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Apresentação do v.23, n.2 de Alea. Estudos neolatinos

Presentation of v.23, issue 2, of Alea. Estudos neolatinos

Quando a curadoria da Tate Triennial de 2009 em seu célebre manifesto Altermodern caracteriza a cultura contemporânea a partir dos fluxos, dos itinerários, dos percursos (entre signos, entre textos, entre culturas, entre tradições), apontando para as múltiplas negociações planetárias que se operam no mundo de hoje, define também a natureza linguística dessa experiência cultural. Tradução, legendagem universal, dublagem generalizada são marcas definitivas da nossa época, “desprendida de um centro, nossa altermodernidade só pode ser poliglota” afirma Nicolás Bourriaud (2009BOURRIAUD, Nicolas. Altermodern. Londres, Tate Publishing, 2009. Disponível em: https://www.tate.org.uk/whats-on/tate-britain/exhibition/altermodern/altermodern-explain-altermodern/altermodern-explained
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, n.p.), autor do manifesto e curador da mostra.

Essa provocadora proposta de Bourriaud nos instigou a pensar na possibilidade de preparar um dossiê da Alea dedicado ao tema das escritas translíngues, cientes de que trânsitos linguísticos estiveram sempre presentes no horizonte das culturas neolatinas, basta pensar no arquivo americano, marcado pela heterogeneidade e pela alteridade linguística desde sua própria origem, conforme apontam Antonio Andrade e Pablo Gasparini, editores convidados para este volume.

A ideia foi reunir textos que, de alguma maneira, discutissem as práticas translíngues como signos de desestabilização das formas canonizadas de pensar a comunidade literária, sobretudo quando o comunitário é associado às ideias de origem representatividade e unidade territorial e linguística, problematizando assim toda articulação linear e contínua entre literatura, língua e território. Algumas perguntas convidavam à reflexão: De que forma textos marcados pelas práticas translíngues estão presentes nos processos de formação de cânone? Que impacto tem essa produção no âmbito da crítica e da historiografia literária? Como pensar as formas de extraterritorialidade descritas por Steiner (1990STEINER, George. Extraterritorial: a literatura e a revolução da linguagem. Trad. Júlio Castañon Guimaraes. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.) no contexto dos exílios da modernidade, ou seja, associadas ao intelectual exilado moderno, e ainda pensar em uma extraterritorialidade associada às grandes massas de refugiados e sujeitos em diáspora da contemporaneidade? Como se dão esses movimentos de apropriação e trânsitos idiomáticos na obra de escritores que produzem sua obra a partir do locus da fronteira ou de comunidades diglóssicas? De que modo os estudos de tradução podem contribuir para a reflexão em torno das práticas translíngues? Qual é a produtividade de se refletir, na esfera dos estudos literários e dos estudos culturais, a respeito dos processos de correlação entre línguas (maternas/estrangeiras; oficiais/minoritárias; coloniais/autóctones)? Como este tema das escritas translíngues pode contribuir para travar frutíferos diálogos entre glotopolítica e políticas da criação, da distribuição e da recepção da literatura?

A resposta à chamada foi muito gratificante, pois conseguimos reunir um conjunto notável de artigos, focados nos mais variados contextos literários e nas mais variadas experiências estéticas. Um amplo leque de temas circulam no dossiê: a prática translíngue do escritor marroquino Abdellah Taïa; a poética heterolíngue do poeta franco-alemão Léonce Lupette; o trânsito entre línguas da canadense Nancy Huston; a crise do modelo hegemônico de língua nacional na obra de três escritores chilenos, Alejandra Costamagna, Alejandro Zambra e Daniela Catrileo; a dicção poética de João Cabral de Melo Neto; o neocriollo de Xul Solar, o portunhol de Wilson Bueno; a poética translíngue do peruano Gamaliel Churata; a perspectiva exílica na língua do filólogo italiano Benvenuto Terracini; a tensão insolúvel entre a Muttersprache (língua materna) e a Mördersprache (língua dos assassinos) na poética de Paul Celan; a riqueza poética das textualidades indígenas do circum-Roraima, vista através do estudo comparado de duas versões do Watunna, a cosmogonia ye’kwana, a do francês Marc de Civrieux e a do escritor ye’kwana Marcos Rodrigues e a prática tradutológica do poeta estadunidense Jerome Rothenberg e seu legado etnopoético.

Também o dossiê mostra um panorama amplo e bem fundamentado dos lugares teóricos pelos que discorre o debate contemporâneo das escritas translíngues. Partindo da clássica noção de extraterritorialidade de George Steiner (1990STEINER, George. Extraterritorial: a literatura e a revolução da linguagem. Trad. Júlio Castañon Guimaraes. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.), comparecem na leitura do dossiê conceitos como translinguismo literário (Kellman, 2000KELLMAN, Steven. The translingual imagination. Lincoln: Univ. Nebraska Press, 2000.; Bruera, 2017BRUERA, Franca. Translinguisme littéraire: frontières, représentations et définitions. Cosmo. Comparative Studies, Rivista del Centro Studi Arti della Modernità, n.11, 2017, p. 9-18.), imaginação translíngue (Kellman, 2000KELLMAN, Steven. The translingual imagination. Lincoln: Univ. Nebraska Press, 2000.); sensibilidade translíngue (Kellman & Slavan, 2004), poéticas translíngues (Pratt, 2014PRATT, Mary Louise. Lenguas viajeras: hacia una imaginación geolingüística. In: Cuadernos de literatura, Vol. XVIII, n.36, 2014, p. 238-253.), heterolinguismo (Suchet, 2014SUCHET, Myriam. L’Imaginaire hétérolingue. París: Classiques Garnier, 2014. ), bilinguismo e autotradução (Oustinoff, 2001OUSTINOFF, Michaël. Bilinguisme d'ecriture et autotraduction. Julien Green, Samuel Beckett, Vladimir Nabokov. Paris: L'Harmattan, 2001.); tradução em zonas de contato (D’Amore, 2010D’AMORE, Anna Maria. Traducción en la zona de contacto. In: Mutatis Mutandis. Vol. 3, No. 1, 2010, p. 30 - 44.); dentre outras noções que circulam nos estudos de transárea (Ette, 2018ETTE, Otmar. EscreverEntreMundos: literaturas sem morada fixa. Trad. Rosani Umbach; Dionei Mathias; Teruco Spengler. Curitiba: Ed. UFPR, 2018.) e que de alguma maneira remetem à proposta sempre atual de heterogeneidade cultural postulada por Antonio Cornejo Polar (2003CORNEJO POLAR, Antonio. Escribir en el aire. Ensayo sobre la heterogeneidad socio-cultural en las literaturas andinas. Lima: CELAP / Latinoamericana Editores, 2003.).

Além dos doze artigos que compõem o dossiê e das valiosas palavras dos editores convidados para a organização do volume, que traçam pautas de leitura muito úteis para o leitor, deixamos espaço para quatro seções já tradicionais em nossa revista: Artigos, Tradução, Entrevista e Resenhas.

O primeiro texto da seção Artigos trata da recepção de Brecht nos cinemas europeu e argentino, analisando a circulação dessa tradição, suas reformulações e sua assimilação na obra de cineastas de ambos os lados do Atlântico. O segundo descreve o funcionamento do circuito lírico na Havana da primeira metade do século XIX, analisando como ópera e escravidão são temas que se entrelaçam na obra de Juan Francisco Manzano, Cirilo Villaverde e a Condessa de Merlin: a ópera, como um eixo da engrenagem cultural e social da cidade, e o escravizado, como elemento que põe em movimento essa engrenagem. O terceiro texto está focado na obra do escritor porto-riquenho Eduardo Lalo e de maneira singular em seu livro de artista donde (2005), uma experiência que eclode as formas tradicionais de legibilidade, de representação e de filiação literária. Isto permite à autora atualizar a discussão em torno às noções de identidade e de comunidade, revistas no contexto de uma cultura que subverte o modelo moderno de pensar esses conceitos. Um estudo de outra obra singular do repertório latino-americano contemporâneo fecha a seção Artigos, refiro-me a oútis, o texto que abre o livro Não (2003), de Augusto de Campos. A peça, que também exige o abandono dos paradigmas tradicionais de legibilidade e representatividade para sua leitura permite ao articulista refletir de maneira mais ampla na poética escritural do poeta brasileiro.

Na seção de Tradução, incluímos um trabalho que está em estreita sintonia com o tema da chamada que fizemos para o presente volume. Trata-se da tradução para o português dos poemas "Nuevas palabras", do argentino Santiago Sylvester, e "Sincuentiún", do uruguaio Fabián Severo, duas experiências criativas marcadas pelo deslocamento e pela vivência fronteiriça. Apesar de responder a poéticas materialmente distintas, ambos os poemas mostram a incessante ressignificação da memória, da linguagem e do sujeito em espaços marcados pela fricção cultural e pelos múltiplos reacomodamentos que implicam as experiências de desterritorialização e de fronteira. A tradução desse tipo de textualidade implica, nesse sentido, todo um desafio linguístico.

Também privilegiamos na seção Entrevista um texto que dialoga com as propostas da chamada deste volume de Alea. A Profa. Dra. Maria José Coracini, responde um magnífico tutorial de perguntas preparadas por Antonio Andrade (UFRJ), Maria Teresa Celada (USP) e Pablo Gasparini (USP) em torno a temas que atravessam sua produção intelectual: a relação entre língua materna e língua estrangeira, que no caso da Profa. Coracini é analisada fora de um tradicional modelo binário e excludente; a relação entre deslocamentos territoriais e linguísticos, ligados à experiência da migração; os processos de maternização da língua estrangeira e de estrangeirização da língua materna; as experiências de viver/estar/escrever entre línguas; apresentando valiosos exames críticos em torno à obra de intelectuais como Samuel Beckett, Tzvetan Todorov ou Paul Celan, cuja escrita é produzida fora da ilusão de plenitude de qualquer língua em particular.

Fecha o volume a seção de Resenhas, com a divulgação de duas publicações: uma coletânea de ensaios em torno ao tema das escritas translíngues, organizado por Antonio Andrade e Ana Maria Lisboa de Melo, com selo editorial de 7Letras (Rio de Janeiro, 2019) intitulado Translinguismo e Poéticas do ContemporâneoLISBOA DE MELLO, Ana Maria; ANDRADE, Antonio (eds.). Translinguismo e Poéticas do Contemporâneo. Rio de Janeiro: 7Letras, 2019, 194 p. e uma coleção de ensaios de Alberto Giordano, que nos entrega a editora Beatriz Viterbo (Rosario, 2020GIORDANO, Alberto. El giro autobiográfico, Rosario: Beatriz Viterbo, 2020, 244 p.) e reúne trabalhos do crítico e professor argentino sob o título El giro autobiográfico.

Agradecemos a participação de todos os autores que colaboraram com este volume, professores brasileiros das seguintes instituições: Universidade Federal de Viçosa, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto Federal do Norte de Minas Gerais, Universidade Federal de Santa Catarina, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Universidade Federal de Ouro Preto, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Universidade Federal de Roraima, Universidade Federal do Pará, Universidade Estadual de Campinas e Universidade de São Paulo; e professores estrangeiros da Universidad Nacional de Córdoba (Argentina), da Universidad Nacional de La Plata (Argentina), da Universidade Católica Argentina (Argentina), da Pontificia Universidad Católica de Chile (Chile), da Universidad de Buenos Aires (Argentina), da Universidad de Tres de Febrero (Argentina), da Universidad Nacional de Rosario (Argentina), da University of Manchester (Reino Unido), da Universitat Pompeu Fabra (Espanha) e da Universität Potsdam (Alemanha).

Aos editores convidados fazemos um agradecimento especial, pela excelente proposta do dossiê, pela qualidade do trabalho desenvolvido e pela parceria em todas as etapas da produção do presente volume. Aos nossos leitores, como sempre, desejamos agradáveis e frutíferas leituras.

Referências

  • BOURRIAUD, Nicolas. Altermodern Londres, Tate Publishing, 2009. Disponível em: https://www.tate.org.uk/whats-on/tate-britain/exhibition/altermodern/altermodern-explain-altermodern/altermodern-explained
    » https://www.tate.org.uk/whats-on/tate-britain/exhibition/altermodern/altermodern-explain-altermodern/altermodern-explained
  • BRUERA, Franca. Translinguisme littéraire: frontières, représentations et définitions. Cosmo. Comparative Studies, Rivista del Centro Studi Arti della Modernità, n.11, 2017, p. 9-18.
  • CORNEJO POLAR, Antonio. Escribir en el aire. Ensayo sobre la heterogeneidad socio-cultural en las literaturas andinas Lima: CELAP / Latinoamericana Editores, 2003.
  • D’AMORE, Anna Maria. Traducción en la zona de contacto. In: Mutatis Mutandis Vol. 3, No. 1, 2010, p. 30 - 44.
  • ETTE, Otmar. Pensar o futuro: a poética do movimento nos Estudos de Transárea. In: Alea, vol.18, no.2, Rio de Janeiro, 2016, p.192-2019.
  • ETTE, Otmar. EscreverEntreMundos: literaturas sem morada fixa Trad. Rosani Umbach; Dionei Mathias; Teruco Spengler. Curitiba: Ed. UFPR, 2018.
  • GIORDANO, Alberto. El giro autobiográfico, Rosario: Beatriz Viterbo, 2020, 244 p.
  • KELLMAN, Steven. The translingual imagination Lincoln: Univ. Nebraska Press, 2000.
  • KELLMAN, Steven. The Translingual Sensibility: A Conversation Between Steven Kellman and Stavans. L2 Journal, Vol. 7, N.1, 2015.
  • LISBOA DE MELLO, Ana Maria; ANDRADE, Antonio (eds.). Translinguismo e Poéticas do Contemporâneo Rio de Janeiro: 7Letras, 2019, 194 p.
  • OUSTINOFF, Michaël. Bilinguisme d'ecriture et autotraduction. Julien Green, Samuel Beckett, Vladimir Nabokov Paris: L'Harmattan, 2001.
  • PRATT, Mary Louise. Lenguas viajeras: hacia una imaginación geolingüística. In: Cuadernos de literatura, Vol. XVIII, n.36, 2014, p. 238-253.
  • STEINER, George. Extraterritorial: a literatura e a revolução da linguagem Trad. Júlio Castañon Guimaraes. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
  • SUCHET, Myriam. L’Imaginaire hétérolingue París: Classiques Garnier, 2014.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Out 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021
Programa de Pos-Graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras -UFRJ Av. Horácio Macedo, 2151, Cidade Universitária, CEP 21941-97 - Rio de Janeiro RJ Brasil , - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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