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Apresentação do v. 23, n.1 de Alea. Estudos Neolatinos

Presentation of v. 23, issue 1, of Alea. Estudos Neolatinos

A chamada para o presente volume da Alea convocou à reflexão um tema que vem ocupando um notável espaço na literatura e na crítica literária contemporâneas: Como habitar a terra? Como pensar o comum quando esse comum inclui as múltiplas formas de vida que habitam o planeta, não só a vida humana? Em que medida um saber que valoriza a fluidez das relações entre natureza e cultura pode superar o peso de uma tradição logocêntrica que sacralizou o dualismo excludente para pensá-las? A proposta foi refletir essas questões a partir de algumas experiências estéticas da poesia latino-americana contemporânea, considerando que, como afirmam as organizadoras do dossiê, esse universo poético parece encenar uma disposição singular para encarar essas perguntas, temática e enunciativamente, e sempre como desafio ético.

Com satisfação, podemos dizer que nossa expectativa ao fazer a chamada foi amplamente superada, pela quantidade e qualidade dos textos recebidos, mas também pelo amplo espectro de problemas que o tema abriu e pela variedade de perspectivas de análise que conseguimos reunir nos doze textos que compõem o dossiê.

O leitor encontrará nesse conjunto de artigos instigantes reflexões em torno à ideia de comunidade, entendida esta como uma experiência de abertura e doação ao outro, que nega as dimensões tradicionais de pertencimento, de representatividade e de essência identitária. Essa percepção do comunitário convoca a repensar o que entendemos por latino-americanidade, pergunta cardinal que paira durante toda a leitura do dossiê.

Uma linha de apelo conceitual distingue-se nos textos reunidos: aproximações teóricas em torno às noções de território, paisagem e natureza, sempre atentas para os mecanismos biopolíticos que dominam a vida social moderna e contemporânea, reflexões em torno às relações entre arte, poesia e território; entre página, paisagem e voz; ou entre natureza e linguagem, vinculadas sempre à proposta conceitual de uma episteme focada no imaginário da sustentabilidade e da preservação.

Outra linha, de perfil crítico, notabiliza-se no conjunto: estudos de textos literários e artísticos que evidenciam o desenvolvimento de uma imaginação estética em diálogo com a natureza, com singular atenção para a agência política da literatura ameríndia, cujo debate central está entre duas concepções do mundo irreconciliáveis, uma de base depredatória e individualista, e outra de base preservadora e coletivista.

Todas essas aproximações teóricas e críticas resultam valiosas em termos historiográficos, na medida em que os debates instaurados por esses textos corroem um cânone historiográfico que associa a ideia de natureza ao problema do pertencimento, validando repertórios literários e artísticos que tensionam essas relações de pertencimento ou não pertencimento ao espaço.

Além dos doze artigos que compõem o dossiê e das valiosas palavras das editoras convidadas para a organização do volume, que traçam pautas de leitura muito úteis para o leitor, deixamos espaço para três seções: Artigos, Tradução e Resenhas.

A seção de Artigos inclui três textos. O primeiro revisita criticamente a noção de pós-autonomia, reatualiza as polêmicas em torno a esse conceito e, a partir da dialética benjaminiana entre ilusão e jogo, propõe pensar a ideia de autonomia contingente. O segundo explora a figura do estrangeiro na obra de Maurice Blanchot, pontuando cinco traços definitórios para caracterizá-la: a tragicidade de seu destino, a hospitalidade que evoca, a desordem que realiza, o suplício que incita e a morte que encerra sua trajetória. Já o eixo central de discussão do terceiro texto da seção gira em torno da aporia do começo (da vida, da experiência, do sentido) em sua articulação com a linguagem. Como se pode começar com a linguagem, se o começo do ser é o começo da linguagem? Para acompanhar essa reflexão o autor faz uma leitura muito original de cenas literárias que problematizam a questão do começo.

Na seção de Tradução, incluímos um trabalho que proporciona a agradável experiência de ler em língua portuguesa a poesia do escritor espanhol Antonio Gamoneda (1931). O professor e poeta Saturnino Valladares oferece sua tradução de dezesseis poemas de um livro singular na obra de Gamoneda, Cecilia (2004), uma coleção de trinta e dois textos que surpreende ao leitor pela vitalidade e alegria que percorre suas páginas, em um giro temático inusitado na obra do autor, conhecido pelo pessimismo existencial que caracteriza sua obra e que aqui desaparece totalmente. Trata-se de um livro de reconciliação com a vida, como o próprio autor confessa em entrevista concedida a Jordi Ardanuy (2005ARDANUY, Jordi. ¿Sigo practicando la soledad? Entrevista. Lateral: Revista de Cultura, n. 122, p. 26, 2005., p. 192). De Gamoneda somente foi publicado em Brasil Livro do frio (2019GAMONEDA, Antonio. Livro do frio. Trad. Saturnino Valladares. Manaus: Valer, 2019. ), de maneira que nossa entrega seria o segundo empenho para levar ao leitor brasileiro a obra do extraordinário poeta. Aproveitamos para externar nosso agradecimento a Antonio Gamoneda, pela gentileza de autorizar a tradução e a publicação na Alea de uma seleção de poemas de Cecilia e ao tradutor, que diligentemente atendeu os contatos com o escritor.

Fecha o volume a seção de Resenhas, com a apresentação de duas publicações: o romance de Chico Buarque Essa gente (2019BUARQUE, Chico. Essa gente. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.), com selo editorial de Companhia das Letras (São Paulo, Brasil) e Crítica visual del saber solitario (2019POLANCO, Aurora Fernández. Crítica visual del vaber solitario. Bilbao: Consonni, 2019.), de Aurora Fernández Polanco, com edição impressa e eletrônica da Consonni (Bilbao, Espanha).

Colaboraram nesse volume de Alea professores de diversas universidades brasileiras e estrangeiras, muitos deles pesquisadores CNPq, FAPERJ e CONICET. Do Brasil recebemos colaborações de professores e pesquisadores das seguintes instituições: Universidade Federal Fluminense, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Universidade de São Paulo, Universidade Federal de Santa Catarina, Universidade Federal do Pará, Universidade Federal do Amazonas e Universidade Estadual do Norte do Paraná. Procedentes de intuições estrangeiras colaboraram professores e pesquisadores da Universidad Nacional Autónoma de México, da Universidad Nacional de Córdoba (Argentina), da Universidad Arturo Prat (Chile), da Universidad Nacional de La Plata (Argentina) e da Universidade de Coimbra (Portugal). Agradecemos a participação de todos os colaboradores e, de maneira especial, agradecemos às editoras convidadas pela instigante proposta do dossiê e pelo trabalho desenvolvido em todas as etapas da produção do presente volume. Aos nossos leitores, como sempre, desejamos uma agradável leitura.

Referências

  • ARDANUY, Jordi. ¿Sigo practicando la soledad? Entrevista. Lateral: Revista de Cultura, n. 122, p. 26, 2005.
  • BUARQUE, Chico. Essa gente São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
  • GAMONEDA, Antonio. Livro do frio Trad. Saturnino Valladares. Manaus: Valer, 2019.
  • POLANCO, Aurora Fernández. Crítica visual del vaber solitario Bilbao: Consonni, 2019.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Mar 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2021
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