Acessibilidade / Reportar erro

As Poetas-Detetives de Ciudad Juárez

The Detective Poets of Ciudad Juárez

Resumo

O presente ensaio tem como intuito investigar algumas relações entre linguagem, violência e cotidiano a partir do livro El silencio que la voz de todas quiebra (1999). O livro em questão é uma das primeiras investigações de fôlego realizadas acerca dos feminicídios de Ciudad Juárez. Em um diálogo, sobretudo, com Roberto Bolaño, Rita Segato e Veena Das, investigamos como o segredo e o silêncio são mobilizados pela gramática feminicida, para depois acompanhar o modo como ambos se decantam nos relatos das mães e familiares das jovens assassinadas.

Palavras-chave:
Ciudad Juárez; feminicídios; literatura

Abstract

This paper aims to explore some of the links between language, violence and the ordinary through El silencio de la voz de todas quiebra (1999). This bookwas one of the first thorough investigations carried out about the feminicides in Ciudad Juárez. After considering, alongside Roberto Bolaño, Rita Segato and Veena Das, the way in which silence and secret are inscribed in the grammar of feminicide, I will show how both seep into the accounts given by the mothers and other family members of the murdered young women.

Keywords:
Ciudad Juárez; feminicides; literatura

Resumen

Este ensayo tiene como objetivo indagar algunas relaciones entre lenguaje, violencia y cotidianidad a partir del libro El silencio que la voz de todos quiebra (1999). El libro en cuestión es una de las primeras investigaciones extensas realizadas sobre los feminicidios en Ciudad Juárez. En diálogo principalmente con Roberto Bolaño, Rita Segato y Veena Das, investigamos cómo el secreto y el silencio son movilizados por la gramática feminicida, para luego seguir la forma en que ambos se decantan en los relatos de las madres y familiares de las jóvenes asesinadas.

Palabras-clave:
Ciudad Juárez; feminicidios; literatura

Soñé con detectives heladas, detectives latinoamericanas que intentaban mantener los ojos abiertos en el medio del sueño.

Roberto Bolaño

Em 2016 cheguei ao México para realizar um estágio de pesquisa vinculado ao meu projeto de doutorado em Teoria Literária. Meu interesse era explorar algumas relações entre literatura e violência - tanto naquilo que elas tinham de contrastante quanto naquilo que elas tinham de semelhantes - dentro do escopo da literatura produzida em torno dos feminicídios de Ciudad Juárez. Planejava também uma ida à cidade, que, por motivos de saúde, não chegou a se realizar.

De todo modo, a correspondência trocada com mulheres de grupos feministas autonomistas e, particularmente, com a professora Susana Baéz Ayala, da Universidad Autónoma de Ciudad Juárez, que gentilmente compartilhou comigo diversos materiais, foi fundamental para delinear os rumos da pesquisa. Esses meses no México resultaram em um capítulo da tese que buscava relacionar a proposta analítica de Rita Segato - de que feminicídios seriam crimes que constituem um modo expressivo - com os diversos materiais poéticos que haviam sido produzidos em Ciudad Juárez entre 1998 e 2004. Dentre todos esses materiais se encontrava um livro praticamente inclassificável, escrito coletivamente, o El silencio que la voz de todas quiebra, que começou como um projeto de uma oficina de narrativa organizada de forma autônoma por mulheres e terminou sendo enviado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, como parte das evidências que demonstrava a cumplicidade de uma série de instâncias da sociedade civil e das forças estatais com os crimes. Insatisfeita com o modo como pude escrever sobre ele na época, tanto pelas constrições temporais da tese, tanto pela dificuldade em lidar com tantos materiais heterogêneos entre si, retorno a ele agora, com o intuito - e a ilusão - de estar à altura de sua complexidade. O ensaio a seguir, se não é exatamente um estudo exaustivo de El silencio que la voz de todas quiebra, é uma tentativa de pensar a maneira como a violência se precipita na linguagem das mulheres a quem coube contar as histórias de suas filhas, amigas e irmãs assassinadas.

Ciudad Juárez, a melhor fronteira

No ano de 1998, algumas mulheres reunidas em Ciudad Juárez, na oficina literária S Taller de Narrativa, propuseram umas às outras o trabalho coletivo de realizar uma investigação independente acerca dos “asesinatos violentos en contra de niñas y mujeres” que ocorriam em ritmo acelerado na cidade desde 1993. No final dos anos 90, as notícias sobre os crimes contra as mulheres de Ciudad Juárez ainda não haviam chegado aos grandes noticiários mexicanos e internacionais. A polícia e o Estado ainda agiam como se não houvesse nada de inusual nos índices desproporcionais para crimes de violação e mutilação contra, em sua maioria, mulheres jovens, trabalhadoras e residentes das periferias da cidade fronteiriça. Em realidade, para ser mais precisa, a polícia e o Estado, àquela altura, oscilavam entre duas hipóteses: a de que não havia nada de extraordinário acontecendo na cidade e a de que haveria um genial assassino em série em ação na cidade, cuja brilhanteza havia permitido até que ele encomendasse alguns crimes de dentro da prisão.1 1 O documentário Señorita Extraviada, de 2001, resgata os circos midiáticos montados em torno de prisões aleatórias de supostos assassinos seriais, como se o culpado fosse um indivíduo único que sofresse de um grave distúrbio mental ou moral, o mais famoso deles o egípcio Abdul Latif Sharif, um químico de uma maquiladora em cuja ficha já constavam dois crimes de estupro em território estado-unidense, condenado em 1996 por três assassinatos. Quando corpos de mulheres não pararam de aparecer nos lixões e terrenos baldios da cidade, mesmo após a sua prisão, criou-se uma história segundo a qual o egípcio coordenava uma gangue para que continuassem cometendo os assassinatos em seu nome. Como resultado disso, prenderam alguns jovens ligados ao narcotráfico. As mulheres de Ciudad Juárez não pararam de morrer. Na verdade, desde o início da década de 90, quando os feminicídios em Ciudad Juárez começaram a ser contabilizados e publicizados, o mapa da violência contra a mulher tem visto o epicentro mudar de lugar, sendo agora outros os Estados que mais concentram crimes desse tipo, nos rastros dos fluxos econômicos (formais e informais, lícitos e ilícitos). Pelo menos desde 2009, a partir da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos, sabe-se que apesar de terem sido identificados pelo menos 177 funcionários estatais possivelmente implicados em fraudes de investigação, nenhum deles foi levado a julgamento.2 2 O julgamento tinha como réu o estado mexicano, e objeto era o caso específico que ficou conhecido como Campo Algodonero, em referência aos oito corpos femininos encontrados em meio a um algodoal no entorno de Ciudad Juárez em novembro de 2001. Foi a primeira vez que uma corte de direitos utilizou o termo “feminicídio”.

Publicado em 1999, em uma tiragem de mil e um exemplares, o livro El silencio que la voz de todas quiebra, é um documento literário, um texto coletivo produzido a partir de uma investigação multidirecional: em suas páginas podemos observar gráficos e tabelas, ensaios e textos que são literários na medida em que especulam sobre a vida a partir do lugar-limite da perda e da morte. Os sete textos que chamaremos aqui de literários - cada um produzido por uma das membras do S Taller, e correspondendo, respectivamente, a uma das jovens mulheres que foram encontradas sem vida e com sinal de tortura e violência sexual - são resultado de entrevistas com familiares e acessos a materiais pessoais. Elas foram escolhidas ao acaso entre as 137 mulheres encontradas mortas entre os anos de 1993 e 1998 e das quais 52 permaneciam sem identificação. Se o texto resultante da investigação empreendida pelas mulheres do S Taller de Narrativa tinha o claro intuito de expor factualmente, por meio de estatísticas e leituras de documentos oficiais, a dimensão social dos feminicídios, impedindo a negação de sua realidade, ele também buscava um modo de deslocar-se da cena do crime para buscar os indícios das vidas que essas mulheres produziram e imaginaram antes de sua desaparição.

Nas partes dedicadas a Silvia, Elizabeth, Olga Alicia, Sagrario, Argelia, Adriana e Eréndira Ivonne, todas precedidas pelo título “Una Vida” e pelas datas em que seus corpos foram encontrados, se articula a relação entre a violência e o cotidiano, ou o modo como a violência atravessou e atravessa o cotidiano das famílias que se dedicam, desde então, ao trabalho do luto. Esses sete textos serão o foco deste ensaio. A oficina era integrada por sete mulheres (Rohry Benítez, Adriana Candia, Patricia Cabrera, Guadalupe de la Mora, Josefina Martínez, Isabel Velázquez, Ramona Ortiz) que, tendo assumido o papel de pesquisadoras e escritoras, explicam o seu livro assim:

trazamos el esquema de investigación pensando en una presentación tipo “collage” que llevaría al lector desde la fría e irrefutable realidad que produce el análisis de las características comunes del crimen, por ejemplo, hasta las conmovedoras vidas y aspiraciones de una niña de 13 años. De tal manera que el libro está ahora constituido por dos vertientes entrelazadas: todos los ensayos y análisis acerca del entorno policiaco, social y económico están basados totalmente en hechos probados, trabajo de hemeroteca, investigación bibliográfica, documentos de diversas organizaciones e instituciones, entrevistas y trabajo periodístico (BENÍTEZ et al., 1999BENÍTEZ, Rohry. et al. El silencio que la voz de todas quiebra: mujeres y víctimas de Ciudad Juárez. Chihuahua: Ediciones del Azar, 1999. 163 p., p. 6).

De fato, é a primeira investigação deste escopo realizada sobre os feminicídios - as mulheres da oficina de narrativa decidiram buscar nos jornais, nos tribunais, nas repartições públicas, nas delegacias e nos necrotérios dados referentes aos assassinatos de mulheres entre os anos de 1993-1998. Também contaram com o trabalho prévio do programa de estudos de gênero da Universidad Autónoma de Ciudad Juárez (UACJ), do Comité Independiente de Chihuahua Pro-defensa de los Derechos Humanos e do coletivo feminista “Ocho de marzo”, além do relatório “Homicidios en prejuicio de mujeres que han causado indignación em los diferentes niveles sociales de la comunidade 1993-1998”, produzido pela Subprocuradoria de Justiça após pressão de setores da sociedade civil. Este relatório produzido pelo Estado é colocado sob intenso escrutínio, de modo a expor suas incongruências, suas omissões e seus abusos: mulheres aparecem constando ao mesmo tempo como vivas e mortas; fotos idênticas aparecem em casos distintos; a análise forense lista ferimentos que condizem com violência sexual, mas o parecer final não menciona tais fatos. E, embora seja mencionado que a polícia mantém informações pessoais da vítima em arquivos confidenciais, o relatório traz cláusulas judicativas sobre algumas vítimas, como as frequentes visitas a um espaço LGBT por parte de uma, ou o fato de que outra gostava de sair com muitos homens e tinha presença assídua em discotecas. Em um mecanismo muito comum - não só no que diz respeito à violência de gênero - o ônus do crime é sistematicamente atribuído à própria vítima e/ou a seus familiares. As notas rojas - tabloides do crime - espetacularizam os crimes e produzem factoides sobre as vidas duplas das mulheres assassinadas.

Lendo os materiais reunidos no livro, vemos como a primeira hipótese aventada pela polícia e pela vizinhança é frequentemente de que as meninas desaparecidas haviam fugido com seus namorados, ao passo que em um momento posterior, a hipótese da vida dupla poderia ser coercitivamente imposta como prova de verdadeiro trabalho investigativo por parte da polícia. De garotas ingênuas e românticas que fogem para se casar, as jovens mulheres passavam a ser tratadas como prostitutas ou mulheres cuja sexualidade estava ligada à cena noturna da cidade - notória desde a era da proibição estadunidense, quando Ciudad Juárez tornou-se o quintal noturno dos seus vizinhos ao norte. A mãe de Sagrario, que desapareceu em abril de 1998, reticente em mudar-se à Ciudad Juárez por causa dos “rumores de que en Ciudad Juárez aparecían muchachas muertas”, escuta da cunhada, no intuito de tranquilizá-la, que “las muertas de Ciudad Juárez son muchachas que frecuentan antros de mala muerte, cantineras que salen a buscar el peligro” (BENÍTEZ et al., 1999BENÍTEZ, Rohry. et al. El silencio que la voz de todas quiebra: mujeres y víctimas de Ciudad Juárez. Chihuahua: Ediciones del Azar, 1999. 163 p., p. 90). O intuito de El silencio que la voz de todas quiebra, evidentemente, não é tornar justificáveis crimes violentos contra trabalhadoras do sexo ou de mulheres que frequentam a cena noturna juarense, mas demonstrar como a questão dos feminicídios se insere em um escopo social mais amplo, no qual grande parte das vítimas são jovens periféricas que trabalham nas maquilas em turnos longos que começam no meio da madrugada ou terminam no meio da noite.

Nesse sentido, a história de Sagrario e sua família é paradigmática, como são as da maioria das outras seis mulheres desaparecidas, torturadas e assassinadas que são focalizadas em maiores detalhes no livro. A assinatura do tratado da NAFTA, em 1993, transformou a cidade fronteiriça de Ciudad Juárez na “capital do emprego” por meio da implementação de maquiladoras, plantas industriais que funcionam quase exclusivamente com mão de obra feminina. A utilização dessa mão de obra se justificaria por dois fatores: primeiro o pressuposto de que mulheres estão mais aptas ao trabalho de montagem de pequenas peças delicadas; segundo o fato de que as dinâmicas trabalhistas perversas permitem que mulheres recebam menos dinheiro em troca do mesmo serviço. A criação de milhares de postos de emprego trouxe um número igualmente grande de migrantes - sobretudo mulheres - das zonas mais pobres do México, empobrecidas pelo colapso da economia agrária, levado a cabo sobretudo pela modificação nas regulamentações de titularidade coletiva da terra. Silvia Federici, no texto Reprodução e luta feminista na nova divisão internacional do trabalho, afirma que as mulheres periféricas são integradas à economia mundial assumindo uma dupla função produtiva, “produzindo trabalhadores para as economias locais e os países industrializados, além de mercadorias baratas destinadas à exportação.” (FEDERICI, 2019FEDERICI, Silvia. O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. Tradução de Coletivo Sycorax. São Paulo: Elefante, 2019. 388 p., p. 140). O que Federici aponta, portanto, é que, por trás da propaganda liberal segundo a qual a industrialização das periferias globais e a implementação de zonas de livre-comércio têm um impacto positivo na divisão sexual do trabalho, há um acirramento da exploração e da violência contra corpos constituídos como femininos. É o que indica o contraste entre a enorme placa em Ciudad Juárez que anuncia “La mejor frontera de México” com as cruzes rosas que servem de homenagem às vítimas de feminicídio e podem ser encontradas em muitos pontos da cidade.

O relato sobre Sagrario começa contando que, por ser menor de idade, a maquila onde ela trabalhava a havia transferido para um turno em que havia menos controle trabalhista:

en los últimos dos meses de su vida se bañaba a jicarazos a las 12:00 pm, dormía peinada, se levantaba a las tres de la mañana para tomar dos camiones, recorría 15 kilómetros y llegaba en punto de las seis al primer turno de la maquiladora Capcom, donde operaba una máquina embobinadora (BENÍTEZ et al., 1999BENÍTEZ, Rohry. et al. El silencio que la voz de todas quiebra: mujeres y víctimas de Ciudad Juárez. Chihuahua: Ediciones del Azar, 1999. 163 p., p. 87).

A família dela havia chegado em Ciudad Juárez vinda do povoado de El Salto, em Durango, onde o pai trabalhava no corte de árvores para a indústria florestal. Desempregado, e com o salário baixo de trabalhadora doméstica da esposa, se mudam para Ciudad Juárez. Quando a família González Flores chegou ao bairro afastado de Lomas de Poleo não havia água, saneamento básico, asfalto ou eletricidade. Mesmo as ruas tendo nome de peixe, a única água ali era da cisterna. E para tornar as coisas mais difíceis, o terreno que lhes havia sido prometido não estava sequer em Lomas de Poleo, mas em um lugar que os moradores chamavam de planta alta, um platô no alto de um morro, ao qual só se chegava com pelo menos 30 minutos de caminhada. O pai é o último a encontrar emprego, enquanto as filhas rapidamente conseguem um posto em uma maquila. Ao meio-dia ele descia até o ponto de ônibus para acompanhar as filhas. No começo da noite, descia de novo para encontrar as que voltavam da escola e novamente à meia-noite, para as que voltavam do trabalho. Após sete meses, um vizinho da família convenceu a associação de residentes a outorgar à família um terreno na parte baixa do loteamento. O pai consegue também um emprego e todos vão e voltam junto do trabalho - depois, com os ingressos da família numerosa, compram um carro grande para se deslocarem pela cidade. A mudança de turno de Sagrario significava que ela não teria mais a companhia de seus familiares nos trajetos de ida e volta, tendo, portanto, que andar no meio da madrugada pelos terrenos baldios da cidade que se espraia pelo deserto. Segundo os termos do NAFTA, as empresas estrangeiras ali estabelecidas não precisam pagar impostos ao município, o que não reverte, portanto, em melhorias urbanísticas que possam aumentar a segurança pública dessas mulheres. Além disso, a implementação do acordo comercial entre países impulsionou um movimento massivo de especulação imobiliária, constituindo as partes habitáveis da cidade em torno de imensos vazios destinados ao mercado de futuros. Nesses terrenos convergem distintos conceitos de futuro - a de uma vida mais digna por um lado e por outro a margem exponencial de lucro.

Não à toa, a maior parte das mulheres encontradas mortas estão jogadas em lixões ou em terrenos baldios e, como quase todo o lixo que as cerca, composto majoritariamente por plástico, a descartabilidade é o seu pressuposto. A irmã de Argélia, que desapareceu em março de 1998, conta que foi por um pedaço do corpo, exibido na TV, que a reconheceram: “tuvo la certeza de que era ella al ver parte de su hombro y mano en una noticia televisada, luego corroboró su identidad en la morgue.” (BENÍTEZ et al., 1999BENÍTEZ, Rohry. et al. El silencio que la voz de todas quiebra: mujeres y víctimas de Ciudad Juárez. Chihuahua: Ediciones del Azar, 1999. 163 p., p. 110). Ursula Biemann, em algum momento de seu filme Performing the border (1999BIERMAN, Ursula. Performing the border (filme). 1999, 43min. Disponível em: https://vimeo.com/74185298
https://vimeo.com/74185298...
), sugere que a desmembragem dos corpos femininos faz parte da perversa linha de montagem das maquiladoras e de seus mecanismos repetitivos e destrutivos (“disassembly of bodies in the backyards of assembly lines”). Se é possível falar em um necrocapitalismo indissociável da necropolítica, Sayak Valencia, professora do El Colegio de la Frontera Norte, no campus de Tijuana, oferece o conceito de “necroempoderamento” para tentar compreender a ultraviolência empregada pelo narcotráfico mexicano contra quem não pertence a uma força armada inimiga. Os sinais de tortura e mutilação que caracterizam os feminicídios de Ciudad Juárez não seriam o sinal da existência de uma violência pré-moderna, a brutalidade da barbárie, mas o próprio revés da violência supostamente racional que constituiria a modernidade. A autoafirmação do indivíduo vulnerável e/ou subalternizado é alcançada por meio de práticas violentas rentáveis dentro das lógicas da economia capitalista:

cuerpos concebidos como productos de intercambio que alteran y rompen las lógicas del proceso de producción del capital, ya que subvierten los términos de éste al sacar del juego la fase de producción de la mercancía, sustituyéndola por una mercancía encarnada literalmente por el cuerpo y la vida humana, a través de técnicas predatorias de violencia extrema como el secuestro o el asesinato por encargo (VALENCIA, 2010VALENCIA, Sayak. Capitalismo Gore. Barcelona: Melusina, 2010. 240 p, p. 15).

A indistinção entre Estado, narcotráfico e corporação financeira instaura na fronteira norte do México uma dinâmica de acumulação de capital em que a violência se torna estrutural e estruturante da economia e da política. Rita Segato, em La escritura en el cuerpo de las mujeres asesinadas en Ciudad Juárez, afirma que os feminicídios na cidade fronteiriça não têm como fato principal o ódio contra a vítima, embora a misoginia em sentido estrito seja um fator incontornável para qualquer análise. Ela afirma estar convencida de que a vítima “es el desecho de proceso, una pieza descartable, y de que condicionamientos y exigencias extremas para atravesar el umbral de la pertenencia al grupo de pares se encuentran por detrás del enigma de Ciudad Juárez” (SEGATO, 2013SEGATO, Rita Laura. La escritura en el cuerpo de las mujeres asesinadas en Ciudad Juárez. Buenos Aires: Tinta Limón, 2013. 88 p., p. 25). A ideia de que há um enigma é, justamente, o que se pretende disputar, tanto no texto de Segato, quanto no livro produzido pelas mulheres do S Taller.

O silêncio quebrado a que se alude no título sinaliza o desejo de romper o circuito de impunidade que, segundo se afirma, possibilita a continuidade dos feminicídios; o que se demonstra, no entanto, por meio dos sete textos sobre as vidas de algumas das mulheres assassinadas, é como, ao contrário, os crimes parecem produzir e reproduzir o silêncio e a impunidade. Os feminicídios de Ciudad Juárez são “crimes de segundo estado” que visam constituir uma relação de poder cujos efeitos não se restringem ao corpo feminino, mas dependem de situar esse corpo como locus privilegiado da violência, com o intuito de estender seu domínio para outras regiões:

se dirige con esto a los otros hombres de la comarca, a los tutores o responsables de la víctima en su círculo doméstico y a quienes son responsables de su protección como representantes del Estado; le habla a los hombres de las otras fratrías amigas y enemigas para demostrar los recursos de todo tipo con que cuenta y la vitalidad de su red de sustentación; le confirma a sus aliados y socios en los negocios que la comunión y la lealtad de grupo continúa incólume. Les dice que su control sobre el territorio es total, que su red de alianzas es cohesiva y confiable, y que sus recursos y contactos son ilimitados (SEGATO, 2013SEGATO, Rita Laura. La escritura en el cuerpo de las mujeres asesinadas en Ciudad Juárez. Buenos Aires: Tinta Limón, 2013. 88 p., p. 33).

A violência sobre o corpo das mulheres assassinadas é habilmente categorizada como um modo de escritura, uma expressividade constituinte de uma gramática feminicida. No texto de Segato, a revelação do “enigma” de Juárez passa por demonstrar não apenas a relação entre os diversos atores da rede feminicida, mas também por avançar sua hipótese sobre um motivo. A produção do silêncio como motivo dos crimes é demonstrada por meio da gramática feminicida, em particular atenção ao modo como ela circula entre pares. Nas páginas a seguir, tentarei mostrar como em El silencio que la voz de todas quiebra é possível observar os efeitos da infiltração no cotidiano desse silêncio produzido socialmente, desviando, portanto, o foco da superação do silêncio, com o intuito de compreender os modos múltiplos de lidar com o aspecto enigmático de toda desaparição forçada.

O maior segredo do mundo

No dia 18 de fevereiro de 1999, Patricio Martínez, governador de Chihuahua, comunica ao jornal impresso El Diario a sua incredulidade diante do fato de que se tratariam de crimes sem testemunhas: “No puede ser que este tipo de crímenes queden impunes, pero no puede ser tampoco que nadie haya visto algo, alguien tiene que haber visto que pasó una camioneta o una persona en bicicleta o a pie y algo se puede reconstruir.” A cegueira que se alastra pela cidade é o que sustenta a impunidade, sendo também o seu subproduto. Não é que as pessoas não veem, é que elas não podem dizer o que viram. O silêncio corresponde às formas de enunciação que o gestam, como bem se vê no texto escrito em homenagem à Elizabeth, desaparecida em agosto de 1995. Sua mãe conta que a filha havia feito amigas na maquila, mas que eram amigas “entre comillas porque cuando pasó todo ninguna quiso hablar. Hubo una de ellas que sabía bastante y no dijo nada” (BENÍTEZ et al., 1999BENÍTEZ, Rohry. et al. El silencio que la voz de todas quiebra: mujeres y víctimas de Ciudad Juárez. Chihuahua: Ediciones del Azar, 1999. 163 p., p. 50). Uma amiga de Elizabeth que foi solícita no início depois termina por testemunhar que ela estava envolvida com o cartel de narcotráfico Los Rebeldes. “Lo peor de todo”, diz a mãe, “es no saber qué pasa (BENÍTEZ et al., 1999BENÍTEZ, Rohry. et al. El silencio que la voz de todas quiebra: mujeres y víctimas de Ciudad Juárez. Chihuahua: Ediciones del Azar, 1999. 163 p., p. 51). Irma, mãe de Olga, diz que o único funcionário municipal que ofereceu ajuda quando a sua filha estava desaparecida foi depois ameaçado - a mãe do homem liga na casa de parentes de Irma para pedir que parem as investigações pois está com medo do filho morrer. O silêncio vai se difundindo pelas redes familiares e de apoio e se infiltrando no dia-a-dia, chegando ao ponto de adentrar o corpo de uma mãe: alguns meses após Irma reconhecer o corpo da filha - “su ropa sobre el montón de huesos que le mostraron”, ela fica paralisada e muda por vários meses em decorrência de uma embolia (BENÍTEZ et al., 1999BENÍTEZ, Rohry. et al. El silencio que la voz de todas quiebra: mujeres y víctimas de Ciudad Juárez. Chihuahua: Ediciones del Azar, 1999. 163 p., p. 69).

Em Life and words, Veena Das, pensando nas narrativas de violência no momento posterior à partição na Índia, considera que a ideia de “romper o silêncio” está de alguma maneira relacionada à compreensão de que alguma transcendência heroica é necessária para que possa ser constituído algo como a “agência”. Em um movimento mais singelo, e nem por isso menos poderoso, Das defende a importância de se pensar a relação cotidiana entre linguagem e dor que opera em certos territórios. Ela se pergunta sobre o ato cotidiano de testemunhar a criminalidade do poder social que designa a singularidade de uma vida ao esquecimento compulsório. O foco, portanto, não está na articulação da perda por meio de um gesto dramático de provocação ou resistência, mas nos modos de habitar o mundo - de habitá-lo de novo, em gesto de luto. How do you make such a space of destruction your own not through an ascent into transcendence but through a descent into the everyday?” (DAS, 2007DAS, Veena. Life and Words: violence and the descent into the ordinary. Los Angeles: University of California Press, 2007. 281 p., p. 62). Pensando particularmente nas mulheres que tiveram o desejo do nacionalismo inscrito sobre os seus corpos, ela está também interessada em modos de habitar a devastação que transferem essa escritura externa para o interior do corpo.

A mudez temporária de Irma é uma forma de vocalizar o que não se explica, uma falha da gramática cotidiana, isto é, quando não se sabe mais como se soube um dia apreender tão bem objetos como o luto ou o amor. A sua mudez constitui um modo fônico e semântico simetricamente contraposto aos prêmios de oratória que a filha acumulava em competições escolares. Veena Das comenta em seu livro que as mortes entendidas como “mortes ruins” produzem grandes dificuldades para o trabalho do luto, cuja função principal é a da transformação do silêncio em alguma forma de fala que pode ritualizar a morte. Anteriormente no texto mencionei que a tia de Sagrario havia atribuído os feminicídios à convivência em “antros de mala muerte”, uma expressão popular para referir-se a “bares de risca-faca”, mas não deixa de ser interessante a constituição, no imaginário, de espaços que existem em oposição à boa morte, isto é, a morte com testemunhas e familiares e entes queridos ao redor.

A mãe de Silvia Elena, a quem um policial, ao ligar para contar que havia encontrado sua filha desaparecida, diz que logo poderá vê-la, é levada, no lugar disso, direto ao necrotério. Diante do cadáver já em alto grau de decomposição, ela insiste “no, no, no es mi hija, no es mi’ja, aquí la van a tener?”, quando chega em casa diz ao marido que “está um allí um..., yo creo que es ella, vayan a verla” (BENÍTEZ et al., 1999BENÍTEZ, Rohry. et al. El silencio que la voz de todas quiebra: mujeres y víctimas de Ciudad Juárez. Chihuahua: Ediciones del Azar, 1999. 163 p., p. 30). Ver, aqui, ganha um sentido distinto - o de reconhecer, sob o signo da dúvida, no corpo morto aquilo que permanece dos registros vivos. O relato inteiro de Silvia é atravessado pela impossibilidade de ver, primeiro pela comunicação perversamente cifrada da polícia, depois pela imposição dos filhos que não a deixam ver o vídeo da festa de 15 anos da filha e desmontam o quarto dela na casa. No lugar onde ela dormia, os filhos fazem um memorial, enchendo as paredes com fotos da caçula, disposição que aflige a mãe. Seu depoimento demonstra o lugar intersticial que habita, que remonta à promessa não exatamente falsa do polícia - entre o “¡Ay, parece que la veo!” (BENÍTEZ et al., 1999BENÍTEZ, Rohry. et al. El silencio que la voz de todas quiebra: mujeres y víctimas de Ciudad Juárez. Chihuahua: Ediciones del Azar, 1999. 163 p., p. 28) e “ya nunca, ya nunca la voy a volver a ver ni nada, y a veces me arrimo ahí junto a su foto, ¡ay, hasta quisiera que ella me hablara! …” (BENÍTEZ et al., 1999BENÍTEZ, Rohry. et al. El silencio que la voz de todas quiebra: mujeres y víctimas de Ciudad Juárez. Chihuahua: Ediciones del Azar, 1999. 163 p., p. 31), está a complexa relação entre construir um mundo que os vivos possam habitar com a sua perda e construir um mundo no qual os mortos possam encontrar, ainda, uma casa.

O silêncio produzido pela rede feminicida de Ciudad Juárez encontra formas de se decantar no cotidiano - na mudez temporária de uma mãe, na mudez constitutiva dos cadáveres e das fotografias -, mas também se materializa por meio de um ruído excessivo que constitui um espaço ligeiramente distinto do horror - o do rumor. Das afirma que “rumor occupies a region of language with the potential to make us experience events not simply by pointing to them as to something external, but rather by producing them in the very act of telling.” (DAS, 2007DAS, Veena. Life and Words: violence and the descent into the ordinary. Los Angeles: University of California Press, 2007. 281 p., p. 108). A família de Elizabeth relata a angústia produzida pelas pistas falsas:

Un tendero de la glorieta de las Casas Grandes la vio con un hombre y llevaba una maleta, un Federal de Caminos la vio con dos hombres. (Las noticias falsas eran lo que más le dolía a la familia Castro García, rumores de que Lisi había ido a la fábrica, que estaba en este o en aquel lado) (BENÍTEZ et al., 1999BENÍTEZ, Rohry. et al. El silencio que la voz de todas quiebra: mujeres y víctimas de Ciudad Juárez. Chihuahua: Ediciones del Azar, 1999. 163 p., p. 52).

A mãe de Adriana conta que após afixar cartazes com fotos de sua filha por toda cidade, começou a receber chamadas estranhas e ininteligíveis:

Fue cuando empezamos a recibir las llamadas, llamadas anónimas, nunca supimos quién nos hablaba. Nos ponían música de la que tú escuchabas, de la que te gustaba, música de Selena. Eso me daba miedo. […] Hablaban a todas horas, a las dos de la mañana, tres de la mañana, se ponían a respirar en el teléfono, nada más (BENÍTEZ et al., 1999BENÍTEZ, Rohry. et al. El silencio que la voz de todas quiebra: mujeres y víctimas de Ciudad Juárez. Chihuahua: Ediciones del Azar, 1999. 163 p., p. 124).

Em um dos capítulos de 2666, dedicado aos “crimes de Santa Teresa”, Roberto Bolaño toma como base o livro de Sergio González Rodríguez, o conhecido Huesos en el desierto, escrito a partir de seu trabalho jornalístico e investigativo no mesmo período em que as mulheres do S Taller estavam realizando a sua própria investigação. No romance de Bolaño, portanto, o que frequentemente parece invenção é, em realidade, uma ligeira distorção dos fatos: o assassino em série estrangeiro de QI elevado; o agente aposentado do FBI especialista em crimes em série de cujos serviços de consultoria haviam sido prestados até ao sucesso hollywoodiano O silêncio dos inocentes; os rumores desnorteantes; os casos que são abertos e encerrados sem conclusões plausíveis; os corpos abandonados em grandes vazios urbanos. O que parece estar na ordem do extraordinário é, em parte, uma mera duplicação dos fatos tais quais eles ocorreram - a desaparição forçada que vai se interiorizando como a própria motivação do percurso narrativo. A trama se constitui, no entanto, de modo a deixar-nos com a impressão de que na origem de tudo está um segredo maligno e que Santa Teresa é o ponto de encontro de todas essas forças ocultas - estatais, paraestatais e sobrenaturais. Entre o punhado de detetives incompetentes que acompanhamos no capítulo acerca dos feminicídios, se destaca uma figura muito particular, cujo método de investigação certamente não seria levado à sério por nenhuma forense: Florita Almada, yerbatera3 3 Traduções aproximadas para o português são: benzedeira, raizeira ou erveira. e vidente heptagenária.

Diferente dos outros personagens investigativos da Parte de los crímenes, Florita não é jornalista, tampouco policial, deputada, ou funcionária pública, e por isso, justamente, pode direcionar os seus sentidos a outras ressonâncias, mas ela é enfática ao afirmar que o que ela produz não são necessariamente milagres, “es decir mis milagros son produto del trabajo y de la observación y puede, digo puede, que también de um don natural” (BOLAÑO, 2010BOLAÑO, Roberto. 2666. Barcelona: Anagrama, 2010. 856 p., p. 575). Em outras palavras, não há dúvida sobre a sua capacidade de produzir milagres; o que se expõe, no lugar disso, é a incerteza do seu vínculo com um dom, deslocando a origem de suas habilidades de um local extraordinário e atribuindo-as a um modo adquirido de investigação.

Em um programa de auditório para um canal televisivo local, após a apresentação de um ventríloquo, Florita, à revelia, exercita também a sua forma particular de ventriloquia: possuída, entra em um transe por meio do qual atua como propagadora de uma série de vozes femininas: “Es Santa Teresa! ¡Es Santa Teresa! Lo estoy viendo clarito. Allí matan a las mujeres. Matan a mis hijas. ¡Mis hijas! ¡Mis hijas!” ou ainda, “Luego puso voz de niña y dijo: algunas se van en un carro negro, pero las matan en cualquier lugar” (BOLAÑO, 2010BOLAÑO, Roberto. 2666. Barcelona: Anagrama, 2010. 856 p., p. 547). Em outra ocasião, em sua casa, dando uma entrevista ao jornalista Sérgio González Rodrigo, personagem homônimo ao jornalista mexicano, Florita diz que pode às vezes ver o rosto dos assassinos e inclusive ouvi-los.

Y sus voces, las ha oído alguna vez?, dijo Sergio. Muy pocas veces, pero alguna vez sí que los he escuchado hablar. ¿Y qué dicen, Florita? No lo sé, hablan en español, un español enrevesado que no parece español, tampoco es inglés, a veces pienso que hablan en una lengua inventada, pero no puede ser inventada puesto que entiendo algunas palabras, así que yo diría que es español lo que hablan y que ellos son mexicanos, sólo que la mayor parte de sus palabras me resultan incomprensibles (BOLAÑO, 2010BOLAÑO, Roberto. 2666. Barcelona: Anagrama, 2010. 856 p., p. 714).

O que ela ouve é um idioma, algo familiar, mas que também pode ser uma criação, ela cogita. É familiar e ao mesmo tempo incompreensível, como se fosse uma língua constituída a partir de interferências fronteiriças entre o México e os Estados Unidos, entre o espanhol e o inglês, mas também atravessado por algo que permanece irredutível. Florita Almada, em sua condição de antena, termina por concluir que os assassinos falam espanhol, são mexicanos, mas as palavras ditas contêm significados desconhecidos. Em sua ininteligibilidade encontram seu refúgio e pelo seu difuso rumor, se alastram pelo território.

Em La escritura en el cuerpo de las mujeres asesinadas en Ciudad Juárez, Rita Segato começa seu ensaio contando que quando esteve na cidade em 2004, a convite das organizações Epikei y Nuestras Hijas de Regreso a Casa, ela vivencia algo de uma atmosfera insolitamente assustadora. Em seu sexto dia na cidade, quando começava a expor sua interpretação dos feminicídios em uma entrevista ao vivo no canal 5 local, houve uma “asustadora precisón cronométrica con que coincidieron la caída de la señal y la primera palabra con que iría a dar inicio a mi respuesta sobre el porqué de los crímenes” (SEGATO, 2013SEGATO, Rita Laura. La escritura en el cuerpo de las mujeres asesinadas en Ciudad Juárez. Buenos Aires: Tinta Limón, 2013. 88 p., p. 12). Segato sai rapidamente da cidade no dia seguinte, todos a apoiam em sua sensatez, assentem que em Ciudad Juárez não existem coincidências.

A decodificação da máquina cognitiva feminicida se anima em demonstrar que não há particularmente nada de extraordinário ocorrendo na fronteira de Ciudad Juárez, senão o patriarcado em seu movimento de “segundo estado”. Dizer que não existem coincidências significa, precisamente, remover os feminicídios de seu lugar de ilegibilidade. El silencio que la voz de todas quiebra, cujo intuito parece ser o mesmo em uma primeira leitura, se revela, justamente por causa da intrusão dos sete textos em homenagem, impossibilitado de manter sua promessa. Ali também não existem coincidências, mas no lugar de revelarem algo, parecem atribuir sentidos de outra ordem, cujo trânsito parece, justamente, depender do trânsito entre ordinário e extraordinário. Como a voz de Florita, portanto, a parte dos relatos do livro concebido pelo S Taller produz uma investigação que se guia por outra metodologia; uma que revela a absorção mútua entre a violência e o ordinário, “as if there were tentacles that reach out from the everyday and anchor the event to it in some specific ways” (DAS, 2007DAS, Veena. Life and Words: violence and the descent into the ordinary. Los Angeles: University of California Press, 2007. 281 p., p. 7). O imponderável parece se proliferar nas situações em que a obscuridade é a condição do poder.

A mãe de Sagrario conta sobre como no dia do desaparecimento da filha, um de seus periquitos morreu. O filho, irmão de Sagrario, enterra-o em um lote na frente da casa, mas a mãe afirma que é preciso desenterrá-lo para que a filha possa se despedir de seu bichinho. Enquanto a família se preocupa com o fato de Sagrario não chegar em casa, o menino cava obsessivamente sem encontrar o pássaro. A mãe sentencia: “Cuando halles al perico va a regresar Sagrario” (BENÍTEZ et al., 1999BENÍTEZ, Rohry. et al. El silencio que la voz de todas quiebra: mujeres y víctimas de Ciudad Juárez. Chihuahua: Ediciones del Azar, 1999. 163 p., p. 94). Um dia antes de encontrarem o corpo de Sagrario, o outro periquito, Luis, que havia tido as asas cortadas, voa em direção ao deserto para nunca mais voltar. O corpo morto do periquito que não aparece enquanto se procura o corpo vivo da filha, cumprindo a profecia da mãe; o voo impossível de um outro periquito à véspera da confirmação da morte, na direção em que o corpo havia sido encontrado. Os sinais lidos nos periquitos da menina, a quem a mãe chega a indagar pelo paradeiro da filha, constituem um arcabouço de pressentimentos expressados por quase todas as mães entrevistadas. Se os periquitos indicam à família que Sagrario não irá regressar, muitas outras mães relatam simplesmente pequenos detalhes cotidianos, rotinas habituais que, não tendo se cumprido, assinalam - sobretudo retrospectivamente - indícios que não foram devidamente lidos, ou cuja leitura correta não impediu o andamento da gramática feminicida.

Talvez o exemplo mais perturbador seja o texto em que Patricia Cabrera escreve sobre Eréndira Ivonne Ponce Hernández, nascida em 24 de janeiro de 1981 e morta em agosto de 1998. Eréndira mantinha um diário, ao qual Cabrera teve acesso pela irmã mais nova, que o lia obsessivamente desde a sua morte. A última entrada, escrita dois dias antes do seu desaparecimento, lhe deixava particularmente perplexa:

Querido diário: No sé qué me pasa. Tengo miedo. Hoy desperté con la necesidad inmensa de escribir todo lo que pueda en estas hojas. Así que no te sorprendas si encuentras cosas locas como la lista de los lanches, la soda y la fruta que me comí hoy o la ropa que necesito comprar para poder vestirme bien. Sólo sé que necesito escribir, escribir y escribir para seguir viviendo. O para que alguien viva a través de lo que yo escribo. Pensándolo bien, no es miedo lo que siento. Es un presentimiento. Un presentimiento de que voy a descubrir algo. Un secreto. El secreto más grande del mundo. (BENÍTEZ et al., 1999BENÍTEZ, Rohry. et al. El silencio que la voz de todas quiebra: mujeres y víctimas de Ciudad Juárez. Chihuahua: Ediciones del Azar, 1999. 163 p., p. 149)

O maior segredo do mundo, ela diz. Assim também pensa Guadalupe Roncal em 2666, outra personagem, além de Florita Almada, com sensibilidade particular: “Nadie presta atención a estos asesinatos, pero en ellos se esconde el secreto del mundo” (BOLAÑO, 2010BOLAÑO, Roberto. 2666. Barcelona: Anagrama, 2010. 856 p., p. 439). Segato começa seu texto falando sobre Édipo diante da Esfinge: a decifração não o impede de cumprir seu fim trágico. A última entrada do diário de Eréndira Ivone não oferece, de imediato, uma possibilidade de exegese e, nesse sentido, também produz o seu silêncio específico a quem o lê: um diário é um artefato inscrito no circuito dos segredos. O que ela descobriu? E foi a descoberta que a levou à morte? Como poderia o maior segredo do mundo figurar entre uma lista de roupas, guloseimas e bebidas gaseificadas? Em Shamanism, colonialism, and the wild man: a study in terror and healingTAUSSIG, Michael. Shamanism, Colonialism, and the Wild Man: a study in terror and healing. Chicago: The University of Chicago Press, 1987. 538 p., Michael Taussig pensa a morte como uma espécie de espectro que se espacializa sob culturas de terror. A obra Vaporización, da mexicana Teresa Margolles, constituída por um grande vaporizador que, discreto, em cantos de museu, dispersa pelo ambiente a água usada para lavar corpos no necrotério. Eréndira Ivone, como sua irmã, que havia sonhado o seu sofrimento na noite anterior ao seu desaparecimento, e as outras mulheres jovens de Ciudad Juárez, as que atravessam a cidade todo dia para trabalhar em sua franja transnacional, são atravessadas pelas forças insidiosas do rumor feminicida. O maior segredo do mundo é efeito da naturalização do capitalismo patológico de “segundo estado” no seu entroncamento com patriarcados de distintas intensidades. Em seu livro, Taussig mobiliza Benjamin, cujo texto famoso sobre o surrealismo afirma que:

De nada nos serve a tentativa patética ou fanática de apontar no enigmático o seu lado enigmático; só devassamos o mistério na medida em que o encontramos no cotidiano, graças a uma ótica dialética que vê o cotidiano como impenetrável e o impenetrável como cotidiano (BENJAMIN, 1987BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987. 272 p., p. 33).

Veena Das, diante do impenetrável, sugere que desloquemos nosso foco da fala para o gesto, avançando uma teoria etnográfica da diferença entre o que é dito e o que é mostrado. El silencio que la voz de todas quiebra não nos conta que Paula, mãe de Sagrario, no fim de 1999, fundou o grupo de mães Voces sin eco. Junto com a filha mais velha, Guilhermina, pintou e fincou no deserto a primeira cruz rosa em março do mesmo ano, a cruz rosa que se tornou, pelo menos na América Latina hispânica, o símbolo do rito público e coletivo do trabalho de luto face aos crimes feminicidas. Diante do dispositivo visível de um segredo público, Paula diz que ela mesma removerá as cruzes, uma por uma, quando não houver mais nenhuma mulher ou menina assassinada.

Referências

  • BENÍTEZ, Rohry. et al El silencio que la voz de todas quiebra: mujeres y víctimas de Ciudad Juárez. Chihuahua: Ediciones del Azar, 1999. 163 p.
  • BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987. 272 p.
  • BIERMAN, Ursula. Performing the border (filme) 1999, 43min. Disponível em: https://vimeo.com/74185298
    » https://vimeo.com/74185298
  • BOLAÑO, Roberto. 2666 Barcelona: Anagrama, 2010. 856 p.
  • DAS, Veena. Life and Words: violence and the descent into the ordinary. Los Angeles: University of California Press, 2007. 281 p.
  • FEDERICI, Silvia. O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. Tradução de Coletivo Sycorax. São Paulo: Elefante, 2019. 388 p.
  • SEGATO, Rita Laura. La escritura en el cuerpo de las mujeres asesinadas en Ciudad Juárez Buenos Aires: Tinta Limón, 2013. 88 p.
  • TAUSSIG, Michael. Shamanism, Colonialism, and the Wild Man: a study in terror and healing. Chicago: The University of Chicago Press, 1987. 538 p.
  • VALENCIA, Sayak. Capitalismo Gore Barcelona: Melusina, 2010. 240 p
  • 1
    O documentário Señorita Extraviada, de 2001, resgata os circos midiáticos montados em torno de prisões aleatórias de supostos assassinos seriais, como se o culpado fosse um indivíduo único que sofresse de um grave distúrbio mental ou moral, o mais famoso deles o egípcio Abdul Latif Sharif, um químico de uma maquiladora em cuja ficha já constavam dois crimes de estupro em território estado-unidense, condenado em 1996 por três assassinatos. Quando corpos de mulheres não pararam de aparecer nos lixões e terrenos baldios da cidade, mesmo após a sua prisão, criou-se uma história segundo a qual o egípcio coordenava uma gangue para que continuassem cometendo os assassinatos em seu nome. Como resultado disso, prenderam alguns jovens ligados ao narcotráfico. As mulheres de Ciudad Juárez não pararam de morrer. Na verdade, desde o início da década de 90, quando os feminicídios em Ciudad Juárez começaram a ser contabilizados e publicizados, o mapa da violência contra a mulher tem visto o epicentro mudar de lugar, sendo agora outros os Estados que mais concentram crimes desse tipo, nos rastros dos fluxos econômicos (formais e informais, lícitos e ilícitos).
  • 2
    O julgamento tinha como réu o estado mexicano, e objeto era o caso específico que ficou conhecido como Campo Algodonero, em referência aos oito corpos femininos encontrados em meio a um algodoal no entorno de Ciudad Juárez em novembro de 2001. Foi a primeira vez que uma corte de direitos utilizou o termo “feminicídio”.
  • 3
    Traduções aproximadas para o português são: benzedeira, raizeira ou erveira.
  • Parecer Final dos Editores

    Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    12 Jan 2022
  • Aceito
    30 Abr 2022
Programa de Pos-Graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras -UFRJ Av. Horácio Macedo, 2151, Cidade Universitária, CEP 21941-97 - Rio de Janeiro RJ Brasil , - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: alea.ufrj@gmail.com