidade de um esquecimento que não se limita ao recalcamento (refoulement)” (1995DERRIDA, Jacques. Mal d’Archive: une impression freudienne. Paris: Éditions Galilée , 1995. , p. 38). Todavia, especialmente no horizonte dos arquivos consignados em dispositivos técnicos exteriores ao aparelho psíquico (materiais impressos, gravadores, computadores, televisão, internet, etc), o esquecimento provocado pela pulsão de morte não abre a possibilidade de uma renovação.16 16 Nesse ponto, sem deixar explícito no texto, Derrida entra no debate instaurado por Yerushalmi a partir da conferência “Réflexions sur l’oubli”. Em sua fala, o historiador destaca a importância do esquecimento para a saúde psíquica. Todavia, afirma Yerushalmi, vivemos num tempo em que se pratica uma violação brutal da memória e uma distorção deliberada dos testemunhos históricos. Nessas condições, é preciso se contrapor aos agentes do esquecimento (1990, p. 23). No artigo “The need to forget”, publicado em 1988, no Haaretz, o historiador e filósofo Yehuda Elkana sustenta que, para criar o futuro, os judeus precisam arrancar de suas vidas a opressão das lembranças da Shoah ( 2014 ). Esse debate e seus desenlaces são analisados por Márcio Seligmann-Silva ( 2003 ) e por Paolo Rossi ( 2010 ).

Uma vez que o arquivamento implica na iniciativa de uma autoridade que realiza um processo de seleção e exclusão, intencionalmente ou não, essa autoridade confisca outras possibilidades de arquivamento. O arquivo carrega consigo a pulsão de morte, aquilo que Derrida designa como mal de arquivo (1995DERRIDA, Jacques. Mal d’Archive: une impression freudienne. Paris: Éditions Galilée , 1995. , p. 27). O arquivamento introduz, a priori, “o esquecimento e a arquiviolítica no coração do monumento” (1995DERRIDA, Jacques. Mal d’Archive: une impression freudienne. Paris: Éditions Galilée , 1995. , p. 27). Na dinâmica da memória, a pulsão de morte atrela-se ao desejo de arquivamento, mas os dispositivos técnicos e os arquivos não fomentam essa dinâmica:

O arquivo, se essa palavra ou essa figura se estabilizam em alguma significação, não será jamais a memória nem a anamnese em sua experiência espontânea, viva e interior. Muito pelo contrário: o arquivo tem lugar no lugar do desfalecimento (défaillance) originário e estrutural da referida memória (DERRIDA, 1995DERRIDA, Jacques. Mal d’Archive: une impression freudienne. Paris: Éditions Galilée , 1995. , p. 26).

Caso as pessoas continuassem a cultivar a memória, o poder do arquivamento estaria constantemente ameaçado. A cada nova experiência, a memória poderia redefinir nossa relação com os arquivos já consignados ou demandar uma renovação. No entanto, a memória é solapada pela dinâmica da repetição ininterrupta dos mesmos registros estabelecidos pelas autoridades que dominam a política do arquivo:

Se não há arquivo sem consignação em algum lugar exterior que assegure a possibilidade da memorização, da repetição, da reprodução ou da reimpressão, então, lembremo-nos também que a própria repetição, a lógica da repetição, e até mesmo a compulsão à repetição permanece, segundo Freud, indissociável da pulsão de morte. Portanto, da destruição (DERRIDA, 1995DERRIDA, Jacques. Mal d’Archive: une impression freudienne. Paris: Éditions Galilée , 1995. , p. 26).

O controle do arquivamento por parte das autoridades tende a se tornar, outrossim, um controle da memória e do pensamento, ou seja, um controle sobre a reconstrução, a interpretação e a elaboração do passado, do presente e do futuro. De qualquer maneira, essas críticas que Derrida dirige à institucionalização e à consignação do arquivo não implicam no seu abandono. Nessa perspectiva, a partir do movimento de desconstrução, o filósofo procura outras dimensões e possibilidades para o conceito de arquivo e para a prática do arquivamento.

Uma construção ou reconstrução do arquivo é empreendida a partir da leitura que Derrida apresenta de algumas passagens do livro Freud’s Moses, judaism terminable and interminable, de Yosef Yerushalmi. O historiador, que participava do colóquio no Freud Museum, provavelmente estava presente no momento em que Derrida lhe dedica a conferência sobre o mal de arquivo (1995DERRIDA, Jacques. Mal d’Archive: une impression freudienne. Paris: Éditions Galilée , 1995. , p. 41). No fim do seu livro, que Derrida julga ser completamente voltado à memória e ao arquivo (1995DERRIDA, Jacques. Mal d’Archive: une impression freudienne. Paris: Éditions Galilée , 1995. , p. 61), Yerushalmi escreve o “Monólogo com Freud”. Trata-se de uma apóstrofe, uma carta endereçada ao “professor Freud” (YERUSHALMI, 1991YERUSHALMI, Yosef. Freud’s Moses: judaism terminable and interminable. New Haven: Yale University Press, 1991., p. 81). Nessa carta, Yerushalmi pergunta a Freud se a psicanálise é geneticamente ou estruturalmente uma ciência judia.

Segundo Derrida, para além do contexto fictício e teatral do seu monólogo, Yerushalmi aponta para uma messianidade espectral no trabalho de Freud (1985, p. 60). O historiador mantém em suspenso uma questão para alguém que não pode responder. De certo modo, como na esperança da chegada de um Messias absolutamente desconhecido, essa questão atrela o presente ao futuro, “um futuro radicalmente por vir, isto é, indeterminado” (DERRIDA, 1995DERRIDA, Jacques. Mal d’Archive: une impression freudienne. Paris: Éditions Galilée , 1995. , p. 62). Essa concepção de temporalidade, percebe Derrida, foi problematizada por Walter Benjamin, ao sustentar que, para os judeus que mantêm uma fresta da porta aberta para o Messias, o futuro não se torna um tempo homogêneo e vazio (1995DERRIDA, Jacques. Mal d’Archive: une impression freudienne. Paris: Éditions Galilée , 1995. , p. 110).

Essa porta aberta, argumenta Derrida, está presente na reconstrução do arquivo promovida pela historiografia de Yerushalmi. Suas interpretações, esclarecimentos e leituras dos textos de Freud só se tornam possíveis na medida em que o historiador se inscreve em sua obra, e ali ocupa seu lugar de direito. Para tanto, o arquivista precisa encontrar a porta aberta deixada pelo autor:

Incorporando o saber que se desdobra sobre este tema, o arquivo aumenta, engravida, (s’engrosse), ganha em auctoritas. Mas, ao mesmo tempo, perde a autoridade absoluta e meta-textual que poderia almejar. Nunca se poderá objetivá-lo sem resto. O arquivista produz o arquivo, e é por isso que o arquivo não se fecha jamais. Abre-se a partir (depuis) do futuro (1995DERRIDA, Jacques. Mal d’Archive: une impression freudienne. Paris: Éditions Galilée , 1995. , p. 109).

Nessa reconstrução do arquivo, ou melhor, na perspectiva de um arquivo que pode estar sempre em construção, a questão do arquivo não nos remete ao passado, mas à própria questão do futuro, “questão de uma resposta, de uma promessa e de uma responsabilidade para o amanhã” (1995DERRIDA, Jacques. Mal d’Archive: une impression freudienne. Paris: Éditions Galilée , 1995. , p. 60). Ao contrário do arquivo que instiga ou impõe sua repetição, esse arquivo convida à participação autoral.

As reflexões de Derrida sobre o testemunho percorrem um caminho semelhante. Na conferência “Demeure. Fiction et témoignage”, apresentada um ano após “Mal d’Archive”, o filósofo também procura a porta aberta numa obra de ficção, nesse caso, o conto L’Instant de ma mortBLANCHOT, Maurice. O instante da minha morte. Trad. Fernanda Bernardo. Porto: Campo das Letras, 2003. , de Maurice Blanchot.

Num de seus primeiros comentários sobre o texto, Derrida indaga se essa seria uma ficção ou um testemunho verídico de uma experiência autobiográfica (1998DERRIDA, Jacques. Demeure, Maurice Blanchot. Paris: Éditions Galilée, 1998. , p. 25). A narrativa de Blanchot discorre sobre um episódio inusitado, às vésperas do término da segunda guerra mundial: o instante do fuzilamento de um jovem por militares do exército russo. No último momento, por causa da condição social abastada desse jovem, o fuzilamento acaba não ocorrendo. Algumas páginas depois, Derrida cita uma carta que recebeu de Blanchot, na qual o escritor confidencia: “Há cinquenta anos, conheci a felicidade de quase ser fuzilado” (1998DERRIDA, Jacques. Demeure, Maurice Blanchot. Paris: Éditions Galilée, 1998. , p. 64). Ao indagar sobre a veracidade do conto, Derrida coloca em questão a necessidade de um testemunho ser verídico. Por outro lado, essa indagação sugere que nem sempre podemos saber se elementos ficcionais fazem parte de um testemunho aparentemente verídico.

Nessa conferência, como também no texto “Poétique et politique du témoignage”, Derrida analisa alguns versos de Paul Celan, uma testemunha da barbárie nos campos de concentração nazistas. Para Derrida, nada impede que a poesia preste testemunho (2005DERRIDA, Jacques. Poétique et politique du témoignage. Paris: Éditions de L’Herne, 2005., p. 58). Em suas análises da Shoah, de Lanzmann, Derrida defende que a força desse filme-testemunho, “antes de ser histórica, política ou arquivística, é essencialmente cinematográfica” (DERRIDA; DE BAECQUE; JOUSSE, 2001DERRIDA, Jacques; DE BAECQUE, Antoine; JOUSSE, Thierry. Entretien avec Jacques Derrida: le cinema et ses fantômes. Cahiers du Cinéma, Paris, n. 556, p. 75-85, abril 2001., p. 81). A imaginação e a ficção não diminuem a relevância do testemunho. Assim como nos casos da memória e do arquivo, o importante é que o testemunho tenha portas abertas.

Considerações finais

Como outros grandes intelectuais da sua geração, Jacques Derrida construiu um percurso acadêmico marcado pelo intenso engajamento e militância. Seus seminários, conferências, textos e intervenções em vários lugares do mundo refletem os debates dos quais participou. Um dos temas de maior destaque em seus trabalhos foi a preservação e o cultivo da memória dos horrores da Shoah. Nos anos 80 e 90, esse tema volta à tona com a discussão promovida por revisionistas e negacionistas, bem como com a ascensão dos ultraconservadores na França e em outros países. Esses fatos provocam no filósofo o temor sobre a possibilidade do surgimento de novas correntes antissemitas e de novas manifestações de racismo e de violência civil e estatal. Em conferências e textos relacionados à memória, ao arquivo e ao testemunho, Derrida evoca a necessidade de pensarmos e fazermos um presente aberto ao porvir, uma temporalidade absolutamente diversa daquela propagada pelos algozes da humanidade.

Referências

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  • DERRIDA, Jacques. Força de lei Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007.
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  • 1
    Em Donner la mort, publicado em 1999DERRIDA, Jacques; PAOLETTI, Catherine. Sur parole. Instantanés philosophiques. Paris: Éditions de l’Aube, 1999. , Derrida discute os trabalhos de Jan Patočka, filósofo tcheco torturado e assassinado em 1977.
  • 2
    Em 1981-1982, o seminário de Derrida na ENS tratava de Descartes. Em 1983, Derrida publica o ensaio “La langue et le discours de la méthode”, no livro Recherches sur la philosophie du langage.
  • 3
    No ensaio “Le dernier mot du racisme”, de 1983, Derrida investiga o apartheid. Em “Admiration de Nelson Mandela, ou les lois de la réflexion”, de 1986, Derrida analisa as posições políticas de Mandela. Esses textos foram republicados em 1987, nos volumes do livro Psyché.
  • 4
    Essa conferência foi publicada em 2002, no livro Acts of religion.
  • 5
    Em Le Passage des fronteires, publicado em 1993, Derrida apresenta sua contribuição para o seminário. Com algumas reformulações, esse texto foi republicado em 1998, com o título Apories.
  • 6
    Em “Manquements du droit à la justice”, publicado em 1997, na coletânea Marx en jeu, Derrida retoma o debate sobre os sans-papiers e o direito à hospitalidade.
  • 7
    As conferências que Derrida fez na Rússia foram publicadas em 1995, no livro Moscou aller-retour.
  • 8
    Em maio de 1990, esses escritores realizam, em Turim, o colóquio “L’identité culturelle européenne”. Nesse colóquio, Derrida apresenta a conferência “L’autre cap - mémories, réponses et responsabilités”, publicada em 1991, no livro L’autre cap.
  • 9
    Esse texto foi publicado em 1997, num livro com o mesmo título.
  • 10
    Na coletânea Le droit à la philosophie, Derrida trata desses três projetos político-educacionais. O título do livro faz alusão a duas questões: quem legitima o discurso filosófico e quem tem direito de estudar e de fazer filosofia (DERRIDA, 1990DERRIDA, Jacques. Du droit à la philosophie. Paris: Éditions Galilée, 1990. , p. 10).
  • 11
    Num texto sobre a universidade e o trabalho acadêmico, Derrida relaciona o professar (professer) ao engajamento (engagement); no sentido forte da palavra, professar é dar um testemunho (donner un gage), fazer uma promessa, um juramento, comprometer-se com a verdade (2001DERRIDA, Jacques; DE BAECQUE, Antoine; JOUSSE, Thierry. Entretien avec Jacques Derrida: le cinema et ses fantômes. Cahiers du Cinéma, Paris, n. 556, p. 75-85, abril 2001., p. 35).
  • 12
    O regime de Vichy recrudesceu as leis antissemitas, especialmente nas colônias francesas. Entre as medidas restritivas estava a ampliação do numerus clausus, o número limite de judeus que poderiam frequentar as escolas, que passou de 14 para 7 por cento dos estudantes (OFRAT, 2001OFRAT, Gideon. The Jewish Derrida. Trad. Peretz Kidron. Nova Iorque: Syracuse University Press, 2001., p. 11).
  • 13
    No ensaio “Fé e saber”, Derrida engendra a expressão “mal de abstração”, referindo-se à possibilidade de uma abstração radical, de uma extração radical e de um desenraizamento provocado por essa abstração (DERRIDA, 2000DERRIDA, Jacques. Fé e saber. In: DERRIDA, Jacques; VATTIMO, Gianni (orgs.). A religião. Trad. Guilherme Teixeira. São Paulo: Estação Liberdade, 2000, p. 11-89., p. 12).
  • 14
    Esses dois textos possuem traduções para o português: Mal de arquivo: uma impressão freudiana, publicado em 2001, pela Relume Dumará, e Demorar: Maurice Blanchot, publicado em 2015, pela Editora da Universidade Federal de Santa Catarina.
  • 15
    Esse texto foi originalmente publicado em inglês, a partir da tradução de Rachel Bowlby, com o título “‘A Self-Unsealing Poetic Text’: Poetics and Politics of Witnessing”, no livro Revenge of the Aesthetic, editado por Michael Clark.
  • 16
    Nesse ponto, sem deixar explícito no texto, Derrida entra no debate instaurado por Yerushalmi a partir da conferência “Réflexions sur l’oubli”YERUSHALMI, Yosef. Réflexions sur l’oubli. In: YERUSHALMI, Yosef (org.) Usages de l’oubli. Paris: Éditions du Seuil, 1988, p. 7-22.. Em sua fala, o historiador destaca a importância do esquecimento para a saúde psíquica. Todavia, afirma Yerushalmi, vivemos num tempo em que se pratica uma violação brutal da memória e uma distorção deliberada dos testemunhos históricos. Nessas condições, é preciso se contrapor aos agentes do esquecimento (1990, p. 23). No artigo “The need to forget”, publicado em 1988, no Haaretz, o historiador e filósofo Yehuda Elkana sustenta que, para criar o futuro, os judeus precisam arrancar de suas vidas a opressão das lembranças da Shoah ( 2014 ELKANA, Yehuda. The need to forget. The CEU Weekly, CEU (Central European University), Budapest, 2014. Disponível em: Disponível em: http://ceuweekly.blogspot.com/2014/08/in-memoriam-need-to-forget-by-yehuda.html . Acesso em: 10 maio 2020.
    http://ceuweekly.blogspot.com/2014/08/in...
    ). Esse debate e seus desenlaces são analisados por Márcio Seligmann-Silva ( 2003 SELIGMANN-SILVA, Márcio. Reflexões sobre a memória, a história e o esquecimento. In: SELIGMANN-SILVA, Márcio (org.). História, memória, literatura: o testemunho na era das catástrofes. Campinas: Editora da Unicamp, 2003, p. 59-88. ) e por Paolo Rossi ( 2010 ROSSI, Paulo. O passado, a memória, o esquecimento: seis ensaios da história das ideias. São Paulo: Editora UNESP, 2010. ).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Dez 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    14 Maio 2020
  • Aceito
    31 Jul 2020
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