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Leitura e apropriação em Adília, poeta-colecionadora

Reading and appropriation in Adília, collector poet

Resumo

Análise da poesia de Adília Lopes e discussão sobre como o gesto de leitura, segundo a perspectiva do arquivo contemporâneo, desconstrói os significados originais para a criação de novos acontecimentos textuais. Nos processos de reescrituras adilianas, destacam-se as práticas de apropriação e desvio de arquivos que revelam modos distintos de leitura. O deslocamento de citações, o mosaico de fragmentos de discursos e de memórias constitui uma poética sampleada, bem como a figuração de uma poeta-colecionadora. Demonstração de como, em sua escrita, o gesto de remontagem e de reproposição citacional promove, por meio do desvio irônico, uma poética do “gênio não-original”, como analisa Marjorie Perloff, e/ou uma “escrita não-original”, na perspectiva de Kenneth Goldsmith, bem como um trabalho de leitura, como pensa Roland Barthes.

Palavras-chave:
Adília Lopes; apropriação textual; arquivo; coleção; ironia

Abstract

This paper presents an analysis of Adília Lopes’ poetry, arguing how the act of reading, from the perspective of the contemporary archive, deconstructs the original meanings to create new textual events. In Adília’s rewriting processes, the appropriation and deviation practices of archives that reveal many different ways of reading stand out. The displacement of quotations and the mosaic of discourse fragments and memories constitute a sampled poetic as well as a figuration of a collector poet. It demonstrates how, in her writing, the act of reassembling and repurposing quotations promotes, through ironic deviation, a poetics of “unoriginal genius”, as proposed by Marjorie Perloff, and/or a “uncreative writing”, as in Kenneth Goldsmith’s perspective, or or even a reading work, following Roland Barthes’ notion.

Keywords:
Adília Lopes; textual appropriation; archive; collection; irony

Resumen

Análisis de la poesía de Adília Lopes discutiendo cómo el gesto de lectura, desde la perspectiva del archivo contemporáneo, pasa a hacer la desconstrucción de los significados originales para crear nuevos acontecimientos textuales. En los procesos de reescrituras adilianas, se subrayan las prácticas de apropiación y desvíos de archivos que revelan distintos modos de lectura. El desplazamiento de citaciones, el mosaico de fragmentos de discursos y de las memorias constituye una poética sampleada, así como la figuración de una poeta-coleccionista. Demostración de cómo, en su escrita, el gesto de reensamblaje y de reproposición citacional promueve, por medio de la desviación irónica, una poética del “genio no original” como muestra Marjorie Perloff, y/o una “escrita no-original”, de acuerdo con la perspectiva de Kenneth Goldsmith, así como un trabajo de lectura, como piensa Roland Barthes.

Palavras clave:
Adília Lopes; apropiación textual; archivo; colección; ironía

Arquivo-Coleção

O arquivo sempre foi um penhor e, como todo penhor, um penhor futuro. Mais trivialmente: não se vive mais da mesma maneira aquilo que não se arquiva da mesma maneira. O sentido arquivável se deixa também, e de antemão, co-determinar pela estrutura arquivante. Ele começa no imprimente. (DERRIDA, 2001DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Tradução de Claudia de Moraes Rego. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001. 130 p., p. 31)

Isso é só um happening. Acaba quando eu me for embora. (LOPES, 2016LOPES, Adília. Capilé. Lisboa: Averno, 2016b. 60 p.b, p. 37)

Na apresentação do Indicionário do contemporâneo, Celia Pedrosa (2018PEDROSA, Celia et al. Indicionário do contemporâneo. Belo Horizonte: Editora UFMG , 2018. 263 p.) e os demais estudiosos de estética contemporânea que organizaram a obra destacam o desejo coletivo dos sujeitos, inerente às multifacetadas manifestações artísticas do presente, de ler, falar, fazer e viver junto por meio de práticas de insubordinação, de insatisfação e de independência. Tais práticas trazem consigo um significante índice de leituras-escrituras de linguagens e de conceitos em voga em nossa temporalidade que postulam novos acontecimentos discursivos. Permeadas pela política literária do contemporâneo, as noções de comunidade, de pós-autonomia, de práticas inespecíficas e, principalmente, a de arquivo, aplicam-se à reflexão sobre o fazer poético recente, amplamente carregado de hibridismos discursivos nos quais se constatam práticas de “destruição enquanto construção” (PEDROSA et al, 2018PEDROSA, Celia et al. Indicionário do contemporâneo. Belo Horizonte: Editora UFMG , 2018. 263 p., p. 18). Como Derrida (2001DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Tradução de Claudia de Moraes Rego. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001. 130 p.; 2008) e Foucault (2006FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Edições Loyola, 2006. 80 p.; 2010FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. 264 p.) discutem, o arquivo contemporâneo passa a ser questionado não apenas como um espaço de estocagem de dados, de conteúdos, mas algo que extrapola a nossa linguagem, haja vista que a prática arquivista recente tem valorizado a

positividade do gesto do enunciado, seu “ter lugar”, e não o que esses enunciados dizem. A radicalidade da proposta foucaultiana, que procura desvendar as relações de poder e domínio que se impõem no controle da linguagem, [manifesta-se] no controle não apenas do que foi efetivamente dito, mas do que pode ser dito (PEDROSA et al, 2018PEDROSA, Celia et al. Indicionário do contemporâneo. Belo Horizonte: Editora UFMG , 2018. 263 p., p. 19).

Essa perspectiva de reflexão sobre o arquivo - que se associa bem à noção de coleção - pode ser relacionada às práticas literárias atuais, sobretudo na perspectiva dialógica entre poesia e pensatividade, por meio da relação que um sujeito mantém com os seus objetos. Encarada como uma “coleção sem razão” (PEDROSA et al., 2018PEDROSA, Celia et al. Indicionário do contemporâneo. Belo Horizonte: Editora UFMG , 2018. 263 p.), a proposta de observação do arquivo moderno e contemporâneo busca dar uma ideia sobre o tratamento que o sujeito atribui aos seus pertences e, mais especificamente, sobre a arte de colecionar. Tal perspectiva remete-nos diretamente ao texto Desempacotando a minha biblioteca, de Walter Benjamin (2004BENJAMIN, Walter. Desempacotando minha biblioteca. Tradução de João Barrento. Tradere, v. 15, p. 1-5, 2004.), cuja proposta é a de pensar a biblioteca por meio da desordem que se projeta no sujeito mediante o estado de espírito tenso do autêntico colecionador: “[...] o que me move é dar-vos uma ideia da relação de um colecionador com as peças da sua colecção, uma perspectiva da actividade de coleccionar” (BENJAMIN, 2004BENJAMIN, Walter. Desempacotando minha biblioteca. Tradução de João Barrento. Tradere, v. 15, p. 1-5, 2004., p. 2).1 1 Em “palestra sobre o colecionador”, Benjamin destaca que a existência do colecionador assenta por meio de uma tensão dialética entre os polos da desordem e da ordem. Para ele, “o mais profundo encantamento do colecionador é o de fechar a peça individual num círculo mágico em que ela, enquanto é atravessada por um último calafrio - o da sua aquisição -, fica petrificada. Tudo o que é recordação, pensamento, consciência, se torna pódio, moldura, pedestal, fecho da sua propriedade. A época, a região, a manufactura, o proprietário anterior - tudo isso se transforma para o verdadeiro coleccionador, em cada uma de suas peças, numa enciclopédia mágica cuja quinta-essência é o destino do seu objecto” (BENJAMIN, 2004, p. 2). Essa atitude benjaminiana reverbera no ato de apropriação de elementos da biblioteca universal e, mais precisamente, de elementos que passam a compor o “álbum” do colecionador, uma vez que “a atitude do coleccionador em relação às peças que possui vem do sentimento de responsabilidade do dono para com os objectos que possui. É, pois, no sentido mais elevado, a atitude do herdeiro” (BENJAMIN, 2004BENJAMIN, Walter. Desempacotando minha biblioteca. Tradução de João Barrento. Tradere, v. 15, p. 1-5, 2004., p. 5). Sob essa óptica - da arte de colecionar -, que se associa à prática arquivista contemporânea, o colecionador apodera-se apenas dos enunciados, e não se propõe a resgatar aquilo que era feito antes. A prática de apropriação realizada pelo colecionador aproxima-se da perspectiva da reescritura, o que obriga os leitores a lerem os arquivos sob novas perspectivas, por meio das quais se verificam “maneiras singulares de reinscrever essas mensagens sem mensageiros, reescrevendo-as como pegadas, vestígios, indícios” (PEDROSA et al., 2018PEDROSA, Celia et al. Indicionário do contemporâneo. Belo Horizonte: Editora UFMG , 2018. 263 p., p. 23). Isso faz com que o colecionador/o escritor crie novos acontecimentos a partir de seus próprios interesses ou, no mínimo, de seu próprio lugar de enunciação.

A ação de colecionar, que mescla elementos dispares e de contextos discursivos variados, vai ao encontro da perspectiva da arqueologia pensada por Foucault (2010FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. 264 p.), pela qual a investigação arqueológica não se baseia em uma disciplina interpretativa e, também, não trata os documentos como signos de outra ordem, mas sim os descreve a partir de novas práticas discursivas. Nesse sentido, tanto o arquivo contemporâneo quanto o ato de colecionar analisado por Benjamin levam-nos a pensar sobre a tensão que marca os modos de acumulação e de arquivamento presentes em poéticas recentes. Essas redefinições contemporâneas procuram rasurar a concepção de arquivo como repositório positivo e público por meio de práticas de escrita em que “o modo de operar com os arquivos públicos ilumine a memória pessoal, em que a memória individual ilumine a memória coletiva, em que a arqueologia e a psicanálise conversem, assim como os monumentos com as autobiografias” (PEDROSA et al., 2018PEDROSA, Celia et al. Indicionário do contemporâneo. Belo Horizonte: Editora UFMG , 2018. 263 p., p. 18). Partindo dessa proposta arquivista, consideramos que algumas poéticas atuais podem ser lidas sob essa visada, ou seja, a de um poeta-colecionador. Um exemplo dessa possibilidade de pensar a poesia como um arquivo-coleção se verifica nos últimos livros publicados da poeta portuguesa Adília Lopes - publicados a partir de 2015LOPES, Adília. Manhã. Lisboa: Assírio & Alvim , 2015. 144 p. -, cujas diversas cenas de escrita se apropriam não dos sentidos cristalizados de textualidades e/ou de discursos do passado, mas sim de espectros, ou melhor, de significantes que se tornam novos acontecimentos2 2 Tanto em A ordem do discurso quanto em A arqueologia do saber, Foucault se serve do conceito de acontecimentos para caracterizar a modalidade de análise histórica da arqueologia e também sua concepção geral da atividade filosófica. O Événement é pensado por Foucault como uma noção que se opõe à concepção de história total. Logo, as novas escritas do arquivo, bem como das coleções, podem ser lidas como novos acontecimentos discursivos. poéticos.

Nas obras Manhã (2015), Bandolim (2016a), Capilé (2016b), Z/S (2016c), Estar em casa (2018) e Dias e Dias (2020), nota-se como Adília possibilita considerarmos sua poesia um arquivo-coleção. Nesses livros, a nosso ver, sua poesia pratica a arte de colecionar referências advindas de diferentes contextos, que são entrecruzadas pela ironia típica de sua poética. Marcados pelo hibridismo de formas e processos, como, por exemplo, a mescla entre escrita ficcional e escrita diarística, tais livros são arquitetados como uma espécie de “álbum” em que a colecionadora, na ânsia arquivista de tudo guardar e de se ficcionalizar, lê e reescreve, incessantemente, fatos, textos e biografias de sujeitos da família articulados a uma imensa rede de citações oriundas de discursos vários e temporalidades diversas. Ditos populares, expressões e pensamentos cotidianos marcam, na escrita da poeta-colecionadora, a habitação de tempos entrecruzados nos seus livros, - “(Pesquisas fazem-se em casa, já dizia a minha/ avó, que era escritora) Alexandre O’Neill” (LOPES, 2015LOPES, Adília. Manhã. Lisboa: Assírio & Alvim , 2015. 144 p., p. 7) - como se fossem, todos eles, seu próprio scrapbook3 3 O vocábulo pode ser traduzido como um álbum de recortes com colagens de figuras e, também, como um livro de anotações cotidianas e de recados. . Não à toa, na abertura do livro Manhã, de 2015, Adília se vale da seguinte citação:

Ora bem; vai-se aos figurinos franceses de Dumas, de Eug. Sue, de Vítor Hugo, e recorta a gente, de cada um deles, as figuras que precisa, guarda-as sobre uma folha de papel da cor da moda, verde, pardo, azul - como fazem as raparigas inglesas aos seus álbuns e scrapbooks (GARRETT, 1963 apudLOPES, 2015LOPES, Adília. Manhã. Lisboa: Assírio & Alvim , 2015. 144 p., p. 9).4 4 A poeta cita Viagens na Minha Terra, de Almeida Garrett, fragmento do capítulo V. Cf. GARRETT, Almeida. Obra completa - I. Porto: Lello & Irmão, 1963, p. 27-28.

Nessa apropriação de uma passagem do romance de Garrett, a poeta indica aos seus leitores algumas possibilidades de adentrar em seus livros plurais, abertos, que nos fazem associá-los, todos, a um interminável álbum discursivo e memorialístico. Livros realmente multiformes, plurilinguísticos e intersemióticos - já que há a inserção de fotografias, desenhos e imagens relacionadas aos poemas -, o catálogo apresentado pela colecionadora contrasta cenas de “cadernos” fictícios. Nesses mesmos cadernos híbridos, o leitor se depara com passagens que ficcionalizam memórias da poeta na infância, bem como a focalizam, também, nos dias atuais, com suas angústias, incertezas e insubordinações ao tempo presente. Nesse cruzamento de temporalidades discursivas, com a poeta-personagem a preencher cada livro-álbum com textualidades apropriadas e deslocadas, encontramos analogias fundamentais com o papel: “Sou um mata-borrão. As coisas más e boas alastram em/ mim, ficam a alastrar. As pequenas coisas também. Não sou nada/ impermeável. 9-V-2020” (LOPES, 2020LOPES, Adília. Dias e dias. Lisboa: Assírio & Alvim , 2020. 64 p., p. 45). Em sua publicação, Dias e Dias, de 2020, flagramos a encenação performática da poeta, que se projeta no texto. Em um crossover entre construções ficcionais, referências eruditas e da cultura popular, nota-se a projeção de fatos relacionados à contemporaneidade de Adília que, de forma semelhante, se cruzam com referências do passado, espelhando a compreensão política de sua escrita:

Durante anos comi nos cafés. Com a quarentena do coronavírus, os cafés fecharam, passei a cozinhar para mim. Adoro cozinhar. Achava que não sabia cozinhar. Ninguém me ensinou. Não vi cozinhar. Tenho 60 anos, nunca tinha feito esparguete. Não fazia a mínima ideia quanto tempo levava a cozer. Consultei o livro de cozinha para crianças A colher de pau de Maria de Lourdes Modesto. O esparguete leva 15’ a cozer. Acho A colher de pau um livro genial. Cozinhar tem sido alucinante para mim, uma terapia. Vem aí a macacoa, a miséria? Sem esparguete, com coronavírus, a vida não é divertida. Por enquanto divirto-me (LOPES, 2020LOPES, Adília. Dias e dias. Lisboa: Assírio & Alvim , 2020. 64 p., p. 23).

Note-se que o poema embaralha não só tempos diversos, como ainda os entrecruza por meio de deslocamento de referências que não se atém, somente, à biblioteca erudita, mas sim, a livros do dia-a-dia. Misturam-se, também, binarismos por meio de elementos relacionados tanto à infância - na atitude pueril da prática do recorte e da colagem tão cara à Antoine Compagnon (1996COMPAGNON, Antoine. O trabalho da citação. Tradução de Cleonice P. B. Mourão. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1996. 116 p.) para compreensão do trabalho citacional - quanto às angústias do tempo presente vivido. Interessante destacar, igualmente, os recorrentes puzzles5 5 Puzzle: jogo de paciência composto de um determinado número de peças recortadas que são reencaixadas para formar uma imagem completa; quebra-cabeça. Em sentido figurado: situação que só é compreendida após reunir todos os elementos pertinentes. de referencialidades articuladas. O poema mistura vários links discursivos, ou seja, aspectos biográficos que são ficcionalizados na poesia; referências a textualidades diversas; alusões à escrita diarística, cujos dêiticos presentificam o momento da escrita; inserção de questões relacionadas à realidade externa ao texto poético, sobretudo ligadas à pandemia do coronavírus, que são narradas pela personagem de forma irônica e risível. Nesse poema, como em vários outros dos livros já citados, são articulados gestos de leitura e de escrita que fazem movimentar tanto fontes de discursos alheios quanto de sua própria textualidade. Nossa hipótese, neste trabalho, é a de que a leitura, assim como apropriação, é condição sine qua non na confecção dos livros-álbuns-catálogos de Adília, nos quais podemos ler resquícios arquivísticos de outras formas e que, para a écriture adiliana, Roland Barthes é referência incontornável, tal como examinaremos a seguir.

Ler-Escrever com Barthes

O ato contínuo de ler-escrever na poesia de Adília possibilita aos leitores a experiência de estar em uma biblioteca dinâmica, na medida em que memórias textuais diversas se cruzam evocando autores, obras, passagens, sentidos. Não se trata apenas de obras apropriadas, mas da própria vivência marcada pelo seu tempo de execução. Assim, por exemplo, a apropriação de grafias temporal ou espacialmente afastadas, perceptíveis, por exemplo, em - “Coifa de beirame/ namorou Joane/ cantar velho citado por Camões” (LOPES, 2016aLOPES, Adília. Capilé. Lisboa: Averno, 2016b. 60 p., p. 69) e em “Não aceito o teu dormir/ além do sono./ José Craveirinha, A notícia odiada, Maria” (LOPES, 2016aLOPES, Adília. Bandolim. Lisboa: Assírio & Alvim , 2016a. 240 p., p. 83). Noutras transposições, a poeta assume leitura como escritura. Em outros poemas, as apropriações de fragmentos e de frases singulares de narrativas ficcionais e/ou de versos de poemas são transcontextualizadas sem explicitação de onde foram retiradas: “Sous le soleil de Santan/ les grands cimetières sous la lune/ Sous le soleil/ sous la lune” (LOPES, 2015LOPES, Adília. Manhã. Lisboa: Assírio & Alvim , 2015. 144 p., p. 90), e em “Murder is easy/ They do it with mirros/ Clocks/ By the pricking of my thumbs/ N or M?/ Elephants can remember” (LOPES, 2016aLOPES, Adília. Bandolim. Lisboa: Assírio & Alvim , 2016a. 240 p., p. 100). Nesse segundo caso, por exemplo, os leitores atentos reconhecem uma citação da obra de Agatha Christie que, indiferentemente, se metamorfoseia em novo objeto do álbum da poeta-colecionadora. Esses lugares de coleta do ler-escrever são variados: vão desde textos literários consagrados (nomes de poetas/escritores/críticos literários, alusões a personagens, cenas de capítulos, versos e estrofes de poemas, trechos literais de narrativas etc.) com a incorporação de estratégias narrativas e ficcionais (comentários metaficcionais, digressivos, escrita em mise en abyme)6 6 Ver E-Dicionário de Termos Literários, org. Carlos Ceia, verbete "mise en abyme". Acesso: https://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/mise-en-abyme. a textos variados de uso cotidiano. Além dessas hibridizações com os textos em prosa, os poemas são fortemente marcados pela discursividade, ou seja, na maior parte das vezes, uma curta “estória” é contada. Em “Uma má tradução”, do livro Manhã, a poeta se vale de certa memória de leitura relacionada a Rimbaud, o que a faz associar diferentes temporalidades:

UMA MÁ TRADUÇÃO

Rimbaud fala já não sei em que poema de papilons életricques. Uma colega minha do liceu que sabia pouco francês pensou que papillons électriques era papoilas eléctricas. Ainda gosto mais de papoilas elétricas do que de borboletas eléctricas. É absolutamente Pop.

(LOPES, 2015LOPES, Adília. Manhã. Lisboa: Assírio & Alvim , 2015. 144 p., p. 100).

No poema, entrecruzam-se referências literárias a conceitos relacionados ao universo da física - curso que a poeta começou a estudar e abandonou por motivos de saúde - bem como se mesclam elementos da cultura de massa, mais especificamente da cultura pop. Seu trabalho vigilante de ler-escrever demonstra seu (re)conhecimento de tradições literárias diversas das quais se apropria com liberdade. No seu livro Capilé, publicado em 2016 pela editora Averno, o hibridismo de referencialidades produz, em muitos poemas, a dicção crítica e irônica sobre Portugal e sobre a cultura em geral. No poema “Estudos Portugueses”, por exemplo, são apropriados nomes de poetas incontornáveis da cultura lusitana, mais especificamente de Fernando Pessoa e de Cesário Verde, e fragmentos de seus versos, para deslocar expectativas de sentidos relacionadas, a priori, a essas referências, estabelecendo novos pontos críticos na articulação discursiva.

ESTUDOS PORTUGUESES

FERNANDO PESSOA

Sem a loucura que é o homem?

cadáver adiado que procria porcaria

(sem ofensa para os porcos

nem para os bebés)

CESÁRIO VERDE

O populacho diverte-se na lama

porque não se sabe divertir na cama

(sem ofensa para os pobres)

O KWY DA ECONOMIA

Portugal:

um país

em que o Espírito Santo

é um Banco

A poesia poética.

08/11/15

(LOPES, 2016LOPES, Adília. Capilé. Lisboa: Averno, 2016b. 60 p.b, p. 25).

Muito embora ocorra um jogo referencial facilmente reconhecido pelos leitores da poesia portuguesa, o poema se estrutura, em seus três níveis, por uma reflexão que execra determinados valores impostos pela sociedade do consumo. O gesto consciente de Adília, em seus deslocamentos ou mesclas textuais, cria aproximações inusitadas que provocam estranhamento a determinados valores: “Ética não é etiqueta” (LOPES, 2016LOPES, Adília. Capilé. Lisboa: Averno, 2016b. 60 p.c, 95). Ao contrário de mera paráfrase, uma estilização ou mesmo criação que enaltecesse o hipotexto, o poema fricciona esses elementos deslocados e cria contextos de leitura inesperados. Em muitos deles, a personagem adiliana se traveste de outras referencialidades e matérias, uma vez que “Temos a cara/ que nos deixam ter” (LOPES, 2016cLOPES, Adília. Z/S. Lisboa: Averno , 2016c. 132 p., p. 65). Essas camuflagens são recorrentes em seus últimos livros, como se lê em: “Sou o binómio de Newton de Fernando Pessoa” (LOPES, 2016aLOPES, Adília. Bandolim. Lisboa: Assírio & Alvim , 2016a. 240 p., p. 210) e “Sou certamente a Michelle Pfeiffer do Batman. Acho que/ sou bela como ela. Depois de sofrer mais um atentado, dezenas/ de gatos da rua lambem-lhe as feridas. Salvam-na. Fui salva/ pelos gatos” (LOPES, 2016bLOPES, Adília. Capilé. Lisboa: Averno, 2016b. 60 p., p. 44).

Em Manhã, Bandolim, Capilé, Z/S, Estar em casa e Dias e Dias, além dessas constantes práticas de apropriação e de desvio arquivista, Adília faz intertextualidade direta com a escrita de Roland Barthes, sobretudo relacionada à dicção do semiólogo francês em suas obras Roland Barthes por Roland Barthes (2003BARTHES, Roland. Roland Barthes por Roland Barthes. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Estação Liberdade, 2003. 216 p.) e Incidentes (2004cBARTHES, Roland. Incidentes. Tradução Mário Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes , 2004c. 116 p.), livros nos quais se notam indícios do projeto de escrita romanesca barthesiana. Em tais livros adilianos, os leitores se deparam com pequenas narrativas líricas sobre pequenos “incidentes” de escrita poética: as “historietas” podem ser lidas tanto como poemas em prosa quanto anotações e/ou fragmentos de um “diário” nos quais se colocam em evidência a essência do romanesco, tal como Barthes entendia os incidentes. Frente ao intenso corpo a corpo com o pensamento do autor de Crítica e verdadeBARTHES, Roland. Crítica e verdade. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Perspectiva, 2007. 240 p. é bem compreensível a publicação de um novo livro adiliano intitulado Z/S, de 2016, dedicado ao ensaísta, crítico e escritor francês. Nota-se a intertextualidade evidenciada no jogo com as letras de S/Z (1999), no qual Barthes se dedica ao estudo da narrativa Sarrazine, de Balzac. O poema “Global embuste”, de Z/S, exemplifica esse hibridismo entre dicções e figurações:

GLOBAL EMBUSTE

O que são meus poemas? Acções de formação

para vender CD-ROMs, Compact Disk Read Only Memory.

Não são para os sem-abrigo. Os sem-abrigo não precisam de

acções de formação, precisam de penthouses.

18/01/16

(LOPES, 2016LOPES, Adília. Capilé. Lisboa: Averno, 2016b. 60 p.c, p. 61).

Interessante observar que o livro reúne micronarrativas as quais evidenciam uma prática irônica a respeito da leitura como apropriação. Seus textos são, assim como os CD-ROMS, “acções de formação”, ou como a própria Adília os define em Estar em casa: “os meus poemas são papéis, acções, obrigações”7 7 Trata-se de um poema com esse único verso, pertencente à obra Estar em casa (2018). (LOPES, 2018LOPES, Adília. Estar em casa. Lisboa: Assírio & Alvim , 2018. 88 p., p. 30).

Uma das marcas mais evidentes do diálogo da poeta portuguesa com Barthes se encontra na proposta dos textes scriptibles, discutidos em S/Z (1999BARTHES, Roland. S/Z. Tradução de Maria de Santa Cruz e Ana Mafalda Leite. Lisboa: Edições 70, 1999. 200 p.). Em Barthes e também em Adília, os códigos não constituem uma estrutura rígida, centrada ou relacionada à identidade do sujeito ou aos nomes próprios que aprisionam. Ao contrário, pela sua fluidez, pelo seu teor autorreflexivo e problematizador, a escritura ressignifica os códigos da história e da literatura, bem como os da vida empírica, em uma imensa teia de citações, tornando-os uma miragem de estruturas móveis e transcontextualizadas (HUTCHEON, 1985HUTCHEON, Linda. Uma teoria da paródia: ensinamentos das formas de arte no século XX. Tradução de Tereza Louro Pérez. Lisboa: Edições 70 , 1985. 165 p.). A esse respeito, o poema “Como arrumar uma pequena biblioteca”, do livro Capilé (2016b), com referências a títulos de obras e a nomes de autores, mostra bem o processo jocoso na elaboração textual. Adília, essa figura também textual, avalia a importância de certos livros frente a outros e, ainda, em qual espaço tais volumes irão se encontrar em sua biblioteca:

COMO ARRUMAR UMA BIBLIOTECA

Quanto aos 28 Sonetos da Dra. Maria Manuela Brazette,

psicanalista encartada, meti-os na estante ao lado d’A Vénus

das peles, de Leopold Sacher-Masoch. É farinha do mesmo

saco, estão bem uma para outra. Eu te digo quem leu Freud.

(LOPES, 2016LOPES, Adília. Capilé. Lisboa: Averno, 2016b. 60 p., p. 46).

Assim como Bandolim e Capilé, Z/S é uma das publicações em que a figura da poeta-colecionadora se apropria de forma lúdica de recortes alheios e pratica colagens de citações de forma bem provocativa. O ato de colecionar, nesses livros, ratifica o pensamento de Benjamin, segundo o qual, no interior do colecionador, alojam-se espíritos, ou melhor, geniozinhos, que fazem com que a posse de outros objetos - textualidades - seja a mais profunda forma de relação que se pode ter com as coisas: “não por estarem vivas nele, mas porque é ele mesmo que vive nelas” (BENJAMIN, 2004BENJAMIN, Walter. Desempacotando minha biblioteca. Tradução de João Barrento. Tradere, v. 15, p. 1-5, 2004., p. 5). Em “Pessoa e o binómio de Newton (à suivre)”, lemos:

PESSOA E O BINÓMIO DE NEWTON (À SUIVRE)

As Vénus esteatopigias pré-históricas

são tão belas como a Vénus de Milo

o que há é pouca gente para dar por isso

ainda haverá alguém?

há muito que a Humanidade pirou

neste tempo de vacas magras

até a Vénus de Milo é uma gorda obesa

uma criminosa

a precisar de banda gástrica

e de xilindró

30/12/15

(LOPES, 2016LOPES, Adília. Capilé. Lisboa: Averno, 2016b. 60 p.a, p. 211).

O entrecruzamento de referências literárias e históricas, deslocadas e transmutadas no corpo do poema, revela leituras em movimento por meio de uma dicção inteligentemente crítica ativada frequentemente pela ironia ou sarcasmo. Nota-se a força da crítica contra os valores de “beleza” da sociedade contemporânea. Corpos fora de lugar, não permitidos, criminosos por não se adequarem às normas de beleza exigidas agora. Esses jogos de referências (fazem com que o poema funcione como uma espécie de máquina-leitora-apropriadora em continuum que exige o “leitor total” a que Barthes (2004bBARTHES, Roland. Da leitura. In: BARTHES, Roland. O rumor da língua. Tradução de Mário Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes , 2004b, p. 30-42.) se refere: aquele leitor que, ao ler, escreve textos, dispersa-se em possibilidades plurais de sentido que disseminarão no prazer, na fruição e no gozo.8 8 No texto “Da leitura”, Barthes (2004b, p. 29) entende que “[...] abrir o texto, propor o sistema de sua leitura, é [...] levar a reconhecer que não há verdade objetiva ou subjetiva da leitura, mas apenas verdade lúdica; e, ainda mais, o jogo não deve ser entendido como uma distração, mas como um trabalho - do qual, entretanto, se houvesse evaporado qualquer padecimento: ler é fazer o nosso corpo trabalhar (sabe-se desde a psicanálise que o corpo excede em muito nossa memória e nossa consciência) ao apelo dos signos do texto, de todas as linguagens que o atravessam e que formam como que a profundeza achamalotada das frases.”

Esse exercício de “escrever a leitura”, à maneira de seu mentor Barthes (2004bBARTHES, Roland. Da leitura. In: BARTHES, Roland. O rumor da língua. Tradução de Mário Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes , 2004b, p. 30-42.), faz-se presente no exercício vigilante de ler-apropriar-escrever da leitora-poeta. A poética de Adília possibilita aos leitores da sua própria textualidade a aventura de ler de outro lugar, dando-lhes liberdade de sentir o gozo individualizado. Nesse sentido, essa leitora de Barthes almeja que seu leitor, também, desenvolva “[...] o desejo que o escritor teve de escrever, ou ainda: [...] o desejo que o autor teve do leitor enquanto escrevia, [...] o ame-me que está em toda escritura” (BARTHES, 2004aBARTHES, Roland. A morte do autor. In: BARTHES, Roland. O rumor da língua. Tradução de Mário Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2004a, p. 57-64., p. 39).

Adília melhor se figura na arte de apropriação de recortes e da prática de colagem de citações desordenadas - “O prazer do texto sim/ o frete do texto não” (LOPES, 2018LOPES, Adília. Estar em casa. Lisboa: Assírio & Alvim , 2018. 88 p., p. 33) - forjando, no corpo do poema, cenas em que o sujeito poético compartilha experiências de leituras feitas de livros e gêneros dos mais diversos. As apropriações de leitura que movimentam sua escrita refletem o fetiche do “querer-escrever” (BARTHES, 2005aBARTHES, Roland. A preparação do romance I: da vida à obra. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes , 2005a. 262 p.).

Ao conectar um motivo de leitura a outro, os poemas revelam-se estelares e abertos. Essa ideia de poesia-coleção é sugerida aos leitores pela própria capa de Bandolim. Nela, há um desenho - tipicamente infantilizado - em que se visualiza uma espécie de círculo/sol repleto de raios/hastes. Tais hastes se conectam a outros círculos que, também, apresentam outras tantas hastes ad infinitum. Junto às cenas de leitura criadas pelos poemas, há a inserção de dados de ordem familiar - jogos referenciais - bem como de remissões a livros de receitas e a histórias orais: “Ferva a água, sem, no entanto, a deixar ferver/ em cachão: o chá aprecia a calma! Maria de Lourdes Modesto, A colher de pau” (LOPES, 2015LOPES, Adília. Manhã. Lisboa: Assírio & Alvim , 2015. 144 p., p. 85). Trata-se de obras literárias cujas formas e conteúdos estão sempre em movimento. Neles, a presença constante de jogos entre significantes que entrecruzam os gêneros discursivos torna o poema um hipertexto composto por várias textualidades, que se renovam a cada novo ato de leitura.

Os poemas, com um trabalho linguístico minucioso na sua aparente simplicidade, mostram-se híbridos e multilíngues, reunindo dados referenciais e ficcionalizados como: “La lumière est un mouvement luminaire de rayons/ composés de corps lucides, c’est-à-dire lumineux./ P. Noël, contemporâneo de Pascal/ Um poema um romance tuga/ 25/6/16” (LOPES, 2018LOPES, Adília. Estar em casa. Lisboa: Assírio & Alvim , 2018. 88 p., p. 20). Tais práticas laborais demonstram como o trabalho de criação poética de Adília é pensado de forma atenta pela poeta, o que revela, à maneira barthesiana, uma escrita poético-ficcional-ensaística: a fusão de diferentes formas discursivas moldadas pela biografemática.9 9 Assim como Barthes o fez em seus escritos por meio dos biografemas, a ficcionalização de aspectos biográficos de Adília aparece em sua poesia por meio de “restos” do que ela foi e do que, de alguma forma, ainda continua a ser. A escritura feita a partir dos resquícios desse sujeito nos leva a pensar a vida por meio da jouissance, ou seja, da possibilidade do eu se fabular no papel por outros meios, sejam eles projetados a partir de histórias tomadas pelas margens da existência do sujeito. Nessa perspectiva, sai de cena o autor da vida para a ascensão do ator no texto. Na sua Preparação do romance I: da vida à obra (2005a), Barthes entende que a reinvestida no componente biográfico, em seu projeto de escrita romanesca, deve flertar com o desejo da escritura. Trata-se, talvez, do “[...] querer escrever algo Querer-Escrever + Objeto. Haveria fantasias de escritura: tomar a expressão em sua força desejante. [...] Um enredo com um sujeito (eu) e um objeto típico (uma parte do corpo, uma prática, uma situação)” (BARTHES, 2005a, p. 20). Ao deslocar elementos textuais de outros contextos, o mosaico de citações incorporado nos últimos livros da poeta - que configura seu “álbum de coleção” - exige um posicionamento do leitor frente às novas configurações do poema e do próprio fazer poético em si. O ler-escrever adiliano torna-se, então, na sua poética arquivista-colecionadora, uma écriture, ou seja, o poema movimenta-se em seu eixo em torno das várias possibilidades de leitura como crítica de poesia. Eis um outro exemplo:

BARTHES E SCHOPENHAUER

A epígrafe de Soirées de Paris, um texto póstumo de Roland

Barthes, é de Schopenhauer. (Acho este texto de Barthes muito

corajoso, muito honesto, nada académico, nada de modas pari-

sienses ou outras. Gosto muito deste texto.) Schopenhauer escre-

veu num papel antes de morrer: Safámo-nos bem. É a epígrafe.

13/9/15

(LOPES, 2016LOPES, Adília. Capilé. Lisboa: Averno, 2016b. 60 p.a, p. 177)

Na leitura de poemas multifacetados que ressaltam apropriações discursivas diversas, constatamos a presença da polifonia de vozes e de mundos que são deslocados por meio do trabalho com a linguagem motivado pela juissance: “Ler, escrever, ouvir música, andar a pé, brincar” (LOPES, 2018LOPES, Adília. Estar em casa. Lisboa: Assírio & Alvim , 2018. 88 p., p. 55). Metamorfoses constantes são perceptíveis na criação dessa poesia intensamente marcada pela problematização de conhecimentos e, ao mesmo tempo, “radicalmente imersa, afectada ou apaixonada pelo fazer que existe” (GUSMÃO, 2010GUSMÃO, Manuel. Da poesia como razão apaixonada 3. In: GUSMÃO, Manuel. Tatuagem & palimpsesto: da poesia em alguns poetas e poemas. Lisboa: Assírio & Alvim, 2010. 552 p., p. 60). Lendo e apropriando, nascem os poemas que integram a coleção:

Buffon. Mettait des manchetes pour écrire.

Gustave Flaubert, Dictionnaire des idées reçues

Para escrever, ponho na cabeça um lencinho de assoar de

pano com Lavanda Ach. Brito.

02/08/15

(LOPES, 2016aLOPES, Adília. Bandolim. Lisboa: Assírio & Alvim , 2016a. 240 p., p. 137)

Contudo, questionamentos podem ser feitos pelos leitores de Adília sobre os poemas que são constituídos de recortes textuais alheios, colagens de citações, alusões literárias. Tal poema é uma criação própria, original? Onde ficaria a “criação” poética? O leitor, por seu turno, é obrigado a conhecer todas as informações sobre a “origem” dos hipotextos retomados como matéria de poesia? Indagações como essas estão relacionadas à concepção de criação de poesia como inventio moderna que, na contemporaneidade, tornou-se obsoleta devido a interatividade da escrita literária com os meios digitais. Logo, as concepções de plágio, de cópia, de imitação (pastiche) e principalmente de apropriação são ressignificadas no século XXI e, por sua vez, fundamentais à leitura da poesia adiliana.

Poeta não-original?

As artes plásticas, de fins do século XIX e de início do século XX, foram abaladas com as criações dos ready mades, cujo ápice de sua representatividade se encontra em Duchamp. No decorrer do século XX, o retorno dessas práticas de recorte e colagem aliadas às criações da pop art encontram amplo terreno no contexto da reprodutibilidade técnica (BENJAMIN, 1994BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época da sua reprodutibilidade técnica. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 165-196.). Embora as práticas fragmentárias da linguagem sejam propostas da literatura modernista, o que a “escrita não original” faz é “[...] apropriar-se de textos presentes em sua totalidade e proclamá-los como seus” (GOLDSMITH, 2011GOLDSMITH, Kenneth. Copiar é preciso, inventar não é preciso. [ Entrevista concedida a] Giselle Beiguelman. Select, São Paulo, p. 36-43, 2011., p. 38). Logo, apropriar torna-se sinônimo de criar.

A prática de uma escrita não criativa, segundo Goldsmith (2020GOLDSMITH, Kenneth. Escritura no-creativa: gestionando el languaje en la era digital. Traducción de Alan Page. Buenos Aires: Caja Negra, 2020. 336 p.), coloca em cena a liberdade de escrita por meio de métodos que desorientem a relação normativa que a literatura construiu com a linguagem. Logo, “precisamos empregar uma estratégia de opostos - o tédio não tedioso, a escrita não criativa, a contraexpressão” (GOLDSMITH, 2011aGOLDSMITH, Kenneth. Copiar é preciso, inventar não é preciso. [ Entrevista concedida a] Giselle Beiguelman. Select, São Paulo, p. 36-43, 2011., p. 40) sobretudo na escrita literária que, por sua vez, sempre esteve muito arraigada à noção de propriedade, de origem e de inspiração. Dessa forma, é possível, na contemporaneidade, ver o poeta como um apropriador, um artista-colecionador, que reagrupa elementos artísticos e não artísticos, e os transfigura em uma poesia “não original”.

Adília, por sua vez, apresenta poemas-brinquedo. Sua poesia leva-nos a pensar a criação poética por outros meios, ou seja, a reconhecer a existência de um “gênio não original” (PERLOFF, 2013PERLOFF, Marjorie. Gênio não original: poesia por outros meios no novo século. Tradução de Adriano Scandolara. Belo Horizonte: Editora UFMG , 2013. 316 p.) que se vale do ler-escrever apropriativo. O poema “Catalpa”, que abre a obra Estar em casa, é convidativo a pensar sobre o ato de “escrever sem escrever”:

CATALPA

Gosto do Concise Oxford Dictionary porque na entrada para

catalpa tem:

Kinds of tree with heart-shaped leaves & trumpet- sheaped

Flowers.

(publicado em A ideia, 2016)

(LOPES, 2018LOPES, Adília. Estar em casa. Lisboa: Assírio & Alvim , 2018. 88 p., p. 15).

Ocorre a apropriação de trechos literais de obras não só da literatura, mas de outras áreas do saber, como é o caso desse poema, construído simplesmente de uma entrada de dicionário que, no entanto, mostra no literal - um tipo de árvore - a imagem do coração em suas folhas. Nele, a subjetividade é reduzida à presença do verbo “gostar”.

O que se constata, então, desses confrontos de leituras diversas nos poemas feitos por outras mãos, são incidentes que se juntam a outras formas discursivas (anotações, memórias, relatos). Em outras palavras, Adília “samplea”10 10 Em Escrever sem escrever, Eduardo Villa-Forte (2019, p. 24-25) entende a prática do sampleamento na literatura como o ato de “[...] retirar ou copiar fragmentos de uma ou várias fontes e deslocá-los, reposicionando-os em determinado contexto diferente de onde os fragmentos foram retirados. Ou seja, assemelha-se a um reaproveitamento, um segundo uso dado a certo material. Em literatura, o sample se aproxima do que pensamos como citação. [...] Mas há uma diferença crucial entre citação e gestos mais radicais de apropriação: a citação tradicional é feita quando o conteúdo copiado vem associado a um crédito, com referência à fonte: já em gestos de apropriação pode ou não haver o esclarecimento quanto à origem”. elementos copiados e os transforma em sua poesia. Essa técnica, oriunda da música eletrônica, consiste em copiar faixas, trechos ou mesmo a totalidade de produções musicais, o que gera uma outra música. Logo, a poesia, nessa perspectiva, mescla recortes, trechos e “emendas” de outras obras e/ou discursos. Por isso, a expressão “escrever sem escrever”, de Villa-Forte (2019VILLA-FORTE, Leonardo. Escrever sem escrever: literatura e apropriação no século XXI. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, 2019. 224 p), levanta o debate sobre o descentramento da autoria na poesia do século XXI. No caso específico da poética de Adília, os poemas apagam a origem das citações por meio de uma tendência, como discutimos, de colecionar. O poema, feito de transposições e colagens, movimenta-se ludicamente. Em suma, ler, apropriar, escrever, samplear: eis o movimento de criação da poesia adiliana que, por meio da reciclagem, do reaproveitamento, da remixagem e, principalmente, do sampleamento, escreve sem escrever.

Referências

  • BARTHES, Roland. A morte do autor. In: BARTHES, Roland. O rumor da língua Tradução de Mário Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2004a, p. 57-64.
  • BARTHES, Roland. A preparação do romance I: da vida à obra. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes , 2005a. 262 p.
  • BARTHES, Roland. Da leitura. In: BARTHES, Roland. O rumor da língua Tradução de Mário Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes , 2004b, p. 30-42.
  • BARTHES, Roland. Crítica e verdade Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Perspectiva, 2007. 240 p.
  • BARTHES, Roland. Incidentes Tradução Mário Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes , 2004c. 116 p.
  • BARTHES, Roland. Roland Barthes por Roland Barthes Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Estação Liberdade, 2003. 216 p.
  • BARTHES, Roland. S/Z Tradução de Maria de Santa Cruz e Ana Mafalda Leite. Lisboa: Edições 70, 1999. 200 p.
  • BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época da sua reprodutibilidade técnica. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 165-196.
  • BENJAMIN, Walter. Desempacotando minha biblioteca. Tradução de João Barrento. Tradere, v. 15, p. 1-5, 2004.
  • COMPAGNON, Antoine. O trabalho da citação Tradução de Cleonice P. B. Mourão. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1996. 116 p.
  • DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Tradução de Claudia de Moraes Rego. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001. 130 p.
  • FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. 264 p.
  • FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Edições Loyola, 2006. 80 p.
  • GOLDSMITH, Kenneth. Copiar é preciso, inventar não é preciso. [ Entrevista concedida a] Giselle Beiguelman. Select, São Paulo, p. 36-43, 2011.
  • GOLDSMITH, Kenneth. Escritura no-creativa: gestionando el languaje en la era digital. Traducción de Alan Page. Buenos Aires: Caja Negra, 2020. 336 p.
  • GUSMÃO, Manuel. Da poesia como razão apaixonada 3. In: GUSMÃO, Manuel. Tatuagem & palimpsesto: da poesia em alguns poetas e poemas. Lisboa: Assírio & Alvim, 2010. 552 p.
  • HUTCHEON, Linda. Uma teoria da paródia: ensinamentos das formas de arte no século XX. Tradução de Tereza Louro Pérez. Lisboa: Edições 70 , 1985. 165 p.
  • LOPES, Adília. Bandolim Lisboa: Assírio & Alvim , 2016a. 240 p.
  • LOPES, Adília. Capilé Lisboa: Averno, 2016b. 60 p.
  • LOPES, Adília. Dias e dias Lisboa: Assírio & Alvim , 2020. 64 p.
  • LOPES, Adília. Estar em casa Lisboa: Assírio & Alvim , 2018. 88 p.
  • LOPES, Adília. Manhã Lisboa: Assírio & Alvim , 2015. 144 p.
  • LOPES, Adília. Z/S Lisboa: Averno , 2016c. 132 p.
  • PEDROSA, Celia et al Indicionário do contemporâneo Belo Horizonte: Editora UFMG , 2018. 263 p.
  • PERLOFF, Marjorie. Gênio não original: poesia por outros meios no novo século. Tradução de Adriano Scandolara. Belo Horizonte: Editora UFMG , 2013. 316 p.
  • VILLA-FORTE, Leonardo. Escrever sem escrever: literatura e apropriação no século XXI. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, 2019. 224 p
  • 1
    Em “palestra sobre o colecionador”, Benjamin destaca que a existência do colecionador assenta por meio de uma tensão dialética entre os polos da desordem e da ordem. Para ele, “o mais profundo encantamento do colecionador é o de fechar a peça individual num círculo mágico em que ela, enquanto é atravessada por um último calafrio - o da sua aquisição -, fica petrificada. Tudo o que é recordação, pensamento, consciência, se torna pódio, moldura, pedestal, fecho da sua propriedade. A época, a região, a manufactura, o proprietário anterior - tudo isso se transforma para o verdadeiro coleccionador, em cada uma de suas peças, numa enciclopédia mágica cuja quinta-essência é o destino do seu objecto” (BENJAMIN, 2004, p. 2).
  • 2
    Tanto em A ordem do discurso quanto em A arqueologia do saber, Foucault se serve do conceito de acontecimentos para caracterizar a modalidade de análise histórica da arqueologia e também sua concepção geral da atividade filosófica. O Événement é pensado por Foucault como uma noção que se opõe à concepção de história total. Logo, as novas escritas do arquivo, bem como das coleções, podem ser lidas como novos acontecimentos discursivos.
  • 3
    O vocábulo pode ser traduzido como um álbum de recortes com colagens de figuras e, também, como um livro de anotações cotidianas e de recados.
  • 4
    A poeta cita Viagens na Minha Terra, de Almeida Garrett, fragmento do capítulo V. Cf. GARRETT, Almeida. Obra completa - I. Porto: Lello & Irmão, 1963, p. 27-28.
  • 5
    Puzzle: jogo de paciência composto de um determinado número de peças recortadas que são reencaixadas para formar uma imagem completa; quebra-cabeça. Em sentido figurado: situação que só é compreendida após reunir todos os elementos pertinentes.
  • 6
    Ver E-Dicionário de Termos Literários, org. Carlos Ceia, verbete "mise en abyme". Acesso: https://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/mise-en-abyme.
  • 7
    Trata-se de um poema com esse único verso, pertencente à obra Estar em casa (2018).
  • 8
    No texto “Da leitura”, Barthes (2004bBARTHES, Roland. Da leitura. In: BARTHES, Roland. O rumor da língua. Tradução de Mário Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes , 2004b, p. 30-42., p. 29) entende que “[...] abrir o texto, propor o sistema de sua leitura, é [...] levar a reconhecer que não há verdade objetiva ou subjetiva da leitura, mas apenas verdade lúdica; e, ainda mais, o jogo não deve ser entendido como uma distração, mas como um trabalho - do qual, entretanto, se houvesse evaporado qualquer padecimento: ler é fazer o nosso corpo trabalhar (sabe-se desde a psicanálise que o corpo excede em muito nossa memória e nossa consciência) ao apelo dos signos do texto, de todas as linguagens que o atravessam e que formam como que a profundeza achamalotada das frases.”
  • 9
    Assim como Barthes o fez em seus escritos por meio dos biografemas, a ficcionalização de aspectos biográficos de Adília aparece em sua poesia por meio de “restos” do que ela foi e do que, de alguma forma, ainda continua a ser. A escritura feita a partir dos resquícios desse sujeito nos leva a pensar a vida por meio da jouissance, ou seja, da possibilidade do eu se fabular no papel por outros meios, sejam eles projetados a partir de histórias tomadas pelas margens da existência do sujeito. Nessa perspectiva, sai de cena o autor da vida para a ascensão do ator no texto. Na sua Preparação do romance I: da vida à obra (2005aBARTHES, Roland. A preparação do romance I: da vida à obra. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes , 2005a. 262 p.), Barthes entende que a reinvestida no componente biográfico, em seu projeto de escrita romanesca, deve flertar com o desejo da escritura. Trata-se, talvez, do “[...] querer escrever algo Querer-Escrever + Objeto. Haveria fantasias de escritura: tomar a expressão em sua força desejante. [...] Um enredo com um sujeito (eu) e um objeto típico (uma parte do corpo, uma prática, uma situação)” (BARTHES, 2005aBARTHES, Roland. A preparação do romance I: da vida à obra. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes , 2005a. 262 p., p. 20).
  • 10
    Em Escrever sem escrever, Eduardo Villa-Forte (2019VILLA-FORTE, Leonardo. Escrever sem escrever: literatura e apropriação no século XXI. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, 2019. 224 p, p. 24-25) entende a prática do sampleamento na literatura como o ato de “[...] retirar ou copiar fragmentos de uma ou várias fontes e deslocá-los, reposicionando-os em determinado contexto diferente de onde os fragmentos foram retirados. Ou seja, assemelha-se a um reaproveitamento, um segundo uso dado a certo material. Em literatura, o sample se aproxima do que pensamos como citação. [...] Mas há uma diferença crucial entre citação e gestos mais radicais de apropriação: a citação tradicional é feita quando o conteúdo copiado vem associado a um crédito, com referência à fonte: já em gestos de apropriação pode ou não haver o esclarecimento quanto à origem”.
  • Parecer Final dos Editores

    Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    15 Set 2021
  • Aceito
    30 Abr 2022
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