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Palavras dos editores convidados. Habitar a terra

Words from Guest Editors. Inhabit the Earth

A pergunta sobre como habitar a terra é, sabemos, cada dia mais urgente. E cada dia menos exclusiva de uma questão ambientalista restrita. Hoje, o que podemos chamar de terra e o que podemos pensar no gesto de habitar atravessa a natureza e a linguagem, os corpos e as relações. Embora o vínculo entre poesia e natureza não seja novo, podemos identificar nas últimas décadas uma retomada da atenção crítica a ela dedicada, articulando questões culturais, políticas e econômicas (CUSICANQUI, 2018CUSICANQUI, Silvia Ribera. Um mundo ch’ixi es posible. Buenos Aires: Tinta Limón, 2018.; SVAMPA, 2019SVAMPA, Maristella. Las fronteras del neoextractivismo en América Latina. Conflictos socioambientales, giro ecoterritorial y nuevas dependencias. Guadalajara: CALAS, 2019.). A poesia contemporânea de modo geral, e a latino-americana, em particular, parecem encenar uma disposição para encarar essas questões de diversos modos, mas sempre como um desafio ético: a terra, como habitá-la? Como fazer dessa habitação uma experiência de cuidado e coletivismo?

Repensam-se assim, fundamentalmente, as relações entre natureza e cultura - e mesmo a distinção dicotômica entre ambas. A partir daí, podem ser reavaliados os modos possíveis de interação entre o humano e outras formas de vida - animais, vegetais e minerais; e, junto com eles, distinções hierarquizantes como as que separam práticas primitivas e civilizadas - todas estabelecidas em nome de uma visão de historicidade linear e progressiva. Através desse movimento, acabam por ser colocadas em crise também noções como as de comunidade, povo, nacionalidade e latino-americanidade.

Como efeito produtivo desse movimento e dessa crise, abre-se a possibilidade de novos modos de interação entre arte e filosofia, performatividade e reflexividade, assim como entre os estudos sobre poesia e disciplinas como a antropologia, a etnologia, a geografia, a biologia, a botânica. Em tais abordagens podem se inscrever desde releituras da figuração tradicional da terra natal, do lócus latino-americano exotizante e suas reformulações, até a análise de procedimentos de desterritorialização, seja nos modos de dizer e nos modos de fazer, aquém ou além de fronteiras convencionalizadas.

Os artigos que integram esse número da revista se debruçam sobre essas questões importantes, seja para a história da poesia, seja para a pergunta sobre seu estatuto hoje, já que implicam na problematização dos limites identitários, em termos tanto estéticos quanto políticos, e numa experiência de busca por uma alternativa para nossos corpos, modos de vida e de pensamento menos exploratória ou extrativista do que tem sido, em sua maioria, os modos de leitura acadêmicos.

Desse modo, Raúl Antelo, em “Poesia, paisagem, desapropriação”, reflete sobre as noções de paisagem e de natureza, a partir de uma preocupação com os mecanismos biopolíticos que dominam a vida social moderna e contemporânea. Analisando textos dos escritores César Moro e Roberto Matta, em suas experiências de “afuerinos”, neles enfatiza um estar-entre espaço-temporal que alimenta de anacronismo a historicidade lógico-linear e de dissimetrias e disseminações o espaço físico-geográfico. Tomando como referência principal o pensamento de Giorgio Agamben sobre Reino e Jardim, critica a cisão entre ambos, que equivaleria à dicotomia entre realismo e utopia, ou presente e passado/futuro idealizados. Antelo propõe pensar, a partir daí, a poesia como experiência de dessubjetivação e desapropriação, que constituiria a vida presente como potencialidade de um comum sempre inapropriável (NANCY, 2016NANCY, Jean-Luc. A comunidade inoperada. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2016.)

Para Franca Maccioni, habitar é criar ou recriar um espaço. Em seu texto, “De países otros. (Re)invenciones poéticas del território”, focaliza na abordagem poética do delta do rio Paraná, considerado enquanto junção de água e terra, vegetação anfíbia, também um meio intervalar e fronteiriço. Na forma como é tratado esse meio pelos poemas de Juan L. Ortiz e Francisco Mandariaga, vislumbra uma potência de escuta da terra, em sua habitação por plantas e nativos ribeirinhos, que se apresenta como não determinada por programas desenvolvimentistas, em comparação à sua apropriação por textos de fundação do imaginário territorial argentino, como El Carapachay de Domingo F. Sarmiento, que o figura como um espaço e uma vegetação inúteis, improdutivos, outra face do seu conhecido “deserto”, que precisa ser habitado e civilizado.

Nesse mesmo espaço suspensivo das geografias bem definidas decorrentes de empreendimentos coloniais e nacionalistas se instala - instavelmente - a reflexão de Susana Scramim. Seu texto, “Um lugar mais originário que o espaço”, que toma o título de um verso da poeta Josely Vianna Baptista, vai interrogar, a partir da poesia desta e do filme Zama dirigido por Lucrecia Martel, a necessidade de problematização de uma cultura herdada ocidentalizante que, hoje, não é mais possível aceitar sem discussão. Observando as sucessivas reescritas dos textos (poemas ainda?) de Josely, assim como os cronotopos de enunciação de Zama, tanto na sua versão primeira, como romance de Antonio Di Benedetto, quanto na sua leitura cinematográfica de Lucrecia Martel, Scramim vai discutir a própria noção de origem. E, através dessa discussão, coloca como questão central não a definição identitária de uma natureza fixa, anterior ou separável da cultura, mas o co-pertencimento que aproxima diferentes seres e comunidades - que o trânsito entre textualidades diversas ou o apelo a linguagens híbridas propõem de forma inelutável, porém cheia de tensões.

Se o co-pertencimento é um modo ético de habitar, não é possível entendê-lo como um conceito abstrato, ele se dá em corpos ou espaços singulares, situados. Nesse sentido, Gabriela Milone vai chamar a atenção, em “Voz, página y paisaje. Ficciones fónicas en la poesía argentina contemporânea”, para a materialidade da voz, materialidade que produz paisagens, que inventam espaços e mobilizam potencialidades - como sugeriram os textos anteriores. De modo original, Milone se apoia em reflexões de François Lyotard, Michel de Certeau e Édouard Glissant que não se vinculam a seus conceitos mais estudados ou divulgados, estabelecendo conexões ainda pouco exploradas entre eles. Nessa leitura teórica, a ênfase na materialidade da voz, tanto indica a possibilidade e a necessidade de uma ficção, quanto reclama uma sua leitura crítica da poesia, da literatura, e da cultura de modo geral, poderíamos pensar, menos semantocêntrica ou logocêntrica. Desse modo, a paisagem não é mais compreendida como realidade a priori a ser contemplada, tornando-se um espaço a ser percebido em suas ressonâncias e dissonâncias. A partir daí, os poemas de Beatriz Vallejos e Juan Carlos Bustriazo Ortiz, ambos escritores argentinos pouco abordados pela crítica, são aproximados em sua corporeidade fônica e gráfica.

De certo modo é também a materialidade tanto da linguagem quanto da terra o que está em jogo na leitura que, em “Del poema que se inunda, devastado: Raúl Zurita. Dimensiones ecológicas, aproximaciones ecocríticas y episteme urbanoambiental”, Roberto Espinaza Solar faz dos poemas de Raúl Zurita e, com eles, da catástrofe ambiental dos países explorados pelos grandes interesses econômicos. O ensaio parte da apresentação da genealogia do que tem se chamado “ecocrítica” e aponta para a importância do vínculo que, de formas muito variadas ética e esteticamente, a poesia latino-americana sempre estabeleceu com a ideia de natureza, para depois mergulhar em uma leitura da produção do poeta chileno. Nos poemas de Zurita, principalmente aqueles publicados nos últimos quinze anos, Espinaza Solar identifica, articulando uma leitura temática e intensiva, o que ele chama de uma poética da devastação que dá a ver - já que trata de imagens de rios erodidos, de secas, de desertificações ou inundações - o desastre simultaneamente natural e cultural latino-americano, mas de modo instigante revelando o poema em si mesmo como devastado ou inundado, denunciando, mas também sendo aquilo que denuncia e, nessa desapropriação de si, abrindo o presente como espaçamento e vir a ser.

As ideias de desastre e de devastação são radicalizadas no texto “Últimos poemas na terra”, de Marcos Natali, que se dedica a pensar a encenação estética da iminência do fim - questão importante para a modernidade e que hoje se torna ainda mais urgente. Tomando como base a análise comparativa de Melancholia, de Lars von Trier - que culmina com a destruição literal da Terra após sua colisão com outro planeta, mas que em todo se desenvolvimento se mostra como uma permanente elaboração de diversos fins - e poemas de Roberto Bolaño construídos em torno da imagem do entardecer e do fim do dia, o crítico focaliza diferentes modos da construção do gesto de despedida. A partir desse motor de leitura marcado por uma tensão temporal entre a esperança, o crepuscular, a melancolia e o fim, Natali problematiza a experiência do presente como uma perspectiva ao mesmo tempo política, ética e estética. Porque, afinal, a quem se endereça a despedida, que sujeito se constrói a partir dessa enunciação, que tipo de comunidade é possível nessa temporalidade? Levando assim a produção artística para dentro do contexto mesmo da catástrofe, ele acaba por reafirmar sua potência a partir justamente de um lugar de precariedade e impotência frente à morte e à destruição.

O fim, recuperando a reflexão que todos os textos colocam até aqui, não seria um momento cronologicamente demarcado e não estaria separado totalmente de um começo. Isto fica claro ao observarmos as concepções ameríndias da temporalidade. Pensando na cosmologia guarani, em sua concepção mítica da “Terra sem mal” (Yvy marã’ey), e lendo poetas que retomaram este tema em suas relações com a cultura indígena - como Sophia de Mello Breyner, Josely Vianna Baptista e Waldo Motta -, Izabela Leal, em Perspectivas sobre a ‘Terra sem mal’ na poesia contemporânea” nos convida a refletir sobre uma tendência significativa da nossa poesia e suas repercussões na experiência do presente. O contraponto entre diferentes abordagens poéticas estrutura o modo singular pelo qual a autora põe em diálogo a reflexão antropológica de Hélène Clastres e Eduardo Viveiros de Castro para uma análise sobre a tensão entre tragicidade e pessimismo que faz com que o mito guarani forneça uma importante contribuição para pensarmos o enfrentamento dos dilemas de nossa vida e nosso tempo.

Retomando outra cosmologia ameríndia, a dos tupinambá, o texto “Um ninho na escuridão do mundo: poesia, resistência e decolonialidade”, de Claudete Daflon, vai expor e sublinhar as tensões e desencontros culturais e éticos que se dão na passagem de um mesmo elemento por diversos regimes de visibilidade. Daflon parte de um poema de Edimilson Pereira dos Santos, “De volta ao sol”, que tematiza o manto de plumas de guará enquanto peça importante do ritual dos índios Tupinambá e a museologização que recalca sua apropriação indébita pela ação colonizadora. Com base em uma perspectiva antropológica, é discutido nessa apropriação o uso de dispositivos classificatórios dos campos da arte, da etnografia e da história natural - compreendidos como etnocêntricos e pautados por uma oposição entre natureza e cultura que não corresponde à da cultura indígena, que não toma a natureza como exterioridade e se assenta no cruzamento de barreiras entre espécies e subjetividades. Recuperando pensadores da heterogeneidade, como Édouard Glissant e sua reflexão sobre a crioulização, e ao mesmo tempo Marjorie Perloff, em seu investimento no potencial político próprio da arte, o texto dá a ver a relação entre o pensamento crítico de Edimilsom e seus poemas, associando tensões rítmicas e semânticas, entre escrita e oralidade, entre passado e presente a um movimento de desconstrução e potencialização de identidades.

Em “Habitar e repartir o espaço textual: a natureza delirante em Evando Nascimento”, Eduardo Guerreiro Losso se debruça sobre o primeiro livro do escritor, retrato desnatural (diários - 2004 a 2007), nele mostrando a interseção entre investigação do eu e incorporação de alteridades, através de diferentes modos de ensimesmamento. Essa interseção se desdobra em outras igualmente importantes, cuja costura dá singularidade e consistência ao texto. Assim, a combinação de legibilidade e exigência formal se associaria àquela que aproxima metalinguagem e ensaísmo, reflexividade e delírio, mosaico de máscaras e cartografia temporal. Esse conjunto de procedimentos se direciona ainda, em última análise, para uma experiência extática que performa uma transgressão da distinção dicotômica entre textualidade e paisagem e uma desnaturalização da ideia mesma de natureza (COCCIA, 2010COCCIA, Emanuele. A vida sensível. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2010.)

De modo diverso, o artigo de Maria Eugenia Rasic, “A arte e a poesia de Mercedes Resch diante da ameaça histórica da grande seca”, também vai contribuir para a reflexão em torno dos regimes de visibilidade da arte, mas também da cultura, e a problematização das hierarquias artísticas e seus modelos que são questionados nos textos anteriores. Rasic apresenta a singular obra da artista argentina, moradora da pequena cidade rural Cura Malal, onde ela recolhe pequenos materiais - pregos, arames enferrujados - nos terrenos e nos campos, para depois de algumas intervenções colocá-los em exposição em um pequeno centro cultural local, gerenciado pelos próprios moradores. Assim, o gesto de Mercedes Resch reconfigura os regimes de visibilidade tradicionais, ao mesmo tempo que tensiona com seu trabalho arqueológico e artístico a narrativa geográfica e histórica tradicional, fornecendo elementos para discussão do longo processo de modernização nacional, já que esse pampa foi cenário de uma violenta campanha patriarcal de desertificação desde o início do século XX até o atual presente neoliberal. O ensaio interroga, assim, e levantando relações entre arte visual, poesia, paisagem e território, um gesto de resistência à ameaça da grande seca, esse impulso extrativista e desertificador, hoje global. Nessa resistência, e como acontece no texto seguinte, de Ana Carolina Cernicchiaro, a perspectiva de gênero não é menor, ela opera no texto como elemento fundamental tanto para o desenvolvimento de uma potente apreciação da obra da artista, quanto de uma posição não autoritária da arte.

Quando se fala, por exemplo, de uma perspectiva feminista que leve em conta os trabalhos invisibilizados, na sua maioria realizados por mulheres, negados como trabalhos e que hoje são nomeados como “trabalhos de cuidado”, há não apenas uma disputa por justiça de gênero, mas uma disputa de modos de se relacionar com o outro, em relações menos exploratórias das quais a arte e a crítica não estão isentas (FEDERICI, 2019FEDERICI, Silvia. O ponto zero da revolução. Trad. Coletivo Sycorax. São Paulo: Elefante, 2019.). Isto é trabalhado por Ana Carolina Cernicchiaro em “A terra como corpo: a ‘economia do cuidado’ contra as cinzas do ‘povo da mercadoria’”, ao definir uma “guerra de mundos” ou uma guerra de economias onde só em uma das concepções é possível “co-existir”. Para ela, ainda, uma poética que se pense vinculada desde sempre à terra é imanente a produção dos povos originários já que seria impossível, nas cosmologias ameríndias, separar a dimensão que o ocidente chama de poética do resto das ações de convívio com o mundo. Assim, não seria possível pensar em regimes poéticos separados de regimes éticos e, principalmente, não seria possível entender a arte enquanto um dispositivo separado de outros agenciamentos.

É a preocupação com os regimes de visibilidade - que vão aparecer enquanto regimes de leitura - e como operar sem reiterar um modo exploratório de construir saber ou mesmo arte - o que está no centro do texto de Vinícius Ximenes. Em “Extrações e fragmentos no discurso latino-americano: arquivo, leitura, pedagogia”, Ximenes propõe-se a pensar a relação entre poesia e latino-americanidade, tendo em vista a relação entre pedagogias de leitura e usos da terra. Do ponto de vista teórico-crítico, empreende uma revisão do processo de constituição do discurso latino-americano tal como formulado por Silviano Santiago. Nele discutindo a permanência de um vínculo telúrico, pergunta-se, com a ajuda da reflexão de Josefina Ludmer, como voltar a pensar a terra e o território, bem como a página e a escrita, como eixos de compostagem, de composição coletivista, em que a hermenêutica extrativista, análoga à prática capitalista de mineiração é substituída por um jogo entre ficção e teoria, imaginação e pensamento, poesia e modos de vida. A leitura de poemas de Marília Garcia e Ana Estarégui serve para concretizar essa proposta.

Se a proposta do dossiê era, em primeiro lugar, uma pergunta, essa pergunta é reafirmada pelos textos que aqui apresentamos. A poesia, em todos eles, deixa de ser um exemplo ou algo descolado do problema de como habitar a terra, mas é experimentada e compreendida como parte dele. A poesia, ou melhor, certos poemas e poetas, permitem posições de leitura menos autoritárias, menos patriarcais, algum gesto de sobrevivência.

Referências

  • COCCIA, Emanuele. A vida sensível Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2010.
  • CUSICANQUI, Silvia Ribera. Um mundo ch’ixi es posible Buenos Aires: Tinta Limón, 2018.
  • FEDERICI, Silvia. O ponto zero da revolução Trad. Coletivo Sycorax. São Paulo: Elefante, 2019.
  • NANCY, Jean-Luc. A comunidade inoperada Rio de Janeiro: 7 Letras, 2016.
  • SVAMPA, Maristella. Las fronteras del neoextractivismo en América Latina. Conflictos socioambientales, giro ecoterritorial y nuevas dependencias. Guadalajara: CALAS, 2019.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Mar 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2021

Histórico

  • Recebido
    02 Jan 2021
  • Aceito
    01 Mar 2021
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