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Insistir no Eu, destronar o Eu, passar à literatura: movimentos da obra de Hélène Cixous

The Insistence on Dethroning the Self, the Transition Towards Literature: The Movements of Hélène Cixous’s Work

Resumo

Jacques Derrida, ao delinear as paixões de que padece a literatura, formula: “Não há essência nem substância da literatura: a literatura não é, não existe, não se demora na identidade de uma natureza.” Lendo fragmentos extraídos da obra de Hélène Cixous, colocarei à prova essa proposição para pensar se o insistir no Eu, sem conferir uma identidade a ele, o destrona de seus atributos, fazendo dele, como das próprias obras, um “objeto literário não identificável.” Como se “a linguagem fosse escutada pela primeira vez”, tanto o Eu quanto a escrita são figurados através de sobreposições e apagamentos de traços históricos e autobiográficos que fundam um lugar de terror e, ao mesmo tempo, de ressurreição, o que se poderia chamar de passagem à literatura. E não seria esse entrelaçamento entre a linguagem escutada pela primeira vez, evento e realidade psíquica aquilo que Derrida chamou de “hiperrealismo ficcional”?

Palavras-chave:
Hélène Cixous; Jacques Derrida; discurso autobiográfico; discurso ficcional

Abstract

When outlining the passions from which literature suffers, Jacques Derrida said that “There’s no essence nor substance of literature: literature is not, does not exist, does not linger in the identity of a nature”. By reading fragments extracted from Hélène Cixous’s work, I will test this proposition in order to establish if by insisting on the self without giving it an identity, she actually dethrones it, stripping it of its attributes, turning it, like her own works, into an “unidentifiable literary object”. As if “language was heard for the first time”, both the self and the writing are figured through overlaps and obliterations of historical and autobiographical features that establish a place of terror and, at the same time, resurrection, what could be called a transition to literature. And isn’t this intertwining between the language heard for the first time, event and psychic reality what Derrida named as “fictional hyperrealism”?

Keywords:
Hélène Cixous; Jacques Derrida; autobiographical discourse; fictional discourse

Résumé

Jacques Derrida, en décrivant les passions qu’éprouve la littérature, déclare: « Il n’y a pas d’essence ni de substance de la littérature: la littérature n’est pas, elle n'existe pas, elle ne se maintient pas à demeure dans l’identité d’une nature ». Ayant lu des extraits de l’œuvre d’Hélène Cixous, je mettrai donc cette proposition à l’épreuve afin de réfléchir si, l’insistance sur le « moi », sans lui donner une identité, le détrône de ses attributs, l’assimilant, tout comme les œuvres elles-mêmes, à un « objet littéraire non identifié ». Comme si « le langage était entendu pour la première fois », aussi bien le « moi » que l’écriture sont figurés par le chevauchement et l’effacement de traits historiques et autobiographiques qui fondent un lieu de terreur et, en même temps, de résurrection, ce que l’on pourrait appeler de passage à la littérature. Et ce lien entre le langage entendu pour la première fois, événement et réalité psychique, ne serait-il pas ce que Derrida qualifia de « hyperréalisme fictionnel »

Mots-clés:
Hélène Cixous; Jacques Derrida; discours autobiographique; discours fictionnel

Esse desvio, foi ele inspirado por um grande autor dramático inconsciente?

Hélène Cixous. Or: les lettres de mon pèreCIXOUS, Hélène. Or: les lettres de mon père. Paris: Éditions des femmes , 1997.

Tragédia miúda: as moléculas que refabricam o Eu

Comecemos a nossa visita à obra de Hélène Cixous, não pelo seu início cronológico em 1967, mas sim por Or: les lettres de mon père/Or: as cartas de meu pai [1997CIXOUS, Hélène. Or: les lettres de mon père. Paris: Éditions des femmes , 1997.]:

La Choix est un démon fidèle à mon chemin. Chaque fois que je demande à Delos à Eschyle ou à Delphes ou à un livre, il ne faut pas choisir dit Eschyle, car chaque fois c’est le mauvais chois. Le malheur c’est qu’il n’y a pas le choix, dit Eschyle. Il y a le choix mais pas le nôtre dit Dostoïevski. Il y a le choix. Il tombe sur nous. On ne choisit pas, on choisit ne pas, et finalement on est choisi (Cixous, 1997CIXOUS, Hélène & CALLE-GRUBER, Mireille. Hélène Cixous, Rootprints: Memory and Life Writing. London/New York: Routledge, 1997., p. 67).1 1 A Escolha é um demônio fiel em meu caminho. A cada vez que pergunto a Delos a Ésquilo ou a Delfos ou a um livro, não é necessário escolher, me diz Ésquilo, já que a cada vez é a má escolha. O mal é que não há a escolha, diz Ésquilo. Há escolha, mas não a nossa, diz Dostoïevski. Há a escolha. Ela cai sobre nós. Não se escolhe, escolhe-se, não, e finalmente se é escolhido. Salvo indicação, todas as traduções da obra de Hélène Cixous são minhas. A escrita de Cixous tem um modo muito singular de pontuação, como Clarice Lispector diz que a pontuação é a respiração da frase, tentarei manter o ritmo que escuto no original. O próprio Jacques Derrida indica que há um idioma de Cixous na própria língua francesa; tentarei, na medida do possível, manter esse efeito que por ora chamaria de efeito de estrangeiridade. Agradeço a Nathalie Noelle de Carvalho que discutiu comigo os fragmentos citados.

É notável que, nesse fragmento apenas, se sobreponham muitas vozes: a da filha leitora das cartas do pai morto há décadas e que foram guardadas silenciosamente pelo irmão; a da crítica literária que leu Ésquilo e Dostoïevski; a voz daquela que escreve em torno das cartas e o elemento, de fato, complicador, qual seja, a voz daquela que nem mesmo existia no momento em que as cartas foram escritas em 1935, já que a filha de Georges e Ève Cixous, Hélène, nasceu em 5 de junho de 1937. Escutemos a narradora: “[...] la seule difficulté je la rencontre en ce moment-ci, dans le discours autobiographique où je trébuche, entortillée, soucieuse, confuse, boitilleuse une jambe dans la narration, une jambe dans le récit)” (CIXOUS, 1997CIXOUS, Hélène & CALLE-GRUBER, Mireille. Hélène Cixous, Rootprints: Memory and Life Writing. London/New York: Routledge, 1997., p. 81).2 2 “[...] a única dificuldade, eu a encontro, neste momento, no discurso autobiográfico, nele vacilo, embrulhada, preocupada, confusa, tortuosa uma perna na narração, outra na narrativa)”. Essa imagem de Or: les lettres de mon père delineia muito bem o movimento do Eu que, além de ser pronome de referência da primeira pessoa, passa também a ser um lugar de perda de sua própria ancoragem em uma única cena enunciativa, o que já foi tão bem encenado pelo Modernismo de Marcel Proust e de Virginia Woolf, para fazer apenas duas menções. Essa escuta da dificuldade de narração pela própria narrativa já estava, de certo modo, nas primeiras páginas de Em busca do tempo perdido. O narrador-personagem proustiano e a narradora-personagem de Or transitam por quartos que, na narrativa, estariam em tempos e espaços diferentes, mas parecem simultâneos na narração. A narradora de Cixous entra em um desses quartos antes mesmo de seu nascimento, em outro momento da narração, ela recebe o pai que, no plano da história contada, não está mais lá.

Desse modo, são figuradas as colisões temporais e espaciais que se entrelaçam à questão da leitura das cartas e, mais especificamente, das cartas escritas pelo pai morto há muitas décadas. O temor da narradora é de atribuir uma falsa verdade “aos eventos errantes” (cf. CIXOUS, 1997CIXOUS, Hélène & CALLE-GRUBER, Mireille. Hélène Cixous, Rootprints: Memory and Life Writing. London/New York: Routledge, 1997., p. 85).3 3 Até mergulhar na obra de Hélène Cixous, preferia traduzir événement para acontecimento, no entanto esta palavra perde muitas ressonâncias importantes como revê/sonho, Éve, o nome da mãe, e também ever, em inglês, língua em que Cixous leu William Shakespeare e James Joyce. Tais eventos não estão desconectados das cartas que chegam tarde, dos problemas incontornáveis em torno da destinação e do destino; neste momento, gostaria de destacar duas importantes disjunções temporais que tornam ainda mais complexo o endereçamento ao você. Em Or, as cartas do pai, guardadas pelo irmão, chegam décadas depois às mãos da narradora. Esses pequenos eventos engendram cenas de ressurreição, de leitura e de especulação sobre o destino e a contingência. Não há como responder às cartas do pai e nem mesmo saber a quem, de fato, elas foram endereçadas; em outro livro, Hyperrêve/Hipersonho [2006CIXOUS, Hélène. Hyperrêve. Paris: Galilée , 2006.], como veremos adiante, ao saber sobre o sommier que sobreviveu a Walter Benjamin, não é mais possível fazer uma tese sobre ele e substituir a tese que foi escrita sobre James Joyce, e, sobretudo, não é mais possível endereçar a história incrível do sommier ao amigo Jacques Derrida que, segundo Cixous, fez de Fichu uma carta de amor a Benjamin que, por sua vez, não pode respondê-la (a carta). Essa ausência de resposta coloca a linguagem da obra de Cixous no rastro daquilo que Roberto Schwarz formulou lapidarmente sobre a obra de Franz Kafka: “Quando não há resposta, o dizer torna-se puro, prece para quem diz, poesia para quem vê dizer” (SCHWARZ, 1981SCHWARZ, Roberto. “Uma barata é uma barata é uma barata”. In: A sereia e o desconfiado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981, p. 68., p. 68). 4 4 Agradeço a Davi Pimentel que trouxe de volta esse trecho precioso esquecido por mim.

Em Or, a história do pai se entrelaça à História da ascensão do nazismo e de seus efeitos para os judeus na Argélia. Tal entrelaçamento é um procedimento da literatura de Hélène Cixous. Em Hyperrêve, uma história contada por Ève traz de volta um sommier que, comprado pela mãe da narradora em 1938, sobrevive ao seu antigo dono, Walter Benjamin. O sommier de Benjamin vendido a Ève antes da morte do filósofo se entrelaça tanto aos exílios provocados pelo nazismo, quanto à grande cena filosófica que se passa entre a Escola de Frankfurt e a Desconstrução, bem como à relação entre o luto e o sonho, pilares da literatura de Cixous, e da psicanálise. Assim, o nazismo atravessa a história do pai e também de toda a família materna composta de judeus alemães moradores da cidade de Osnabrück, na Alemanha, da qual muitos deles não conseguiram escapar da terrível noite de 9 para 10 de novembro de 1938, a “Noite dos Cristais”.

Em 1938, nuits [2019CIXOUS, Hélène. 1938, nuits. Paris: Galilée , 2019.], Hélène Cixous dará forma à sua imensa dificuldade de compreender a coragem de alguns judeus de permanecerem na Alemanha hitlerista, deixando que a narração enlace uma história e um destino, que lhe concernem, mas que não foram escritos por ela. Já em Gare d’Osnabrück à Jerusalém/Estação de Osnabrück para Jerusalém [2016CIXOUS, Hélène. Gare d’Osnabrück à Jerusalém. Paris: Galilée , 2016], a “paixão de Andreas”, tio-avô de Hélène por parte de mãe, é contada a partir de alusões à tragédia de Lear; em determinado ponto, diz o livro:

- Il y a une tragédie cachée dans la Tragédie dont personne n’a la force de parler. C’est une tragédie naine entrelacée de péches et d’innocences où tous les personnages ont des raproches à faire à tous les personages [...] Qu’il y ait une tragédie cachée dans um pli noirci de la Tragédie, c’est la le tragique. Si je n’écrivais pas, dit le livre, personne ne saurait rien de la véritable Passion d’Andreas

Tout le monde l’enterrerrait sous les dècombres de la mémoire (CIXOUS, 2016CIXOUS, Hélène. Gare d’Osnabrück à Jerusalém. Paris: Galilée , 2016, p. 68).5 5 - Há uma tragédia escondida na Tragédia da qual ninguém tem força de falar. É uma tragédia miúda entrelaçada a pecados e a inocências em que todos os personagens têm reprovações a fazer a todos os outros personagens [...]. Que haja uma tragédia escondida na dobra negra da Tragédia, eis o trágico. Se não escrevo, diz o livro, ninguém irá saber nada da verdadeira Paixão de Andreas. [...] Todo mundo a enterraria sob os escombros.

Retirar essas histórias dos escombros não implica, contudo, extirpar esquecimentos e silêncios. Um pouco mais adiante, ainda na reconstrução narrativa dos destinos que a família materna toma durante a ascensão do nazismo, a narradora indica que todos esses destinos se decidiram pela mistura de História e má escolha, “fermento da tragédia grega”, e alguns desses destinos passaram a um ainda “pior”. Depois dessas palavras, na narrativa, há um corte; o leitor se depara com mais de meia página em branco. Na página seguinte, encontra um desenho de Pierre Alechinsky e, na página que sucede o desenho, em fonte notadamente menor, lê-se:

LA NOTE CHUCHOTE. - Moi, la note, je vais chuchoter ce que H. ne peut pas dire. Alors d’abord Gerda et son mari le pokeriste, qui en outre ne se gênait pas d’avoir un strabisme et d’envoûter sa femme, sont deportiert Gurs-Drancy-Auschwitz. Mais les deux petits enfants sont escamotés par une association clandestine, et gardés en vie dans une association juive. C’est alors qu’a lieu la désassociation: la soeur de Ger. qui habite à New York d’une part adopte le garçon d’autre n’adopte la fille. La fille reste.

- Et pourquoi? Pouquoi? souffle H.

- Elle n’avait pas de place dans son appartement, dit Ève auz grands yeux sereins.

- Um petit appartement, dit Ève aux grands yeux.

Aïe! Aïe! Aïe!

Vouz l’entedez? C’est H. qui tape du pied. Aïe! Aïe! Je me tais! Sors de mon livre! elle crie. Je me dissipe dans le papier. Faites comme si jê n’avais rien chuchoté (CIXOUS, 2016CIXOUS, Hélène. Gare d’Osnabrück à Jerusalém. Paris: Galilée , 2016, p.128).6 6 A NOTA SUSSURRA. - Eu, a nota, vou sussurrar o que H. não pode dizer. Então primeiro Gerda e seu marido o jogador de poker, que não se incomodava de ter um estrabismo e de seduzir sua mulher, foram deportiert para Gurs-Drancy-Auschwitz. Mas as duas crianças foram escamoteadas por uma associação clandestina, e mantidas vivas em uma associação judaica. Foi então que se deu a dissociação: a irmã de Ger. que mora em New York adota o menino, mas não adota a menina. A menina fica. - E por quê? Por quê? suspira H. - Ela não tinha lugar no seu apartamento, diz Ève com grandes olhos serenos. - Não tinha lugar para a menina? grita H. - Um apartamento pequeno, diz Ève com olhos grandes Ai Ai Ai! Vocês ouviram? É H. que se irrita. Ai! Ai! Não está mais aqui quem falou! Saia de meu livro! Ela grita. Eu me dissipo no papel. Façam como se eu não tivesse sussurrado nada. A palavra “deportiert” está em alemão no original sem itálico ou outro indicativo de que não se trata de uma palavra francesa. Mantive isso na tradução para o português.

O fragmento é exemplar: nele, quem fala é a nota em forma de sussurro, já que a narradora está impedida de dizer devido à violência do evento. No entanto, essa violência não diz respeito apenas ao evento histórico, ela diz respeito também ao evento da linguagem. A escrita de Cixous, seu idioma, se compõe na medida em que a narração recebe palavras citadas, recitadas, ressuscitadas, em que se dá a permissão humilde para escrever aquilo que vem da própria língua, do sonho, da literatura, da história e do próprio destino. Não é por acaso que Hélène Cixous se inclui naquilo que observa a respeito do ator e diretor Daniel Mesguich: “Ele cita de todas as maneiras. Sou uma citadora, uma contadora de histórias. Não se pode contar a não ser citando, re-citando, re-situando, ressuscitando, ressuscituando, é o que Daniel faz quando faz teatro”. 7 7 CF. CIXOUS, Hélène, “Débat”. In: Calle-Gruber, Mireille. Hélène Cixous: croisées d’une oeuvre. Paris: Galilée, 2000, p. 457.

A especificidade do fragmento de Gare d’Osnabrück à JerusalémCIXOUS, Hélène. Gare d’Osnabrück à Jerusalém. Paris: Galilée , 2016 citado acima está no seu próprio destaque no corpo do texto e na própria transformação nomeada, isto é, da explicitação da mudança das vozes da narrativa para o sussurro de uma nota. Em um livro anterior, Manhattan: lettres de la préhistoire/Manhattan: cartas-letras da pré-história [2002CIXOUS, Hélène. Manhattan: lettres de la préhistoire. Paris: Galilée, 2002.], há uma montagem de cena e de vozes, nem sempre tão explícita como a que acabo de mostrar na obra de 2016, que cita as tentativas de fabricação do livro que acaba se entretecendo a uma fabricação de si. A cada obra de Cixous, cabe sempre retomar a pergunta sobre de que é feito esse si já que não é do mesmo.

Jacques Derrida toma Manhattan como eixo gravitacional da conferência preparada para receber a obra de Hélène Cixous na Biblioteca Nacional da França e relata que, quase ao final da escrita, foi reler algumas obras de Cixous e o efeito era o de que tinha lido algumas frases pela primeira vez. Delineia-se, assim, um efeito de leitura, além daquele de estrangeiridade, que é bastante importante para este artigo - o efeito de que aquilo que se relê está sendo lido pela primeira vez. Um terceiro efeito impele a uma necessidade de atenção e de operação na microestrutura. Os três efeitos não estão desconectados e dizem de uma dificuldade de resumir, abarcar e generalizar as sutilezas microscópicas da obra de Cixous, pode-se dizer que há um acontecimento que se dá na frase e na palavra. Se Derrida pinça da obra a letra G, retomo essa cena de leitura para pinçar a letra D, em détail/detalhe, destino/destin, deuil/luto, dette/dívida, DS/différance sexuel/diferença sexual. Em Manhattan: lettres de la préhistoire, lemos: “O Detalhe faz a Tragédia. Não é possível Narrativa atroz sem a ínfima falha na muralha que cerca o indizível” (Cixous, 2002CIXOUS, Hélène. Manhattan: lettres de la préhistoire. Paris: Galilée, 2002., p.47). Em seguida, a narradora põe-se a fazer um pequeno inventário de detalhes da sua história e da própria literatura: o lenço de Otelo, um quadro no quarto de Gregor Samsa, a lanterna mágica no quarto de Marcel. Mais adiante, ela diz e nos dá mais pistas:

J’ouvre un livre, la lumière est, la langue commence aussitôt son récit, je me refabrique toujours moi-même avec ces molécules littéraires me disais-je autrefois comme aujourd’hui, Il est six heures du matin sept heures parfois, j’entends le souffle régulier et curieusement fort des livres sur mes étagères (CIXOUS, 2002CIXOUS, Hélène. Manhattan: lettres de la préhistoire. Paris: Galilée, 2002., p. 77).8 8 Abro um livro, a luz se faz, a língua logo começa sua narrativa, me refabrico sempre, eu mesma, com essas moléculas literárias, me digo outra vez como hoje, são seis horas da manhã sete horas talvez, escuto o sopro regular e curiosamente forte dos livros sobre minhas estantes.

Pode-se dizer que essas moléculas literárias não refabricam apenas a narradora, mas também a estrutura narrativa que recebe seu sopro. Se Jacques Derrida pode dizer que há em cada obra uma “gênese da literatura” é porque não só há um enunciado em Manhattan que diz “me refabrico com moléculas literárias”, remetendo ao Eu da narradora, mas também porque tal enunciado remete ao princípio de fabricação do próprio livro e às línguas que falam a narrativa do livro. Refabrica-se, ao mesmo tempo, o Eu e a Literatura, um Eu de Literatura, mas não uma Literatura do eu no sentido estritamente autobiográfico.

Neste ponto preciso, retomo uma formulação de Jacques Derrida sobre H.C. - “Seu hiperrealismo ficcional coloca para a questão dos modos e gêneros os problemas mais assustadores, extraordinários e interessantes” (DERRIDA, 2002DERRIDA, Jacques. H.C. pour la vie, c’est à dire... Paris: Galilée , 2002., p. 30-31) - para tentar desdobrá-la em termos da crítica mais estritamente literária e, assim, pensar esse “hiperrealismo ficcional” a partir da própria colisão e da cisão entre a história e o ato de sua enunciação, entre o tempo da escrita e o tempo da cena que se quer reconstituir, sabendo que o esquecimento, o tempo, e, sobretudo, a própria língua da narrativa transformam todos os elementos, todas as moléculas. É instigante que em Le livre de Promethea/O livro de Promethea [1983CIXOUS, Hélène. Le livre de Promethea. Paris: Gallimard, 1983.], a narradora diga assim:

Je suis, - j’ai été jusqu’ici - un auteur quitoujours s’est efforcée de transformer la realité en fiction, par égal respect pour la realité et pour la fiction, je me suissenti obligée de me garder de toute tentative de répresentation et j’ai toujours voulu tenir l’écriture à quelque distancede la vie même (Du moins c’est ce que j’ai cru vouloir faire - mais je ne peux pas juger du résultat) (CIXOUS, 1983CIXOUS, Hélène. Le livre de Promethea. Paris: Gallimard, 1983.,p. 19).9 9 Sou - fui até aqui - uma autora que sempre se esforçou para transformar a realidade em ficção; por igual respeito pela realidade e pela ficção, me senti obrigada de me guardar de toda tentativa de representação e, por isso, sempre quis manter a escrita a alguma distância da própria vida (pelo menos é o que acreditei fazer - mas não posso julgar o resultado).

Há uma disjunção desenhada que é incontornável e que eu gostaria de situar como hiperrealista. Não posso deixar de pensar que, no último capítulo de seu Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental, intitulado “A meia marrom”AUERBACH, Erich. “A meia marrom”. Em: Mimesis. 2a ed. rev. São Paulo: Perspectiva, 1987., Erich Auerbach ata o “realismo” de Virginia Woolf ao estilo indireto livre como modo de figuração da realidade psíquica. De certo modo, poderíamos traduzir esse procedimento para aquilo que, a partir de Cixous, poderia ser situado, o “hiperrealismo ficcional”, como um modo de choque, de colisão, entre os eventos errantes e o ato de escrita que, nesta obra, é uma espécie de espera que as palavras sejam ressus/citadas. Esse choque entre história e ato de narração acaba por constituir um novo evento que, por recitação, passa à literatura. Não é à toa que Cixous expressa certa paixão pela cena proustiana no pátio de Guermantes. Depois de ter se sentido vencido pelas resistências que o impediam de escrever a sua obra, o narrador da Busca vai a uma festa no Palácio dos Guermantes. Primeiro, no pátio, um tropeção traz de volta a memória involuntária de Veneza; em seguida, instalado na Biblioteca, ele escuta o tilintar da colherzinha na xícara. Esses dois eventos são lidos pelo narrador da Busca e, depois, pela narradora de Hyperrêve, como uma passagem à literatura. É nessa zona choque e de passagem sempre problemática que situaria o “hiperrealismo ficcional” formulado por Derrida, mas essa discussão pormenorizada é matéria para outro ensaio.

Dobra negra da Tragédia: quem são os verdadeiros autores?

Em conversa com Mireille Calle-Gruber, Hélène Cixous indica que a ausência de nomes para muitas de suas personagens é uma espécie de inadequação à categoria de personagem e que, nem por isso, teria cortado todos os laços com o gênero romance, destacando que somente Clarice Lispector teria transposto certo limite em direção à outra zona, ao que Calle-Gruber replica: “É a zona do sublime: onde o romance, à beira do abismo, corre todo risco” (Cixous & Calle-Gruber, 1997CIXOUS, Hélène. Or: les lettres de mon père. Paris: Éditions des femmes , 1997., p.71). Sabemos que esse pôr-se à beira do abismo da gênese, do gênero e do gênio causa terror e resistência, que estão bem delineados em Le livre de Promethea:

Pour l’instant je ne peux pas me dispenser de H. Je n’ai pas encore le courage mental de n’être que Je. [...] L’autobiographie n’existe pas. Mais tant de gens croient que cela existe. Alors je declare ici solennellement: l’autobiographie n’est qu’un genre littéraire. Ce n’est pas um genre vivant. C’est um genre jaloux, décepteur, - je le déteste. Quand je dis “Je”, ce n’est jamais le sujet d’une autobiographie, mon je est libre. Est le sujet de ma folie, de mes alarmes, de mon vertige (CIXOUS, 1983CIXOUS, Hélène. Le livre de Promethea. Paris: Gallimard, 1983., p.27-28).10 10 Por ora não posso me dispensar de H. Não tenho ainda a coragem mental de não ser a não ser Eu. [...] A autobiografia não existe. Mas muitos acreditam que ela existe. Então declaro solenemente aqui: a autobiografia não é mais que um gênero literário. Não é um gênero vivo. É um gênero ciumento, enganoso, - eu o detesto. Quando digo “Eu”, ele não é jamais o sujeito de uma autobiografia, meu eu é livre. É o sujeito de minha loucura, de meus alarmes, de minha vertigem.

Gostaria de pensar um pouco mais detidamente alguns aspectos dessa zona de risco e de resistência em torno do Eu na obra e em torno da obra de Hélène Cixous; isso me permite apontar outras personagens que compõem e mesmo alguns autores que determinam a composição da cena enunciativa.

Nos estudos literários brasileiros, Hélène Cixous é predominantemente conhecida como leitora crítica de Clarice Lispector e de James Joyce. Entretanto, não é somente no Brasil que a obra de Cixous encontra resistência, o que, entre nós, poderia ser atribuído a uma ausência completa de tradução.11 11 Até o momento, temos traduzido no Brasil, em edição bilíngue: CIXOUS, Hélène. A hora de Clarice Lispector. Trad. Raquel Gutierrez. Rio de Janeiro: Exodus, 1999. Nas linhas finais de H.C. pour la vie, c’est à dire [2002DERRIDA, Jacques. H.C. pour la vie, c’est à dire... Paris: Galilée , 2002.], não negando suas próprias resistências, Jacques Derrida aponta para a questão da legitimação da obra de Cixous. Valendo-se de uma terminologia propositadamente mercadológica, ele nos diz que, embora Hélène Cixous seja bem cotada, conhecida e prestigiada na França e no mundo, sua obra ainda não é bem lida e, assim, passa a examinar as razões desse desconhecimento. Além das dificuldades imanentes à obra, Derrida destaca os diversos lugares de atuação de Cixous: a universidade, os estudos de gênero e sexualidade, as letras, o teatro, a política, e diz certeiramente “se isso já seria muito para um homem, é intolerável para uma mulher” (Derrida, 2002DERRIDA, Jacques. H.C. pour la vie, c’est à dire... Paris: Galilée , 2002., p.119). Isso posto, fica claro que é no campo da resistência e mesmo do intolerável - do objeto literário, da língua em seu ponto de estrangeiridade, da política da não-propriedade e da diferença sexual - que se dá o esforço de leitura da obra de Cixous. Não é uma obra que se oferece no tempo da imediaticidade, quer seja no nível da frase, quer seja no contorno total do livro. Seu leitor, constantemente, se vê diante da tarefa de redesenhar para cada obra um palimpsesto com suas camadas literárias, filosóficas, históricas e autobiográficas, mesmo que, no plano do enunciado em uma citação acima, essa última camada tenha sido apontada como detestada pela narradora.

Estou procurando apresentar, neste artigo, o modo através do qual os movimentos do Eu, como narrador e personagem, são sobreposições de moléculas que se roubam da Literatura, da História, da Desconstrução, da Psicanálise, da língua e do silêncio, da memória e do esquecimento. E tal roubo não se passa no plano simplesmente temático ou do enunciado, mas da própria estrutura da enunciação.12 12 Neste ponto, gostaria de remeter o leitor ao ensaio de Jacques Derrida - “A fita de máquina de escrever (Limited Ink II)”. Nele, a partir de Santo Agostinho e de Rosseau, o filósofo articula as cenas do roubo de cada uma das Confissões às questões que, para ele, são indissociáveis da autobiografia, como a referencialidade, a culpa, o perdão. As narradoras menos falam do silêncio do que fazem silêncio, menos dizem do sonho do que roubam a própria estrutura do sonho para a narrativa. Em O riso da medusa [1975CIXOUS, Hélène. La risa de la Medusa: ensayos sobre la escritura. Prólogo y traducción: Ana Mana Moix. Traducción revisada por Myriam Diaz-Diocaretz. Barcelona: Anthropos; Madrid: Comunidad de Madrid. Consejera de Educación. Dirección General de la Mujer; San Juan: Universidad de Puerto Rico, 1995 [1975].], Hélène Cixous apontou a impossibilidade de definição de uma prática feminina da escrita, o que não quer dizer que ela não exista. Sua existência é atravessada tanto por um privilégio da voz, com ênfase no ritmo e no canto, que desregula o andamento linear da escrita, quanto pela indecidibilidade do verbo “voler” que, em francês, significa, intransitivamente, voar, e, transitivamente, roubar. Voz, voo, roubo, seriam os elementos imprescindíveis para a subversão daquilo que, regulado pela posse, estaria fixado no espaço e no tempo de maneira idêntica a si.13 13 Ao entrelaçar indecidibilidade e subversão, não posso deixar de me lembrar do belo livro Voir Hélène em toute femme, em que Barbara Cassin percorre o efeito-Hélène na cultura Ocidental de Homero, passando por Górgias e chegando a Lacan. A pertinência do argumento central de Cassin, segundo o qual “Hélène” é um objeto produzido pelo discurso, sua consistência está inteiramente ligada à linguagem. O real da palavra-Hélène é o efeito que ela produz em sua indecidibilidade - mulher e palavra, fugitiva e prisioneira. Efeito que entrelaça horror e fascínio. Jacques Derrida também se remete ao Elogio de Hélène de Gorgias em H.C. pour la vie, c’est à dire. Pode-se, então, supor que o idêntico a si seria a causa do horror ao eu autobiográfico tradicional atado aos seus predicados, atributos e propriedades.

A estruturação da obra de Hélène Cixous se faz a partir da lei daquilo que se escuta pela primeira vez em sua ressurreição, em sua recitação: o Eu retorna, insiste, mas nunca de modo estável ou idêntico a si, seguindo seu destino de ser, instantaneamente, determinado e indeterminado pelo próprio fluxo das palavras e dos eventos. Talvez seja a partir dessa direção que a narradora de Le détrônement de la mort/O destronamento da morte [2014CIXOUS, Hélène. Le détrônement de la mort: journal du Chapitre Los. Paris: Galilée , 2014.], diga assim: “Direito de vida na morte. A morte? Tão plena de vida, de vidas” (Cixous, 2014CIXOUS, Hélène. Le détrônement de la mort: journal du Chapitre Los. Paris: Galilée , 2014., p.64). Essas palavras permitem entrever que a problemática da morte, na obra de Hélène Cixous, não se dá em torno da consumação de uma perda, mas em torno daquilo que, na morte, depois da morte, permanece vivo. Talvez não houvesse melhor modo de dizer daquilo que constitui a própria cena literária depois da invenção da “memória involuntária” por Proust, isto é, um direito de sobrevida estética das palavras a partir da morte do referente intacto. A reprodução do referente intacto e estático seria a subtração de toda sua complexidade, de suas relações com a memória, com o esquecimento e com a própria leitura interpretativa. O narrador da Busca, depois da experiência e da perda da cena da memória involuntária, escreve que será preciso criar. É difícil traduzir, fazer passar, a cena de ressurreição do passado para a obra literária; para Proust, tornar-se escritor é tornar-se leitor e tradutor do livro inconsciente:

Explorando o inconsciente, procurava, roçava, contornava como um mergulhador em suas sondagens, ninguém me poderia, com regra alguma, facilitar a leitura, consistindo esta num ato criador que não admite suplentes nem colaboradores. [...] O livro de caracteres figurados, não traçados por nós, é o nosso único livro. [...] O que não precisamos deslindar a nossa custa, o que já antes de nós era claro, não nos pertence. [...]. Chegara eu assim à conclusão de que não somos de modo algum livres diante da obra de arte. (Proust, 2004PROUST, Marcel. O tempo recuperado. Tradução: Fernando Py. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004, p. 159-160., pp.159-160).

Tal leitura, tradutória, recriadora, não se faz sem perdas e sem um resto intraduzível. Assim como Derrida sabe que, se há homonímia entre H.C. e H.C., formando um dobra entre sua vida e sua obra, há também uma intraduzibilidade irredutível entre as quatro letras, entre as duas assinaturas, entre a vida e a obra, entre Eu e Eu, entre Eu e Ela.14 14 Propondo-se a pensar os modos de endereçamento entre Derrida e Cixous, ao final de seu ensaio, Anne Bérger diz da insistência de uma escrita “entre dois, que pensa ela em relação ao eu e eu em direção a ela”. (BÉRGER, 2007, p.107.) Por um lado, tanto para Cixous, quanto para o próprio Derrida15 15 Para pensar as relações, em suas proximidades e diferenças decisivas, entre Cixous e Derrida, remeto o leitor a SEGARRA, Marta (ed). L’événement comme écriture: Cixous et Derrida se lisant. Paris: Éditions Campagne Première, 2007. E também a Dawson, M, Hanrahan, M. & Prenowitz, E.. Cixous, Derrida, Psychoanalysis. A Journal of Modern Critical Theory. Edinburgh University Press, volume 36, number 2, July 2013. , o eixo ficcional se assentaria na terra instável, erodida, em que se desdobram, se indeterminam e se diferenciam os pronomes Eu e Ela. O literário e o intraduzível são tanto impedimentos para uma lógica de totalização quanto são possibilidades de devolver à linguagem a sua potência para nomear o horror, a fragilidade, o fascínio e sua desilusão.

No importante Prefácio ao Hélène Cixous ReaderSELLERS, Susan (ed). The Hélène Cixous Reader. With a preface by Hélène Cixous and foreword by Jacques Derrida. London/New York: Routledge , 1996., Cixous desloca a pergunta do “quem eu sou?” para o “quem somos nós?”, ou “quando eu sonho, quem sonha?”. A partir desse deslocamento, o Eu é destronado como ponto de referência exclusivamente narcísico e imaginário para receber camadas, sempre fugitivas e metamorfoseadas, vindas de outras cenas: das cartas do pai, das histórias da mãe, dos passeios com o irmão, das Bibliotecas, daquilo que o passado, o inconsciente e os sonhos escrevem e inscrevem e que, embora veiculado pelo Eu, não funciona a partir de sua lógica da identidade, precisando, a cada novo giro da palavra, reencontrar outros modos de enunciação.

Em Gare d’Osnabrück à JerusalémCIXOUS, Hélène. Gare d’Osnabrück à Jerusalém. Paris: Galilée , 2016, para mencionarmos pelo menos uma ocorrência entre inúmeras e diversas em toda a obra, a narradora se põe a escutar e a dialogar com o próprio livro, com ou sem o uso de travessões que costumam caracterizar um diálogo, mas sempre marcando com a expressão: “diz o livro”, mesmo quando ele, o livro, diz que não dirá o que pensa. O livro e a literatura estão no cerne do problema da formalização das obras que abordei neste artigo, são eles que permitem o desvio dos berros da besta:

J’avais été terrifiée deux fois. Mais je n’avais pas vieilli.

Je n’avais pas poussé des hurlements de bête, je n’avais pas désiré mourir pour interrompre la terreur.

J’avais chaque fois voulu vivre. J’avais ouvert un nouveau livre.

J’ai pris l’avion. Je poussais ma vie devant moi. Je n’ai pas reconnu la copie des fantômes. (Cixous, 2002CIXOUS, Hélène. Manhattan: lettres de la préhistoire. Paris: Galilée, 2002., p.106).16 16 Por duas vezes, estive aterrorizada. Mas não envelheci. Não me deixei guiar pelos berros da besta, não quis morrer para interromper o terror. A cada vez, quis viver. Abri um novo livro. Tomei um avião. Coloquei minha vida diante de mim. Não reconheci a cópia dos fantasmas.

Neste fragmento de Manhattan, o ter estado diante do terror, sem palavras, não é representado através de frases subordinadas, nem de atribuições de sentido. A representação se faz através de quatro sentenças negativas, pela declaração do desejo de viver e por três sentenças com ações bem definidas - abrir, tomar e colocar - responsáveis pelo destino que se encontrou para interromper a ausência completa de forma.

A “dramaturgia da família” em Cixous, assim nomeada por Derrida, não diz respeito apenas aos personagens que possuem relações consanguíneas com a narradora: a própria obra comporta também a grande cena literária e, talvez, psicanalítica, já que Freud, por exemplo, se torna o tio Freud e Hélène a sua sobrinha. Sua dimensão trágica também não deixa de remeter à herança dos Labdácidas. Como efeito da morte do pai, a narradora de Osnabrück se pergunta: “Comment puis-je être la fille de ma mère alors je suis moi-même mon père et la fille de mon père?” (CIXOUS, 1999CIXOUS, Hélène. Osnabrück. Paris: Éditions des femmes ,1999., p. 106).17 17 Como posso ser a filha de minha mãe já que sou eu mesma meu pai e a filha de meu pai? Uma das camadas da tragédia da filiação, nos Labdácidas, se dá pelo fato de Édipo ter se tornado, ao mesmo tempo, filho e marido de Jocasta, pai e irmão de Etéocles, Polinices, Antígone e Ismene. Em Cixous, tal tragédia da filiação se dá na estrutura da frase e na complexidade pronominal. Escutemos aquilo que se encontra destacado no encarte de Revirements: dans l’antartique du coeur/Reviravoltas: na antártica do coração [2011CIXOUS, Hélène. Revirements: dans l’antartique du coeur. Paris: Galilée , 2011.]: “Je criais: ‘je vais me tuer ou tu vas me tuer’, et ça, ce n’était pas dans la pièce que j’avais écrite. Maintenant, je suis dans la pièce que je n’ai pas écrite, et où je suis jouée par les autres personnages, je ne peux pas quitter la pièce, je ne peut pas vouloir la quitter avant le dernier acte” (Cixous, 2011CIXOUS, Hélène. Revirements: dans l’antartique du coeur. Paris: Galilée , 2011., s/n).18 18 Eu estava gritando: ‘eu vou me matar ou você vai me matar’, e isso, isso não estava na peça que eu escrevera. Agora, estou na peça que não escrevi, e onde sou interpretada por outras personagens, não posso deixar a peça, não posso querer deixá-la antes do último ato. [Itálico da autora]

As metamorfoses do Eu, do Você e do Ele em moradas de muitas vozes, de muitos tempos, bem como o trânsito dos pronomes pelas posições de autor, narrador e personagem, acabam por constituir um dos eixos mais complexos da obra de Hélène Cixous. Pode-se dizer que há uma insistência em dizer Eu justamente na cena de seu destronamento pela morte, pelo passado, pelo destino, pelo inconsciente em suas histórias censuradas ou sussurradas, pela literatura. Talvez sejam esses os principais autores dessa obra, através dos quais se inscreve “uma memória adicional na linguagem”. Para Cixous, aprender a viver implicaria aprender a ler a estrutura à qual estamos presos, “o destino no qual caímos”, e reescrevê-la? Finalmente, escutemos o que ela mesma diz no Prefácio ao The Hélène Cixous Reader:

E no mundo como palco ou no palco como mundo, há também os deuses. Nunca houve teatro sem “deuses”, sem forças superiores, que interferem nos nossos negócios ou, pelo menos, como em Shakespeare, riem de nós. [...] Os deuses, porém, são parte de nós. Quem são eles? Eles têm nomes modernos: pulsões, id, leis, ordem e desordem, instância paradoxal, double-bind, etc... “destino” pessoal; em outras palavras, estrutura (CIXOUS, 1996DERRIDA, Jacques. Gêneses, genealogias, gêneros e o gênio. Tradução: Eliane Lisboa. Porto Alegre: Sulina, 2005., p. XIX).

Referências

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  • BERGER, Anne. Appels. In: SEGARRA, Marta (Ed). L’événement comme écriture: Cixous et Derrida se lisant Paris: Éditions CampagnePremière, 2007, p. 107.
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  • CASSIN, Barbara; MATIEU, Maurice. Voir Hélène en toute femme Paris: Institut d’édition Sanofi-Synthélabo, 2000.
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  • CIXOUS, Hélène. Le livre de Promethea Paris: Gallimard, 1983.
  • CIXOUS, Hélène. La risa de la Medusa: ensayos sobre la escritura Prólogo y traducción: Ana Mana Moix. Traducción revisada por Myriam Diaz-Diocaretz. Barcelona: Anthropos; Madrid: Comunidad de Madrid. Consejera de Educación. Dirección General de la Mujer; San Juan: Universidad de Puerto Rico, 1995 [1975].
  • CIXOUS, Hélène. Or: les lettres de mon père Paris: Éditions des femmes , 1997.
  • CIXOUS, Hélène. A hora de Clarice Lispector Tradução: Raquel Gutierrez. Rio de Janeiro: Exodus,1999.
  • CIXOUS, Hélène. Osnabrück Paris: Éditions des femmes ,1999.
  • CIXOUS, Hélène. Manhattan: lettres de la préhistoire Paris: Galilée, 2002.
  • CIXOUS, Hélène. Hyperrêve Paris: Galilée , 2006.
  • CIXOUS, Hélène. Revirements: dans l’antartique du coeur Paris: Galilée , 2011.
  • CIXOUS, Hélène. Le détrônement de la mort: journal du Chapitre Los Paris: Galilée , 2014.
  • CIXOUS, Hélène. Gare d’Osnabrück à Jerusalém Paris: Galilée , 2016
  • CIXOUS, Hélène. 1938, nuits Paris: Galilée , 2019.
  • CIXOUS, Hélène & CALLE-GRUBER, Mireille. Hélène Cixous, Rootprints: Memory and Life Writing London/New York: Routledge, 1997.
  • DERRIDA, Jacques. H.C. pour la vie, c’est à dire... Paris: Galilée , 2002.
  • DERRIDA, Jacques. “A fita de máquina de escrever (Limited Ink II)”. Em: Papel-máquina Tradução: Evando Nascimento. Revisão técnica: Anamaria Skinner. São Paulo: Estação Liberdade, 2004.
  • DERRIDA, Jacques. Gêneses, genealogias, gêneros e o gênio Tradução: Eliane Lisboa. Porto Alegre: Sulina, 2005.
  • DAWSON, M, Hanrahan, M.; PRENOWITZ, E. Cixous, Derrida, Psychoanalysis. Em: A Journal of Modern Critical Theory Edinburgh University Press, volume 36, number 2, July 2013.
  • PROUST, Marcel. O tempo recuperado Tradução: Fernando Py. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004, p. 159-160.
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  • SEGARRA, Marta (ed). L’événement comme écriture: Cixous et Derrida se lisant Paris: Éditions CampagnePremière , 2007.
  • SELLERS, Susan (ed). The Hélène Cixous Reader With a preface by Hélène Cixous and foreword by Jacques Derrida. London/New York: Routledge , 1996.
  • 1
    A Escolha é um demônio fiel em meu caminho. A cada vez que pergunto a Delos a Ésquilo ou a Delfos ou a um livro, não é necessário escolher, me diz Ésquilo, já que a cada vez é a má escolha. O mal é que não há a escolha, diz Ésquilo. Há escolha, mas não a nossa, diz Dostoïevski. Há a escolha. Ela cai sobre nós. Não se escolhe, escolhe-se, não, e finalmente se é escolhido. Salvo indicação, todas as traduções da obra de Hélène Cixous são minhas. A escrita de Cixous tem um modo muito singular de pontuação, como Clarice Lispector diz que a pontuação é a respiração da frase, tentarei manter o ritmo que escuto no original. O próprio Jacques Derrida indica que há um idioma de Cixous na própria língua francesa; tentarei, na medida do possível, manter esse efeito que por ora chamaria de efeito de estrangeiridade. Agradeço a Nathalie Noelle de Carvalho que discutiu comigo os fragmentos citados.
  • 2
    “[...] a única dificuldade, eu a encontro, neste momento, no discurso autobiográfico, nele vacilo, embrulhada, preocupada, confusa, tortuosa uma perna na narração, outra na narrativa)”.
  • 3
    Até mergulhar na obra de Hélène Cixous, preferia traduzir événement para acontecimento, no entanto esta palavra perde muitas ressonâncias importantes como revê/sonho, Éve, o nome da mãe, e também ever, em inglês, língua em que Cixous leu William Shakespeare e James Joyce.
  • 4
    Agradeço a Davi Pimentel que trouxe de volta esse trecho precioso esquecido por mim.
  • 5
    - Há uma tragédia escondida na Tragédia da qual ninguém tem força de falar. É uma tragédia miúda entrelaçada a pecados e a inocências em que todos os personagens têm reprovações a fazer a todos os outros personagens [...]. Que haja uma tragédia escondida na dobra negra da Tragédia, eis o trágico. Se não escrevo, diz o livro, ninguém irá saber nada da verdadeira Paixão de Andreas. [...] Todo mundo a enterraria sob os escombros.
  • 6
    A NOTA SUSSURRA. - Eu, a nota, vou sussurrar o que H. não pode dizer. Então primeiro Gerda e seu marido o jogador de poker, que não se incomodava de ter um estrabismo e de seduzir sua mulher, foram deportiert para Gurs-Drancy-Auschwitz. Mas as duas crianças foram escamoteadas por uma associação clandestina, e mantidas vivas em uma associação judaica. Foi então que se deu a dissociação: a irmã de Ger. que mora em New York adota o menino, mas não adota a menina. A menina fica. - E por quê? Por quê? suspira H. - Ela não tinha lugar no seu apartamento, diz Ève com grandes olhos serenos. - Não tinha lugar para a menina? grita H. - Um apartamento pequeno, diz Ève com olhos grandes Ai Ai Ai! Vocês ouviram? É H. que se irrita. Ai! Ai! Não está mais aqui quem falou! Saia de meu livro! Ela grita. Eu me dissipo no papel. Façam como se eu não tivesse sussurrado nada. A palavra “deportiert” está em alemão no original sem itálico ou outro indicativo de que não se trata de uma palavra francesa. Mantive isso na tradução para o português.
  • 7
    CF. CIXOUS, Hélène, “Débat”. In: Calle-Gruber, Mireille. Hélène Cixous: croisées d’une oeuvre. Paris: Galilée, 2000CALLE-GRUBER, Mireille. Hélène Cixous: croisées d’une oeuvre. Paris: Galilée, 2000, p. 453-466., p. 457.
  • 8
    Abro um livro, a luz se faz, a língua logo começa sua narrativa, me refabrico sempre, eu mesma, com essas moléculas literárias, me digo outra vez como hoje, são seis horas da manhã sete horas talvez, escuto o sopro regular e curiosamente forte dos livros sobre minhas estantes.
  • 9
    Sou - fui até aqui - uma autora que sempre se esforçou para transformar a realidade em ficção; por igual respeito pela realidade e pela ficção, me senti obrigada de me guardar de toda tentativa de representação e, por isso, sempre quis manter a escrita a alguma distância da própria vida (pelo menos é o que acreditei fazer - mas não posso julgar o resultado).
  • 10
    Por ora não posso me dispensar de H. Não tenho ainda a coragem mental de não ser a não ser Eu. [...] A autobiografia não existe. Mas muitos acreditam que ela existe. Então declaro solenemente aqui: a autobiografia não é mais que um gênero literário. Não é um gênero vivo. É um gênero ciumento, enganoso, - eu o detesto. Quando digo “Eu”, ele não é jamais o sujeito de uma autobiografia, meu eu é livre. É o sujeito de minha loucura, de meus alarmes, de minha vertigem.
  • 11
    Até o momento, temos traduzido no Brasil, em edição bilíngue: CIXOUS, Hélène. A hora de Clarice Lispector. Trad. Raquel Gutierrez. Rio de Janeiro: Exodus, 1999CIXOUS, Hélène. A hora de Clarice Lispector. Tradução: Raquel Gutierrez. Rio de Janeiro: Exodus,1999..
  • 12
    Neste ponto, gostaria de remeter o leitor ao ensaio de Jacques Derrida - “A fita de máquina de escrever (Limited Ink IIDERRIDA, Jacques. “A fita de máquina de escrever (Limited Ink II)”. Em: Papel-máquina. Tradução: Evando Nascimento. Revisão técnica: Anamaria Skinner. São Paulo: Estação Liberdade, 2004.)”. Nele, a partir de Santo Agostinho e de Rosseau, o filósofo articula as cenas do roubo de cada uma das Confissões às questões que, para ele, são indissociáveis da autobiografia, como a referencialidade, a culpa, o perdão.
  • 13
    Ao entrelaçar indecidibilidade e subversão, não posso deixar de me lembrar do belo livro Voir Hélène em toute femmeCASSIN, Barbara; MATIEU, Maurice. Voir Hélène en toute femme. Paris: Institut d’édition Sanofi-Synthélabo, 2000., em que Barbara Cassin percorre o efeito-Hélène na cultura Ocidental de Homero, passando por Górgias e chegando a Lacan. A pertinência do argumento central de Cassin, segundo o qual “Hélène” é um objeto produzido pelo discurso, sua consistência está inteiramente ligada à linguagem. O real da palavra-Hélène é o efeito que ela produz em sua indecidibilidade - mulher e palavra, fugitiva e prisioneira. Efeito que entrelaça horror e fascínio. Jacques Derrida também se remete ao Elogio de Hélène de Gorgias em H.C. pour la vie, c’est à dire.
  • 14
    Propondo-se a pensar os modos de endereçamento entre Derrida e CixousCIXOUS, Hélène. Dedans. Paris: Éditions des femmes, 1986 [1969]., ao final de seu ensaio, Anne Bérger diz da insistência de uma escrita “entre dois, que pensa ela em relação ao eu e eu em direção a ela”. (BÉRGER, 2007BERGER, Anne. Appels. In: SEGARRA, Marta (Ed). L’événement comme écriture: Cixous et Derrida se lisant. Paris: Éditions CampagnePremière, 2007, p. 107., p.107.)
  • 15
    Para pensar as relações, em suas proximidades e diferenças decisivas, entre Cixous e Derrida, remeto o leitor a SEGARRA, Marta (ed). L’événement comme écriture: Cixous et Derrida se lisant. Paris: Éditions Campagne Première, 2007SEGARRA, Marta (ed). L’événement comme écriture: Cixous et Derrida se lisant. Paris: Éditions CampagnePremière , 2007.. E também a Dawson, M, Hanrahan, M. & Prenowitz, E.. Cixous, Derrida, Psychoanalysis. A Journal of Modern Critical Theory. Edinburgh University Press, volume 36, number 2, July 2013DAWSON, M, Hanrahan, M.; PRENOWITZ, E. Cixous, Derrida, Psychoanalysis. Em: A Journal of Modern Critical Theory. Edinburgh University Press, volume 36, number 2, July 2013..
  • 16
    Por duas vezes, estive aterrorizada. Mas não envelheci. Não me deixei guiar pelos berros da besta, não quis morrer para interromper o terror. A cada vez, quis viver. Abri um novo livro. Tomei um avião. Coloquei minha vida diante de mim. Não reconheci a cópia dos fantasmas.
  • 17
    Como posso ser a filha de minha mãe já que sou eu mesma meu pai e a filha de meu pai?
  • 18
    Eu estava gritando: ‘eu vou me matar ou você vai me matar’, e isso, isso não estava na peça que eu escrevera. Agora, estou na peça que não escrevi, e onde sou interpretada por outras personagens, não posso deixar a peça, não posso querer deixá-la antes do último ato.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Dez 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    15 Maio 2020
  • Aceito
    31 Jul 2020
Programa de Pos-Graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras -UFRJ Av. Horácio Macedo, 2151, Cidade Universitária, CEP 21941-97 - Rio de Janeiro RJ Brasil , - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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