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Ser-estar entre-línguas-culturas: entrevista com Maria José Coracini

Being between-languages-cultures: an interview with Maria José Coracini

Resumo

A entrevista com a Profa. Dra. Maria José Coracini (Unicamp, IEL/DLA), pesquisadora 1A do CNPq, foi realizada virtualmente em 2020 e oferece uma série de considerações e desenvolvimentos teóricos sobre temas afins ao dossiê “Literatura e práticas translíngues”. A partir da psicanálise, a pesquisadora revisita o conceito de “língua materna” e enfatiza - contra certa dicotomização entre o materno e o estrangeiro - os processos de maternização da língua estrangeira e de estrangeirização da língua materna. Desse modo, a reflexão se deixa acompanhar pela observação e análise de diversos exemplos de deslocamentos territoriais e linguístico-discursivos, notoriamente aqueles ligados à migração e para cujo estudo Coracini propõe e apresenta o conceito de língua-cultura. Por último, as considerações sobre identidade e língua são retomadas para o exame crítico das experiências de escritores e intelectuais que, como Samuel Beckett, Tzvetan Todorov e Paul Celan, exerceram sua escrita fora da ilusão de plenitude em alguma língua específica.

Palavras-chave:
discurso; língua(s); subjetividade; alteridade; deslocamentos linguístico-discursivos

Abstract

The interview with Professor Maria José Coracini, Ph.D. (Unicamp, IEL/DLA), CNPq researcher 1A, was conducted virtually in 2020 and offers a series of theoretical considerations and developments on topics related to the dossier “Literature and translingual practices”. Based on psychoanalysis, the researcher revisits the concept of “mother tongue” and emphasizes - against a certain dichotomy between the native and the foreigner - the processes of making the foreign language native and making the mother tongue foreign. In this way, the reflection is accompanied by the observation and analysis of several examples of territorial and linguistic-discursive displacements, notably those linked to migration and for whose study Coracini proposes and presents the concept of language-culture. Finally, considerations about identity and language are retaken in order to critically examine the experiences of writers and intellectuals who, like Samuel Beckett, Tzvetan Todorov and Paul Celan, developed their writing outside the illusion of completeness in any specific language.

Keywords:
discourse; language(s); subjectivity; otherness; discursive-linguistic displacements

Resumen

La entrevista con la Prof. Dra. Maria José Coracini (Unicamp, IEL/DLA), investigadora 1A do CNPq, realizada virtualmente en 2020, ofrece una serie de consideraciones y desarrollos teóricos sobre temas afines al dossier “Literatura y prácticas translingüísticas”. Desde el psicoanálisis, revisita el concepto de “lengua materna” y destaca - a contramano de cierta dicotomización entre lo materno y lo extranjero - los procesos de maternización de la lengua extranjera y de extranjerización de la materna. Su reflexión encuentra apoyo en la observación y el análisis de diversos ejemplos de desplazamientos territoriales y lingüístico-discursivos, principalmente los relacionados con migración, para cuyo estudio, Coracini propone y presenta el concepto de lengua-cultura. Por último, retoma las consideraciones sobre identidad y lengua para examinar las experiencias de escritores e intelectuales que, como Samuel Beckett, Tzvetan Todorov y Paul Celan, ejercieron su escritura fuera de la ilusión de plenitud en alguna lengua específica.

Palabras clave:
discurso; lengua(s); subjetividad; alteridad; desplazamientos lingüístico-discursivos

Nos últimos 30 anos houve uma intensificação da reflexão sobre certos aspectos implicados nos movimentos migratórios, sobretudo no que se refere aos deslocamentos e investimentos subjetivos aos quais os sujeitos, em tais situações, estão imersos. Nesse trabalho a dimensão da(s) língua(s) foi fulcral e sua consideração rendeu uma série de formulações e de distinções produtivas para os estudiosos que abordam o funcionamento da linguagem, seja a partir da materialidade literária, da consideração dos processos de inscrição na ordem da língua do outro ou do tratamento das políticas de língua que devem acompanhar os processos envolvidos nas diferentes formas de migração.

A presente entrevista se propôs como objetivo perguntar sobre algumas formulações conceituais centrais nessa linha de reflexão, sugerindo a necessidade de revisar sua capacidade de “manter a referência” sem achatar nuances e necessárias distinções. Nesse feixe conceitual foi considerada a questão de como a(s) língua(s) se coloca(m) nesses trânsitos migratórios, o que levou a contemplar tópicos clássicos: a relação entre língua materna e língua estrangeira e a dimensão identitária, envolvendo a tensão entre identidade-alteridade.

No caso, quem aceitou com interesse e entusiasmo nosso convite foi Maria José Coracini, professora titular em Linguística Aplicada na Área de Ensino/Aprendizagem de Língua Estrangeira, do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e pesquisadora 1A do CNPq. Sua experiência em práticas que envolvem diretamente a dimensão da(s) língua(s) junto com sua trajetória na reflexão sobre identidade-alteridade a partir das teorias do discurso, da psicanálise e do desconstrutivismo derridiano - presentes em livros como Identidade e Discurso (2003) e A celebração do outro: arquivo, memória e identidade (2007) - tornaram possível um diálogo no qual o leitor poderá realizar percursos capazes de permitir a revisão de algumas questões, bem como alimentar a formulação de novas indagações.

CELADA, ANDRADE & GASPARINI: Professora Coracini, a partir do cruzamento entre análise do discurso e psicanálise, como você pensa o conceito de “língua materna”?

M. J. CORACINI: Antes de mais nada, gostaria de agradecer o convite que me foi gentilmente feito pelos professores María Teresa Celada (USP), Antonio Andrade (UFRJ) e Pablo Gasparini (USP) para esta entrevista. Para responder à primeira questão, acredito que é preciso, em primeiro lugar, problematizar a noção de língua materna. A psicanálise costuma dizer que a língua materna é aquela na qual o sujeito se conta e conta. Uma vez, uma psicanalista francesa me lembrou com que facilidade falamos, por exemplo, o número de telefone em nossa própria língua e a dificuldade que temos ao fazê-lo na língua do outro. Mas, contar-se na própria língua é se encontrar num dado lugar no mundo e esse lugar nos é dado principalmente pela língua-cultura que nos constitui: é, pelo menos, o que afirma a psicanálise lacaniana. Segundo Charles Melman, em Imigrantes. Incidências subjetivas das mudanças de língua e paísMELMAN, Charles. Imigrantes. Incidências subjetivas das mudanças de língua e país. [Tradução: Rosane Pereira / Organização e revisão técnica: Contardo Calligaris]. São Paulo: Escuta, 1992., a língua estrangeira é aquela que aprendemos (pela forma gramatical, pelo vocabulário...), como diriam linguistas aplicados da década de 80 e 90, de forma consciente; não adquirimos a língua estrangeira, nós a conhecemos. A língua que sabemos é a materna. Eu costumo lembrar que “saber” em português de Portugal tem também o sentido de saborear; quando se diz: “este fruto me sabe”, isso quer dizer que me delicia, é suculento, saboroso, tem sabor e saber. Ora, dizendo isso, Melman dicotomiza as duas línguas, como se, de um lado, a língua materna fosse aquela com a qual nos identificamos, na qual nos sentimos bem, expressamo-nos bem e a língua estrangeira fosse aquela do estranhamento, da gramática, portanto, do conhecimento: trata-se da língua do outro, do estranho. Jamais poderíamos nos contar na língua do outro. Entendo que essa afirmação se apresenta muito dogmática, como se fosse assim para todos e ponto final. Há aproximadamente 15 anos, fiz uma pesquisa, apoiada pelo CNPq, que me foi muito prazerosa, sobre “Ser-estar entre línguas-culturas”, na qual entrevistei estrangeiros vivendo no Brasil e brasileiros que, por diversas circunstâncias, já haviam vivido por pelo menos seis meses em um país de outra língua-cultura. Dentre eles, pude contar com uma estudante de doutorado que havia morado na França durante quatro anos, após a graduação em Letras Português-Francês, cursada em uma universidade estadual de São Paulo. Ela teve de voltar da França por ocasião da morte de seu pai. Retornando, não tinha mais condições financeiras para voltar. Mas, o seu desejo continuava lá. O caso dela me pareceu muito interessante, porque se recusava a escrever em língua portuguesa, alegando que não sabia escrever em português, mas que podia escrever em francês. Ora, numa universidade paulista, na pós-graduação, ela deveria escrever em língua portuguesa. Mas, por que se recusava a escrever em português? Quando era criança, as professoras do ensino de primeiro grau diziam que ela falava errado e ela dizia que falava como se falava em casa. Disseram, então, a ela que seus pais não sabiam falar; por isso, ela tirava sempre notas muito baixas em língua portuguesa. Passava vergonha e não queria participar das aulas. Apenas no ensino superior, no curso de Letras Português/Francês, descobriu que tinha muita facilidade para a língua francesa: colegas a procuravam para tirar dúvidas, coisa que nunca haviam feito antes; tirava notas ótimas; enfim, sentiu-se valorizada, capaz; e por isso, ela considerava a língua francesa como sua língua materna e não a língua portuguesa. A língua do outro era, para ela, o lugar de repouso, a língua em que se contava; a língua portuguesa era a língua do sofrimento, da frustração, da recusa, do seu apagamento... Talvez valha a pena entender a história de cada um, em vez de fixar, de uma vez por todas, categorias e aplicá-las aos sujeitos.

Em qualquer situação, precisamos observar que a língua materna nem sempre é a língua em que nos dizemos e dizemos: quantas vezes sentimos dificuldades de nos expressar, de colocar em palavras o que sentimos ou pensamos; faltam-nos palavras, modos de dizer mais adequados. E, de forma oposta, quantas vezes dizemos em língua estrangeira o que não somos capazes de fazer na chamada língua materna. Basta lembrar de Fernando Pessoa que só conseguia escrever poemas eróticos em língua inglesa; é ainda mais fácil xingar alguém na língua do outro no que na dita língua própria; e estes são apenas dois exemplos dentre muitos. Na língua materna, o supereu, que é a origem da consciência moral, nos interdita, impõe regras, ao mesmo tempo em que promove o gozo, como explica Lacan. Pode-se, pois, falar de maternização da língua estrangeira e de estrangeirização da língua materna ou, melhor, falar de lalangue como o lugar de lalação, onde se encontram fragmentos de todas as línguas-culturas que nos constituem, que se manifestam muito frequentemente ao mesmo tempo. Essa foi a tese que defendi no concurso para titular na Unicamp, em 2007. É por isso que discordo da visão, que ainda é hoje corrente, de que ser bilíngue ou trilíngue significa saber usar cada uma das línguas de maneira independente, sem que ocorram misturas. Isso parece impossível, como mostrou a pesquisa a que me referi há pouco e como mostra Melman (Imigrantes. Incidências..., p.15-17). Segundo ele, “o inconsciente não cria nenhum obstáculo à mixagem das línguas. (...) O inconsciente não é nem nacionalista nem xenófobo”. Mas, parece evidente que há uma certa dessimetria entre as línguas, dessimetria essa que é diferente de sujeito para sujeito, como já comentamos: uma seria a língua do mestre, a outra, do escravo, representadas por S1 (conjunto mestre) e S2 (conjunto escravo); o S1 representa o sujeito para o S2: este não representa o sujeito para outro significante, porque exerce a função de designação, “transformando-se no signo que designa, que denuncia para alguém um sujeito que se origina de um lugar (...) Estrangeiro” (p.17). Este, como conclui Melman, dada a função de dominus desempenhada por S1, deve ser destruído ou educado. E aí está o processo que, sob o peso da resistência (normal e compreensível) do migrante, faz sofrer pela lentidão e pela incompreensão.

Há ainda mais um aspecto que gostaria de mostrar a respeito das línguas. O bebê, ainda no ventre materno, é inscrito numa certa língua-cultura, na história dessa língua-cultura: já é nomeado, sua mãe fala com ele(a), prepara-lhe o enxoval dirigido ao sexo que é definido tecnicamente por um aparelho, prepara seu quarto, respeitando as regras sociais que ditam o modo certo de fazê-lo. Quando o bebê nasce, já tem alguma familiaridade com aquela língua-cultura que o(a) acolhe. A mãe, o pai e/ou a cuidadora (avós ou babá) falam com a criança, explicam o que está acontecendo, nomeiam objetos, como se ela estivesse entendendo tudo. Pouco a pouco, ela parece ir entendendo e mais lentamente ainda ela vai repetindo palavras até que, um dia, ele ou ela se põe a falar. Em que língua? Na língua da mãe... Erick Porge, psicanalista francês, deu a seguinte interpretação, há anos numa palestra na Unicamp/IEL: o bebê devolve pela linguagem o que sua mãe ou cuidadores fizeram por ele/ela, assumindo-o(a) como sujeito. Prestemos atenção: o bebê não fala a sua língua; esta é feita de lalações, de gritos, de grunhidos e de choro; o bebê fala a língua da mãe, retribuindo-lhe o afeto e o cuidado de assumi-lo como sujeito. Achei essa explicação lindíssima. Mas, o importante é entender que o bebê fala a língua do outro, uma língua estranha e - por que não? - estrangeira. Com base nessa explicação, haveria uma língua própria? Segundo Derrida, a língua não se deixa apropriar, ela não é propriedade de ninguém: toda língua é minha e é do outro, é do outro e pode ser / é minha. Nesse sentido, como desprezar, odiar, recusar o migrante que sai de suas terras para habitar a língua-cultura do outro, ainda que já constituído por outra(s) língua(s)-cultura(s)? Teríamos o direito de impedi-lo, de lhe negar acolhida?

No momento, tenho duas orientandas - uma de mestrado (Louise Pavan) e uma de doutorado (Giulia Gambassi) - que trabalham com questões de (i)migração: a primeira busca entender como estudantes provenientes de outros países se sentem acolhidos pela Unicamp, porque sabemos que uma coisa é o regimento oficial de acolhimento da universidade que pretende teoricamente respeitá-los e inseri-los no âmbito estudantil, facilitando a sua inserção na comunidade universitária, na sociedade e, se possível, no mercado de trabalho, outra coisa é como esses estudantes, muitas vezes com esposa e filhos, vivem esse período, como se sentem acolhidos na universidade e fora dela. No início da entrevista, parece que tudo está de acordo com o esperado, mas, conforme a conversa avança, eles deixam claro o sofrimento por que passaram e ainda passam, sobretudo pela discriminação de outros estudantes ou pessoas em geral, pela incompreensão das diferenças culturais, pelo distanciamento da família e pela burocracia que entrava as possibilidades de um convívio esperado mais rapidamente.

A doutoranda está pesquisando a respeito de (i)migrantes refugiados ou forçados que saem de seus países por questões de guerra ou problemas políticos insuportáveis. São muitas vezes escolhidos para migrarem para este ou aquele país: nem a escolha do lugar para morar lhes é concedida. E, ainda assim, precisam se submeter às regras do país de acolhida (ainda que não sejam de fato acolhidos), à boa vontade do país e à tolerância da sociedade que acolhe, sendo-lhes gratos por “tantos benefícios”... A ironia que não pude evitar em meu enunciado precedente vem das respostas concedidas à pesquisadora que tem por objetivo compreender como se sentem entre-línguas-culturas, como reconfiguram sua identidade cada vez mais híbrida na medida em que incorporam fragmentos da cultura do outro na tentativa de se adequarem às novas condições de vida.

Sem voz, sem vida, sem vez e sem nome, verdadeiros apátridas... é assim que muitos se sentem no jogo xenofóbico da mobilidade urbana e internacional. Falo de mobilidade urbana ou até regional, porque aqueles que se deslocam de um estado a outro do país, que migram para regiões consideradas mais ricas e mais promissoras se sentem perdidos na selva urbana de cidades como São Paulo e Rio, sem lugar para morar, sem direito a voz, desnorteados pelas diferenças linguístico-culturais, pela discriminação e exclusão, como se estivessem foracluídos da humanidade. Esse fenômeno pode ser explicado pela hospitalidade que Derrida afirma nunca ser incondicional como deveria. Há sempre condições para receber alguém no país. Assim como a palavra hospitalidade se constitui de dois radicais latinos - hospes, que deu hospital, hospício, hóspede, dentre outros, e hostes que, deu hostil, hostilidade, hotel, hotelaria etc. - a hospitalidade é também hostilidade ou, melhor, é sempre “hostipitalidade”; daí o efeito de contradição que cerca as circunstâncias da migração. E isso não ocorre apenas nas relações diplomáticas entre países, mas entre cidadãos de um país que pensa estar acolhendo alguém impondo-lhe condições para ser tolerado.

CELADA, ANDRADE & GASPARINI: Em algumas elaborações teóricas sobre o acontecimento subjetivo de estar entre-línguas observamos uma certa tendência, que poderíamos chamar de “romântica”, pois tende a considerar a "língua materna" como uma língua de plenitude. Enquanto isso, em outras reflexões, mais marcadas pela psicanálise lacaniana, essa aparente plenitude é colocada em questão. Você reconhece essa tensão? Como a avalia? Gostaríamos de ouvi-la a esse respeito.

M. J. CORACINI: Sim, sem dúvida: é preciso problematizar essa aparência de plenitude ou de completude atribuída à língua dita materna, até para entender que o sujeito não consegue alcançar tal completude, sempre ilusória e enganosa: temos a ilusão de que controlamos tudo - nossos atos, reações, palavras e sentidos -, mas, na verdade, não conseguimos controlar nada ou quase nada. Essa tendência à completude provém, acredito eu, da cultura greco-latina, que deu origem à cultura ocidental de que somos herdeiros: somos inteiros, vemo-nos como pessoas completas (quando não temos nenhuma falha, ou quando pensamos que não temos falhas), buscamos a verdade e o progresso. A verdade se obtém, segundo Platão, buscando o certo e abandonando o errado, buscando o saber científico e abandonando as artes, tudo o que é subjetivo, que diz respeito ao sujeito e não ao objeto, buscando cada vez mais o império da razão, do logos, do irredutível. Ora, desde a Antiguidade greco-latina, somos marcados pelo pensamento dicotômico, que prioriza a razão em detrimento das sensações. Estas precisam ser banidas, se quisermos alcançar a verdade, se quisermos alcançar a perfeição divina... O certo e o errado já estariam predeterminados para todos (ao menos para nós, ocidentais). Todos sabemos o que é certo e o que é errado... Mas, será que sabemos mesmo? Ser herdeiro de uma cultura parece encerrar em si a impossibilidade de resistir a essa herança, de transformá-la, de criar agenciamentos subjetivos; ora, não é o que queremos defender aqui. De fato, herdamos um modo de pensar e de ver o mundo, não há como negar, mas é possível fazer outra coisa com o que herdamos. Uma herança deve modificar, transformar a coisa herdada: essa seria, como afirma Derrida, a forma de agradecer a herança, questionando-a e tornando-a mais eficaz e justa.

Por isso, é possível perguntar: será que o certo e o errado não variam de acordo com o momento histórico-social, de acordo com aquilo que se considera o paradigma de uma época? Será que a verdade e a mentira são, de fato, conceitos universais? Michel Foucault, Derrida e Lacan defendem que não há uma única verdade, mas verdades, que dependem do sujeito, do grupo social, da realidade e das transformações que se operam no tempo e no espaço. Jacques Lacan e seus seguidores entendem que a verdade só se manifesta através das formações do inconsciente, como atos falhos, lapsos, sonhos, sintomas: as verdades são fugazes e passageiras, assim como o sujeito, que não é inteiro nem centrado, mas descentrado, cindido, despedaçado, incompleto, fugaz, efeito entre significantes (que constituem a linguagem); daí o sujeito ser definido por Lacan como sujeito da linguagem; se a linguagem é equívoco - e ela o é -, se a linguagem é faltosa - algo sempre falha -, então, o sujeito também é faltoso, também é ser da fal(t)a ou falasser (ser de fala), faltasser (falta a ser) - “parlêtre”.

Da mesma forma, pode-se falar da linguagem e da língua. Esta se constitui na falta e pela falta: embora tente tamponar o inconsciente, fagulhas deste a atravessam pelos furos ou, melhor, pela porosidade que a constitui. Daí a impossibilidade de controle dos efeitos de sentido que se manifestam pelo dizer; daí a pertinência do enunciado “mais somos ditos do que dizemos”; daí a (im)precisão do que é dito... Quanto à universalidade da língua, ela nada mais é do que promessa, que nunca se realiza, como afirma Derrida em O Monolinguismo do Outro, pura ilusão de completude... E se entendermos que a linguagem constitui o sujeito e que a língua só existe na cultura, portanto, no e pelo outro, língua-cultura em que se inscreve o sujeito, então, entenderemos a relevância de acolher o outro (i)migrante, nas suas diferenças, e poderemos afirmar, como Julia Kristeva, que o outro nos habita e que, se o recusamos, recusamos a nós mesmos.

Assim, é possível concluir que essa promessa de língua - única, coerente, transparente, universal, de que o sujeito pode se servir como se fosse um instrumento exterior a ele, de modo intencional e controlado, ainda veiculada pela escola e pela sociedade - é a monolíngua do outro, vinda do outro, a vinda do outro que o sujeito deseja (Derrida). Trata-se de promessa de unidade, de possibilidade de sua apropriação, para se transformar em objeto (de análise, de ensino...) fixo e estável, promessa que jamais se realizará, já que rastros da subjetividade dos seres fal(t)antes se (intro)metem no discurso, atravessando cada fragmento da língua(gem).

CELADA, ANDRADE & GASPARINI: Considerando a série de reflexões mobilizadas, o que pensa sobre a produção literária de escritores que elaboram de diferentes formas a experiência de viver/estar entre-línguas?

M. J. CORACINI: Mencionei há pouco Fernando Pessoa, que escreveu poemas eróticos em língua inglesa; não podia escrevê-los em língua portuguesa, com certeza, porque se sentia interditado. Ele não havia sofrido censura na língua-cultura estrangeira, por isso ela o habitava como se fosse um universo neutro em que tudo pudesse ser dito. O mesmo sentimento parece ter habitado Samuel Beckett, irlandês, que preferiu escrever em francês suas peças teatrais. Situação semelhante é a de Tzvetan Todorov, que, tendo migrado da Bulgária para a França, conta que pouco sofreu como imigrante, talvez porque já fosse um profissional bem-sucedido, com certa estabilidade financeira, além de ser branco, com poucos traços de migrante. Apenas algumas experiências de uma burocracia francesa pesada e alguns olhares enviesados, de resto logo se adaptou e até tirou proveito do país de acolhida. Mas, nem todos tiveram a mesma sorte...

Embora em situações e condições muito diferentes, Paul Celan, judeu, nascido na Romênia, escreveu seus poemas em alemão, não no alemão rígido e regrado, mas numa língua esgarçada, quebrada, esfacelada para falar das dores e do sofrimento que viveu durante o Holocausto, onde sofreu a perda de seus pais. Deixou em seus textos vestígios desse horror, fazendo migrar outras línguas em seus poemas escritos em alemão, como lembra Régine RobinROBIN, Régine. Le Deuil de l’origine: une langue en trop, une langue de moins. Paris: Pressões universitários de Vincennes, 1994.. Celan rompe o alemão para aí se inscrever, injetando, em sua poesia, fragmentos de outras línguas (francês, hebreu, espanhol, yiddish): é Babel numa única língua, como observa Derrida, fazendo irromper pelas falhas, pelo silêncio, pelas fraturas e ruídos linguísticos o grito da língua e da subjetividade ferida. Não seria possível escrever no alemão padrão: era necessário transmitir a sua angústia e a sua dor pelos e nos rompimentos da língua: língua que é sua e dos outros, como afirma Derrida em O Monolinguismo do OutroDERRIDA, Jacques. O monolinguismo do outro: ou a prótese de origem. [Tradução: Fernanda Bernardo]. Porto: Campo das Letras, 2001.. Aliás, o próprio Derrida se refere a Celan como tendo realizado a circuncisão na linguagem, traço do horror e do impossível desse traço.

Vale lembrar certas expressões da literatura moderna e contemporânea que materializam a heterogeneidade que constitui toda e qualquer língua, hibridização esta proveniente de sua história constituída por diversos povos que, como vencedores de guerras e revoluções, invadiam cidades, países, regiões aos quais impunham sua língua-cultura. Esta, evidentemente, embora imposta como soberana, modificava a língua-cultura do outro, assim como sofria modificações e aí tinha início a miscigenação linguístico-cultural. Para compreender melhor a miscigenação, basta lembrar da história de Portugal, que sofreu a invasão de celtas, árabes, bárbaros, romanos e, através deles, dos gregos, para não falar de outras dominações vividas que constituem a identidade portuguesa. No Brasil, pensemos nos indígenas que habitavam as terras brasileiras quando os portugueses aportaram nas terras do pau-brasil: eles não eram vistos como gente, pois não tinham fé nem lei nem rei e assim permaneceram por muito tempo, sem serem considerados como brasileiros (quando, de fato, o eram); mais tarde, negros foram trazidos da África, para serem escravizados: tanto os indígenas quanto os negros não eram tratados como seres humanos e atrocidades foram realizadas. Além disso, outras invasões aconteceram ao longo dos anos: franceses, holandeses, japoneses, alemães, italianos e outros europeus, os últimos grupos ludibriados por propagandas políticas enganosas. E chineses, libaneses, turcos, argentinos, uruguaios etc., de tal modo que se perguntarmos quem é o brasileiro, fica difícil defini-lo a não ser pela mistura de línguas-culturas que foram/vão deixando suas marcas nas terras movediças de sua identidade hibridamente constituída.

Quanto ao movimento do discurso na literatura, ele se caracteriza pela mistura de fios constitutivos de várias línguas, evidenciando a configuração híbrida de todas as línguas-culturas, deixando escancarada, também, a frequente e difícil migração de grupos ou indivíduos que foram forçados a deixar suas comunidades de origem sob o jugo da escravidão ou que se viram/veem forçados a buscar asilo em outros espaços geográficos e simbólicos que, por sua vez, configuram possibilidades de salvação ao mesmo tempo em que são portadores de sofrimento e desestabilização. Esta, inclusive, é uma realidade contemporânea que vem marcando uma tendência na literatura.

CELADA, ANDRADE & GASPARINI: A partir de seu modo de compreender a “língua materna”, como pensa as incidências subjetivas da migração para um território linguisticamente estrangeiro?

M. J. CORACINI: Migrar é sempre complicado. Primeiro, porque nem sempre ou quase nunca é uma escolha voluntária, desejada. Em geral, migra-se porque, em sua terra natal, há problemas políticos ou sociais, como falta de emprego, fome, perseguições, porque há intolerância religiosa que leva a situações de violência e ódio que, por sua vez, leva ao extermínio, enfim, as condições de vida são precárias, sobretudo considerando o futuro dos filhos, para quem se desejam melhores oportunidades, um futuro promissor, ainda que traga, a curto ou médio prazo, sofrimento para toda a família e principalmente para os adultos, que sempre têm mais dificuldades para se adaptarem. É diferente quando se quer estudar num país estrangeiro, fazer um doutorado numa área que poderá promover trabalho ou pesquisa; em geral, isso ocorre em países mais pobres, com pouco investimento para a pesquisa, seja porque o país não dá valor para as investigações numa determinada área, seja porque investe mais em outras com garantias mais rápidas de retorno econômico; ou, simplesmente, porque se quer ter experiências novas de vida. Mas, em qualquer situação, mesmo naquelas em que a escolha parece mais definida, mais consciente, a mudança de país traz sempre surpresas nem sempre muito agradáveis: os sonhos, as fantasias vão, pouco a pouco, perdendo sua força, reduzindo as ilusões e dando lugar a uma realidade decepcionante, muito menos entusiasmante do que parecia ser antes do deslocamento geográfico; agora, as expectativas dão lugar ao deslocamento psíquico, proveniente do des-locamento cultural e linguístico.

Problemas de comunicação são muito frequentes, não apenas por desconhecimento da língua do outro, de expressões de uso cotidiano, causadas pelas mudanças constantes no modo de falar, mas sobretudo por diferenças de língua-cultura.

Costumo me referir às línguas sempre ligadas a culturas, porque umas não existem sem as outras: não há língua sem cultura e não há cultura sem língua, entendendo cultura, fique bem claro, como modo particular de um povo ou de um grupo social se relacionar com o mundo, com o outro e consigo mesmo. Apesar de a escola regular e escolas de idiomas insistirem na separação entre língua e cultura, considero que as diferenças morfossintáticas entre as línguas apontam para essa relação: isso ocorre porque a organização do mundo, os recortes que se fazem na natureza, o modo de ver a vida, os hábitos, o outro e a si mesmo não coincidem nunca; haverá sempre diferenças que nos tornam singulares em nossa cultura. Isso não quer dizer que, hoje, com o desenvolvimento das chamadas novas tecnologias, numa velocidade inesperada, a troca linguístico-cultural entre os povos, entre os grupos sociais não ocorra, de modo a dirimir as diferenças, tornando semelhantes aqueles que outrora pareciam muito diferentes. A facilidade com que pessoas das mais diversas partes do mundo trocam ideias, conversam sobre o que fazem ou sobre o que pensam é, sem dúvida, responsável por essas mudanças que deram e dão lugar ao que se chama de fenômeno da globalização. Mas, felizmente, diferenças continuam existindo, imprimindo um certo grau de peculiaridade aos povos nos diversos cantos do mundo.

Mas se, por um lado, a manutenção das diferenças garante identidade a cada povo, conservada pela especificidade de cada língua-cultura, ela acarreta muito sofrimento para aqueles que decidem dar uma guinada em suas vidas em busca de um futuro melhor; sofrimento causado pelo que se chama de mal-entendidos que, na verdade, são desentendimentos provenientes dos diferentes modos de pensar, de organizar o mundo através das línguas - a chamada língua materna, da qual se sente muita dificuldade de se desprender, porque isso acarretaria uma perda de identidade a que muitos resistem, porque, ainda que inconscientemente, perderiam o que há de mais singular em cada um: os valores morais, familiares, as amizades, o modo de pensar, de reagir diante das situações que se apresentam a cada um, no dia a dia... E o que resta, então, são experiências de desrespeito, de discriminação, de ódio, como vimos no Acre e em outros estados do Brasil, não faz muito tempo, com relação aos venezuelanos, por exemplo: medo de perder o emprego, que já está escasso no Brasil? Medo de dividir o dinheiro que o governo brasileiro atribui aos pobres, principalmente na época de pandemia como a que estamos vivendo? Seja lá como for, prevalece o egocentrismo e o ódio, que não é o oposto do amor, mas da agressividade: o ódio é constitutivo do sujeito, como afirma a psicanálise lacaniana, mas, cultivado no tempo, promove a destruição do outro tomado como genérico, não o outro fulano de tal, mas o outro estrangeiro (no Brasil, sobretudo os outros latino-americanos), intruso, negro, LGBTQ+..., uma vez que o ódio não passa pela instância da simbolização, apenas se dá na relação entre imaginário e real. A agressividade passa pelo simbólico, por isso não pretende o extermínio do outro (LACAN, Seminário 7LACAN, Jacques. O Seminário, livro 7: A ética da psicanálise. [Tradução: Antonio Quinet]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.).

Para entender rapidamente ao que me refiro ao falar de língua-cultura, ocorre-me um exemplo que parece banal, mas que explica bem; em francês se diz: je me suis fait couper les cheveux, enquanto, em português do Brasil, se diz: “eu cortei o cabelo”. No primeiro caso, a ênfase recai sobre o que foi cortado: o cabelo, que, inclusive, aparece no plural (cheveux), porque ninguém corta um cabelo só (a palavra aí parece representar a realidade), e não sobre de quem os cabelos foram cortados; aquele que fala está na passiva (je me suis fait couper les cheveux), marcando claramente que não foi ele quem praticou a ação. Em língua portuguesa do Brasil, a ênfase recai sobre o locutor que, aparentemente, teria praticado a ação; só que não é isso o que se quer dizer: eu decidi cortar o cabelo (palavra que indicia também o coletivo) e todos entendem que não fui eu quem o fiz; ou seja, se x cortou os próprios cabelos ou se foi ao cabelereiro, o enunciado é o mesmo; o contexto se encarregará de resolver a questão. O estrangeiro, no caso de língua francesa, vai, no mínimo, ficar confuso com o que o brasileiro lhe estaria dizendo e, se não puder perguntar, ficará embaraçado por não ter compreendido. É claro que essa não é a situação mais constrangedora, mas deixa evidente que a língua e a cultura estão sempre juntas.

Parece claro também que as mudanças na língua apontam para mudanças no modus vivendi dos grupos sociais, regionais, e até individuais. Um outro caso que poderá esclarecer ainda mais a questão: tenho uma neta austríaca, que, na ocasião, tinha 8 anos; sua língua materna é o alemão; um dia, ela me perguntou: “vovó, você gosta disso?”, apontando para um objeto na minha casa. Eu respondi: “eu adoro”; ela, então, pensativa, perguntou: “por que vocês falam eu adoro e não eu gosto?” Eu lhe perguntei: “em alemão, você não pode falar assim?” Ela disse que não. É óbvio que a língua alemã deve ter outras formas de dar ênfase a um termo ou ideia. Mas, eu decidi explicar, de forma generalizada e até estereotipada que se trata de uma questão cultural, que os brasileiros falam adoro porque gostam de pôr ênfase no que dizem, para deixar clara a relação deles com o objeto. Sabemos que há nessa explicação uma generalização, mas a verdade é que as formas de falar apontam para diferenças nos grupos sociais, marcadas pelo tempo e pelo espaço.

De fato, as reações culturais podem provocar situações muito desagradáveis: aconteceu, uma vez, de eu ter encostado a mão numa colega que havia sido minha professora de francês na universidade, há anos atrás, gesto que fiz espontaneamente como forma de carinho e ela, já no Brasil havia 30 anos, reagiu surpreendentemente com um forte pulo para trás, como se estivesse assustada. Eu fiquei sem jeito: por que ela havia reagido dessa forma? Levei horas para me dar conta de que havia sido uma reação cultural muito comum, não apenas nos franceses, mas no caso de muitos europeus (muitos anos depois, o mesmo ocorreu com minha neta austríaca perturbada por eu a ter tocado, fazendo um carinho para lhe dizer das saudades que eu sentia por ter ficado tanto tempo sem vê-la...). Os livros didáticos que tratam de questões culturais dos franceses são categóricos em afirmar que precisamos manter distância (de, pelo menos, um metro) e não encostar neles, porque isso é considerado um abuso e, no mínimo, falta de educação. Percebe-se aí, claramente, a presença de um estereótipo que congela esse comportamento e nega as transformações que ocorrem cotidianamente, ainda que de forma imperceptível. É bem verdade que, diante de alguém desavisado, o mal-estar em perceber o susto do outro por ele(a) ter encostado pode ser maior e o constrangimento de um e de outro pode se agravar a ponto de impedir uma nova aproximação; mas, é preciso entender e não se ofender.

Longe de nós sugerir que se faça, na escola, um trabalho comportamental no aprendiz, tentando consertar ou resolver o que não tem conserto nem solução, porque as diferenças estão aí para serem vividas e não (re)solvidas... O que queremos é apontar para a forte relação entre línguas e culturas - modos de dizer e de ser -, de forma que o aprendiz entenda que os mal-entendidos são constitutivos dessas línguas-culturas, que o que parece incoerência para uns não o é para outros, que há diferenças entre modos de ser e de viver, até mesmo entre vizinhos e familiares e que tudo isso é enriquecedor, se não nos afetarmos pela hostilidade, tão frequente não apenas no acolhimento de um país, mas de uma cidade, de um bairro, de vizinhos, de amigos, de familiares.

Referências

  • DERRIDA, Jacques. O monolinguismo do outro: ou a prótese de origem [Tradução: Fernanda Bernardo]. Porto: Campo das Letras, 2001.
  • LACAN, Jacques. O Seminário, livro 7: A ética da psicanálise [Tradução: Antonio Quinet]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
  • MELMAN, Charles. Imigrantes. Incidências subjetivas das mudanças de língua e país [Tradução: Rosane Pereira / Organização e revisão técnica: Contardo Calligaris]. São Paulo: Escuta, 1992.
  • ROBIN, Régine. Le Deuil de l’origine: une langue en trop, une langue de moins Paris: Pressões universitários de Vincennes, 1994.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Out 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021

Histórico

  • Recebido
    16 Fev 2021
  • Aceito
    16 Abr 2021
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