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A questão do impossível no suicídio: a precariedade de si

The question of the impossible in suicide: the precariousness of the self

Resumo

Este ensaio pretende discutir a questão do suicídio a partir da poesia de poetas que passaram ao ato, tomando como paradigma Vladimir Maiakóvski. Com isso, pretendo rediscutir o lugar da vida e da morte na tentativa de definir a escrita e uma ética que possa ser capaz de pensar para além do si, do sujeito e da centralidade do mesmo. Discutir o horizonte de possibilidade que cria o ato suicidário é o objetivo aberto por nossa proposta, notando os problemas psicológicos e da abordagem linguística como passíveis de uma desconstrução.

Palavras-chave:
suicídio; poesia; si; alteridade

Abstract

This essay aims to discuss the issue of suicide based on the poetry of poets who committed suicide, taking Vladimir Mayakovsky as a paradigm. I intend to re-discuss the place of life and death in an attempt to define writing and an ethics that may be able to think beyond the self, the subject and the centrality of the subject. Our proposal seeks to open a discussion on the array of possibilities created by the suicidal act, acknowledging thatpsychological problems and the linguistic approach are subject to deconstruction.

Keywords:
suicide; poetry; self; alterity

Résumé

Cet essai a pour but de discuter la question du suicide à partir de la poésie des poètes qui ont passer à l’act, en prenant Vladimir Maïakovski en tant que leur paradigme. Avec cela, j’ai l’intention de rediscuter la place de la vie et de la mort pour tenter de définir l’écriture et une éthique qui soit capable de penser au-delà de soi, du sujet et de la centralité do même, de l’ipséité. Discuter de l’horizon de possibilité qui crée l’acte suicidaire est le but ouvert par notre proposition, en constatant les problèmes psychologiques et l’approche linguistique comme sujet à déconstruction.

Mots-clés :
suicide; poésie; soi-même; altérité

Não há outra forma, talvez, de começar este texto senão assumindo uma questão diante do impossível. Do impossível, se posso repetir, uma vez que o que se coloca em questão aqui é mesmo a vida, o estar vivente e ter diante de si uma decisão. Coloca-se em jogo a vida e a questão da vida e, nesse instante mesmo, preciso pensar em sua economia, no cálculo do tempo, na dimensão entre nascimento e morte, naquilo que ela possa ter de reapropriável e idêntica. Nesse sentido, é necessário pôr em jogo também o que parece ser uma definição da vida, sua dimensão conceitual ou seu ser mais próprio; se ela deve ser conservada, mantida viva, para que se possa ter uma certa noção de sua imanência ou de sua inevitabilidade reprodutiva, de sua inerência diante do que é o vivente, não deixando escapar nada para fora-da-vida. Tudo isso pressupõe, é evidente, certa compreensão do ser da vida, do que é a vida, logo, de seus limites físico-biológicos, isto é, de sua dimensão funcional. Da vida como aquilo que provém do viver, do estar vivo, da lógica do vivente, participam todos os modos de cálculo e, com esse mesmo esquema econômico, a vida parece não deixar de fora a morte, mesmo que o morrer pareça escapar de sua alçada. As condições, portanto, da vida são os modos com que ela se exerce como possibilidade, como dimensão potencial, mas também como ato e, desse ato, sua economia, ou como diz ainda Jacques Derrida, analisando Nietzsche, “não temos outra representação (Vorstellung) do ser senão ‘viver’, dito de outro modo, viver é ou não é senão uma representação de ser, mas ainda somos livres de pensar o ser além da representação” (DERRIDA, 2019aDERRIDA, Jacques. La vie la mort - Séminaire (1975-1976). Paris: Seuil, 2019a. 354 p., p. 23). Qualidades heterogêneas, reproduções, disseminações de órgãos, espaçamento e ocupação, a vida, como evidência biológica, parece valer-se de uma série de processos que garantem o ser da vida, sua propriedade mais imanente, justamente na dimensão representativa que ela assume do próprio ser ou daquilo que é próprio ao ser. Nesse atributo qualificativo, a vida constitui-se no espaço pensável, num limite que parece ainda permanecer sob a tutela e na garantia do que foi erigido como ser, o seu ser, numa lógica que a engendra sob o limite da representação, da reapropriação do presente em que ela não pode conter o para além da representação, mesmo que estejamos livres para pensá-lo.

Mas eu falava do impossível, daquilo que precisamente na vida pode vir a estar não como a marca de sua propriedade vitalista, mas desde sua condição ativa, de sua dinâmica que se suscita a si mesma e reconhece, nela, uma dimensão não apenas da esfera do orgânico, mas também o transbordamento do sistema que apresenta sua identidade a si, como na proposição freudiana, de retorno ao inorgânico, de repouso das forças que valorizam e intensificam o que se poderia chamar vida. Dessa intensificação, podemos guardar algo como a força da vida, sua dicção que transpõe a totalidade do vivente numa esfera que não é apenas a da conservação de si, o cuidado sistêmico e instituído pelos direitos sobre a vida, mas um aumento an-econômico da potência do que se diz caber sob esse nome de vida. E eis uma questão de impossibilidade: a quem dizer da vida senão por antecipação, senão não tendo chegado ao termo último e, logo, a toda sua manifestação verificável? A quem está reservado o nome da vida senão em seu prejulgamento, no viver precipitado? Nietzsche e Derrida parecem concordar com a estrutura que, aqui, liga a vida à morte, não por comutação ou copulação conceitual e econômica. Trata-se de pensar em qual nome pode guardar a vida, a quem ele serve ou o que se pode dizer sobre seu desenrolar. Ou melhor: “uma antecipação que não poderá se verificar, se completar senão no momento em que o portador do nome - aquele que se chama, por preconceito, um vivente - será morto. E a vida que reaparecerá, reaparecerá ao nome e não ao vivente, ao nome de vivente como nome do morto” (DERRIDA, 2019aDERRIDA, Jacques. La vie la mort - Séminaire (1975-1976). Paris: Seuil, 2019a. 354 p., p. 52). Ao retorno da vida, um nome e um não que dizem justamente o que é o morto, o signatário da morte, como signatário da vida. O que se antecipa ou quem se antecipa nessa direção? É importante reparar em como a vida torna-se vida apenas em seu porvir de vida, no acontecimento que não cessa de revir num momento que não é este do presente. Desse modo, a re-presentação do presente faz-se no momento em que não há mais, biológica e antropologicamente falando, vida. O vivente recebe tal nome, ou ele é como tal, justamente no instante em que deve receber o nome de morto; em que foi por morrer que ele tornou-se, de fato, de nome, por princípio, um vivente. Derrida assoma todos os verbos no futuro para que essa antecipação seja lida de fato no que vem depois do começo da vida, num começo que não seja o nascimento simultâneo entre nascer e estar vivo, mas no momento em que algo como um mandamento sobre a vida se exerceu, no momento em que ela se exerceu como o que se põe em jogo, o que se faz questão ao pensar não apenas o pensável, mas, e esse é um ato de escrita, aquilo que seria o rastro do impensável.

Nessa esteira, a pergunta sobre a potência da vida, sobre aquilo que a vida pode ser definida como potência, somente me interessa aqui como uma espécie de excedente diante da questão de que vou tratar. Sua potência, talvez mais originária, implica uma dupla assunção que tem a ver com a força dessa potencialidade, com sua dinâmica, com a intensidade com que preciso assumir esse discurso (sem cessar duplo, livre em pensamento e intimamente ligado à prevenção do ato da morte voluntária). Nesse sentido, a condição de possibilidade da vida, de um lado, cede; ela apresenta-se como fragilidade, como espectro de tudo o que pode perder sua propriedade, o que resiste à essencialidade do que é estável ou demasiado rígido, ela dispõe-se numa espécie de deformação do estado anterior, ou seja, ela faz-se na vulnerabilidade do que pode ser um discurso sobre o viver e a assunção necessária do frágil movimento do qual ela faz parte. Por outro lado, essa condição precisa se inscrever na chave de um luto, mais precisamente daquilo que Derrida chamou de “luto originário” que “não espera a morte dita ‘efetiva’” (DERRIDA, 2005DERRIDA, Jacques. Apprendre à vivre enfin - entretien avec Jean Birnbaum. Paris: Galilée, 2005. 72 p., p. 26). Esse luto é aquele dos sobreviventes, dos que não compreendem a vida senão como uma demora diante do espectro de sua originalidade. Dito de outro modo, “a vida é sobrevida. Sobreviver no sentido corrente quer dizer continuar a viver, mas também viver após a morte” (DERRIDA, 2005DERRIDA, Jacques. Apprendre à vivre enfin - entretien avec Jean Birnbaum. Paris: Galilée, 2005. 72 p., p. 26). Assim, ao sobreviver à morte (überleben), ou ao continuar a viver (fortleben), algo como uma origem da vida é colocado em questão, é reposto em circulação, justo ali onde escrever porta o luto e a fragilidade ao mesmo tempo em que não lhes faz concessão alguma. Trata-se de uma expropriação da vida, o viver para além da vida exige não só o aprendizado da morte, mas também todo o trabalho infinito do luto. Algo que não poderá mais ser apropriado, porque destinado, na história, ao outro, a essa singularidade inefetiva que chamamos outro ou a vida do acontecimento. A expropriação da vida, sua vivência pelo escrito, portanto, põe em movência o jogo da questão, da vida em questão; ou como melhor diz Derrida: “eu vivo minha morte na escrita” (DERRIDA, 2005DERRIDA, Jacques. Apprendre à vivre enfin - entretien avec Jean Birnbaum. Paris: Galilée, 2005. 72 p., p. 33). E só nesse sentido poderia ter um certo sentido daquilo que se chama minha morte; na escrita como aparato biográfico, como inscrição do vivente, do que pôde estar vivo e ter diante de si uma decisão.

O título da biografia de Vladimir Maiakóvski, escrita por Bengt Jangfeldt, traz à tona algo como a vida posta em questão pelo poeta. A vida em jogo refere-se tanto ao sentido amplificado que se pode assumir numa biografia de um poeta suicida quanto ao dado factual da mania de Maiakóvski por jogos. Jangfeldt trabalha essa duplicidade para mostrar tanto a dispersão quanto a entrega da vida de Maiakóvski não apenas aos amores, sempre exacerbados, ou às atitudes grandiloquentes ou mesmo paradoxais, mas sobretudo ele demonstra como a vida se coloca em questão em pequenos detalhes, em consequências últimas quando se trata de escrever, ou antecipar a vida de sua morte. Como aponta o biógrafo, mesmo pobre e com 50 copeques dados por Bourliouk para que o poeta não morresse de fome, Maiakóvski dormia em bancos públicos, e esfomeado e “para se nutrir no dia a dia, ele jogava cartas - e bilhar, em que ele era quase imbatível. Maiakóvski tinha o gosto pela competição e pelo risco no sangue. [...] passava todo seu tempo livre diante de uma mesa de apostas, no carteado - ou na sinuca. E assim toda a sua vida, mesmo quando não tinha mais necessidade disso para assegurar sua subsistência” (JANGFELDT, 2010JANGFELDT, Bengt. La vie en jeu - une biographie de Vladimir Maïakovski. Paris: Albin Michel, 2010. 592 p. , p. 23). Se pudesse dizer de um modo mais claro, a concepção de vida que se depreende aqui é que ela está entre acaso e cálculo, dispensando a necessidade. Os jogos de azar, o tecido verde que recobre o espaço no qual serão lançadas as cartas, e o controle geométrico do bilhar, desse deslizamento de alvos regidos pela mão, são a matéria significativa dessa concepção da vida em jogo, da vida que se atira em competição até o esgotamento. Nikolai Asseiev, em depoimento recolhido na biografia, diz que a “força massiva” e o desejo de disputa de Maiakóvski podia se resumir em uma frase que ele ouviu do poeta: “se eu começo, eu mato” (JANGFELDT, 2010JANGFELDT, Bengt. La vie en jeu - une biographie de Vladimir Maïakovski. Paris: Albin Michel, 2010. 592 p. , p. 25). Não admitindo a derrota, seu jogo era contínuo e visava não apenas colocar a vida em jogo, mas levá-la a seu limite enquanto questão. O que implica, por certo, sua impossibilidade, se tomada como matéria reprodutora e originária, consumidora do fora, numa necessária imersão ao dentro, à concepção de que tudo pertence ao dentro da vida, que não teria nenhum fora. Dito de outro modo, a identidade da vida, reconhecida como pura interioridade do ser da vida, do vivente, é posta em jogo, entre acaso e controle, que a converte ao exterior e a torna, nesse sentido, uma espécie de espectro do eu que pode dizer eu vivo para além da necessidade no eu que não seria senão um conjunto de vazios movidos pelo estar vivo. Assim, a promessa assassina no dito jocoso de Maiakóvski suscita o desejo de tocar o impensável, ultrapassar esse limite identitário de um dado horizonte da vida. Lembremos que é mais importante jogar, endividar-se, do que comer, já que, como diz o poema “Conversa sobre poesia com o fiscal de rendas”:

A nossa dívida é uivar com o verso, entre a névoa burguesa, boca brônzea de sirene. O poeta é o eterno devedor do universo e paga em dor porcentagens de pena.

(MAIAKÓVSKI, 2017MAIAKÓVSKI, Vladimir. Poemas. São Paulo: Perspectiva, 2017. 288 p., p. 197)

A capacidade de extensão infinita desse desejo endividado diante do que significaria o infinito do verso delimita o corpo do poeta. Não se trata apenas de uma impossibilidade diante da dívida e de seu pagamento - ela é paga em porcentagens com a dor do poeta, que espera um sol “se erguer / sobre um porvir / sem mutilados nem mendigos” (MAIAKÓVSKI, 2017MAIAKÓVSKI, Vladimir. Poemas. São Paulo: Perspectiva, 2017. 288 p., p. 196) -, mas da impossibilidade que mede esse infinito. E é nessa impossibilidade de cálculo dada ao desejo que reside o ethos desse vivente, sabedor do que se joga, quando se joga com a morte. A dívida calculada pelo fiscal de vidas não cabe no desejo, ela apresenta-se no campo da necessidade, no sustento regido da vida, sem vivacidade. A distinção entre esses dois campos faz uivar a escrita, que, não sendo matéria de um sujeito - cheio de suas vazias necessidades -, converte-se em aspiração do desejo diante de uma pena, cada vez mais violenta. Diria mesmo, ela é mais original do que a própria vivência do vivente. É nesse sentido que precisamos tomar conta de uma liberdade não finita, distinta daquela que vê na liberdade apenas um grau ativo e passivo produzido ou producente de um dado sujeito. A liberdade infinita, que exige uma dívida igualmente infinita, revela essa violência do tempo como mero adiamento do estado original, ou mais original, numa distensão da vontade, ali onde a liberdade não seria senão uma nulidade de origem, uma disposição à exterioridade. Se as palavras custam um “duro juro”, é porque são elas que colocam em contato o corpo a corpo dessas forças que nada mais são que o endereçamento de um vivente a outro vivente, ou melhor, de um suicidário a um sobrevivente. Se há um lance possível em qualquer jogo, ele deve estar ali onde o adversário não pôde estar, em sua ausência; o que equivale dizer que ao me endereçar a um adversário, eu inscrevo-o como corpo existente, que não se faz senão como adiamento e retraimento de sua própria presença. A imagem do poeta faminto, dormindo em um banco de praça, promove essa distensão de sua temporalidade no campo da necessidade, mas também executa seu desejo na dimensão infinita que o separa do adversário, do outro, que está presente, mas também por vir, aberto em suas exterioridades. Como diz ainda o poema: “Daqui a séculos, / do papel mudo / toma um verso / e o tempo ressuscita” (MAIAKÓVSKI, 2017MAIAKÓVSKI, Vladimir. Poemas. São Paulo: Perspectiva, 2017. 288 p., p. 198). Não se trata, claro, de uma imortalidade da fama do poeta, de sua glorificação em um tropo de linguagem. É o próprio tempo que será ressuscitado na mudez de uma língua que já estará muito morta, que já terá sido repartida infinitamente em muitas outras dívidas. Assim, como ainda diz Jangfeldt, agora sobre o suicídio do poeta: “amor, arte, revolução - tudo era para Maiakóvski um jogo com a vida em jogo. Ele jogava como jogador compulsivo: intensamente, impiedosamente. E ele sabia que perder seria apenas desespero e desolação” (JANGFELDT, 2010JANGFELDT, Bengt. La vie en jeu - une biographie de Vladimir Maïakovski. Paris: Albin Michel, 2010. 592 p. , p. 551). E será que ele, algum dia, perdeu?

O que gostaria de anunciar aqui, nessa esfera entre poetas suicidas e escrita, é que isso não vai sem luto; e esse luto demonstra a fragilidade do vivente quando demandado suster, manter, sustentar sua ereção, essa sublevação erguida diante de uma comunidade, sua disposição vertical diante da vida. Enquanto frágil, o vivente não tem senão a possibilidade de antecipar esse luto, portá-lo como o que lhe é mais próprio e, diante do si, responder de outro modo, demandar um outro direito, compor aquilo que excede a perda. Se no jogo de Maiakóvski estava a questão da vida, ela acabou por tocar no mundo desolado que, no entanto, não deve ser apenas considerado como um mundo patogênico, fadado à interpretação psicológica ou médica ou moral. O seu suicídio mostra isso que há de comum entre escrever e ter vivido: uma ausência que vai sendo incapacitada pelo excesso de si.1 1 Se eu pudesse estabelecer aqui um centro para a prevenção do suicídio - do ato considerado não filosófica e poeticamente. A questão, para além dos índices importantes de saúde mental, parece-me advir de uma questão antes de tudo ética. Não apenas uma falha na conservação do sujeito, mas a própria compreensão e imposição de um sujeito massivo diante da alteridade. A vida do suicida é tomada como uma vida possuída pelo si, como aponta o próprio vocábulo. No entanto, penso que temos feito a leitura incorreta desse si ou da autodestruição que se procura evitar, prevenir. Minha tese é a de que um sufocamento do endereçamento ao outro, ao outro mesmo em si, está no cerne dessas mortes autoinfligidas. Esse apagamento da alteridade pelo mesmo não apenas revela uma direção unilateral de compreensão do sujeito, como o reforça como única possibilidade de estar vivo, de manter uma vida. Ora, o campo da responsabilidade, diferente daquele do sujeito autocentrado sobre seu trabalho sobre si, coloca diante do sujeito questões até então não resolvidas: até onde se pode manter um sujeito? Qual a disposição dessa produção de subjetividade que pode exceder um grau assumido de identidade degastada pela sobre-exposição do eu a si mesmo, do eu sobre um ideal de si? Em que campo a diferença entra se há uma exigência pré-moral, impositiva como original, da eterna presença do idêntico? Como o idêntico sustenta-se diante de uma diferença absoluta? Parece-me que essas são questões relevantes numa prevenção ao suicídio. Desse ponto de vista, o caso de saúde pública que ele implica não seria apenas formulado pelo acolhimento e reconhecimento da dor de ser, mas, antes, uma disposição ética dentro do sistema de saúde, um componente em que o acolhimento seja também povoado de toda a ausência do idêntico que, potencialmente, sente o suicidário, o reincidente, o imaginativo. É preciso retomar num outro momento esse aspecto significativo para o estudo que aqui faço, tentando alargá-lo dentro do campo moral, dentro da dimensão entre o mal e o bem, o patológico e o normal, o instituído e o excluído, o sujeito e o outro. É esse, portanto, nosso tema durante essas páginas, cercadas sempre pela questão da escrita, definida dentro dos poemas, como num paradoxo sustentado na linha tênue da antecipação da morte, da decisão sobre ela, e na mutilação do sentido, sentido como previamente estabelecido pelo si. Assim, como propõe o trabalho de luto derridiano, em Demeure, Athènes, em que o filósofo depara-se com um conjunto fotográfico e com as ruínas desse espaço de produção do sujeito, precisamos nos deparar com a afirmação, largamente intraduzível, que abre a obra, do “nous nous devons à la mort” (DERRIDA, 2009DERRIDA, Jacques. Demeure, Athènes. Paris: Galilée, 2009. 61 p., p. 5). O que é devido por esse que afirma ter aprendido com a vida, morrer? O que vem, desde Sócrates e Platão, do tou melete thanatou e dessa liberação da interioridade? Estamos entregues à morte, numa dívida que acede uma carga de idêntico aos sujeitos. Assim, o pronome reflexivo, bem como o pronome pleonástico do suicidar-se, acede/concorda não apenas um sujeito ao pronome reto, mas antecipa-o como objeto dessa dívida. Derrida diz “que após ter refletido o ‘segundo’ ‘nos’ constituído, ele, em ‘objeto’ devido: ‘nós’ somos ‘devidos’ (moratória, prazo, interpelação [mise en demeure]), nós nos aparecemos a nós mesmos, nós nos reportamos a nós mesmos, nós nos adotamos [prenons en vue] como um devido, tomados numa dívida ou um dever que nos precede e nos institui, uma dívida que nos contrata antes mesmo que nós a tenhamos contraído” (DERRIDA, 2009DERRIDA, Jacques. Demeure, Athènes. Paris: Galilée, 2009. 61 p., p. 54). Essa heteronomia mais original que o sujeito resgata uma temporalidade outra, que é também aquela do poema. Nesse tempo, o luto e a fragilidade são anteriores à morte, como numa antecipação do acontecimento, por sua impossibilidade de previsibilidade. Resta perguntar se a decisão suicidária é ela também mera antecipação e controle de previsão diante do organismo ou se ela precede e dá potência à vida. O que quero dizer com isso é que a escrita recusa qualquer anterioridade enquanto dívida, refuta o luto como cultura da perda. Derrida diz que “o primeiro nós nos concerne/olha, observa e fotografa o outro”, há “um ‘nós’ [que] pode protestar (não é necessariamente eu, um eu)” (DERRIDA, 2009DERRIDA, Jacques. Demeure, Athènes. Paris: Galilée, 2009. 61 p., p. 56). É esse também o nós que Maiakóvski recorda como “a força do poeta / [que] não se reduz só / a que te lembrem / no futuro / entre soluços” (MAIAKÓVSKI, 2017MAIAKÓVSKI, Vladimir. Poemas. São Paulo: Perspectiva, 2017. 288 p., p. 199). Trata-se mesmo de demorar, de morar infinitamente como última instância da aporia e, nesse sentido, a palavra para demorar pode conter tudo, toda dívida, todo dever e tempo, “tudo e os restos, o destino, o prazo, o atraso (demorari: permanecer, parar-se, tardar ou retardar - que parece estranhamente a demori: morrer, definhar)” (DERRIDA, 2009DERRIDA, Jacques. Demeure, Athènes. Paris: Galilée, 2009. 61 p., p. 9). Desse modo é que opera a sintaxe da “obscura câmera da língua”, na suspensão, impassível e exposta de algo como uma temporalidade que guarda o jogo vital e mortal da poesia e da decisão sobre o impossível.

Se os poemas de Maiakóvski são marcados por um eu que não recua, é esse mesmo eu a marca da irrupção da sociedade comunista. Mesmo colecionando detratores e críticos que o diziam ser demasiadamente individualista, o poeta continua cantando desde o eu que compreende uma política da vida e da sua experiência poética. E, é bem nesses poemas que encontramos certa concepção do que vale o pôr a vida em jogo. Ou do que se poderia compreender como o que, de fato, está em jogo. Diz bem isso os versos de Flauta-vértebra. Toda a terceira parte do poema é dedicada ao paradoxo de estar vivo - quer dizer, apaixonado - e a potência do esquecimento sobre os versos. É à “inumana magia / das palavras iluminadas pela dor” que o poeta demanda uma ação, já que “a desordem derrubou o muro da razão” e que “eu acumulo o desespero na febre e no ardor” (MAIAKÓVSKI, 2005MAIAKÓVSKI, Vladimir. À pleine voix - anthologie poétique 1915-1930. Paris: Gallimard, 2005. 464 p., p. 58). E é no corpo de Lili Brik que ele pede compor o seu corpo já morto: “Escuta / do que serve / esconder o cadáver. / Cede em avalanche sobre minha cabeça a palavra horrenda!” (MAIAKÓVSKI, 2005MAIAKÓVSKI, Vladimir. À pleine voix - anthologie poétique 1915-1930. Paris: Gallimard, 2005. 464 p., p. 58) as profundas fossas dos olhos de Lili é o abismo pelo qual ele deve se deter - “estendo minha alma sobre o abismo como um cabo, / manipulando as palavras, aí me balanço” (MAIAKÓVSKI, 2005MAIAKÓVSKI, Vladimir. À pleine voix - anthologie poétique 1915-1930. Paris: Gallimard, 2005. 464 p., p. 59) - onde a demora deve se conter. A demora de um tempo que remonta ao ato suicidário que abre e fecha o poema, o tiro na cabeça, a aspiração ao veneno. O poema finda com os versos que receberam um desenho de Maiakóvski (Figura 1): “Vê - / estou preso ao papel / com o prego das palavras” (MAIAKÓVSKI, 2005MAIAKÓVSKI, Vladimir. À pleine voix - anthologie poétique 1915-1930. Paris: Gallimard, 2005. 464 p., p. 62).

Figura 1 -
desenho de Maiakóvski sobre poema Flauta-vértebra.

A corporeidade assumida no desenho, que crucifixa um personagem sobre a brisura do livro, de um lado a outro da folha, e com o restante de seus membros dobrados como uma costura, marca esse embate entre palavra e massa, entre sentir no corpo sua dimensão antecipada do mesmo e o proclame a todas as que ele teria amado. É nessa alteridade que se marcam tanto os versos escritos sobre o desenho quanto a palavra “palavra” estampada gráfica e espacialmente logo abaixo. A reiteração desses pregos todos (mãos, palavra e o próprio corpo do personagem desenhado) compõem a própria execução dos versos, para um dia fatídico, “na flauta de minhas próprias vértebras” (MAIAKÓVSKI, 2017MAIAKÓVSKI, Vladimir. Poemas. São Paulo: Perspectiva, 2017. 288 p., p. 118). Esse sopro vazio da história do corpo marca a escrita como um ato decisório que se faz diante da vida:

Penso, mais de uma vez: seria melhor talvez pôr-me o ponto final de um balaço. Em todo caso eu hoje vou dar meu concerto de adeus. (MAIAKÓVSKI, 2017MAIAKÓVSKI, Vladimir. Poemas. São Paulo: Perspectiva, 2017. 288 p., p. 118)

Assim, a matéria impossível de Maiakóvski, o motor vital, encontra-se nessa possibilidade de elo entre o amor e a poesia, entre viver esse momento de aliança como um último momento, em que ele pode dizer eu com a consciência de quem diz “eu amo” e, certamente, isso não vai sem o outro, sem um ter vivido com a alteridade, em sua exterioridade extrema. Como diz o poema Eu amo: “Só, eu não poderia / carregar um piano / (menos ainda / um cofre). / Mas o coração / nem armário, / nem piano, / como o carregaria, tendo-o adquirido” (MAIAKÓVSKI, 2000MAIAKÓVSKI, Vladimir. Poèmes 3 (1922-1923). Ed. Bilíngue. Paris: L’Harmattan, 2000. 285 p., p. 35). Há um resguardo dessa impossibilidade do amor, já que “eu o escondi / em ti / como riquezas no ferro” (MAIAKÓVSKI, 2000MAIAKÓVSKI, Vladimir. Poèmes 3 (1922-1923). Ed. Bilíngue. Paris: L’Harmattan, 2000. 285 p., p. 35). Sua sobrevivência trata sempre dessa distensão que vai do eu ao outro. Gastar o máximo de calculabilidade naquilo que é mais incalculável: uma definição do amor. Como relata seu biógrafo, desde 1915 até 1928, todos os poemas de Maiakóvski foram dedicados e tinham “Lili como objeto lírico” (JANGFELDT, 2010JANGFELDT, Bengt. La vie en jeu - une biographie de Vladimir Maïakovski. Paris: Albin Michel, 2010. 592 p. , p. 416). É o encontro com Tatiana Iácovleva, no entanto, que o fará trair pela primeira vez esse compromisso, escrevendo, no outono parisiense, dois poemas-cartas que são a marca dessa vida tomada pelo amor, ou melhor, pela impossibilidade de viver sozinho. “Carta a Tatiana Iácovleva” (não publicado em vida por demanda da própria Tatiana) e “Carta de Paris ao camarada Kostróv sobre a essência do amor” propõem como que um alarde dessa possibilidade de vida - “deixe / que eu faça alarde / como homem / da grandeza da tarde” (MAIAKÓVSKI, 2017MAIAKÓVSKI, Vladimir. Poemas. São Paulo: Perspectiva, 2017. 288 p., p. 208). Uma união que reacende tanto seu dever político diante da Rússia soviética, dos suspiros dos milhões que definhavam antes da Revolução, como o desejo de que ela se enlace a ele num pedido emblemático de braços: “Venha cá / para o abraço cruzado / dos meus grandes / braços desajeitados” (MAIAKÓVSKI, 2017MAIAKÓVSKI, Vladimir. Poemas. São Paulo: Perspectiva, 2017. 288 p., p. 211). Se esses versos não conheceram a luz até a morte de Maiakóvski, o mesmo não se dá com o poema ao camarada Kostróv. Um endereçamento que não vai apenas ao camarada, de Paris a Moscou, mas também a Tatiana e ao que pode ser a definição mais densa do amor e da vitalidade diante do torturável. Diz o poema:

O amor não está em ferver bruscamente, nem está em acender uma fogueira, mas no que há por trás das montanhas do peito e acima da jângal-cabeleira. Amar é ir ao fundo do cercado e até que a noite - corvo negro - chegue cortar lenha com chispas no machado e a nossa própria força pôr em xeque. Amar é desfazer-se dos lençóis que a insônia desarruma (...) O amor não é paraíso nem geena. Para nós o amor é o atestado de que outra vez se engrena o coração - motor enferrujado. (MAIAKÓVSKI, 2017MAIAKÓVSKI, Vladimir. Poemas. São Paulo: Perspectiva, 2017. 288 p., p. 214-215)

Nesse espectro, o amor toma toda a distensão temporal do vivível, na engrenagem do que põe a própria vida em xeque. Atestar esse outra vez do coração, essa redisposição ao ir ao fundo para que a própria noite corte num lampejo faiscante que rompe sua escuridão o que era o mensurável ou a paixão fugaz. É o amor quem engendra sua maquinaria e não o sujeito, ali onde o coração pode estar enferrujado. Essa potência diante do impossível constrói essa escrita que diz não ser possível domar o amor, e que, por extensão, não mede os limites prováveis da própria vida. O amor anula, portanto, o sujeito por um nós que, não sendo mera fusão do idêntico, precisa resguardar sua força, em questão, de diferença. E é nesse amor que “as palavras / soletram / das letras / às estrelas / um cometa dourado, / Deixando / pelo céu / um longo rastro” (MAIAKÓVSKI, 2017MAIAKÓVSKI, Vladimir. Poemas. São Paulo: Perspectiva, 2017. 288 p., p. 217). É aí que a escrita instala-se num caminho que diz o mal de se escrever por uma espécie de celebração às palavras que fervem das “linhas / no meu livro de notas” (MAIAKÓVSKI, 2017MAIAKÓVSKI, Vladimir. Poemas. São Paulo: Perspectiva, 2017. 288 p., p. 216) para aqueles que a “visão já falha” (MAIAKÓVSKI, 2017MAIAKÓVSKI, Vladimir. Poemas. São Paulo: Perspectiva, 2017. 288 p., p. 217). No espectro que existe na escrita há essa potencialidade de anulação de si, do si, e é nesse contexto que o suicídio assume-se como tarefa ético-política. Um confronto aberto da consciência de si diante da marca da alteridade escandalosa do amor ou do outro. Trata-se mesmo de buscar uma definição de vida - ou melhor, já de uma sobrevida - sob o traço de quem se decidiu por ela ou pô-la em xeque.

Faz-se fundamental essa tentativa de exposição ao impossível da vida antes mesmo de iniciar qualquer caminho metodológico. Cada poeta suicida apresenta não apenas suas antecipações destinais, como é comum na compreensão de suas fortunas críticas alertar, mas sobretudo um certo conceito de vida, sua tomada como imanência espaço-temporal. O que não tem força se exerce aqui, na leveza, do que decai da vida. É nessa condição rendida e secreta da queda que a vida parece fazer sua aparição na escrita ou como escrita. Relação muda ou emudecida que parece ser uma retomada de Wandrers Nachtlied, de Goethe, onde os cumes da natureza estão emudecidos e há apenas o sopro de uma vida que se cala na paciência de quem sabe a calma de uma canção noturna. A condensação aqui é evidente e não deixa que a vida simplesmente interiorize a morte como algo intrínseco a si ou como pertencimento de si. Assim, como aponta Derrida: “O que preserva a vida está na movência do que preserva a morte, pois trata-se tanto de preservar a morte quanto de expor à morte. Trata-se de preservar a morte como se deve aqui salvar a própria morte, a morte do vivente à sua maneira, a seu ritmo. É preciso sempre preservar da morte ou preservar da vida, tal é a sintaxe ou a lógica dessa estranha vigilância” (DERRIDA, 2019aDERRIDA, Jacques. La vie la mort - Séminaire (1975-1976). Paris: Seuil, 2019a. 354 p., p. 335). A proteção está numa movência necessária que estabelece, ou ainda, é estabelecida não pela vida em si, mas à exposição que dela a guarda da morte. Numa estranha vigilância, a lógica da verdade do vivente está num certo ritmo que espera poder “transgredir a verdade e a não-verdade como efeito de dissimulação” (DERRIDA, 2019aDERRIDA, Jacques. La vie la mort - Séminaire (1975-1976). Paris: Seuil, 2019a. 354 p., p. 197) já que essa verdade mata e essa morte não é em si um assassinato, mas antes um suicídio, “uma verdade suicida já que ela se reconhece, em sua verdade de verdade, como erro ou ilusão” (DERRIDA, 2019aDERRIDA, Jacques. La vie la mort - Séminaire (1975-1976). Paris: Seuil, 2019a. 354 p., p. 198). Nesse reconhecimento, Derrida conclui uma dupla injunção do pensamento de Nietzsche (e sua análise por Heidegger) como “a força de vida como última instância” e “a estrutura suicida da verdade como efeito da vida” (DERRIDA, 2019aDERRIDA, Jacques. La vie la mort - Séminaire (1975-1976). Paris: Seuil, 2019a. 354 p., p. 198). Dessa constituição do último recurso à verdade dada ao vivente e na adversativa da verdade como “a vida a morte, como verdade sem verdade da verdade” (DERRIDA, 2019aDERRIDA, Jacques. La vie la mort - Séminaire (1975-1976). Paris: Seuil, 2019a. 354 p., p. 198), surge a não contradição, tão presente na escrita poética, de que é possível uma inscrição daquilo que não tem testemunho, da instância última como a tentativa de tomar por verdade um o quê da vida. A queda de pássaros e sua temporalidade aproximam a potência biológica do vivente de sua aporia mais fundamental e ela, por isso, não poderia ser apenas um meio em direção a qualquer coisa, mas, sim, uma guarda que saúda e salva tanto a vida quanto a morte. Como diz Derrida, trata-se de um é preciso que antecede tanto o viver quanto o morrer. Isso não apenas numa sintaxe metafórica em que o poema poderia dizer retoricamente a dimensão vitalista ou mórbida dos atos, mas, e talvez precisemos desse ato hiperbólico, num espectro em que as palavras não possam ser apenas metáforas ou representações de uma presença e, sim, justamente o que há de insustentável no que é sempre biotanatográfico.

Assim, como dar uma continuidade que faça falar e escrever não apenas a relação entre suicídio e poesia, inscrita sob uma questão de responsabilidade, mas escrever a própria dicção do ato suicidário como rastro diferencial do ato de escrever? Essa é precisamente minha questão aqui. Não pretendo traçar, nas obras dos poetas, indícios prévios de seus suicídios consolidados, mas, antes, entender o que é para eles um ato dado ao corpo, um duplo ato: a escrita e o suicídio. Já que é nesse corpo que estão marcados os afetos negativos dessa potência fracassada tanto da ciência quanto da filosofia, ou melhor, dessa implicação que existe entre o que é a matéria pensável e aquela impensável. Temos diante de um corpo suicidado não apenas o cadáver de uma biografia, antes existe aqui uma relação de alteridade que se construiu sob a pena de sua responsabilidade extrema, dessa experiência com o limite que se abriu ao fora da concepção de uma vida dada biofilogeneticamente. Não se trata, portanto, de trilhar causas e consequências da vida de poeta ou muito menos patologizar o discurso ou moralizá-lo. Espero contornar o sulcamento que define o ato de escrita desde a especialidade de uma morte voluntária, quando tomada por um mal de si. E, nesse sentido, não basta certa concepção generalista da mortalidade e da escrita, mas lê-los dentro de um ato material, datável e singular; calculado, em larga medida, mas também irruptivo. Muito da história da poesia tem sido pensada em sua relação com a morte, com a destinação histórico-ontológica da vida e de suas especulações metafísicas no tocante ao que leva às perguntas: o que é escrever? Por que escrevemos? Em que designação subjetiva compõe-se a natureza da escrita poética? As respostas tendem a se aproximar da experiência extrema da morte, da tentativa de lidar com esse limite vital que aproxima a poesia de um testemunho, da dicção da verdade, do orfismo reinterpretado. Por maiores que tenham sido as tentativas de tratar a questão sem esbarrar nessa metafísica desastrosa, a relação poesia-morte constitui um campo especulativo ainda pouco materialista, ou ainda apegado demasiadamente à concepção antropológica dos ritos da morte ou da escrita do poético. Isso implica uma questão que, diga-se, deveria ser metodológica. Dessa maneira, não pretendo traçar uma história do suicídio ou da escrita - questão que por si já exigiria uma desconstrução. Não se pode lidar com dados como se fossem explicativos de causas e, nesse sentido, não teremos aqui a argumentação arqueológica da passagem ao ato, ou ainda, não trilharei a sua genealogia sociopolítico-histórica na delimitação dos sujeitos suicidários e poéticos, uma vez que, como demonstrei acima, são marcas de singularidade diante não da individualidade do si, mas dos espectros de uma coletividade que chamo escrita. Assim, a partir de feixes quase-transcendentais, intentarei demonstrar como a convergência e dispersão entre suicídio e escrita não só surge nessas obras, como estão no cerne de uma possível definição de ação responsável diante dos afetos, da compreensão do que venha a ser um corpo que escreve e, portanto, seja capaz de se matar. Nessa (im)propriedade do homem, em seus fins, está a responsabilidade pelo sentido. Essa resposta vem da escrita, desse engajamento pelo evento de haver mais de um. Jean-Luc Nancy propõe que “a escrita é, então, a própria ressonância da voz, ou a voz enquanto ressonância, isto é, enquanto reenvio em si mesma, através da distância de um ‘si’, à ‘mesmidade’ que lhe permite se identificar: a cada vez absolutamente singular para um número indefinido de encontros cada vez singulares” (NANCY, 2015NANCY, Jean-Luc. Demande: littérature et philosophie. Paris: Galilée , 2015. 400 p., p. 212). Assim, é a partir dessa singularidade, que não deve ser confundida narcisicamente com a autointrojeção subjetiva, que na escrita há o que ressoa do desamparo ou mesmo da definição de vida que esteja compilada em certa imposição (ereção) do ser da vida. Como diz Cioran, “o suicídio é um dos caracteres distintivos do homem, uma de suas descobertas; nenhum animal é capaz de cometê-lo e os anjos apenas o adivinharam” (CIORAN, 2016CIORAN, Emil. Précis de décomposition. Paris: Gallimard, 2016. 255 p., p. 59). A propriedade a que o homem se liga - por mais que não possamos concordar com sua posição acerca dos animais e não nos interessem aqui os anjos, que não sejam aqueles da história - pelo suicídio reage nessa disposição de forças que são exercidas num lugar de perda, no lugar do luto.

Para dar conta de uma dupla injunção que relacione suicídio e poesia, o primeiro passo que posso propor é estancar uma possibilidade fenomenológica do suicídio. Dito de outro modo, não é possível, ou somente é possível compreendê-lo dentro de um conjunto de condições que o torna potencialmente executável. O modo de existência do suicídio, assim, e essa será talvez a tese maior que pretendo sustentar aqui, não se dá estancado de uma certa compreensão da escrita, ou melhor, do mal de escrita. A dimensão hipotética a ser tomada em consideração seria a de rediscutir o suicídio não de um ponto de vista patológico, mas de uma dicção que se apresenta na inseparabilidade entre escrita e corpo, discutindo as formas de responsabilidade assumidas na linguagem poética diante da própria vida-morte. Nesse sentido, uma desconstrução das especulações acerca do suicídio até as dimensões apresentadas como afetos negativos da saúde, higiene e decisão. Assim sendo, é necessário fazer dialogar tanto poetas quanto filósofos que apresentam suas obras a partir de suas mortes autoinfligidas, e, desse modo, propor a leitura diversa, dentro das mais diversas literaturas com a finalidade de compreender como a escrita se faz, define-se e atua tendo em vista essa forma de heterobiotanatografia.

Dito isso, retomaria o começo que propus: assumir uma questão diante do impossível. No entanto, essa assunção, à diferença do que vim desenvolvendo, não pode se sustentar senão por uma conversão do impossível da vida no impossível do suicídio e da escrita. E isso implica, claramente, que não trato aqui de qualquer suicídio, mas daquele suicídio que é a escrita. Assim, a pergunta que precisamos fazer, incialmente, é a de “como identificar uma experiência do im-possível numa cultura ou numa antropologia?”, ou ainda, como acrescenta Derrida durante sua fala em um seminário e transcrito em nota “que rastro isso deixa? Qual documento isso deixa? Qual arquivo?” (DERRIDA, 2019bDERRIDA, Jacques. Le parjure et le pardon, volume 1 - Séminaire (1997-1998). Paris: Seuil, 2019b. 432 p., p. 115). São questões que, não deixando de ser metodológicas, apresentam um problema que revela as condições de possibilidade ou a inclinação imanente da experiência. Qualquer marca do im-possível está inscrita histórico-antropologicamente na experiência humana, que a vive como se fosse dada seja pela natureza, seja pela cultura. Nesse sentido, todas elas precisariam ser tomadas por uma conjunção documental e arquivística diante do idêntico, daquilo que compõe a identidade do fato. No entanto, revirar a condição de existência numa experiência do im-possível quer dizer não apenas remontar documentos e analisá-los, mas jogá-los - como se coloca a vida em jogo - contra essa mesma ritualização do saber. Ora, na escrita suicida, no mal de escrita, essa experiência parece se apresentar de modo bastante contundente. Primeiramente, os poemas dos(as) poetas suicidas (não) são arquivos do suicídio. Eles nunca poderiam assumir essa carga de fato ou senão como testamentos de atos premeditados. Esses poemas estão muito longe disso. Os suicidas não deixam senão notas de suicídio, assim, aos poetas que se matam, resta que seus poemas não são documentos do ato, do que se passou no ato - o que por si só não seria possível logicamente -, mas antes reforçam a crueza de suas composições, a resistência a se tornarem documentos, o desprezo pelo conjunto. Desse modo, qualquer luto que venha a ser garantido pela passagem ao ato deixa de pertencer ao poeta e passa a ser matéria de uma herança que o excede, que o revoluciona. A leitura comum em atribuir sentido post mortem aos textos de suicidas é uma espécie de tentativa de tomar de assalto a memória, sem compreender que há ali uma ferida de memória, um ato que não pôde ou pode ser arquivado por anais ou caixas depositadas dos frangalhos de uma vida. E, justamente nessa configuração, proponho falar de mal de escrita. Esses poemas são aquilo que seria a reinscrição do mal, o refazimento infinito do mal da escrita, próximo do que Derrida convocou como fidelidade necessária à memória diante do mal, para que ela seja integral e que mantenha intacto todo o mal, “é preciso que essa memória deixe [garde] ao mal a integralidade da presença ativa, que de certo modo, para não o atenuar por qualquer esquecimento, ela o repete vivamente, no presente” (DERRIDA, 2019DERRIDA, Jacques. Le parjure et le pardon, volume 1 - Séminaire (1997-1998). Paris: Seuil, 2019b. 432 p.b, p. 112). Nesse sentido, eles participam de duas dinâmicas do impossível: (a) aquela da demanda de perdão: o ato performativo e constativo de escrever na implicação de seu dever diante do desejo - tempo sem esquecimento do mal, daquilo que não fala da morte de si (impossível por si só ou apenas possível como antropologia da morte), mas que escreve porque morre-o-si (dissimetria absoluta da alteridade) e (b) aquela da pulsão arquiviolítica: do mal de arquivo que anuncia a derrocada de toda potencial inscrição, representação ou apropriação ou reapropriação ou propriedade - doença da escrita como afetação da presença e mal-estar civilizatório.

O trabalho do poeta, sem dúvida, implica certa compreensão da linguagem e de como ela opera na construção do que chamamos literatura ou poesia. No entanto, a brutalidade do mal de escrita implica que tenhamos cuidado com os padrões linguísticos e com o desenvolvimento do formalismo que pode aparecer em análises desses poemas. Em sua maioria, os poetas suicidas não deixaram obras completas, trabalhos fechados, desenvolvimentos clarificados de suas pretensões estéticas (os poucos casos existentes são de poetas que acabaram por se matar muito tarde, o que configura casos excepcionais). Os conjuntos fragmentários desses poemas apontam para uma preocupação exacerbada com o que há de outro na dimensão discursiva em que se inscrevem e isso aparece não apenas em usos de palavras consideradas denotativamente negativas ou com a expressividade diante de suas angústias sobre a morte. Isso implica dizer que precisamos antes de uma ética da linguagem do que de uma linguística psicologizante para lidar com esse material e com suas consequências na compreensão do ato de escrita e do ato suicidário. Desse modo, um trabalho como o de Shannon W. Stirman e James W. Pennebaker sobre o uso das palavras em poetas suicidas e não-suicidas apresenta tudo o que buscamos evitar aqui. Não apenas são desastrosas as análises e conclusões tiradas dessa pesquisa, como revelam uma perigosa armadilha no sentido da prevenção e do aparato médico que pode se estabelecer a partir daí. Como já afirmei, não considero possível tratar patologicamente o suicídio, nem mesmo como distúrbio psicossomático. Há inúmeras implicações nesse ato que precedem a passagem ao ato em si, e a recuperação post mortem de poetas como explicação de causalidades me parece simplesmente refutável e, até mesmo, desonesto. Em si, o uso de uma tecnologia para contar palavras não é um problema, antes uma solução para trabalhos desgastantes. No entanto, toda a tentativa dos dois pesquisadores é a de um enquadramento pouco comprovável do ponto de vista da teoria e da história literária. O princípio básico da tese fracassa quando começa por dizer que “muitos poetas suicidas sofreram de alguma forma de transtorno depressivo ao longo de suas vidas” e que a “poesia [...] pode ser um meio particularmente atraente para lidar com episódios imprevisíveis de variação de humor” ou ainda, em contraposição a essas especulações, “escrever poesia pode ser nocivo à saúde psicológica do poeta” (WILTSEY STIRMAN; PENNBAKER, 2001WILTSEY STIRMAN, Shannon; PENNBAKER, James W. Word use in the poetry of suicidal and nonsuicidal poets. Psychosomatic Medicine, v. 63, n. 4, p. 517-522, jul. 2001, p. 517). A proposta é a de traçar, no que eles chamam linguagem, e “isolar quais temas e características linguísticas podem prever futuras tentativas de suicídio” (WILTSEY STIRMAN; PENNBAKER, 2001WILTSEY STIRMAN, Shannon; PENNBAKER, James W. Word use in the poetry of suicidal and nonsuicidal poets. Psychosomatic Medicine, v. 63, n. 4, p. 517-522, jul. 2001, p. 517), tendo sempre como parâmetro e horizonte que se trata de um estado psicologicamente transtornado. Tomando assim, duas teorias: desengajamento social (indivíduos mais auto-orientados, que se valem mais de “autorreferências e menos referências aos outros”) e a desesperança (“extensos períodos de tristeza e desespero”, que se valem “mais de termos negativos emocionalmente (incluindo palavras de tristeza e raiva), menos palavras de emoção positiva, e mais referências à morte que os poetas não-suicidas” (WILTSEY STIRMAN; PENNBAKER, 2001WILTSEY STIRMAN, Shannon; PENNBAKER, James W. Word use in the poetry of suicidal and nonsuicidal poets. Psychosomatic Medicine, v. 63, n. 4, p. 517-522, jul. 2001, p. 518). O procedimento é realizado de acordo com esses dois modelos e consideram poetas próximos em nacionalidade e período histórico, além de uma evolução de “carreira”. Os resultados são previsíveis dentro desse escopo e os padrões seguem o senso comum. O que eles, no entanto, assinalam apenas como “outros dados relevantes” é a “forte evidência encontrada com a preocupação com conteúdos sexuais tanto quanto aqueles pertencentes à morte” (WILTSEY STIRMAN; PENNBAKER, 2001WILTSEY STIRMAN, Shannon; PENNBAKER, James W. Word use in the poetry of suicidal and nonsuicidal poets. Psychosomatic Medicine, v. 63, n. 4, p. 517-522, jul. 2001, p. 520). Dito de outro modo, não apresentam nenhuma análise desse fato, mas uma acentuada necessidade de dizer o quão desajustados socialmente eles estão, mesmo em padrões linguísticos. Assim, numa espécie de ciência místico-vidente, Stirman e Pennebaker dizem ser possível, de acordo com certas configurações da linguagem em poesia, prever o suicídio, tudo porque preocupar-se com a morte e com o si deve ter uma forte relação com males psicológicos e associações com a saúde emocional!

O problema dessa especulação com cara de ciência é que não só a conta não bate, mas que ela nega toda outra relação de alteridade que pode povoar a precariedade do ser da vida e do mal de escrita. A questão da angústia diante da morte não é uma exclusividade do suicida e muito menos do poeta suicida. Se suas imagens são brutas, se seus padrões linguísticos revelam uma negatividade, isso não encontra lastro na história da literatura que sempre foi uma história do desespero humano, como afirma incansavelmente Mahmoud Darwich. O “estudo”, que poderia elucidar elementos mais complexos de uma sintaxe de poetas suicidas - essa sim, divergente daqueles que não chegaram ao ato - simplesmente opta por não reconhecer que o pressuposto ético implica lidar com a mortalidade do outrem, na expressividade que configura sua alteridade, seu rosto e que, nesse sentido, para além de uma causalidade tematizável, assinala o eu como em face não de uma totalidade, mas do seu infinito, de seu outro. Trata-se mesmo de colocar acima da responsabilidade, um preceito que se pretende intervencionista, mas desconsidera justamente o outro homem, sua transcendentalidade desvelada pelo saber da morte. Ora, Stirman e Pennebaker apresentam apenas aquela configuração da vida tratada como sistema orgânico e funcional, esquecendo-se da dimensão sempre já enlutada do outro diante de uma violência que sempre precedeu à inscrição do outro, à reprodutividade do si como senhor de seu próprio corpo, de sua totalidade biológica, mesmo quando se trata de usos de padrões linguísticos. Viver não pode querer dizer um controle calculável. Georges Canguilhem o disse: “a vida não é, portanto, para o vivente uma dedução monótona, um movimento retilíneo, ela ignora a rigidez geométrica, ela é debate e explicação [...] com um meio onde há vazamentos, buracos, evasões e resistências inesperadas” (CANGUILHEM, 2018CANGUILHEM, Georges. Le normal et le pathologique. 12. ed. Paris: PUF, 2018. 224 p., p. 172), a normatividade diante da vida, mesmo a biológica, não compreende que ela mesmo prolonga-se diante dos artefatos, das extensões de ferramentas e de órgãos, o homem “não vê em seu corpo senão o meio de todos os meios de ação possível” (CANGUILHEM, 2018CIORAN, Emil. Précis de décomposition. Paris: Gallimard, 2016. 255 p., p. 175). Assim, o corpo disfuncional dos poetas suicidas não é disfuncional em termos de uma patogênese marcada pelo padrão psiquiátrico, antes ele promove a disfuncionalidade como modo de assunção de sua decisão em endereçar-se ao outro, de modo nu. Ou como diz um poema de Elise Cowen: “To the man who says a few words to her / At the New Year’s party / Bare-shouldered Iris / Lifts her naked face” (COWEN, 2014COWEN, Elise. Poems and fragments. Ed. Tony Trigillo. Idaho: Ahsahta Press, 2014. 208 p., p. 61). Os ombros descobertos, sua nudez de corpo, revela sua nudez de rosto, quando, da interação mínima, do próprio poema (few words to her). É esse espectro que se nega o estudo “linguístico-medicinal” ou a instituição patológica da questão do suicídio na escrita. Tudo o que pode renascer - essa, uma preocupação central para Cowen - é abandonado num ato que vai do flerte ao desvelamento ético, em quatro versos. A face erguida da personagem implica também seus olhos (no próprio nome) que percorre a extensão de uma mortalidade, do saber-se diante do rosto do outro. E, aqui, diante de sua precária consciência, a precariedade de si, acabam por assumir esse impossível.

Referências

  • CANGUILHEM, Georges. Le normal et le pathologique 12. ed. Paris: PUF, 2018. 224 p.
  • CIORAN, Emil. Précis de décomposition Paris: Gallimard, 2016. 255 p.
  • COWEN, Elise. Poems and fragments Ed. Tony Trigillo. Idaho: Ahsahta Press, 2014. 208 p.
  • DERRIDA, Jacques. Apprendre à vivre enfin - entretien avec Jean Birnbaum Paris: Galilée, 2005. 72 p.
  • DERRIDA, Jacques. Demeure, Athènes Paris: Galilée, 2009. 61 p.
  • DERRIDA, Jacques. La vie la mort - Séminaire (1975-1976) Paris: Seuil, 2019a. 354 p.
  • DERRIDA, Jacques. Le parjure et le pardon, volume 1 - Séminaire (1997-1998) Paris: Seuil, 2019b. 432 p.
  • JANGFELDT, Bengt. La vie en jeu - une biographie de Vladimir Maïakovski Paris: Albin Michel, 2010. 592 p.
  • MAIAKÓVSKI, Vladimir. Poèmes 3 (1922-1923) Ed. Bilíngue. Paris: L’Harmattan, 2000. 285 p.
  • MAIAKÓVSKI, Vladimir. À pleine voix - anthologie poétique 1915-1930 Paris: Gallimard, 2005. 464 p.
  • MAIAKÓVSKI, Vladimir. Poemas São Paulo: Perspectiva, 2017. 288 p.
  • NANCY, Jean-Luc. Demande: littérature et philosophie. Paris: Galilée , 2015. 400 p.
  • WILTSEY STIRMAN, Shannon; PENNBAKER, James W. Word use in the poetry of suicidal and nonsuicidal poets. Psychosomatic Medicine, v. 63, n. 4, p. 517-522, jul. 2001
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    Se eu pudesse estabelecer aqui um centro para a prevenção do suicídio - do ato considerado não filosófica e poeticamente. A questão, para além dos índices importantes de saúde mental, parece-me advir de uma questão antes de tudo ética. Não apenas uma falha na conservação do sujeito, mas a própria compreensão e imposição de um sujeito massivo diante da alteridade. A vida do suicida é tomada como uma vida possuída pelo si, como aponta o próprio vocábulo. No entanto, penso que temos feito a leitura incorreta desse si ou da autodestruição que se procura evitar, prevenir. Minha tese é a de que um sufocamento do endereçamento ao outro, ao outro mesmo em si, está no cerne dessas mortes autoinfligidas. Esse apagamento da alteridade pelo mesmo não apenas revela uma direção unilateral de compreensão do sujeito, como o reforça como única possibilidade de estar vivo, de manter uma vida. Ora, o campo da responsabilidade, diferente daquele do sujeito autocentrado sobre seu trabalho sobre si, coloca diante do sujeito questões até então não resolvidas: até onde se pode manter um sujeito? Qual a disposição dessa produção de subjetividade que pode exceder um grau assumido de identidade degastada pela sobre-exposição do eu a si mesmo, do eu sobre um ideal de si? Em que campo a diferença entra se há uma exigência pré-moral, impositiva como original, da eterna presença do idêntico? Como o idêntico sustenta-se diante de uma diferença absoluta? Parece-me que essas são questões relevantes numa prevenção ao suicídio. Desse ponto de vista, o caso de saúde pública que ele implica não seria apenas formulado pelo acolhimento e reconhecimento da dor de ser, mas, antes, uma disposição ética dentro do sistema de saúde, um componente em que o acolhimento seja também povoado de toda a ausência do idêntico que, potencialmente, sente o suicidário, o reincidente, o imaginativo. É preciso retomar num outro momento esse aspecto significativo para o estudo que aqui faço, tentando alargá-lo dentro do campo moral, dentro da dimensão entre o mal e o bem, o patológico e o normal, o instituído e o excluído, o sujeito e o outro.
  • Parecer Final dos Editores

    Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    11 Ago 2021
  • Aceito
    30 Abr 2022
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