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Uma teoria do verso: amor e catástrofe

A Theory of Verse: Love and Catastrophe

Resumo

A partir de uma abordagem pelo desencaixe, pela disjunção, pela desarticulação, ou, ainda, pela suspensão, pela interrupção, por um ponto de crise, propõe-se articular princípios em comum que comparecem em teorias sobre o amor, sobre o tempo e sobre o verso. É possível associar a leitura do verso como um “lance”, desde Um Lance de Dados de Mallarmé, à leitura que Jacques Lacan faz do amor em Encore? Poderíamos ler o salto do verso como o anjo da história de Benjamin, que é impelido para frente, mas se volta para trás encarando fixamente a catástrofe? Ir ao verso é ir ao tempo em sua crise, em sua fratura, em sua disjunção, tal como pensaram Agamben, Benjamin, Derrida? Essas são as direções pelas quais este artigo propõe ler, no gesto disjuntivo do verso, erotismo e luto, amor e catástrofe.

Palavras-chave:
Verso; Poesia; Amor; Catástrofe

Abstract

From an approach through disengagement, disjunction, disarticulation, or even suspension, interruption, a crisis point, this paper intends to articulate common principles that appear in theories about love, about time and about verse. Is it possible to associate the reading of verse as a “coup”, from Un coup de dés, by Mallarmé, to Jacques Lacan's reading of love in Encore? Could we read the leap in the verse like Benjamin’s angel of history, who is propelled forward but turns back, staring at the catastrophe? Is going to the verse like going to time in its crisis, in its fracture, in its disjunction, as thought by Agamben, Benjamin, Derrida? These are the directions in which this article proposes to read, in the disjunctive gesture of verse, eroticism and mourning, love and catastrophe.

Keywords:
Verse; Poetry; Love; Catastrophe

Résumé

D'une approche par le désengagement, la disjonction, la désarticulation, voire la suspension, l'interruption, un point de crise, il est proposé d'articuler des principes communs qui apparaissent dans les théories sur l'amour, sur le temps et sur le vers. Est-il possible d'associer la lecture du vers comme un “coup”, d'Un coup de dés, de Mallarmé, à la lecture d'amour de Jacques Lacan dans Encore? Pouvons-nous lire le saut dans le vers comme l'ange de l'histoire de Benjamin, qui est propulsé en avant, mais se retourne, regardant la catastrophe? Aller au vers va-t-il au temps dans sa crise, dans sa fracture, dans sa disjonction, comme le pensent Agamben, Benjamin, Derrida? Ce sont les directions dans lesquelles cet article se propose de lire, dans le geste disjonctif du vers, l'érotisme et le deuil, l'amour et la catastrophe.

Mots-clés:
Vers; Poésie; Amour; Catastrophe

No Seminário XX: Encore, Jacques Lacan (1972-1973/2010BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1984.) menciona o amor por meio de um desencaixe. Ele lança a pergunta: “Será que não é pelo defrontamento desse impasse, dessa impossibilidade [de encaixe], definindo como tal um Real, que é posto à prova o amor (...)?” (LACAN, 2010LACAN, Jacques. Seminário XX: Encore (1972-1973). Tradução de Analucia Teixeira Ribeiro. Rio de Janeiro: Escola Letra Freudiana, 2010. , p. 274). Diante do impasse da relação sexual, dessa impossibilidade de encaixe, Lacan fala de um reconhecimento do amor como uma ilusão de instante: em um lance, algo começa a se escrever, “por um instante”, temos a ilusão de que se escreve, de que “não somente se articula, mas se inscreve” (LACAN, 2010BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1984., p. 275). Nesse momento, “durante um tempo, um tempo de suspensão, o que seria a relação sexual encontra, no ser que fala, seu rastro e sua via de miragem” (LACAN, 2010BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1984., p. 275). O amor se agarra nesse “ponto de suspensão” (“point de suspension”) (LACAN, 2010BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1984., p.275). Para Lacan, esse ponto de suspensão “constitui o destino e também o drama do amor” (LACAN, 2010BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1984., p. 275). Isso não é harmonioso, porque uma abordagem do ser pelo amor é uma abordagem pelo desencaixe estrutural, pela quebra, por aquilo que se sustenta como uma falha. Acreditar no amor é crer nesse “ponto de suspensão”, nessa miragem, nessa ilusão, nesse lance.

Desde Mallarmé, vemos a poesia, privilegiadamente, como um lance de dados. Mesmo que visualmente em formas não radicais ou menos radicais, passamos a tender a olhar o verso nessa possibilidade de constelação, como um corpo em suspensão em um caminho traçado sobre o abismo, inclinado para o desastre. Junto ao poema de Mallarmé, Un coup de désMALLARMÉ, Stéphane. “Un coup dé des jamais n’abolira le hasard” (1897). Tradução de Haroldo de Campos. In: CAMPOS, Augusto de; CAMPOS, Haroldo de; PIGNATARI, Décio. Mallarmé. São Paulo: Perspectiva, 1974. , de 1897, o ensaio Crise de vers, de 1895, faria parte da mudança de um novo olhar sobre o verso, que convoca a olhá-lo em sua crise. Segundo o poeta e teórico Marcos Siscar, “Uma crise de verso (...) é a situação na qual o verso manifesta-se irritado, enervado, em estado crítico” (SISCAR, 2008SISCAR, Marcos. “Poetas à beira de uma crise de versos”. In: PEDROSA, C.; ALVES, I. (orgs.). Subjetividades em devir: estudos de poesia moderna e contemporânea. Rio de Janeiro: Editora 7Letras, 2008., p. 212). A essa leitura do verso como um “ataque de nervos” (“crise de nerfs”), ou uma crise, ou um golpe (coup), ressoa a compreensão do verso como aquilo que se inclina para o acidente (FELMAN, 2000FELMAN, Shoshana. “Educação e crise ou as vicissitudes do ensino”. In: NESTROVSKI, A.; SELIGMANN-SILVA, M. (orgs.). Catástrofe e representação. São Paulo: Escuta, 2000., p. 30). Para Shoshana Felman, essa abordagem do verso pelo acidente tem relação direta com a introdução do verso livre na poesia francesa, como uma celebração pela violenta ruptura linguística (FELMAN, 2000FELMAN, Shoshana. “Educação e crise ou as vicissitudes do ensino”. In: NESTROVSKI, A.; SELIGMANN-SILVA, M. (orgs.). Catástrofe e representação. São Paulo: Escuta, 2000., p. 31). O verso como uma escrita inclinada para o acidente seria, antes de tudo, uma celebração da quebra como crise fundamental. Celebrar a violência, a quebra ou a ruptura do verso significaria celebrar a explosão da tradição, o estilhaçamento dos dogmas, os abalos das estruturas fundacionais, a queda do absolutismo. Ser testemunho de um acidente significaria ser testemunho de uma acidentalização do poder.

Conforme Felman, Mallarmé instaurou, a partir da ambiguidade sintática de sua poesia, uma relação entre acidente e testemunho em que deixa em suspenso a questão quanto a se quem persegue o testemunho é o acidente ou se é o testemunho que persegue o acidente (FELMAN, 2000FELMAN, Shoshana. “Educação e crise ou as vicissitudes do ensino”. In: NESTROVSKI, A.; SELIGMANN-SILVA, M. (orgs.). Catástrofe e representação. São Paulo: Escuta, 2000., p. 35). O que se abre disso é uma dimensão ética e política do verso pela via do acidente e do testemunho. Compreender o verso como aquilo que aponta para o desastre, como quem mira a catástrofe ou como testemunho de um acidente, é poder ver o verso vinculado à concepção de Judith Butler discorrida no ensaio “Vida Precária”, em que a ética atrelada à alteridade não existe a priori: a ética tem estreita relação com a precariedade do outro. Pensar uma dimensão ética do poema pelo acidente e pelo testemunho é pensá-lo indissociado do vínculo entre ética e alteridade que se faz quando o outro se encontra sob ameaça, quando o outro é necessariamente marcado por uma vida precária (BUTLER, 2011BUTLER, Judith. Vida precária. Contemporânea - Revista de Sociologia da UFSCar. São Carlos, Departamento e Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFSCar, 2011, nº1, p.11-33., p. 13-33).

Não à toa Felman diz que os estudos de Freud sobre o sonho se dão no mesmo período que a concepção de Mallarmé do poema como testemunho do acidente, e não à toa a crítica se refere a Mallarmé como “a testemunha do acidente” e a Paul Celan como “a testemunha da catástrofe”, pois, para ela, a devastação que a Segunda Guerra Mundial instaurou foi mais que um acidente (FELMAN, 2000FELMAN, Shoshana. “Educação e crise ou as vicissitudes do ensino”. In: NESTROVSKI, A.; SELIGMANN-SILVA, M. (orgs.). Catástrofe e representação. São Paulo: Escuta, 2000., p. 37). Aliando as duas testemunhas, Mallarmé e Celan, acidente e catástrofe, o verso pode ser visto como um caminho acidentado que mira, ainda, a catástrofe. Os lances que se abrem nos abismos também podem ser golpes, como uma tradução possível de coup e como a tradução dos tempos que temos vivido no Brasil desde antes de 2016. O lance é, pois, um coup, um golpe. Se ele indica a acidentalização do poder, ao mesmo tempo, ele também indica o poder, a catástrofe. Se o gesto do verso, como um lance, pelo princípio do desencaixe ou da suspensão, se afina com uma abordagem sobre o amor, por outro lado, desde a tradução de lance por coup, vemos que ele aponta também para o horror, apontando o golpe, mas, também, sendo um golpe, um contragolpe, nessa dupla posição, como quem sofre e como quem executa, como objeto e como sujeito.

Se, com Siscar e Mallarmé, podemos ler o verso como “estado de crise”, é importante recuperar também Baudelaire, que compreendia o pensamento e o amor como “mal-entendido”. Em um dos fragmentos de seus Escritos íntimos, lemos: “No amor, como em quase todos os negócios humanos, o compromisso é sempre o resultado de um mal-entendido. Mas todo o prazer reside nisso (...). O abismo intransponível que gera a incomunicabilidade continua sem ser transposto” (BAUDELAIRE, 1995BAUDELAIRE, Charles. Poesia e prosa. Organização de Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995., p. 540). Logo depois, lemos: “Só o mal-entendido é que faz andar o mundo” (BAUDELAIRE, 1995BAUDELAIRE, Charles. Poesia e prosa. Organização de Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995., p. 547). Em “Os olhos dos pobres”, reencontramos: “(...) tão incomunicável é o pensamento, mesmo entre aqueles que se amam!” (BAUDELAIRE, 1995BAUDELAIRE, Charles. Poesia e prosa. Organização de Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995., p. 309). O que conecta os três trechos citados é o mal-entendido, a incomunicabilidade, o impasse por isso estar colocado “mesmo entre aqueles que se amam” e o impasse por isso, o mal-entendido, ser exatamente onde reside o prazer, ser o “que faz andar o mundo”. Como esse impasse faz mover? Como o mal-entendido é o meio por onde anda o amor e faz andar o mundo?

Passando por Mallarmé e Baudelaire, cuja abordagem do verso pelo conflito se mostra pela acepção de “crise de nervos” e “mal-entendido”, respectivamente, talvez consigamos responder às perguntas acima por outra abordagem tecida pelo conflito, pelo que o filósofo Giorgio Agamben discorre sobre a poesia como o lugar da “íntima discórdia” (AGAMBEN, 1999AGAMBEN, Giorgio. Ideia da prosa. Tradução de João Barrento. Lisboa: Edições Cotovia, 1999., p. 32). Em “Ideia da Prosa”, ensaio presente no livro de título homônimo, Agamben diz que o verso “esboça um passo de prosa”, lançando-se para a prosa, mas não se realizando nela (AGAMBEN, 1999AGAMBEN, Giorgio. Ideia da prosa. Tradução de João Barrento. Lisboa: Edições Cotovia, 1999., p. 32). Para Agamben, “esboçar um passo de prosa” não significa que, lançando-se em uma continuidade, o verso dá um passo de prosa ou realiza a prosa. Apenas fazendo menção a ela, apontando para ela, acenando para ela, esboçando-a, a prosa é preservada em sua potência na interrupção do verso, que já se lança em um novo salto, retornando como verso em seu movimento de lançar-se no abismo que, acenando para a prosa, não realiza esse passo: ao contrário, mantém o impasse.

Ainda, de acordo com o filósofo, o enjambement é aquilo que, estruturalmente, não é possível na prosa: “A única coisa que se pode fazer na poesia e não na prosa são os enjambements e as cesuras” (AGAMBEN, 2007AGAMBEN, Giorgio. Estâncias. A palavra e o fantasma na cultura ocidental. Tradução de Selvino Assmann. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007., s/p). Para haver enjambement é preciso haver quebra na oração, desencaixe, desarticulação, pressupondo necessariamente a fratura na sintaxe. Enquanto a continuidade do verso na prosa apagaria a tensão, selando a unidade do sentido na prosa, realizando aquilo que o filósofo chamou de um “ponto de coincidência” ou uma “boda mística do som e do sentido” (AGAMBEN, 2014AGAMBEN, Giorgio. “O fim do poema”. In: Categorias italianas: estudos de poética e literatura. Tradução de Carlos Capela, Vinícius Honesko e Fernando Coelho. Florianópolis: Editora da UFSC, 2014., p. 184), com o enjambement, é como se “a poesia vivesse, pelo contrário, da sua íntima discórdia” (AGAMBEN, 1999AGAMBEN, Giorgio. Ideia da prosa. Tradução de João Barrento. Lisboa: Edições Cotovia, 1999., p. 32). “O enjambement exibe uma não-coincidência e uma desconexão entre o elemento métrico e o elemento sintático”, exibe uma desarticulação, um desencaixe (AGAMBEN, 1999AGAMBEN, Giorgio. Ideia da prosa. Tradução de João Barrento. Lisboa: Edições Cotovia, 1999., p. 32). Porque hesita, o verso, como um lance, é aquilo que conta com o imprevisto, com a não garantia, com a surpresa, com o seu próprio fracasso. Podemos ler o verso na hesitação daquilo que se volta para frente, mas, incessantemente, retorna para o seu desastre, sua queda, sua quebra, sua disjunção, seu desencaixe, para o seu impasse, como “uma coisa que se expõe permanecendo, porém, murada”, como disse Agamben a respeito da “Ideia do amor” (AGAMBEN, 1999AGAMBEN, Giorgio. Ideia da prosa. Tradução de João Barrento. Lisboa: Edições Cotovia, 1999., p. 51). Há aí uma enunciação em comum quando o filósofo diz da “Ideia da Prosa” e da “Ideia do amor”, outro ensaio presente no livro Ideia da Prosa.

Em Estâncias, Agamben diz que os poetas do século XIII chamavam “estância” (“stanza”) o núcleo essencial da poesia trovadoresca, “porque ele conservava, junto a todos os elementos formais da canção, aquela joi d’amour, em que eles confiavam como único objeto da poesia” (AGAMBEN, 2007AGAMBEN, Giorgio. Estâncias. A palavra e o fantasma na cultura ocidental. Tradução de Selvino Assmann. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007., p. 11). Em nota de rodapé, lemos que “joi d’amour é a expressão usada pelos trovadores para expressar a alegria da paixão amorosa, ‘a alegria do amor’, o ‘gozo do amor’” (AGAMBEN, 2007AGAMBEN, Giorgio. Estâncias. A palavra e o fantasma na cultura ocidental. Tradução de Selvino Assmann. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007., p. 11). Em outro momento do livro, vemos que “o uso da palavra ‘stanza’ para indicar uma parte da canção deriva do termo árabe bayt, que significa ‘morada’, ‘tenda’ e, ao mesmo tempo, ‘verso’” (AGAMBEN, 2007AGAMBEN, Giorgio. Estâncias. A palavra e o fantasma na cultura ocidental. Tradução de Selvino Assmann. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007., p. 211), e que a palavra provençal joi, “que resume em si a plenitude da experiência erótico-poética dos trovadores, está também etimologicamente relacionada a uma prática linguística, enquanto deriva presumivelmente de ‘Jocus’, que pode ser traduzida como ‘jogo de palavras’, ‘brincadeira’, ‘gracejo’, ‘divertimento’” (AGAMBEN, 2007AGAMBEN, Giorgio. Estâncias. A palavra e o fantasma na cultura ocidental. Tradução de Selvino Assmann. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007., p. 211). Assim, o verso como estância da alegria ou do gozo do amor, como onde a alegria ou o gozo do amor mora, é um jogo, um jogo de palavras. No sentido trovadoresco, é como um jogo/gozo, um jogo jocoso, que o verso é necessariamente a estância onde se dirige um desejo, onde se encontra dito o objeto de desejo. Vemos, então, o verso como o lugar, morada, a estância do amor, em que se goza.

É preciso dizer que a relação entre jogo, poesia e amor é íntima e antiga. Na criação da lira, o objeto que dará origem à poesia lírica, a dimensão lúdica já está atrelada à dimensão erótica - e à dimensão animal. A lira nasce de uma brincadeira, da brincadeira de Hermes, o trapaceiro, com um objeto, que é um animal, a tartaruga. No Hino Homérico a Hermes podemos ler, em mais de um momento, que esse brinquedo é dito como “amável” (“ἐρατὴν”): “o amável brinquedo” (“ἐρατεινὸν ἄθυρμα”) (HOMERO, 2010HOMERO, -. “Hino Homérico a Hermes”. In: RIBEIRO, Wilton A. (org.). Hinos Homéricos. Tradução de Maria Celeste C. Dezotti e Silvia M.S. de Carvalho. São Paulo: Editora UNESP, 2010., p. 408) e “amável tartaruga” (“χέλυν ἐρατὴν”) (HOMERO, 2010HOMERO, -. “Hino Homérico a Hermes”. In: RIBEIRO, Wilton A. (org.). Hinos Homéricos. Tradução de Maria Celeste C. Dezotti e Silvia M.S. de Carvalho. São Paulo: Editora UNESP, 2010., p.418) são a primeira e a segunda ocorrências do adjetivo, quando o animal ainda não foi transformado em lira. Na terceira ocorrência, já há lira: “Amável (“ἐρατὴ”) em seu peito percorreu a vibração da divina melodia (...)” (HOMERO, 2010HOMERO, -. “Hino Homérico a Hermes”. In: RIBEIRO, Wilton A. (org.). Hinos Homéricos. Tradução de Maria Celeste C. Dezotti e Silvia M.S. de Carvalho. São Paulo: Editora UNESP, 2010., p. 438). Também, a voz que acompanha a lira é amável: “(...) e logo, ao som arguto da lira,/ preludiou uma canção - e amável (“ἐρατὴ”) era a voz acompanhante!”) (HOMERO, 2010HOMERO, -. “Hino Homérico a Hermes”. In: RIBEIRO, Wilton A. (org.). Hinos Homéricos. Tradução de Maria Celeste C. Dezotti e Silvia M.S. de Carvalho. São Paulo: Editora UNESP, 2010., p. 440). “Amável”, em grego, “ἐρατὴν”, é uma declinação de “eros” (“ἔρως”). A partir disso, vemos que o vínculo entre o lúdico e o erótico desde os gregos constitui a poesia. O jogo, o improviso - que transforma o silêncio em possibilidade de som, que transforma o animal em poesia, que cria a poesia a partir da matéria e da afonia do animal - trazem a trapaça como potência de linguagem. E mais: de endereçamento, de mediação, de intermediação. Hermes, o trapaceiro, é também o mensageiro.

Lembrando que enjambement comumente é traduzido, no português, como “encavalgamento” ou “cavalgamento”, leio nesse termo um sentido erótico do verso que não vem senão pelo princípio de desencaixe, pela breve interrupção entre o sintático e o semântico, pela desarticulação do som com o sentido que se dá com o corte. Mais erótico que cavalgamento seria, certamente, a tradução popular mineira para “encoxamento”. Nessa tradução, a ênfase recai no substantivo, jambe, perna (ou coxa), e não nos verbos jamber, saltar, ou enjamber, transpor.

Se o enjambement se dá ao fim do verso, a cesura seria o corte que se dá em qualquer lugar no verso, provocando um efeito de suspensão e de interrupção ao longo do verso, no meio do verso, e não apenas no fim. Na esteira da compreensão do enjambement em seu sentido erótico - que também faz do verso, em seu corte, uma instância amável como joi d’amour -, poderíamos pensar, junto à cesura, privilegiadamente, em um gozo que não se dá ao fim como um poema que teria um grand finale, mas que vai se dando ao longo, como os “deliciosos quases” de que falou Mallarmé em “Crise de vers” (MALLARMÉ, 1895MALLARMÉ, Stéphane. Crise de vers (1895). Disponível em Disponível em https://www.jeuverbal.fr . Acesso em 27/02/2020.
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, s/p). Um gozo feminino, múltiplo, cujo efeito de desencaixe ou quebra é, acima de tudo, um incessante começo, um novo começo que se instaura em cada quebra, aquilo que não para de se inscrever, a permanente possibilidade de uma escrita do amor, o movimento que se dá incessantemente no efeito desse duplo gesto no mesmo, de encaixe e desencaixe, como meio. Como se está sempre à beira do desencaixe, o gozo vai se dando ao longo da movimentação e não ao fim dela.

Ora, em Encore, Lacan diz que o amor é uma ilusão que suplanta o desencaixe da relação sexual. Para Lacan, a relação sexual é um desencaixe, é a impossibilidade do encaixe, é a impossibilidade da unidade. Por isso, só há amor se há esse desencaixe. No desencaixe, na impossibilidade de unidade, há uma ilusão, que dura um instante, de que isso se encaixa. Para haver amor, é preciso haver a ilusão de que algo se articula, é preciso haver uma miragem de que algo se encaixa, mas porque previamente só há o desencaixe como condição possível. Todavia, em um lance, temos a ilusão de que algo não só se articula, mas se inscreve. Isso é o amor. É por isso que o amor é crer em um lance, nesse breve instante, nesse momento que Lacan chama de “tempo de suspensão” ou “ponto de suspensão” (LACAN, 2010LACAN, Jacques. Seminário XX: Encore (1972-1973). Tradução de Analucia Teixeira Ribeiro. Rio de Janeiro: Escola Letra Freudiana, 2010. , p. 275) de que falamos no início desse texto. Assim vemos que Lacan fala do amor pelo mesmo princípio que Agamben fala do verso: a partir do desencaixe, da desarticulação e da suspensão. Podemos ler o verso em Agamben pelo mesmo princípio teórico que Lacan fala do amor. Tanto a cesura, mais radicalmente, como o enjambement, são um ponto de suspensão, uma quebra, um desencaixe, uma disjunção, uma desarticulação, uma paradinha, é preciso enfatizar, cujo efeito, porém, é um “não para” (modo como Fernando Santoro felizmente traduziu a palavra Encore, [SANTORO in CASSIN, 2005CASSIN, Barbara. Ver Helena em toda mulher. Tradução de Fernando Santoro. Folha de São Paulo, 17 de julho de 2005. Disponível em: Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1707200506.htm Acesso em 27/02/2020.
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, s/p]): a ínfima interrupção de um breve instante é por onde se continua a gozar, por onde a interpretação se abre, por onde a multiplicidade do sentido se faz, por onde a ambuiguidade se faz, por onde se instaura o ponto em que sempre é possível começar, em que, pelo meio, sempre é possível continuar - a dizer, a ler, a escrever, a pensar, a gozar e, como veremos, a responder aos mortos.

Em “Ideia da cesura”, Agamben discorre sobre o corte da cesura como uma interrupção do passo ou do galope do verso (AGAMBEN, 1999AGAMBEN, Giorgio. Ideia da prosa. Tradução de João Barrento. Lisboa: Edições Cotovia, 1999., p. 35). O filósofo se baseia em dois versos de Sandro Penna: “Vou a caminho do rio num cavalo/ que quando eu penso um pouco um pouco logo estaca” (AGAMBEN, 1999AGAMBEN, Giorgio. Ideia da prosa. Tradução de João Barrento. Lisboa: Edições Cotovia, 1999., p. 34). A cesura é essa quebra radical dentro do verso que, no segundo verso, aparece com a repetição de “um pouco”. Agamben traz a antiga associação do “logos como um cavaleiro ‘fiel e veraz’ que monta um cavalo branco”, recuperando Orígenes que diz “que o cavalo é a voz (...) que só o logos torna inteligível e clara” (AGAMBEN, 1999AGAMBEN, Giorgio. Ideia da prosa. Tradução de João Barrento. Lisboa: Edições Cotovia, 1999., p. 34). Vemos, então, que não é nova nem moderna a associação do conhecimento a isso que vem rápido, certeiro, claro, fielmente conduzido sem titubeios. Se o cavaleiro é o logos, o cavalo seria uma voz inarticulada.

Aristóteles, em A Política, diz: “dentre os animais, apenas o homem tem logos” (ARISTÓTELES, 2009ARISTÓTELES, -. A Política. Tradução de Nestor Silveira Chaves. São Paulo: Edipro, 2009. , p. 16). Aristóteles chamaria essa voz de que Agamben fala de phoné. Esse é o som desprovido de logos. Enquanto a phoné estaria ligada a um som, ao inarticulado, à sensação, aos estímulos de prazer e dor, aos instintos, ao corpo, à necessidade, à sobrevivência mais imediata ao corpo, ao simples viver, o logos estaria ligado ao discurso articulado, às oposições entre útil e nocivo, bem e mal, justo e injusto, viver e bem viver. Para Aristóteles, o homem é um animal que fala, mas o homem político é um animal que é dotado de linguagem, é um animal que não fala simplesmente, mas que discursa, que possui logos. Estar no logos ou estar na linguagem é estar na política. Tudo aquilo, todos aqueles, todas aquelas que estão mais próximos/as da dimensão da phoné, estão excluídos/as da política. Como disse Jacques Rancière em “O começo da política”, “a destinação supremamente política do homem atesta-se por um indício: a posse do logos, ou seja, da palavra, que manifesta, enquanto a voz apenas indica” (RANCIÈRE, 2018RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento: política e filosofia. Tradução de Ângela Leite Lopes. São Paulo: Editora 34, 2018., p. 15-16, grifos do autor).

Estacando o logos, a cesura deixa ver, portanto, o inarticulado, exibe, expõe, acena, sinaliza, indica aquilo que não se realiza pelo discurso. Lemos ainda em Rancière: “Dir-se-á que a diferença está marcada precisamente pelo logos que separa a articulação discursiva de uma dor e a articulação fônica de um gemido” (RANCIÈRE, 2018RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento: política e filosofia. Tradução de Ângela Leite Lopes. São Paulo: Editora 34, 2018., p. 16). A política exclui a dor e o gemido, atrelando-se à articulação discursiva e à articulação fônica. Ora, se a política sempre excluiu o inarticulado e se atrelou ao articulado, se a política sempre excluiu o cavalo e se atrelou ao cavaleiro, se a política sempre excluiu a dor e o gemido, que se aproximam mais da animalidade, do incivilizado, e se atrelou ao discurso, como ver o verso com uma política outra que não exclui a dimensão da phoné?

Para o cavaleiro que conduz seu cavalo no verso de Penna, o que suspende o logos que torna a voz inteligível e clara é o pensamento: “O elemento que faz parar o lance métrico da voz, a cesura do verso, é, para o poeta, o pensamento” (AGAMBEN, 1999AGAMBEN, Giorgio. Ideia da prosa. Tradução de João Barrento. Lisboa: Edições Cotovia, 1999., p. 35). O filósofo ressalta ainda a sutileza de a cesura ser marcada pela repetição nas duas margens da quebra (“[...] quando eu penso um pouco um pouco logo estaca” [AGAMBEN, 1999AGAMBEN, Giorgio. Ideia da prosa. Tradução de João Barrento. Lisboa: Edições Cotovia, 1999., p. 34]), conferindo “um intervalo intemporal entre dois instantes” (AGAMBEN, 1999AGAMBEN, Giorgio. Ideia da prosa. Tradução de João Barrento. Lisboa: Edições Cotovia, 1999., p. 35). Interrompendo o passo ou o galope, a quebra não interrompe só a cadência linear da eloquência, mas, antes, explode o tempo, sendo mesmo uma interrupção no tempo, no tempo do verso, uma interrupção no tempo no meio do verso, que não opera como demarcação temporal de um início ou um fim, mas como uma fenda, uma falha, um corte, que se faz como meio, não servindo à asseguração de um sentido, mas, como intervalo atemporal, um meio de abertura a possibilidades de sentidos e, ao mesmo tempo, a indicação de uma falta, a sinalização de uma ausência. Essa interrupção abrupta do galope no gesto do verso como um passo que, resistindo, porém, saltando, segundo Agamben, é lida como um gesto de despertar, isto é, um despertar para a história: um gesto que permite o pensamento, que permite parar para pensar.

O salto do verso em Agamben ressoa a concepção de salto em Walter Benjamin por seu conceito de “origem” (“Ursprung”), que não é um salto (“Sprung”) para a origem (“Ur”) enquanto gênese, mas uma irrupção no tempo, uma rachadura, uma ida ao tempo em sua disjunção (BENJAMIN, 1984BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1984., p. 32). A origem, em Benjamin, nada tem a ver com gênese, é um ponto de contato entre dois extremos, é a possibilidade de dois tempos, contrários, se encontrarem, é um salto que tensiona dois extremos em um ponto de disjunção, “que emerge (“entspringt”) do vir-a-ser e da extinção” (BENJAMIN, 1984BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1984., p. 19). Por esse tempo ser liberto do fluxo da história contínua e do encadeamento causal, ele é um salto atemporal. O “tempo-de-agora” (“Jetztzeit”) é justamente uma contração do tempo que em Benjamin lemos como uma cesura revolucionária: ele “solapa a linearidade infinita do chronos e institui o tempo-de-agora como kairos messiânico” (AGAMBEN, 2008AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha (Homo Sacer III). Tradução de Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008., p. 11). Esse tempo revolucionário instaura uma outra ética, uma ética da cisão, uma ética da cesura, do que está entre, da separação que divide, do hiato, da lacuna, do sulco, da falha, da fenda, da fratura, do corte.

A essa leitura do tempo em Benjamin, o gesto do verso, nessa compreensão que estamos vendo, pode ser lido também à luz da nona tese Sobre o conceito de história, também de Benjamin, cujo anjo da história é um corpo impelido para frente, com os olhos, porém, presos à catástrofe que se acumula atrás (BENJAMIN, 1987BENJAMIN, Walter. “Sobre o conceito de história”. In: Walter Benjamin - Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. Prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Brasiliense, 1987., p. 222-232). Situado entre o passado e futuro, impelido para frente, o anjo “vira as costas”, porém, para isso que se apresenta à frente (BENJAMIN, 1987BENJAMIN, Walter. “Sobre o conceito de história”. In: Walter Benjamin - Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. Prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Brasiliense, 1987., p. 226). Nesse gesto em torção, o anjo da história é um corpo torcido, instaurado no impasse. É nesse impasse e nessa torção que ele é o anjo da história. Ele é arrastado, sem escolha, pela tempestade do futuro que chega a galope, ao mesmo tempo em que encara fixamente o que está às suas costas: que não é uma “cadeia de acontecimentos”, uma série, mas uma “catástrofe única”, irredutível (BENJAMIN, 1987BENJAMIN, Walter. “Sobre o conceito de história”. In: Walter Benjamin - Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. Prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Brasiliense, 1987., p. 226). Nesse sentido, tal como o gesto do anjo da história, o gesto do verso, como um gesto em torsão, também se volta para o horror, para a barbárie, para a catástrofe, para a História.

Interrompendo o passo veloz do cavalo, suspendendo “o gesto a meio”, como Agamben diz, ou, poderíamos dizer, a meio gesto, em um gesto que não se completa, que se interrompe bruscamente, que se interrompe pelo meio antes mesmo de chegar ao fim do verso, em um gesto a meio, esse passo não é mais o embalo do cavalo que traz o logos veraz, é um passo estranho, de passadas contrapostas, meio desengonçado, como “num extravagante passo de ganso” (AGAMBEN, 1999AGAMBEN, Giorgio. Ideia da prosa. Tradução de João Barrento. Lisboa: Edições Cotovia, 1999., p.35). Se o enjambement é o cavalgamento, o salto, a cesura estaca o salto, retraindo-o em um lance que o transforma, em um gesto que o transforma em um gesto a meio, um gesto pela metade, um gesto instaurado em uma disjunção tal como o anjo da história.

Essa abordagem permite entrelaçar também o que Agamben chamou de “contemporâneo”. Em O que é o contemporâneo?, lemos que o “contemporâneo” é um ponto de fratura. Contemporâneo é aquele que não coincide com o tempo, que se situa nas fendas do tempo, que está em um ponto de não coincidência, de disjunção, de desarticulação com o tempo. Agamben começa esse ensaio com uma conversa com Barthes e Nietzsche, indicando-nos que esse início de conversa já vem de outros tempos. Em Como Viver Junto, Barthes termina um trecho com o que ele chama de “paradoxo”: “uma relação insuspeita entre o contemporâneo e o intempestivo - como o encontro de Marx e Mallarmé, de Mallarmé e Freud sobre a mesa do tempo” (BARTHES, 2003BARTHES, Roland. Como viver junto. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2003., p. 11-12). Nietzsche, em um momento de Segunda Consideração Intempestiva, termina dizendo sua visão sobre sua profissão: “(...) não saberia que sentido teria a filologia clássica em nossa época senão o de atuar nela de maneira intempestiva - ou seja, contra o tempo, e, com isso, no tempo e, esperemos, em favor de um tempo vindouro” (NIETZSCHE, 2003NIETZSCHE, Friedrich. Segunda consideração intempestiva. Tradução de Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003. , p. 5-7). Atuar de maneira intempestiva, de acordo com Nietzsche, é, pois, atuar contra o tempo. Atuar no tempo não é outra coisa senão do que atuar contra ele. Atuar intempestivamente é, no tempo, atuar contra o tempo em prol do tempo que virá. Essa atuação intempestiva já possui uma responsabilidade para com o porvir. Quando Agamben se pergunta O que é o contemporâneo?, ele coloca Barthes e Nietzsche na mesma mesa para iniciar essa conversa e junta o que Nietzsche falou do intempestivo e o que Barthes falou da relação entre o contemporâneo, aqueles que viveram ao mesmo tempo ou no mesmo tempo, e o intempestivo, estabelecendo uma conversa anacrônica, portanto. O contemporâneo, para Agamben, seria necessariamente esse anacronismo: não uma coincidência com o próprio tempo, mas uma convivência entre aqueles que não coincidem com seus tempos, com aqueles que não seriam contemporâneos entre si. Ser contemporâneo não seria compartilhar o mesmo tempo, mas fazer viver junto aquilo, aqueles ou aquelas que não coincidem. Esse fazer viver junto é um gesto interventivo e interruptivo no tempo. O contemporâneo está em uma relação de desconexão, dissociação, não-coincidência com o seu próprio tempo, aderindo a ele ao mesmo tempo que dele se distancia.

O filósofo italiano vai ao poema do poeta russo Osip Mandelstam, “O século”. A partir da primeira estrofe (“Meu século, minha fera, quem poderá/ olhar-te dentro dos olhos/ e soldar com o seu sangue/ as vértebras de dois séculos?”), Agamben tece uma leitura de que esse poema não é sobre a época ou o século, mas sobre a relação do poeta com o tempo, ou seja, sua contemporaneidade (AGAMBEN, 2009AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Tradução de Vinícius Honesko. Chapecó: Argos, 2009., p. 60). De acordo com o poema, o filósofo conclui que essa relação é de um olhar fixo nos olhos do “século-fera”, e que o preço pago por essa contemporaneidade é o próprio corpo, o próprio sangue com o qual deve soldar o “dorso quebrado do tempo” (AGAMBEN, 2009AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Tradução de Vinícius Honesko. Chapecó: Argos, 2009., p. 60-61).

O que Agamben não diz, apesar de parecer partir disso de maneira indireta e implícita, é que “verso” e “vértebra” têm a mesma raiz. Em português, “verso” é substantivo e verbo. Como substantivo, sabemos, verso é o outro lado, o dorso, as costas, ou cada linha de um poema. Mas é pouco comum vir “duelo” à nossa mente quando falamos “verso”. Do latim versus, verso é aquilo que traz em si o duelo, a discórdia, a oposição. Mas, no latim, essa palavra assume múltipla funções, como advérbio, preposição, forma verbal, nome (sulco, ranhura, linha, retorno, giro, volta). Usamos a palavra latina versus quando queremos dizer oposição, mas não nos lembramos do sentido de duelo, de discórdia, quando falamos usualmente “verso”. Tampouco fazemos uma aproximação entre “verso” e “vértebra”, ou entre “verso” e “vertigem”, que, para o nosso espanto, varia do étimo de verso, vert. Se pensarmos na etimologia, o étimo de verso é vers e, sua variante, vert, de onde depreendemos palavras como “verter”, “vertical”, “vertigem”, “vértebra”. Em francês, vers é tanto preposição, “para”, “em direção a”, como substantivo, “verso”. Então, no sentido etimológico, verso é ir para e contra, ao mesmo tempo. Verso é isso que vai para (sai de si) e, indo contra (si), volta para (o outro lado, o verso, o dorso). De um modo não apaziguado, o verso é aquilo que vai para, segundo seu étimo, vers, mas também contra, se não perdermos de vista o duelo que traz a palavra latina versus. Logo, o verso é aquilo que vai para e contra, ao mesmo tempo. Indo para, sai de si, e, indo contra, dobrando-se sobre si, volta para o outro lado, o dorso, trazendo ou gestando sempre um outro. Por isso, o verso é sempre controverso, o verso é, ao mesmo tempo, o adverso.

Diante dessa elucidação, vemos que o que Agamben faz em O que é contemporâneo? é abordar o verso como se aborda o tempo: nas vértebras; mais precisamente, no ponto de fratura das vértebras. Assim como o tempo, o corpo do poema é um corpo todo cortado que tem seu eixo, sua coluna, quebrada. Sendo as vértebras do tempo, ele também é o insuportável do tempo. É pela impossibilidade de sutura dessa quebra que o gesto do verso de expor a fratura é também um gesto de cuidar das fraturas expostas do tempo: “O poeta, enquanto contemporâneo, é essa fratura, é aquilo que impede o tempo de compor-se e, ao mesmo tempo, o sangue que deve suturar a quebra” (AGAMBEN, 2009AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Tradução de Vinícius Honesko. Chapecó: Argos, 2009., p. 61). Ou seja, o corte, a quebra, a fratura e, ao mesmo tempo, a tentativa de reparo do irreparável.

Dizer de um tempo é dizer, simultaneamente, de uma vida e de um coletivo, como Agamben ressalta: “(lembrem-se que o latim saeculum significa originalmente o tempo da vida) e o tempo histórico coletivo” (AGAMBEN, 2009AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Tradução de Vinícius Honesko. Chapecó: Argos, 2009., p. 60). Se vimos que tempo e verso se identificam pelas vértebras, agora vemos também que vida individual e tempo coletivo estão relacionados por aquilo que há de mais material e de mais perecível: o corpo. Há algo em comum entre a vida humana, o tempo e o verso: as vértebras. Mais especificamente, as quebras. E aqui, mais uma vez, nessa quebra, o verso/século tenta realizar um “gesto impossível” de se virar para trás:

Não apenas a época-fera tem as vértebras fraturadas, mas vek, o século recém-nascido, com um gesto impossível para quem tem o dorso quebrado quer virar-se para trás, contemplar as próprias pegadas e, desse modo, mostra o seu rosto demente:

Mas está fraturado o teu dorso

meu estupendo e pobre século.

Com um sorriso insensato

como uma fera um tempo graciosa

tu te voltas para trás, fraca e cruel,

para contemplar as tuas pegadas

(AGAMBEN, 2009AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Tradução de Vinícius Honesko. Chapecó: Argos, 2009., p. 62).

Tal como o anjo da história de Benjamin, que realiza um “gesto em torsão” ao manter os olhos arregalados para trás enquanto seu corpo é impulsionado para frente, o contemporâneo para Agamben é esse que se instaura no “gesto impossível” do século, no “gesto impossível” do verso que, com o dorso quebrado, quer se virar para trás. Destaco ainda os dois adjetivos que Mandelstam usou para designar o século: estupendo e pobre. Esses dois extremos, como amor e horror. Só em um gesto-limite se vai aos extremos do tempo. Um gesto-limite que, em meio à clareza excessiva do tempo, consiga enxergar o escuro: “contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro” (AGAMBEN, 2009AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Tradução de Vinícius Honesko. Chapecó: Argos, 2009., p. 62). É nesse gesto torcido, no “gesto impossível” do dorso quebrado do verso que se vai às quebras do tempo, à barbárie. O poema é ele mesmo uma quebra, uma fratura, uma vertigem, uma vértebra, como o tempo, mas, ao contrário desse, o poema expõe e luta contra a sua própria catástrofe ao girar em torno dela.

Em Ideia da Prosa, o texto “Ideia da cesura” discorre sobre a cesura como estrutura do verso. Em O que é o contemporâneo?, encontramos a cesura como um dos modos de nomear o intervalo ou espaço livre do “limiar inapreensível entre um ‘ainda não’ e um ‘não mais’”, como isso que disjunta, quebra, requebra e permite colocar em relação (AGAMBEN, 2009AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Tradução de Vinícius Honesko. Chapecó: Argos, 2009., p. 68). Encontramos essa acepção também em Espectros de Marx de Jacques Derrida, em que uma ética da alteridade que passa necessariamente pelos fantasmas se instaura nesse tempo entre “o não-mais e o ainda-não: nisto que desajunta o presente vivo, diante dos fantasmas daqueles que já estão mortos ou ainda não nasceram” (DERRIDA, 1994DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx: o estado da dívida, o trabalho do luto e a nova Internacional. Tradução de Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994., p. 12). Esse intervalo já é um tempo espectral, porque ele seria justamente uma suspensão do tempo que indica, paradoxalmente, a sua iminência. Para Derrida, “ser justo” se atrela diretamente a essa concepção de tempo, de modo que quem é justo é aquele ou aquela que vai ao tempo em seu desajuste: “ser justo: momento espectral, momento que não pertence mais ao tempo (...). Furtivo e intempestivo, o aparecimento do espectro não pertence a este tempo, ele não dá tempo” (DERRIDA, 1994DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx: o estado da dívida, o trabalho do luto e a nova Internacional. Tradução de Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994., p. 12-13). Não há como ser justo se não se vai ao tempo de modo furtivo e intempestivo, isto é, do modo como o tempo mesmo se apresenta em sua disjunção. Tal modo de ir se constitui como uma justiça que não se dirige apenas a quem está vivo, que não se restringe a uma presença, mas também aponta para além e aquém do que está vivo: “A injunção de uma justiça que, para além do direito, ergue-se no respeito do que não está, não está mais ou ainda não está vivo, presentemente vivo” (DERRIDA, 1994DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx: o estado da dívida, o trabalho do luto e a nova Internacional. Tradução de Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994., p. 134, grifos do autor). É por isso que esse já é um gesto cujo tempo não é fixo, abrindo-se a um chamado singular que contempla em si uma coletividade não limitada ao presente, mas ao que já foi e ao que virá.

Em Agamben, aquele que não coincide com o seu tempo é contemporâneo; em Derrida, encontramos essa mesma disjunção na frase que ele pega de Hamlet: “The time is out of joint, o tempo está desarticulado, demitido, desconjuntado, deslocado, desconcertado” (DERRIDA, 1994DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx: o estado da dívida, o trabalho do luto e a nova Internacional. Tradução de Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994., p. 34). Tal como o anjo da história de Benjamin, tal como o contemporâneo em Agamben, encontramos a mesma abordagem em Derrida como “disjunção na presença mesma do presente, espécie de não-contemporaneidade do tempo presente a ele mesmo (essa intempestividade ou essa anacronia radicais [...])” (DERRIDA, 1994DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx: o estado da dívida, o trabalho do luto e a nova Internacional. Tradução de Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994., p. 43). É interessante notar a economia que Derrida deposita na frase “o mundo está fora dos eixos” ao trazer um sentido de falta, de perda, de dívida, de débito, aliando a dimensão do trabalho ao trabalho de luto. Nessa frase, o filósofo traz o demitido, o deportado, o desajustado, todos os que são, de algum modo, excluídos: “o mundo se encontra deportado, fora de si mesmo, desajustado” (DERRIDA, 1994DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx: o estado da dívida, o trabalho do luto e a nova Internacional. Tradução de Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994., p. 35). Dessa maneira, tal disjunção temporal não diz respeito apenas ao tempo, mas à história e ao mundo (“Time: é o tempo, assim como é a história e também o mundo” [DERRIDA, 1994DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx: o estado da dívida, o trabalho do luto e a nova Internacional. Tradução de Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994., p.35]). Para Derrida, não se vai a essa disjunção do tempo, em sua espectralidade, se não se vai como um espectro. Ir de modo justo ao tempo, à história e ao mundo pressupõe, portanto, uma lógica do fantasma, um modo de ir disjunto a isso que está desajustado, um modo de ir capenga, manco, coxo, a isso mesmo que anda mal. Tanto em Derrida como em Agamben e em Benjamin, a cesura, como ponto de disjunção, de desarticulação, é uma ética, um modo de ir, e essa ética é necessariamente um trabalho e um trabalho de luto.

A respeito de uma abordagem do verso também como um trabalho de luto, como o que se localiza no acidente e na catástrofe, em um dos ensaios de La boca del testimonio, da poeta argentina Tamara Kamenszain, escutamos a ressonância tanto do “passo” de Agamben como da “crise” de Mallarmé, mas com um giro no sentido. Ao tratar de um poema de César Vallejo, a poeta fala de “la boca del testimonio” como “un paso de poesía” (KAMENSZAIN, 2007KAMENSZAIN, Tamara. La boca del testimonio: lo que dice la poesia. Buenos Aires: Grupo Editorial Norma, 2007., p. 11). No ensaio, o testemunho se relaciona à poesia na medida em que o eu do poema “reconhece não saber nada de si” e pede ao outro, ao “tu”, para que lhe diga: “‘Cuéntame lo que me pasa’, le pide el yo al tú en um poema de César Vallejo. Así, en un acto de pérdida extrema donde reconoce no saber nada de sí, el yo se gana, dando un paso de poesía, la boca del testimonio” (KAMENSZAIN, 2007KAMENSZAIN, Tamara. La boca del testimonio: lo que dice la poesia. Buenos Aires: Grupo Editorial Norma, 2007., p. 11).1 1 Tradução minha: “‘Conta-me o que me passa’, pede o eu ao tu em um poema de César Vallejo. Assim, em um ato de perda extrema onde reconhece não saber nada de si, o eu se ganha, dando um passo de poesia, a boca do testemunho”. O eu surge a partir dessa perda inicial de um saber, de um não saber de si. O momento em que o testemunho surge seria então o momento em que se dá a possibilidade da poesia: o passo de poesia. O passo de poesia, a indicação da sua possibilidade, seria o momento em que o testemunho abre a boca, como quem dá sinais de fala, como quem dá sinais da possibilidade de dizer, mesmo que não se realize uma fala logicamente concatenada, na impossibilidade mesma de se realizar uma fala ordenada, sistemática, sendo o testemunho essa impossibilidade mesma. A poeta complementa: “la poesía sólo abre a la boca cuando tiene para decir algo paradojal” (KAMENSZAIN, 2007KAMENSZAIN, Tamara. La boca del testimonio: lo que dice la poesia. Buenos Aires: Grupo Editorial Norma, 2007., p. 13).2 2 Tradução minha: “a poesia só abre a boca quando tem algo paradoxal para dizer”. Colocando o paradoxo como condição da poesia e do testemunho, a partir do exemplo paradigmático de Vallejo que ela traz no ensaio “Testimoniar em oxímoron”, Tamara aponta que o que compõe esse paradoxo é, a um só tempo, vida e morte: “la poesía de Vallejo, compelida siempre a escribirse en oxímoron, remata a un tempo vida y muerte ante nuestras narices” (KAMENSZAIN, 2007KAMENSZAIN, Tamara. La boca del testimonio: lo que dice la poesia. Buenos Aires: Grupo Editorial Norma, 2007., p. 23).3 3 Tradução minha: “a poesia de Vallejo, compelida sempre a se escrever em oximoro, remata, a um só tempo, vida e morte ante nossos narizes”. O que está em jogo nisso, o que se atinge, o que se acerta, no testemunho como condição de possibilidade da poesia, que toma forma como paradoxo em que vida e morte estão enlaçadas, é a vida. E a palavra que Tamara usa em espanhol, como verbo, para dizer isso, é “golpe”, que, nessa formulação, nos chega na ambiguidade do sentido: “golpea la vida agujereando cualquier calcificación de sentido” (KAMENSZAIN, 2007KAMENSZAIN, Tamara. La boca del testimonio: lo que dice la poesia. Buenos Aires: Grupo Editorial Norma, 2007., p. 19).4 4 Tradução minha: “golpeia a vida perfurando qualquer calcificação do sentido”. No paradoxo que perfura qualquer calcificação do sentido, é a vida que é atingida, acertada.

Kamenszain tece uma leitura da poesia de Vallejo, o poeta que testemunhou a Guerra Civil Espanhola, inscrevendo-a como uma crise (“crisis”), uma crise do humano diante de um sentimento de animalidade, animalidade que se coloca como condição para que a poesia exceda ao humano: “un sentimiento de profunda animalidad (‘quiero escribir pero me siento puma’) es la condición para que la poesía humana de Vallejo encuentre (...) su posibilidad de escribirse más allá de lo humano” (KAMENSZAIN, 2007KAMENSZAIN, Tamara. La boca del testimonio: lo que dice la poesia. Buenos Aires: Grupo Editorial Norma, 2007., p. 39).5 5 Tradução minha: “um sentimento de profunda animalidade (‘quero escrever mas me sinto puma’) é a condição para que a poesia humana de Vallejo encontre (...) sua possibilidade de se escrever mais além do humano”. Fazendo referência a O que resta de Auschwitz, de Agamben, Kamenszain diz que, na poesia em questão, como testemunho de uma crise, a crise do humano, o homem está sempre transitando entre duas correntes, do humano e do inumano, que coexistem, mas não coincidem (KAMENSZAIN, 2007KAMENSZAIN, Tamara. La boca del testimonio: lo que dice la poesia. Buenos Aires: Grupo Editorial Norma, 2007., p. 33). A esse caminho do humano em busca do humano em um encontro impossível cujo resultado é o testemunho da crise (“testimonio de la crisis”), a esse caminho que se faz no paradoxo, Tamara diz que esse caminho, “que sortea cualquier apareamiento dualista para buscar la salida en oxímoron, es tan recto en su obstinación en espiral que se impone a cada vuelta como un camino ético” (KAMENSZAIN, 2007KAMENSZAIN, Tamara. La boca del testimonio: lo que dice la poesia. Buenos Aires: Grupo Editorial Norma, 2007., p. 34).6 6 Tradução minha: “que se desvia de qualquer pareamento dualista para buscar a saída no oximoro, é tão reto em sua obstinação em espiral que se impõe a cada volta como um caminho ético”. O humano que está em busca do humano é o caminho escolhido pela poesia de Vallejo para abrir espaço, a cada escansão, a cada volta, a uma nova crise, “a un nuevo golpe de crisis”,7 7 Tradução minha: “a um novo golpe de crise”. para usar as palavras da poeta (KAMENSZAIN, 2007KAMENSZAIN, Tamara. La boca del testimonio: lo que dice la poesia. Buenos Aires: Grupo Editorial Norma, 2007., p. 34). As voltas desse caminho não retilíneo que se constrói na crise, em crise, enquanto crise, fazem desse caminho, por isso mesmo, um caminho ético, cujo modo de responder ao chamado dos mortos não se dá senão pela interrupção, pela suspensão do sentido.

Enquanto uma narrativa interrompida, enquanto um testemunho, enquanto um caminho que se faz pela interrupção do sentido, como o choro que interrompe as palavras, como lágrimas que se endereçam aos mortos a quem não pode falar, a poesia como resposta aos mortos foi chamada por Vallejo, segundo Tamara Kamenzsain, de “responso”: “aquí poesía debe ser entendida como una narrativa interrumpida por el llanto. Vallejo la llamó ‘responso’. Como si la suspensión del sentido que acompaña al llanto fuese un modo de ‘responder’ a los muertos” (KAMENSZAIN, 2007KAMENSZAIN, Tamara. La boca del testimonio: lo que dice la poesia. Buenos Aires: Grupo Editorial Norma, 2007., p. 58).8 8 Tradução minha: “prece”: “aqui, poesia deve ser entendida como uma narrativa interrompida pelo choro. Vallejo a chamou de ‘prece’. Como se a suspensão do sentido que acompanha o choro fosse um modo de ‘responder’ aos mortos”. A suspensão do sentido, aqui, indica um transbordamento, o choro, o pranto, uma reação do corpo que também nos coloca expostos, como seres vulneráveis. Nesse passo de poesia como a abertura da boca do testemunho, não é o pensamento que se abre na interrupção, como vimos na abordagem de Agamben, é tão somente a exposição do ser pelo corpo, tão somente sua nudez, tão somente o pensamento suspendido pela reação do corpo. Nessa interrupção, poderíamos dizer, é o corpo quem fala. As palavras se suspendem e dão lugar tão somente ao que transborda e ao que falta a elas, ao que está aquém e além delas. Assim, nessa suspensão do sentido no poema, o que se abre, como um endereçamento, é o corpo. Nesse passo de poesia desse caminho cheio de voltas, a interrupção é abertura ao corpo, é quando o corpo mais comparece, quando aquele que abre a boca se vê em extrema exposição por uma resposta que falta e que, paradoxalmente, é o corpo que dá.

Diante de tudo o que foi abordado, depreendemos que o princípio da disjunção, da desarticulação, da interrupção, da suspensão, norteia, portanto, uma reflexão que pode entrelaçar um pensamento sobre o amor, sobre o tempo e sobre o verso. Em outras palavras, há modos em comum pelos quais se vai ao amor, ao verso e ao tempo. O pensamento sobre o “contemporâneo”, a reflexão sobre a estrutura do verso fundamentada no corte - no enjambement e na cesura - e a compreensão do verso como um estância amorosa pelos trovadores, provenientes de Agamben, a percepção do verso como um lance e como uma crise a partir de Mallarmé, o entendimento do amor pelo desencaixe como um “ponto de suspensão” por Lacan, a leitura sobre o anjo da história de Benjamin como um gesto em torsão, a formulação do “tempo-de-agora” de Benjamin, juntamente com a concepção do tempo disjunto em Derrida e a articulação disso com um trabalho de luto, como a discussão sobre poesia e testemunho em Kamenzsain e Felman, nos permitem um modo de tentar pensar o verso tocando em um ponto que se encontra em abordagens sobre o amor, sobre o tempo e sobre o verso: o ponto de disjunção, o ponto de crise, de desarticulação, como condição de possibilidade do pensamento e do comparecimento do corpo, no que escapa à lógica do discurso e instaura uma política outra em uma teoria do verso que alia aquilo que a política e o pensamento ocidental sempre separaram: pensamento e corpo, saber e gozo, e, ainda, erotismo e luto, amor e catástrofe.

Referências

  • AGAMBEN, Giorgio. Estâncias. A palavra e o fantasma na cultura ocidental. Tradução de Selvino Assmann. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.
  • AGAMBEN, Giorgio. Ideia da prosa Tradução de João Barrento. Lisboa: Edições Cotovia, 1999.
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  • 1
    Tradução minha: “‘Conta-me o que me passa’, pede o eu ao tu em um poema de César Vallejo. Assim, em um ato de perda extrema onde reconhece não saber nada de si, o eu se ganha, dando um passo de poesia, a boca do testemunho”.
  • 2
    Tradução minha: “a poesia só abre a boca quando tem algo paradoxal para dizer”.
  • 3
    Tradução minha: “a poesia de Vallejo, compelida sempre a se escrever em oximoro, remata, a um só tempo, vida e morte ante nossos narizes”.
  • 4
    Tradução minha: “golpeia a vida perfurando qualquer calcificação do sentido”.
  • 5
    Tradução minha: “um sentimento de profunda animalidade (‘quero escrever mas me sinto puma’) é a condição para que a poesia humana de Vallejo encontre (...) sua possibilidade de se escrever mais além do humano”.
  • 6
    Tradução minha: “que se desvia de qualquer pareamento dualista para buscar a saída no oximoro, é tão reto em sua obstinação em espiral que se impõe a cada volta como um caminho ético”.
  • 7
    Tradução minha: “a um novo golpe de crise”.
  • 8
    Tradução minha: “prece”: “aqui, poesia deve ser entendida como uma narrativa interrompida pelo choro. Vallejo a chamou de ‘prece’. Como se a suspensão do sentido que acompanha o choro fosse um modo de ‘responder’ aos mortos”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Dez 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    03 Mar 2020
  • Aceito
    31 Jul 2020
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