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O gesto afrobrasileiro em “O recado do morro”, de Guimarães Rosa

The Afro-Brazilian gesture in “O recado do morro”, by Guimarães Rosa

Resumo

Análise de “O recado do morro” (1956), de João Guimarães Rosa, a partir do conceito de “gesto” em Vilém Flusser e da estética afrobrasileira. A análise das personagens em sua relação com a natureza, seres míticos, espiritualidade e “recados” nos leva a uma aproximação poética com os códigos gestuais dessa cultura. A partir da fenomenologia dos gestos, buscamos compreender como Guimarães Rosa captou, processou e articulou tal manifestação cultural nesse conto específico. Nossa conclusão aponta para a importância de os estudos rosianos levarem em consideração a emergência de mitos e linguagens corporais afrobrasileiros no conjunto de sua obra.

Palavras-chave:
Guimarães Rosa; “O recado do morro”; Vilém Flusser; espiritualidade afro-brasileira

Abstract

Analysis of “O recado do morro” (1956), by João Guimarães Rosa, based on the concept of “gesture” in Vilém Flusser and Afro-Brazilian aesthetics. The analysis of the characters in their relationship with nature, mythical beings, spirituality and “messages” leads us to a poetic approach to the gestural codes of this culture. From the phenomenology of gestures, we seek to understand how Guimarães Rosa captured, processed and articulated such cultural manifestation in this specific story. Our conclusion points to the importance of Rosian studies taking into account the emergence of Afro-Brazilian myths and body languages in the body of her work.

Keywords:
Guimarães Rosa; “O recado do morro”; Vilém Flusser; afro-Brazilian spirituality

Resumen

Análisis de “O recado do morro” (1956), de João Guimarães Rosa, basado en el concepto de “gesto” en Vilém Flusser y la estética afrobrasileña. El análisis de los personajes en su relación con la naturaleza, los seres míticos, la espiritualidad y los “mensajes’ nos lleva a un acercamiento poético a los códigos gestuales de esta cultura. Desde la fenomenología de los gestos, buscamos comprender cómo Guimarães Rosa capturó, procesó y articuló tal manifestación cultural en esta historia específica. Nuestra conclusión apunta a la importancia de los estudios rosianos teniendo en cuenta el surgimiento de los mitos afrobrasileños y los lenguajes corporales en el cuerpo de su obra.

Palabras clave:
Guimarães Rosa; “O recado do Morro”; Vilém Flusser; espiritualidad afrobrasileña

“E faziam redondo de conversas no pátio da frente junto com o pessoal de lá.”

G. Rosa, “O recado do Morro”

O presente estudo1 1 Este texto é resultado do apoio recebido pela Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal (FAP-DF, Edital 04/2021, processo 001930000113420212), e pelo Edital DPI/DPG N. 02/2021 (UnB) de apoio à execução de projetos de pesquisas científicas, tecnológicas e de inovação com produção de artigo. busca explorar hipóteses de interpretação que visam aproximar Guimarães Rosa da cultura e da espiritualidade afroindígena brasileira, tal como estas se apresentam em “O recado do morro”, publicado inicialmente em Corpo de Baile (1956). Ao longo de minuciosas leituras, identificamos, no léxico dessa narrativa, inúmeros termos e expressões próprios a tal espiritualidade, tais como “giro”, “gira”, “festa”, “batuque”, “charuto”, “possessão”, “cavalo”, “boiadeiros”, “guarda-marinheira’, entre outros (CASTRO; MARINHO, 2021CASTRO, Gustavo de; MARINHO, Marcelo. Espiritualidade afro-brasileira em “O recado do morro”, de Guimarães Rosa: imaginário e glossário da Umbanda. Macabéa - Revista Eletrônica do Netlli, v. 10, n. 2, p. 33-53, jan./mar. 2021.Disponível em: http://periodicos.urca.br/ojs/index.php/MacREN/article/view/2796 . Acesso em 11 dez. 2021.
http://periodicos.urca.br/ojs/index.php/...
).

Para tal abordagem, o presente artigo se estrutura em três eixos: 1) problematização do conceito de gestos em Flusser, decorrente de uma análise sintética do tema em seu livro Gestos (2014FLUSSER, Vilém. Gestos. São Paulo: Annablume , 2014.), e da singular relação do filósofo tcheco com Guimarães Rosa; 2) abordagem da linguagem gestual das personagens em “O recado do morro”, em seus aspectos litúrgicos; 3) interpretação da narrativa na perspectiva da gestualidade da espiritualidade afrobrasileira.

Devemos enfatizar, de início, que chamamos de “gestualidade afrobrasileira” a um conjunto de atitudes corporais, litúrgicas e simbólicas que são comumente repassadas e mimetizadas dentro da cultura dos terreiros de Umbanda e Candomblé no Brasil. Tais gestos não são exclusivos dessas doutrinas e aparecem também nos cultos da Jurema, do Catimbó e da Quimbanda, já que alguns desses gestos integram a mitologia dos Orixás, divindades de cultos afrobrasileiros.

Já sabemos que algumas referências mitológicas estão presentes em “O recado do morro” sob a forma de divindades não-africanas, representadas explicitamente no nome de personagens e de fazendas, como se constata na emergência de Apolo (Apolinário e Hélio Dias Nemes); Selena (Nhá Selena e João Lualino); Júpiter (Jove e Juvelino), Marte (Marciano e Martinho); Vênus (Dona Vininha e Veneriano); Mercúrio (Nhô Hermes e Zé Azougue) e Cronos (Juca Saturnino e Ivo Crônico). Convém apontar, contudo, que outras mitologias também se concatenam no conto, assim como os gestos e narrativas a elas relacionadas.

Desde o início da nossa investigação, percebemos que o gesto do enigma domina “O recado do morro”, seja na indizibilidade, seja na indecidibilidade, ou em aspectos que marcam a biografia de Pedro Orósio e seu “caso de vida e de morte, extraordinariamente comum” (ROSA, 2006aROSA, João Guimarães. O recado do Morro. In: ROSA, João Guimarães. Corpo de baile. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006a, p. 389-466., p. 389). Observador discreto, caminhante atento, amante dos elementos telúricos da paisagem em seu entorno, ponto de convergência de alteridades, Pedro Orósio catalisa e exterioriza esse enigma por meio de seus gestos comunicativos e da fruição estética de um universo anímico e ciclônico. Desde o início do conto, quando o morro da Garça “fala” sua mensagem para o primeiro dos recadeiros (Gorgulho/Malaquias), o movimento em direção a uma cosmovisão encantada, pagã, anímica ou ancestral do mundo já se manifesta. Os movimentos seguintes, pronunciados pelos gestos das personagens, o apelo às jornadas, as transmissões das mensagens, a festa cíclica, a figura do “louco’ (há vários deles), assim como a inconclusão do desfecho, deixam a história aberta à decifração e descortinam um duplo convite: ao leitor transeunte, compete participar da viagem de Orósio, aplicar-se à construção de sentidos; e ao intérprete literário, cabe desdobrar-se nos intrincados liames desse imaginário.

Gestos em Flusser

Para nosso percurso, tomamos emprestada de Vilém Flusser a ideia de “gestos” como forma de inscrição no mundo:

A existência se manifesta por gestos. O homem está no mundo na forma de seus gestos. Classificar gestos seria classificar modos de vida: a seguinte classificação se propõe: (a) gestos contra o mundo (trabalho), (b) gestos em direção dos outros (comunicação) e (c) gestos como finalidade em si (arte). (FLUSSER, 2014FLUSSER, Vilém. Gestos. São Paulo: Annablume , 2014., p. 36).

Segundo esse filósofo, “o que caracteriza todo gesto é a convicção subjetiva de ser ‘livre’, sua estrutura ser ‘aberta’. Isto é, plástica e individualmente variável” (FLUSSER, 2014FLUSSER, Vilém. Gestos. São Paulo: Annablume , 2014., p. 34). Essa definição aparece em “O gesto de fumar cachimbo”, primeiro capítulo do livro Gestos (2014). Em um outro texto, “Gesto e consentimento - Exercitação na fenomenologia dos gestos”, ausente na edição brasileira e publicado na espanhola (1994), Flusser enuncia que por “gestos” podemos entender, estritamente, “movimentos do corpo, e num sentido amplo, (...) movimentos dos instrumentos e ferramentas unidos ao corpo” (FLUSSER, 1994FLUSSER, Vilém. Gestos. Barcelona: Herder, 1994., p. 10). O autor observa ali que tal definição não seria ainda suficiente, pois haveria outros movimentos, aqueles ligados à intencionalidade, que não teriam uma relação direta com a motricidade e, sim, com a intenção de significar, a atividade mental. Estes, por sua vez, poderiam incorrer na armadilha do psicologismo, arremessando os estudiosos em círculos especulativos infinitamente indecidíveis, posto que a gestualidade ficaria amarrada às intenções de significar. Para além desses dois polos e suas respectivas armadilhas hermenêuticas, o estudo dos gestos deveria curvar-se ao dinamismo do universo da comunicação humana.

Para Flusser, decifrar os gestos será desvelar a expressão de uma liberdade, o que implica na elaboração de uma “fenomenologia dos gestos”, conduzindo a uma escuta sistemática das diversas áreas em que a gestualidade humana se implica e se explicita, iluminando “tanto a fenomenologia como a filosofia da história” (FLUSSER, 1994FLUSSER, Vilém. Gestos. Barcelona: Herder, 1994., p. 10). O termo deriva do latim “gestus”, que significa “atitude, movimento do corpo” (ORTOLANG, 2020ORTOLANG Dicionário. [on-line]. Centre National de Ressources Textuelles et Lexicales. Disponível em: https://www.cnrtl.fr/definition. Acesso em: 12 ago. 2020.
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), mas, a Flusser interessa a dinâmica instaurada pelo esforço do pensamento, em que o gesto é definido (“indefinido” seria o termo mais próprio) como um movimento livre. Obra do corpo, ele é midiatizado e portador de significados abertos, que se espraiam por diversos caminhos de possibilidades, do toque sutil ao giro basculante de um objeto fruitivo, fugaz e fugitivo.

Tais ideias transparecem na definição que ele confessa preferir: um gesto, afirma, é algo “livre”, com estrutura “aberta”, “plástica”, “variável”, ao passo que é “um movimento do corpo ou de uma ferramenta conectada ao corpo para o qual não existe conexão causal satisfatória” (FLUSSER, 1994FLUSSER, Vilém. Gestos. Barcelona: Herder, 1994., p. 2). Trata-se de uma abertura comunicativa para o mundo e uma abertura do mundo da experiência para a exploração interpretativa. É um “exprimir” e, como tal, corresponde a um movimento de dentro para fora mas também de fora para dentro, uma vez que serpenteia em giros no círculo hermenêutico e se recusa a se inscrever numa fixidez ontológica ou sociológica. Essa intuição flussiana, assim expressa, interessa sobremodo à recuperação da riqueza da gestualidade das práticas ancestrais porque, por um lado, as mantém ao anteparo de um psicologismo sem rumo e, por outro, liberta-as de um determinismo inflexível. A gestualidade ancestral, se percebida assim, é fruto e raiz da liberdade humana. Em convergência com Flusser, no segundo quartel do século XX, múltiplas teorias se desenvolveram no intuito de possibilitarem uma análise metódica e circunstanciada dos gestos, em diferentes áreas do conhecimento (STAM; ISHINO, 2011STAM, Gale; ISHINO, Mika (ed.). Integrating gestures: the interdisciplinary nature of gesture. Amsterdam / Philadelphia: John Benjamins, 2011.).

Assim, os gestos correspondem a movimentos que estruturam ensaios de comunicação, os quais são distribuídos por Flusser (2016FLUSSER, Vilém. The surprising phenomenon of human communication. Berlin: Metaflux , 2016., p. 93-95) em três grandes categorias de gestos-mensagens, segundo sua incidência semântica sobre o conhecimento, os desejos ou as sensações. Toda a diversidade do experimentar humano, facilitado e posto em ato pela realização gestual, aspira então à construção de relações cognitivas, comportamentais e estéticas, em suas manifestações como desdobramento artístico. Essas manifestações servem como rede de proteção aos sentidos e práticas marcadas pela proxemia, ou seja, estruturadas a partir da preservação sistemática de um núcleo de contato, de toque e de cultivo de afetos. Daí a importância da memória oral, da preservação de ritos e narrativas marcadas pela dimensão da oratura.

Em sua obra Gestos, Flusser dedica um capítulo ao “gesto de escrever” em que a dimensão da oratura surge em diálogo com aquelas dos “meios de comunicação” e com a escritura de Guimarães Rosa. Para Flusser, “os meios de comunicação auditiva e audiovisual (rádio e TV) forçaram uma volta para a fala, enquanto estrutura dominante do pensamento” (2014, p. 108). A grande mídia deslocou o gesto da escrita para a fala e, mesmo exortando o fato de que “o gesto de escrever é um dos gestos que realizam pensamentos” (FLUSSER, 2014FLUSSER, Vilém. Gestos. São Paulo: Annablume , 2014., p. 107), esse filósofo presume que escrever é ainda uma maneira de pensar “pobre e limitada”, sujeita a “inúmeros melhoramentos” (FLUSSER, 2014FLUSSER, Vilém. Gestos. São Paulo: Annablume , 2014., p. 108), difícil de se contrapor ao rádio, à TV e aos meios cibernéticos.

Não obstante, esse pensador observa que, para muitos poetas e escritores, o “gesto de escrever” é o “gesto da sua vida"” ou, em outros termos, a maneira de exprimir sua língua e seu estilo em palavras gravadas sobre o papel corresponde a “uma forma de pensar-se” (FLUSSER, 2014FLUSSER, Vilém. Gestos. São Paulo: Annablume , 2014., p. 107) - um gesto vital, central e decisivo. Como exemplos, Flusser cita Guimarães Rosa e James Joyce, que se “abandonaram à língua” sem jamais renunciarem ao controle sobre ela, haja vista que “[t]al abandono à língua é precisamente a maneira de pensar dos poetas” (FLUSSER, 2014FLUSSER, Vilém. Gestos. São Paulo: Annablume , 2014., p. 105). Em Guimarães Rosa, o gesto da escrita e aquele do pensamento, articulam-se mediante uma estética que comporta, simultaneamente, o fluxo e o ordenamento desse fluxo por meio de pensamentos, imagens e palavras. Para essa massa fluida, Flusser propõe a imagem de um “mingau virtual de palavras”, do qual emerge o pensamento:

Este ordenar do mingau virtual de palavras que ainda não são conceitos, e de conceitos que ainda não são palavras, é precisamente o que se chama 'pensamento'. A observação do gesto de escrever permite desmistificar o termo e dar-lhe um significado preciso. ‘Pensar’ é o gesto pelo qual são ordenados conceitos captados em palavras, e o gesto de escrever é uma forma de pensar-se. (FLUSSER, 2014FLUSSER, Vilém. Gestos. São Paulo: Annablume , 2014., p. 107).

Além de propor uma fenomenologia dos gestos e de reiteradamente analisar a obra e o pensamento de Guimarães Rosa, Flusser também dedicou trechos em Bodenlos (2007FLUSSER, Vilém. Bodenlos. São Paulo: Annablume, 2007.) e Da Religiosidade (2002FLUSSER, Vilém. Da religiosidade - a literatura e o senso de realidade. São Paulo: Annablume , 2002.) à análise dos gestos pessoais do romancista mineiro, como veremos a seguir. Convém previamente apontar breves fatos biográficos sobre a relação entre o filósofo e o escritor. Os primeiros encontros pessoais entre Flusser e Rosa ocorrem por volta de 1962. A filha de Flusser, Dinah Flusser, diplomou-se diplomata pelo Instituto Rio Branco (IRBr), na turma de 1962-63. Nesse período, tiveram início a aproximação e os assíduos encontros entre o filósofo dos gestos e o escritor de Cordisburgo, acontecimentos que ficaram registrados no acervo pessoal de cartas reunidas pelo pensador tcheco-brasileiro.

Gestos em Rosa

Ao tratar dos primeiros gestos manifestados por Guimarães Rosa em relação a si próprio, Flusser enfatiza a dinâmica de proximidade esquiva que se estabelece com o romancista, traço sugestivo de uma distância hierárquica. Num texto datilografado em 1964, escrito logo após um encontro com G. Rosa e publicado décadas mais tarde em Bondelos (2007), o filósofo assim descreve o jogo gestual implícito na relação:

(...) é preciso confessar que o autocentrismo de Rosa exigia grande esforço de auto-denegação, tendência difícil, dada a própria tendência para tomar-se como centro do universo. No início tal estrutura: ele emissor de mensagens, a gente receptor e crítico dessas mensagens, parecia dada pela relativa posição dos dois participantes. Ele embaixador sentado atrás da escrivaninha do Itamaraty, cercado da glória de grande escritor mais ou menos mundialmente reconhecido, a gente visitante paulista sentado em cadeira mais baixa, e potencial divulgador da obra roseana. Muito rapidamente no entanto tal estrutura passou a modificar-se. (FLUSSER, 2007FLUSSER, Vilém. Bodenlos. São Paulo: Annablume, 2007., p. 129).

Se Flusser apenas enxergava, nos primeiros encontros, um “embaixador sentado atrás da escrivaninha do Itamaraty, cercado da glória de grande escritor mais ou menos mundialmente reconhecido”, algum tempo depois, tal dinâmica gestual já será totalmente distinta, como se constata nesta revelação:

Ele andando pela sala, despido da sua jovialidade, e propenso ao choro, e a gente, embora sempre mantendo a distância respeitosa que impõe a presença da grandeza, furando o balão roseano para chegar, junto com ele, até o núcleo do seu sofrimento. (FLUSSER, 2007FLUSSER, Vilém. Bodenlos. São Paulo: Annablume, 2007., p. 129-130).

A percepção de Flusser sobre a passagem do gesto de distância “atrás da escrivaninha” para o de proximidade do homem “propenso ao choro”, escudado dentro de “um balão” que camuflava “seu sofrimento”, nos ajuda a entender a importância que o filósofo dava aos gestos como fator psicológico compreensivo, memorialístico, relacional e fenomenológico. Ainda sobre a relação de Flusser e Rosa, é preciso frisar que, em 1964, Flusser já tinha escrito o seu Língua e Realidade (1963), e tomava notas para o futuro A História do Diabo (1967). A observação e a compreensão do gesto rosiano, em Flusser, não se limitou às categorias literárias, poéticas e filosóficas, mas também às relações comunicativas e empáticas ocorridas presencialmente entre eles.

Além de Flusser, quem também prestou atenção aos gestos de Guimarães Rosa foi a repórter Ruth Guimarães, da revista Manchete, no dia do lançamento de Grande sertão: veredas, na Livraria Cultura, no Centro de São Paulo. Em matéria publicada a 13 de outubro de 1956, ela escreveu: “Guimarães Rosa sorri sempre, anda a passos mansos, como quem pisa em tapetes ou como felino que desliza, e tem polidos gestos curtos. Seu abraço é macio, acolchoado. Fala pouco, em voz suave. E sorri.” (GUIMARÃES, 1956GUIMARÃES, Ruth. Nove paulistas julgam um mineiro. Revista Manchete, n. 234, 13 out. 1956., p. 48). Sabemos também que o próprio Guimarães Rosa se interessava pelo tema da gestualidade, conforme atestam os documentos presentes em seu acervo pessoal, no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), da Universidade de São Paulo (USP), no Acervo de Escritores Mineiros (UFMG) e na Fundação Casa Rui Barbosa (FCRB), no Rio de Janeiro, em que fica explícito seu interesse pelo tema. Nesses manuscritos, observa-se que os gestos servem para avaliar a posição em cena de seus personagens, para realizar autocrítica e levantar questões. Em 1938, no chamado Diário de Guerra, escrito entre 1938-42, em Hamburgo, ele toma as seguintes notas:

De sensação: cerrar os olhos, cabecear sonolento, baixar pálpebras, tremer de frio, tremer de cansaço. De sentimento: olhos fulgurantes, tristes, chorosos, ferozes. De ação: sentar-se, erguer-se, caminhar. De indicação: tremer a cabeça como sexagenário, movimento de surra, natação, sport. No rosto: espanto, serenidade, alegria, terror. Na boca: surpresa, estupefação, alegria, despeito, desdém. Nos braços: entusiasmos, violência, desafio. Nas mãos: comoção, êxtase, espanto, repulsão, promessa, protesto, firmeza, apoio. No tronco: timidez, humildade, soberba, atenção e medo. Nas espáduas: vergonha, assombro e escusa. Nos dedos: expressões numéricas, gestos descritivos. (ROSA, 2006bROSA, João Guimarães. O recado do Morro. In: ROSA, João Guimarães. Corpo de baile. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006a, p. 389-466., s/p).

Ele também analisou os gestos do mundo da diplomacia, conforme vemos em seu caderno de 1957, presente na Fundação Casa Rui Barbosa (FCRB), em que escreve uma lista de gestos, a título de autorreflexão, exortação ou regra de vida:

1) Não contradizer categoricamente nenhuma afirmação; 2) Não manifestar claramente o que deseja. Não deixar ver o móvel que nos guia; 3) Não mostrar, com a atitude, que já tem formada uma opinião contrária a que expõe o nosso interlocutor; 4) Calma, fleuma e impassibilidade exterior se impõem; 5) Jamais empregar ironia, sarcasmo nem aspereza; nem acentos imperiosos; 6) Não rechaçar, de uma maneira direta, o que nos afirmam ou nos propõem; 7) Não dar mostras de nos sentirmos afetados pela maneira com que procedam em relação a nós. Não reagir ao que nos dizem; 8) Durante a conversação diplomática concertarmo-nos na ideia de ‘triunfo’; 9) Não insistir, jamais. Deixar seguir a conversação, para procurar voltar mais tarde ao ponto contraditório; 10) O sport de afrontar voluntariamente os motivos da timidez; 11) Não deixar perceber a importância que se atribui à decisão (própria ou) alheia.” (ROSA, [1957ROSA, João Guimarães. Cadernos. [S.l.: s.n.] [1957]. 5 docs. Manuscritos.], s/p).

Ambas as listas de gestos e atitudes apontam para o interesse do tema e à análise mimética por parte do mineiro; revela sua atenção ao conjunto de posturas que servem para praticar a corporeidade comunicativa, ao relacionar o movimento dos corpos à fruição do momento e à conversação, à riqueza expressiva das interações físicas, políticas e intelectuais. Mostra a importância de sua compreensão da dinâmica corporal e indica, de modo claro, que os gestos (dele e de suas personagens) eram estudados. Trata-se de um entendimento não distante daquele assinalado por Flusser quando categoriza os “gestos em direção dos outros (comunicação)”, os “gestos como finalidade em si (arte)” (2014, p. 36) e os movimentos miméticos como “instrumentos e ferramentas unidos ao corpo” (1984, p. 10). Veremos como esses conceitos se aplicam em “O recado do morro”, texto que se encontra justamente em um volume chamado, não por acaso, de Corpo de BaileROSA, João Guimarães. O recado do Morro. In: ROSA, João Guimarães. Corpo de baile. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006a, p. 389-466.. Por decorrência, como veremos, os gestos das personagens rosianas também abrigam os signos da cultura e da espiritualidade afroindígena brasileira, como aquele, primordial, da circularidade.

Gestos em Pedro Orósio

O primeiro dos gestos que demanda um olhar contemplativo expressa-se nesta sentença, que nos parece capital para a leitura do conjunto: “E faziam redondo de conversas no pátio da frente junto com o pessoal de lá.” (ROSA, 2006aROSA, João Guimarães. O recado do Morro. In: ROSA, João Guimarães. Corpo de baile. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006a, p. 389-466., p. 434). Aqui, o narrador descreve um dos vários encontros festivos do grupo de personagens. Nesse caso, o gesto é coletivo (“faziam”), gregário (“junto”), inclusivo (“pessoal de lá”), ostensivo (“pátio da frente”), coparticipativo e recíproco (“redondo de conversas”), reiterativo (como se sugere com o pretérito imperfeito “faziam”, indicando ação repetitiva ao longo do tempo), durativo e interativo (“conversa”). Em conjunto com outros elementos textuais, a circularidade da roda de conversa indica a presença da arquitetura relacional africana, em sua disposição grupal e ambientação corporal, aspecto gestual de uma cultura fortemente marcada pela oralidade e pela oratura, como se vê na centralidade simbólica da “árvore da palavra”, o baobá, sob cujas copas se reúnem os membros da coletividade para compartilharem do prazer da roda de conversas, com versos e prosas, causos e recados, sempre na companhia dos veneráveis anciãos.

Em torno de Pedro Orósio, essa configuração circular permite materializar a presença e reunir a figura dos “daqui” e dos “de lá”, ou seja, os viventes e os “do além”, desencarnados, encantados, ancestrais, Orixás e outras entidades da espiritualidade anímica. A roda de conversas se configura como um gesto de oferendas recíprocas entre os participantes (viventes e encantados), um gesto circular em que corpo e palavra, círculo e rito, vida e morte, se reconciliam na poesia, na cantoria, na performance coreográfica e na oratura pagã (causos, adivinhas, provérbios, anedotas, locuções encantatórias etc.) ou devota (preces e sermões). Cabe sublinhar que “pátio” é um vocábulo corrente, mas com uma acepção obsoleta que remeteria também ao espaço edificado “em que se ensinavam humanidades” (HOUAISS; VILLAR, 2001HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro Sales. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.), ou seja, um eventual espaço de prática, aprendizado ou iniciação teológica (entre outras humanidades). Registre-se que “roda de conversas” também se inscreve na polissemia própria à escrita de Rosa, pois “converso” significa “convertido”, “recolhido em convento, sem professar”, “indivíduo leigo que serve em convento” (HOUAISS; VILLAR, 2001HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro Sales. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.): portanto, por desconstrução de uma espantosa elipse textual (“pessoas”), vemos que essa “roda” reúne “pessoas conversas”, ou seja, tanto as religiosas convertidas quanto as praticantes leigas.

Essa “roda” também poderia ser interpretada como uma metáfora para a festa do Divino, evento que emergirá em seguida, no conto em torno de Pedro Orósio. Segundo dados do Museu Afro BrasilMUSEU AFRO BRASIL. Festa do Divino Espírito Santo. Disponível em: http://www.museuafrobrasil.org.br/pesquisa/indice-biografico/manifestacoes-culturais/festa-do-divino-espirito-santo. Acesso em: 12 out. 2020.
http://www.museuafrobrasil.org.br/pesqui...
(SP), a festa do Divino é uma das mais antigas práticas do catolicismo popular, surgida no século XIV, chega ao Brasil no século XVI, como um culto ao Espírito Santo. Como nunca foi uma festa do calendário cristão, ou seja, não havia sobre ela o controle doutrinário da igreja, a comemoração assumiu no Brasil um caráter sincrético. Os objetos da liturgia, por exemplo, como a bandeira com o pombo representado no topo de um mastro, oferecem uma clara alusão ao “Opaxorô”, instrumento de Oxalá (divindade da criação e da paz no panteão africano). Tal instrumento simboliza a criação do mundo e do ser humano, assim como a sapiência dos anciãos e a ligação entre o céu (Orun) e a terra (Ayê). Semelhante ao “Opaxorô”, a “roda de conversas” e de “giros”, que integra a cultura mítica e ancestral afroindígena brasileira, é poeticamente restituída, de forma espacializada e alusiva, nessa passagem da narrativa.

Ademais, relembremos que o verbo “fazer” (“faziam redondo”), corresponde a “dar existência a; criar” (HOUAISS; VILLAR, 2001HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro Sales. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.). Qual seria o possível significado subjacente à expressão “fazer redondo de conversa”? Se a proposição “de” permite informar a matéria com que se faz um objeto (“panela de barro”, “bengala de alecrim” etc.), poderíamos talvez dizer que a engenhosa expressão informa que aquela assembleia votiva “dá existência”, “materializa” ou “cria” um “redondo”, servindo-se de “conversas” (o verbo) como matéria constitutiva. Note-se que, em diversas etnias indígenas e africanas, a forma redonda revela a intenção arquitetônica, mas também espiritual, de solenizar um lugar de tomada de decisões, uma casa de orações (BRANCO, 1993BRANCO, Bernardo Castello. Arquitetura indígena brasileira: da descoberta aos dias atuais. Revista de Arqueologia, São Paulo, v. 7, n. 1, p. 69-85, 1993. Disponível em: https://doi.org/10.24885/sab.v7i1.95. Acesso em: 14 fev. 2021.
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). Ademais, no caso específico da liturgia afrobrasileira, as entidades do além manifestam-se quando são verbalmente invocadas, em “giras” ou em rodas: logo, se lembrarmos que a palavra “Exu” significa “esfera” (HOUAISS; VILLAR, 2001HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro Sales. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.), essa assembleia reunida em classe de humanidades, para seu aprendizado ou sua prática de ser humanos, estaria fazendo apelo verbal para materializar divindades ancestrais afroindígenas, na figura metonímica e esférica de Exu.

Se, como quer Flusser (2014FLUSSER, Vilém. Gestos. São Paulo: Annablume , 2014.), os gestos corporais se ampliam e se completam por meio de objetos, instrumentos, ferramentas e outras extensões do corpo humano (como também vestuário, adereços, objetos simbólicos etc., em sua presença ou ausência), notaremos que a cultura afrobrasileira se expressa de diversos modos na narrativa e na figura de Pedro Orósio. Por exemplo, o gesto de caminhar pela estrada à frente, a pé, descalço, com uma enxada imaginária levada na bagagem interior (Pedro é “enxadeiro”), faz com que Pedro possa ser entrevisto como imagem especular de Ogum, a divindade das estradas, dos caminhantes e da metalurgia - que tem precisamente a enxada como um de seus símbolos litúrgicos. O gesto do guia que segue à frente, conduzindo a comitiva, é um símbolo determinante na cultura afro, pois Ogum é aquele que avança à cabeça, abrindo caminhos com um facão, instrumento de defesa e ataque, mas também ferramenta para desbastar o terreno, as veredas e a si mesmo, tal como a enxada imaginária de Pedro Orósio.

Nas tradições africanas, assim como no conto em tela, forças telúricas e anímicas seguem à frente e ao empós do caminhante, guardiãs, protetoras, na figura dos ancestrais desencarnados, com sua sabedoria sobre os mundos daqui e de lá. Por um lado, tal arcabouço ritual revela uma hierarquia de gestos e de significados. Pelo viés oposto, a própria inflexão autobiográfica característica da obra de Guimarães Rosa, em convergência com o reiterado apelo poético à figura do sertanejo, abre espaço para a emergência da noção de uma “Unio Mystica” entre natureza e seres humanos, entre religião e cultura, com propõe Flusser (2017FLUSSER, Vilém. Groundless. Berlin: Metaflux, 2017., p. 170) no tangente a essa narrativa, aspecto que merece especial atenção, sobretudo nos limites do presente trabalho.

Seguindo pela mesma vertente de leitura poética da transcendência dos gestos em Rosa, o calcar e estampar o pé descalço no chão, o pé despido na areia da estrada, são um dos gestos que correspondem às liturgias próprias à espiritualidade afroindígena. Plantar ou esfregar o pé desnudo e indefeso no chão é um gesto de entrega e humildade, imagem simbólica da relação privilegiada com a Mãe Terra, com o próprio território sagrado do terreiro, gesto que representa um pedido de bênçãos ao húmus e às forças anímicas telúricas. Esse ato se acompanha do gesto de ostentar roupa branca nos rituais, guias no pescoço, pulseiras de palha (contra-eguns) nos braços, do gesto de perfumar o corpo com aromas florais ou defumar o ambiente com ervas específicas, cachimbo ou charuto. Nessa perspectiva, lancemos outro olhar prospectivo sobre o imaginário religioso que se estampa em outros gestos articulados na narrativa.

Em sua pesquisa etnográfica nos terreiros de Umbanda e Candomblé, Dravet e Santos mostraram que a forma redonda, a circularidade e a circulação de saberes, passa “pela oralidade e escrita nos provérbios, em sua forma complexa” e sua condição de autoria anônima e coletiva, “contrastando com o que se pratica em um mundo que roga constantemente por autoria” individual e publicizada (2017, p. 13). A partir do livro Crítica da razão oral, de M. Diagne (2005DIAGNE, Mamoussé. Critique de la raison orale: les pratiques discursives en Afrique Noire. Paris: Karthala, 2005.), os autores debruçam-se sobre o conceito de “sankofa”, termo da língua Akan, originária do povo das regiões de Gana e Costa de Marfim, que se traduz em português, ao pé da letra, como “volte e pegue” (san - voltar, retornar; ko - ir; fa - olhar, buscar e pegar), mas pode ser elaborado como provérbio: “nunca é tarde para voltar e apanhar o que ficou para trás”. O termo ensina, em si próprio, a lição do redondo:

Olhar para a África negra pela noção de circularidade aberta e atentar para Sankofa é não somente um percurso em busca desses elementos fundamentais da linguagem (provérbios, escrita ideográfica, oralidade), mas um ato de relacionar o conhecimento da Comunicação com os saberes tradicionais africanos. (DRAVET; SANTOS, 2017DRAVET, Florence; SANTOS, Alan. Relações entre oralidade e escrita na comunicação: Sankofa, um provérbio africano. Miscelânea, Assis, v. 21, p. 11-30, jan./jun. 2017. , p. 12).

Tanto a ideia quanto o gesto da circularidade (entre os corpos, na relação de proximidade, e entre a oralidade e a escrita) baseiam-se na noção de circulação, e implicam uma forma de compreensão política de comunidade, partilha e continuidade cíclica. Podemos dizer que esta “encíclica” africana está baseada na gestualidade dos corpos e ritos (celebrações, cultos e danças) e na oralidade (conversas, provérbios e cantorias), e revela, por sua vez, que o gesto do redondo está unido de forma ancestral e simbólica à espiritualidade africana, como bem atesta a pesquisa de Dravet e Santos (2017DRAVET, Florence; SANTOS, Alan. Relações entre oralidade e escrita na comunicação: Sankofa, um provérbio africano. Miscelânea, Assis, v. 21, p. 11-30, jan./jun. 2017. ) e como bem articula, sob forma de narrativa ficcional, o conto de Guimarães Rosa.

Gestos em Alquiste e Sinfrão

Para ampliarmos nossa leitura, passemos a um gesto com franca e aberta conotação religiosa e ontológica, que incide sobre a forma com que Alquiste se relaciona com as ervas encontradas no terreno: “Colhia com duas mãos a ramagem de qualquer folhinha campã sem serventia para se guardar: de marroio, carqueja, sete-sangrias, amorzinho-seco, pé-de-perdiz, joão-da-costa, unha-de-vaca-rôxa, olhos-de-porco, copo-d’água, língua-de-tucano, língua-de-teiú.” (ROSA, 2006aROSA, João Guimarães. O recado do Morro. In: ROSA, João Guimarães. Corpo de baile. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006a, p. 389-466., p. 393). Se todo gesto é um ato social, como sustenta Gastal (2018GASTAL, Aurore. Analyse des gestes spontanés à visée communicative chez quatre adolescents paralysés cérébraux dont l’intelligibilité est réduite en dépit de troubles moteurs prédominants: quand l’intention dépasse l’imperfection de la réalisation. 2018. 175 f. Dissertação (Mestrado em Medicina humana e patologia) - Faculté de Médine, Université Nice Sophia Antipolis, Nice, 2018. Disponível em: https://dumas.ccsd.cnrs.fr/dumas-01828214/document. Acesso em: 14 fev. 2021.
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), “colher com duas mãos” corresponderia a um gesto de delicada reverência, aliás praticado em culturas asiáticas, desde o contexto religioso até o exercício da agricultura de ervas e temperos ou especiarias. Por outro lado, também se manifesta no momento de se receber a hóstia, no cristianismo, ou no trato do suporte roliço com que se sustenta a Torá, no judaísmo. Na liturgia afrobrasileira, o gesto corresponde simultaneamente ao da oferenda, ou seja, acolher e oferecer, em que as “duas mãos” devem ser empregadas para o recebimento de objetos ou alimentos, para fazer vibrar o atabaque, dar o “passe” (imposição de mãos sobre os corpos dos participantes da gira), entre outros gestos votivos.

Não por acaso, o próximo gesto analisado seria aquele que se realiza com uma “bengala de alecrim” (extensão corpórea), outro instrumento mágico da liturgia, sobretudo pela natureza anímica dessa planta. Veja-se a passagem: “O Gorgulho riscava o terreno com a bengala; pigarreou, e perguntou se seo Olquiste não seria algum bispo de outras comarcas, de longes usanças, vestido assim de cidadão?” (ROSA, 2006aROSA, João Guimarães. O recado do Morro. In: ROSA, João Guimarães. Corpo de baile. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006a, p. 389-466., p. 411). O gesto de “riscar o terreno” (ou terreiro) e aí deitar “marcas” simbólicas é um dos registros mágicos e cerimoniais constantes na liturgia afro. Por outro lado, Olquiste, “bispo de outras comarcas” (do além?), traria “marcas” externas à cultura afro, e sua condição patente e ostensiva (o vestuário) de “cidadão” remeteria à passagem em que a expressão “fundos do município” (ROSA, 2006aROSA, João Guimarães. O recado do Morro. In: ROSA, João Guimarães. Corpo de baile. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006a, p. 389-466., p. 389) seria uma alusão ao déficit de cidadania que se perpetra sobre o corpo social da religiosidade afrobrasileira.

Destarte, o gesto de pigarrear conota uma certa inversão de hierarquias sociais consolidadas, uma vez que, usualmente, reserva-se esse recurso gestual a pessoas com poder para interromper as demais em seus afazeres e discussões em andamento. O pigarreante limpa a garganta e, com o gesto, a modo de arauto, requer atenção e respeito dos outros, para uma proclamação. Por outro lado, no caso do personagem em tela, esse gesto indica também uma possível prática contumaz de fumar charutos ou cachimbos, instrumentos mágicos próprios à liturgia afrobrasileira.

O gesto de fumar charuto tem uma função simbólica essencial nessa narrativa, sobretudo pelo fato de que esse artefato votivo é elaborado com folhas de tabaco, uma planta autóctone das Américas, ou seja, uma planta que extrai a força do próprio solo genuinamente nativo e originário em que se assenta sua ancestralidade. Nesse contexto, o personagem de frei Sinfrão (“frei” equivale a “irmão”, denominação própria aos participantes da gira) é assim apresentado, quando vem cavalgando, “montado”, às espaldas de Pedro Orósio, num gesto que concilia tabaco, possessão de um cavalo e religiosidade: “Relia o breviário, assim mesmo montado, e fumava charuto.” (ROSA, 2006aROSA, João Guimarães. O recado do Morro. In: ROSA, João Guimarães. Corpo de baile. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006a, p. 389-466., p. 390).

Outro gesto importante a ser ressaltado nos atos de Sinfrão é o de cumprir e oficiar ritos, momentos em que aparece sempre disposto e devotado a atender a assembleia festiva. O nome da personagem Sinfrão remete ao “sinfronismo”, ou seja, à função de “estabelecer uma simpatia, independente do tempo e do espaço entre o autor e o leitor” (ROBERTO, 2010ROBERTO, Marcos. Emoção literária. In: Educação Humanista. São Paulo, 14 nov. 2010.Disponível em: http://lotusmappo.blogspot.com/2010/11/emocao-literaria.html . Acesso em: 7 out. 2020.
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, p. 1). Roberto recorre a Hênio Tavares e Charles Du Bos para assim discorrer sobre o conceito: “Cada vez que um homem frente a uma obra literária - qualquer que tenha sido a época em que foi criada - consegue emocionar-se e reviver em si os sentimentos que comoveram o autor no instante em que compôs, opera-se o efeito do sinfronismo.” (Idem). Trata-se de uma “sintonia espiritual capaz de aproximar simpaticamente a dois seres, mais além do tempo e do espaço. A literatura é veículo sinfrônico que apaga as distâncias e as idades conjuradas pela emoção.” (Ibidem).

Flusser (2014FLUSSER, Vilém. Gestos. São Paulo: Annablume , 2014.), ao analisar o valor simbólico do gesto introspectivo e ostensivo de fumar cachimbo (prática própria aos pretos-velhos e outros encantados), sugere que o consumo de tabaco conduz a um estado de contemplação, ponderação, especulação. Sabemos que o filósofo tcheco conhecia a religiosidade afrobrasileira, como se observa numa anotação manuscrita ao lado do poema “Canto das Virgens”, inédito e conservado em seu arquivo pessoal: “Executado durante os ritos de iniciação ao culto de Exu. Colhido e transposto para o português por Joseph Xatenka, livre-docente de magicologia da Universidade de Princeton.” (FLUSSERFLUSSER, Vilém. “O canto das virgens”. Fac-símile, pasta: Essays4_Portuguese-C [ Sem ref. 2667, sem data], Arquivo Flusser Berlim., s/d, s/p.).

Como vimos no início desta análise, Flusser dedica um capítulo inteiro do seu livro Gestos a pensar justamente o “gesto de fumar cachimbo”. Ao se perguntar “por que há fumantes de cachimbo?”, e depois de especular diversos aspectos dessa prática (da descoberta do fumo nas Américas a seus efeitos psicológicos e sociais), concluirá que “se trata de um rito” (FLUSSER, 2014FLUSSER, Vilém. Gestos. São Paulo: Annablume , 2014., p. 33), um “rito profano” que mobiliza a “razão estética”, “livre”, dotada de uma estrutura “aberta”, “plástica e individualmente variável” (FLUSSER, 2014FLUSSER, Vilém. Gestos. São Paulo: Annablume , 2014., p. 34). Nesse contexto, essa prática gestual ritualística pode ser também compreendida como “mágica”, “artística”, “absurda”, com amplo “engajamento religioso” (FLUSSER, 2014FLUSSER, Vilém. Gestos. São Paulo: Annablume , 2014., p. 35).

Rosa também conhecia a espiritualidade afrobrasileira, como atestam toda a sua obra e as esmeradas visitas a terreiros de Umbanda e Candomblé, por vezes registradas em documentos e depoimentos diversos. Como Flusser e como frei Sinfrão, ele também era fumante recorrente e nem mesmo a isquemia coronária, da qual foi vítima em 1958, o fez parar em definitivo com as carteiras de cigarro. Fumar é próprio de uma atitude contemplativa, implica um engajamento religioso e, no caso em tela, é uma forma de inspiração telúrica provocada por uma planta nativa, autêntica, primordial. Não por acaso, veja-se o que diz o mineiro ao crítico e professor austríaco Günter Lorenz, no que se refere aos sertanejos:

Somos tipos especulativos, a quem o simples fato de meditar causa prazer. Gostaríamos de tornar a explicar diariamente todos os segredos do mundo. Chocamos tudo o que calamos ou fazemos antes de falar ou fazer. [...]. Uma palavra, uma única palavra ou frase podem me manter ocupado durante horas ou dias. (ROSA, 1991ROSA, João Guimarães. Diálogo com Guimarães Rosa. In: COUTINHO, Eduardo (org.). Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991. p. 62-97., p. 79).

Considerações finais

Guimarães Rosa e a espiritualidade afrobrasileira aproximam-se e interagem numa exploração circular que parece, ao leitor, juntar uma escrita minuciosa com um elaborado vocabulário, ao mesmo tempo em que evoca a fala de uma terra em transe, aspectos que remontam às nossas origens. Nessa paisagem poética, o imaginário da cultura e aquele da religião como tradição de grandes interações e escutas, contemplam as formas históricas afroindígenas como grandes ensaios, a céu aberto, de performance e de construção narrativa, festeira e corporal, de personalidades encantadas e, mais ainda, encantadoras.

Em convergência com os gestos simbólicos afrobrasileiros, que se distribuem ao longo da narrativa, poderíamos deduzir que o trajeto do grupo de viajantes representaria, metaforicamente, um percurso imaginário que se realiza sob um estado de inspiração mediúnica. O mesmo valeria para os mensageiros ou “recadeiros” que transportam a “mensagem do morro” de pessoa para pessoa, num movimento circular de reinterpretação e de sobreposição interpretativa. Em outras palavras, tantos esses “recadeiros” como Pedro “enxadeiro” seriam médiuns (“cavalos”, no léxico dessa religião) “cavalgados” (inspirados/incorporados) por mensagens e entidades: Orixás, encantados, guias espirituais, encostos etc., os quais atendem pelos nomes de “boiadeiro”, “marinheiro”, “quibumgo”, “menino”, “rei congo”, “rainha conga”, “moço”, “mocinha”, entre outros, termos que se distribuem em profusão nas páginas da narrativa. Nesse caso, a religiosidade afrobrasileira emerge desse conto por meio das gestualidades cênicas e alusões indiretas, as quais se tornam evidentes apenas quando se identifica o campo lexical em que palavras, imagens e gestos permitem compreender as formas com que a espiritualidade afrobrasileira se manifesta no corpo literário de G. Rosa.

Eterno aprendiz da cultura negra e indígena brasileira, G. Rosa conseguiu explorar, neste conto, a gestualidade afrobrasileira em diversos planos simbólicos. Reservamos para um próximo estudo a festa do Divino Espírito SantoMUSEU AFRO BRASIL. Festa do Divino Espírito Santo. Disponível em: http://www.museuafrobrasil.org.br/pesquisa/indice-biografico/manifestacoes-culturais/festa-do-divino-espirito-santo. Acesso em: 12 out. 2020.
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, que se apresenta na última parte do conto. A vivência, conhecimento e profundidade compreensiva com a qual o escritor mineiro relaciona-se e escreve sobre tal cultura - desde Sagarana - exige, a nosso ver, uma maior atenção dos pesquisadores sobre a emergência da cultura e da linguagem afrobrasileiras no conjunto de sua obra.

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    Este texto é resultado do apoio recebido pela Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal (FAP-DF, Edital 04/2021, processo 001930000113420212), e pelo Edital DPI/DPG N. 02/2021 (UnB) de apoio à execução de projetos de pesquisas científicas, tecnológicas e de inovação com produção de artigo.
  • Parecer Final dos Editores

    Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    14 Fev 2021
  • Aceito
    16 Nov 2021
Programa de Pos-Graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras -UFRJ Av. Horácio Macedo, 2151, Cidade Universitária, CEP 21941-97 - Rio de Janeiro RJ Brasil , - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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