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Miguel de Castanhoso e o martírio de D. Cristóvão da Gama

Miguel de Castanhoso and the martyrdom of D. Cristóvão da Gama

Resumo

Miguel de Castanhoso participou da expedição portuguesa enviada à Etiópia, sob o comando de Cristóvão da Gama, para dar apoio militar ao imperador Galawdewos entre 1541-1543. Tendo publicado seu relato em 1564, Castanhoso imprimiu um tom mítico e profético a seu texto, construindo bases para o martirológio de D. Cristóvão, que foi torturado por inimigos muçulmanos e teria operado milagres. Este artigo analisa o relato de Castanhoso a partir das questões políticas que envolveram o possível projeto de um martirológio em torno do nome de Cristóvão da Gama. O projeto, no entanto, revelou a pouca influência portuguesa nos assuntos da Igreja em Roma, já que o martirológio de Gama não alcançou qualquer visibilidade política e religiosa internacional.

Palavras-chave:
Renascimento português; canonização; Miguel de Castanhoso; Casa da Vidigueira; crônicas portuguesas

Abstract

Miguel de Castanhoso participated in the Portuguese expedition sent to Ethiopia, under the command of Cristóvão da Gama, to provide military support to Emperor Galawdewos between 1541-1543. Having published his account in 1564, Castanhoso imprinted a mythical and prophetic tone to his text, laying the foundations for the martyrology of Dom Cristóvão, who was tortured by Muslim enemies and was said to work miracles. This article analyzes Castanhoso’s account, based on the political issues surrounding a project of a martyrology around the name of Cristóvão da Gama. The project, however, revealed the little Portuguese influence in the matters of the Roman church, because Gama’s martyrology did not achieve any political or religious international impact.

Keywords:
Portuguese Renaissance; canonization; Miguel de Castanhoso; Vidigueira House; Portuguese chronicles

Resumen:

Miguel de Castañoso participó de una expedición portuguesa enviada hacia Etiopía bajo el comando de Cristóvão da Gama para darle apoyo al emperador Galawdewos entre 1541 y 1543. Castañoso publicó su relato en 1564 e imprimió un tono mítico y profético a su texto, construyendo bases al martirologio de D. Cristóvão que ha sido torturado por enemigos musulmanes y habría operado milagros. Este artículo analiza el relato de Castañoso desde las cuestiones políticas que involucraron el posible proyecto de un martirologio de al rededor del nombre de Cristóbal. El proyecto, sobretodo, ha revelado la poca influencia portuguesa en los asuntos de la Iglesia en Roma, ya que el martirologio de Gama no alcanzó cualquier visibilidad política y religiosa internacional.

Palabras clave:
Renacimiento portugués; canonización; Miguel de Castañoso; Casa da Vidigueira; crónicas portuguesas

Em abril de 1544, Miguel de Castanhoso, nobre soldado de provável origem espanhola, escudeiro fidalgo da casa de D. João III de Portugal, chegava a Goa, na Índia, numa embarcação portuguesa, depois de uma difícil expedição militar de que participara no coração da Etiópia. Vinha cansado e ferido, o braço esquerdo inutilizado por um tiro de espingarda. Os ânimos, no entanto, renovavam-se. O oficial levava consigo documentos preciosos para a história da expansão portuguesa: cartas do imperador Galawdewos (Asnaf Sagad I, ou simplesmente Cláudio) a D. João III e ao governador da Índia, a ele confiadas, e um pequeno tratado que ele mesmo escrevera sobre os acontecimentos da campanha na Etiópia (ALBUQUERQUE 1991ALBUQUERQUE, Luís de (dir.). Dicionário de história dos descobrimentos portugueses. Lisboa: Círculo de Leitores, 1991. 2 v.; MARTINEZ 2015MARTINEZ, Andrieu. Miguel de Castanhoso. In: THOMAS, David; CHESWORTH, John (ed.). Christian-Muslin Relations: a bibliographical history, Boston: Brill, 2015. 976 p. v. 7.). Até o fim daquele ano, Castanhoso deveria retornar a Portugal, já curado da ferida (mas com sequelas graves), para entregar ao seu rei tanto as cartas diplomáticas que lhe foram confiadas quanto o tratado com que esperava granjear a simpatia de D. João III. O serviço militar e o relatório da campanha na África parecem de fato lhe ter trazido bom prestígio e recompensa: em 1548, Castanhoso recebeu a comenda de cavaleiro da Ordem de Cristo e, depois, a comenda de São Romão de Fonte Coberta, no arcebispado de Braga, também pertencente à Ordem de Cristo, com benefício de “70.000 reaes cada anno” (CASTANHOSO, 1898CASTANHOSO, Miguel de. Dos Feitos de D. Christovam da Gama em Ethiopia. Lisboa: Imprensa Nacional, 1898. 152 p., p. XL).

O tratado sobre a campanha na Etiópia foi publicado 20 anos depois de seu registro, portanto em 1564, provavelmente no ano em que Castanhoso morreu. Albuquerque (1991ALBUQUERQUE, Luís de (dir.). Dicionário de história dos descobrimentos portugueses. Lisboa: Círculo de Leitores, 1991. 2 v., p. 220) diz, no entanto, que o autor deve ter assistido à publicação de seu livro, editado na oficina de João de Barreira, com o longo título História das cousas que o mui esforçado capitão Dom Cristóvão da Gama fez nos reinos do Preste João com quatrocentos portugueses que levou consigo. Pouco conhecedor dos clássicos e fraco humanista, embora tenha lido alguma coisa sobre historiografia militar (HENRIQUES, 2017HENRIQUES, Luís Miguel Ferreira. Uma expedição ao ethos do Preste João. In: SOARES, Nair de Nazaré Castro; TEIXEIRA, Cláudia (ed.). Legado clássico no renascimento e sua receção: contributos para a renovação do espaço cultural europeu. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2017. p. 171-200., p. 175), Castanhoso escreveu um registro curto, mas criterioso da expedição que os portugueses fizeram na Etiópia, entre 1541-1543, em socorro militar ao negus negast (título real usado pelos imperadores etíopes) Cláudio I, à época conhecido erroneamente como Preste João. O livro de Castanhoso é o único registro do episódio na África da parte de uma testemunha ocular, e o texto assume dimensão notoriamente literária, com informações de toda monta, de variados interesses. Em 29 capítulos curtos, o autor detalha estratégias militares, compõe um roteiro das investidas do exército português, descreve cada uma das batalhas com pormenores importantes e, por fim, ainda tem espaço para falar sobre o povo etíope e sobre a sua sensual e misteriosa rainha, Sabele Engel, que, aqui e ali, aparece no livro a providenciar conversas diplomáticas com o capitão-mor.

A presença portuguesa naquelas terras tinha razão de ser: nos últimos 12 anos, a Etiópia cristã, desde os tempos do imperador Lebna Dengel, vinha enfrentando, já exaurida e sem recursos, os assaltos de Ahmad ben Ibrahim Al Ghazi, apelidado O Granhe (o canhoto), general do sultanato de Adal, que havia reunido forças com um exército de somalis especialmente vindos de Zeila, com a ajuda de árabes, turcos otomanos e outras etnias muçulmanas, todos dispostos a conquistar o país. Castanhoso, na introdução de seu livro, informa que, em meados de 1541, estando o governador da Índia, D. Estevão da Gama, no porto de Massuá (cidade da Eritreia), para novas tentativas de conquista do Mar Vermelho, chegou-lhe à presença um emissário do Preste João, de nome Barnagais, “com cartas em as quais lhe pedia socorro e olhasse que aquele reino era de Cristãos e estava usurpado dos mouros” (CASTANHOSO, 1988CASTANHOSO, Miguel de. História das cousas que o mui esforçado capitão Dom Cristóvão da Gama fez nos reinos do Preste João com quatrocentos portugueses que consigo levou. Lisboa: Publicações Europa-América , 1988. 126 p., p. 15). O governador decidiu prontamente pelo envio de forças militares. E tinha bons motivos para isso.

A Etiópia, desde o séc. XV, vinha sendo alvo de múltiplos interesses da Europa. Era considerada a terra do Preste João, o lendário soberano cristão que conquistara o imaginário medieval desde o séc. XII, quando uma enigmática carta falsa (assinada pelo próprio Preste) chegou às mãos de Manuel I Comenos, imperador bizantino, dando conta de um reino mítico e fabuloso a oriente, com vastos domínios e senhorios. Era notícia extraordinária para uma Europa tomada de pânico pelo avanço islâmico. Procurado no oriente, na Índia, na Ásia central e finalmente na Etiópia, o Preste João acabou por ser identificado com o negus negast da dinastia salomônica do então reino da Abissínia (ou Etiópia, efetivamente o único país originalmente cristão no meio da África), ainda que se tratasse de uma terra depauperada pela geografia difícil e pela ameaça muçulmana. Ao longo do séc. XV, houve uma significativa aproximação entre a Europa e a Etiópia, incluindo uma expedição de Dawit I a Veneza em 1402 e uma delegação etíope a Nápoles, quando Afonso de Aragão a conquistou em 1450 (SALVADORE, 2010SALVADORE, Matteo. The Ethiopian Age of Exploration: Prester John’s Discovery of Europe, 1306-1458. Journal of World History, Hawaii, vol. 21, n. 4, p. 593-627, dec. 2010.).

No fim do séc. XV, depois de mapear boa parte da costa atlântica da África, o governo português tratou de mandar expedições exploratórias para achar o reino mítico do Preste. Pero da Covilhã penetrou o coração da Etiópia por volta de 1493, mas nunca voltou a Portugal para dar testemunho de seu achado. Foi, no entanto, a própria rainha etíope Eleni (ou Helena), mãe do imperador Lebna Dengel, quem manteve contato e enviou missão diplomática a Portugal (FICALHO, 1988FICALHO, Francisco Manuel de Melo Ficalho Conde de. Viagens de Pêro da Covilhã. Lisboa: Imprensa Nacional -Casa da Moeda, 1988. 364 p. ). D. Manuel retribuiu com a célebre embaixada de D. Rodrigo de Lima, lá chegado em 1520, acompanhado do capelão Francisco Álvares, que em 1540 publicou um relato completo da expedição, a Verdadeira informação das terras do Preste João das Índias, um dos mais fascinantes relatos da literatura portuguesa de viagens.

Com esse livro, Álvares expôs à Europa pelo menos duas verdades inquietantes: que o Preste João não era exatamente o Preste João, ou seja, o nome referia-se não a um indivíduo, mas a um título nobiliárquico concedido aos imperadores da Etiópia (àquela época era Lebna Dengel); e que o seu reino era de uma pobreza de dar pena, pois o imperador, sequer dono de um palácio, andava como nômade, montando e desmontando tendas pelo interior do país (ÁLVARES, 1989ÁLVARES, Francisco. Verdadeira informação das terras do Preste João das Índias. Lisboa: Publicações Europa-América, 1989. 311 p.).1 1 O livro de Elaine Sanceau (1944) propõe uma análise histórica sobre as relações entre Portugal e Etiópia, tendo como ponto de referência a busca pelo Preste João. Em outros termos, Álvares propôs mudanças substanciais na imagem mítica do Preste João (RAMOS, 1997RAMOS, Manuel João. Ensaios de mitologia cristã: o Preste João e a reversibilidade simbólica. Lisboa: Assírio e Alvim, 1997. 400 p.).

Portugal e Etiópia, portanto, já se conheciam. Por cartas, eram amigos, irmãos na cristandade (embora o país africano estivesse submetido à Igreja Copta de Alexandria), e faziam-se representar por nobres legítimos, embaixadores e fidalgos de olhos postos em interesses políticos e comerciais. Portugal, que ansiava pelo monopólio do comércio no Índico, procurava a todo custo fechar a rota mercante do mar Vermelho, tentando inutilizar a força dos mamelucos egípcios e sua parceria com cidades italianas. Kurt (2013KURT, Andrew. The search for Prester John: a projected crusade and the eroding prestige of Ethiopian kings, c.1200-c.1540. Journal of Medieval History, London, vol. 39, n. 3, p. 297-320, 22 apr. 2013.) entende, no entanto, que, desde os tempos de D. João II, Portugal não buscava na Etiópia exatamente uma aliança, mas um objeto subalterno para consolidar sua conquista no Índico, já que aquele país mantinha posição estratégica nas proximidades do Mar Vermelho. Tanto é que, depois do retorno de Vasco da Gama na primeira viagem à Índia, o “venturoso” D. Manuel autoproclamou-se “rei de Portugal e dos Algarves, d’aquém e d’além-Mar em África, senhor da Guiné e da conquista, navegação e comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia”, embora, àquela época, não soubesse exatamente onde ficava a Etiópia. A história das relações entre Portugal e o país africano vai se estender até a primeira metade do séc. XVII, quando missões jesuíticas tentarão, sem sucesso, converter o país ao catolicismo.

Naquele 9 de junho de 1541, quando a expedição portuguesa deixou o porto de Massuá, na Eritreia, rumo à Etiópia, levando artilharia e munições para salvar o país dos ataques de Al Ghazi (a quem Miguel de Castanhoso chama erroneamente de “rei de Zeila”), Estêvão da Gama tinha razões políticas e econômicas para oferecer seu apoio militar àquela gente. Nomeara como capitão-geral da campanha ninguém menos que seu irmão mais moço, D. Cristóvão da Gama, jovem de ilustre carreira militar, fidalgo da casa real, capitão-mor de Malaca, o caçula da família de Vasco da Gama (SOUSA, 2008SOUSA, Luís Costa e. Campanha da Etiópia, 1541-1543: 400 portugueses em socorro do Preste João. Lisboa: Tribuna da História, 2008. 135 p.). Diogo do Couto, que depois fará críticas à conduta do capitão, confirma que D. Estêvão fez a nomeação “sem dar conta a ninguém”, e que a notícia fora mal recebida entre os pares, “não porque [Cristóvão] não tivesse todas as partes necessárias, a hum bom cappitam, senão porque era ainda muito mancebo” (COUTO, 1998COUTO, Diogo do. Tratado dos feitos de Vasco da Gama e seus filhos na Índia. Lisboa: Edições Cosmos, 1998. 206 p., p. 142). Esteves Pereira (CASTANHOSO, 1898CASTANHOSO, Miguel de. Dos Feitos de D. Christovam da Gama em Ethiopia. Lisboa: Imprensa Nacional, 1898. 152 p., p. XXX) emenda que D. Cristóvão teria pedido a capitania “com muita importunação”. E parece ter saído animadíssimo, eufórico, “com tamanha alegria” (COUTO, 1998COUTO, Diogo do. Tratado dos feitos de Vasco da Gama e seus filhos na Índia. Lisboa: Edições Cosmos, 1998. 206 p., p. 143), mesmo no ardor insuportável do sol da Etiópia, como a querer dar provas de sua bravura e de sua inteligência militar. Levava consigo 400 soldados, um contingente insignificante frente ao exército de Al Ghazi, que reunira gente de toda espécie e de toda parte. No primeiro encontro com a rainha Sabele Engel, mãe de Galawdewos, o jovem de 25 anos conferenciou com ela em discurso arrebatado, pleno de arroubos religiosos, garantindo que “todos os portugueses vinham oferecidos a morrer pela fé de Cristo, e para restaurar aquele reino” (CASTANHOSO, 1988CASTANHOSO, Miguel de. Dos Feitos de D. Christovam da Gama em Ethiopia. Lisboa: Imprensa Nacional, 1898. 152 p., p. 31). A rainha agradeceu, obsequiosa, e os etíopes tomaram o jovem capitão por “Apóstolo de Deus para tirá-los de cativeiro e sujeição” (CASTANHOSO, 1988CASTANHOSO, Miguel de. Dos Feitos de D. Christovam da Gama em Ethiopia. Lisboa: Imprensa Nacional, 1898. 152 p., p. 19). O filho de Gama viu crescer em si o ideal de herói da fé e da expansão marítima. A expedição parecia ter sido feita para ele.

Mas a sorte não sorriu para o jovem e impetuoso capitão-geral: D. Cristóvão de fato reconquistou territórios, abriu caminhos, praticamente salvou a Etiópia da sujeição islâmica, mas seu pequeno exército de homens cansados de viagens marítimas e caminhadas extenuantes só conseguiu vencer finalmente a guerra porque as tropas de Galawdewos juntaram-se a eles, já pelo fim de 1543. D. Cristóvão, no entanto, saiu de cena antes, em desfecho trágico. Apressado em certas estratégias militares, ávido demais pela vitória, em agosto de 1542, depois de ter sido ferido no braço e na perna, caiu em mãos de Al Ghazi, o canhoto, que não perdoou o cristão: submeteu-o a uma cruel flagelação, humilhou-o, torturou-o de toda forma, açoitou suas carnes nuas, queimou-lhe as pestanas, as barbas, e por fim, cortou-lhe a cabeça, depois de ter mostrado ele mesmo ao jovem capitão umas 80 cabeças de portugueses mortos em batalhas. Ao fim da guerra, foi Al Ghazi quem teve a cabeça decepada para o espetáculo dos etíopes e do mísero contingente de portugueses que sobrevivera. Era um cenário de horror, que nos dá a dimensão da violência entre portugueses e muçulmanos na conquista pelo monopólio do Mar Vermelho.

Miguel de Castanhoso, testemunha ocular, um dos 400 homens de D. Cristóvão, tinha em mãos, para mostrar a D. João III, uma história no mínimo fascinante, mas o episódio da humilhação de seu capitão-mor, ainda que tenha sido vingado, soava embaraçoso à honra portuguesa. A solução foi engenhosa. Na composição de seu livro, o soldado-escritor, para além das informações táticas e militares e das notícias sobre geografia, etnografia e história que ele apresenta, optou por uma narrativa mítica, como a insinuar que não se tratava apenas de uma guerra, mas de uma missão religiosa, profeticamente anunciada e coroada pelo martírio de D. Cristóvão. Já nos capítulos iniciais de seu relato, Castanhoso dá azo a certa aura de misticismo na campanha: os portugueses estão a “serviço de Deus e de el-Rei”; veem-se dispostos “a morrer pela fé de Cristo”; frades etíopes, com cruzes em mãos, dizem que D. Cristóvão é enviado de Nosso Senhor Deus; uma carta do Preste João ao capitão português menciona antiga profecia de que o país seria remido “por umas gentes brancas, de mui longe partidas”; e estranhos vestígios de vaticínio se espalham pelo caminho dos soldados, como o encontro com as relíquias dos 300 homens brancos embalsamados ao topo de uma serra, restos “do tempo dos romanos”, a que o patriarca João Bermudes atribuía santidade (CASTANHOSO, 1988CASTANHOSO, Miguel de. História das cousas que o mui esforçado capitão Dom Cristóvão da Gama fez nos reinos do Preste João com quatrocentos portugueses que consigo levou. Lisboa: Publicações Europa-América , 1988. 126 p., p. 16 e seg.). Não era uma guerra de interesses políticos e econômicos, era o cumprimento de uma profecia de libertação das terras do Preste João, o soberano mítico que ainda enriquecia de fascínio o imaginário da Europa, a despeito das notícias menos legendárias e mais realistas do livro de Francisco Álvares.

As circunstâncias pouco conhecidas da morte trágica de D. Cristóvão (não se sabe exatamente quem teria testemunhado seu martírio) são convertidas em cenas forçosamente místicas, a exemplo das típicas motivações sobrenaturais de narrativas hagiográficas: D. Cristóvão é descoberto pelas forças inimigas por causa da presença de uma estranha velha que entra pelo mato, figura demoníaca, misto de representação da bruxa e símbolo de Maomé; no lugar onde jogaram a cabeça de D. Cristóvão, abre-se “uma fonte de água, que depois diziam que sarava muitas doenças”; e no dia e na hora de sua flagelação, frades de um mosteiro testemunham que uma árvore próxima é misteriosamente arrancada, ficando com “as raízes para cima e as ramas para baixo” (CASTANHOSO, 1988CASTANHOSO, Miguel de. História das cousas que o mui esforçado capitão Dom Cristóvão da Gama fez nos reinos do Preste João com quatrocentos portugueses que consigo levou. Lisboa: Publicações Europa-América , 1988. 126 p., p. 89). Não é possível saber se esse acervo sobrenatural foi fabulado por Castanhoso, ou se nasceu de manifestações populares alimentadas pelo imaginário dos combatentes tomados pela aura mística de vaticínios que tanto caracterizou a campanha na Etiópia. De toda forma, conceder a D. Cristóvão o ideal de morte simbólica e miraculosa revelou-se estratégia bem mais honrosa do que apenas lhe conferir a morte humilhante nas mãos de um bárbaro.

Luís de Albuquerque (1991ALBUQUERQUE, Luís de (dir.). Dicionário de história dos descobrimentos portugueses. Lisboa: Círculo de Leitores, 1991. 2 v., p. 220) informa que a História das cousas de Castanhoso foi “possivelmente encomendada pela Casa da Vidigueira, que pretendia assim lançar as bases do martirológico de D. Cristóvão da Gama”, e Henriques (2017HENRIQUES, Luís Miguel Ferreira. Uma expedição ao ethos do Preste João. In: SOARES, Nair de Nazaré Castro; TEIXEIRA, Cláudia (ed.). Legado clássico no renascimento e sua receção: contributos para a renovação do espaço cultural europeu. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2017. p. 171-200., p. 174) arrisca dizer que não foi exatamente Castanhoso, mas o editor João de Barreira quem “terá adicionado alguma erudição ao texto, modificando-o na descrição do martírio de D. Cristóvão”. Ambas as afirmações são perigosas e exigem análise. Castanhoso, em 1544, já tinha em mãos o seu relato a ser entregue a D. João III, e estando no exercício militar, não pode ter recebido encomenda de seu livro, mas até a edição de 1564, pode ter feito emendas solicitadas por representantes da Vidigueira. Quanto aos acréscimos do editor, não é possível afirmar que João de Barreira tenha feito ele mesmo modificações no livro, de forma a tornar mais miraculoso o martírio de D. Cristóvão, embora tivesse razões para isso. É preciso examinar de perto as duas questões.

A casa da Vidigueira, família dos varões ilustres de Vasco da Gama, parece ter tido notável influência sobre a obra de Castanhoso. Sua história o comprova. Em 1519, Vasco da Gama, já célebre como descobridor do caminho marítimo para a Índia, comprou o senhorio da Vidigueira, uma vila nas proximidades de Évora, e naquele mesmo ano, foi nomeado 1º Conde da Vidigueira, título que concederia a seus descendentes. A história da vila já era povoada de aura mística: a Igreja de Nossa Senhora das Relíquias, ali construída, nascera em torno do aparecimento de uma santa ao pé de uma árvore, junto ao antigo convento das carmelitas. A notícia é de que, pelo menos até o séc. XIX, o tronco onde apareceu a santa, em torno do qual se construíra a igreja, ainda era tido como curador de enfermidades (ARAGÃO, 1871ARAGÃO, Augusto Carlos Teixeira. D. Vasco da Gama e a villa da Vidigueira: bosquejo histórico. Lisboa: Typographia Universal de Thomas Quintino Antunes, 1871. 47 p., p. 32). Em 1538, os restos mortais de Vasco da Gama foram trasladados para a igreja, e nos anos posteriores, o espaço recebeu aos poucos os ossos e as relíquias da célebre família da Vidigueira, todos eles guerreiros e exploradores que assumiram cargos políticos e administrativos no oriente.

Ao longo de todo esse processo, é possível que tenha havido certa campanha discreta para a beatificação ou mesmo canonização de D. Cristóvão, tomando por base o seu martírio e os acontecimentos miraculosos na África. E o livro de Castanhoso era o ponto de partida, a julgar pelo testemunho pessoal do autor. Albuquerque (1991ALBUQUERQUE, Luís de (dir.). Dicionário de história dos descobrimentos portugueses. Lisboa: Círculo de Leitores, 1991. 2 v., p. 447) informa erroneamente que D. Cristóvão foi “canonizado e considerado mártir pela Cúria Romana”. Não foi. Seu processo não andou, mesmo depois das tentativas de recuperar seus restos mortais no interior da Etiópia. D. Francisco da Gama, 4º Conde da Vidigueira, à época em que era vice-rei da Índia, solicitou ao patriarca da Etiópia, D. Afonso Mendes, e aos padres jesuítas em missão naquele país, que procurassem pelas relíquias do capitão-mor da expedição de 1541, contando com o auxílio do imperador Seltan Sagad (CASTANHOSO, 1898CASTANHOSO, Miguel de. Dos Feitos de D. Christovam da Gama em Ethiopia. Lisboa: Imprensa Nacional, 1898. 152 p., p. 33). Corria o ano de 1626. Por intermédio de testemunhos orais e depois de pesquisas intermináveis, foi possível localizar o corpo, sepultado junto a uma árvore, e a cabeça, lançada numa fonte, com um “cachorro morto, a fim de torná-la mais vil aos olhos dos muçulmanos” (CASTANHOSO, 1898, p. 33). As relíquias foram levadas à Índia e depois a Portugal, “as quaes eram ainda em 1660 conservadas em grande veneração pelo 5.º Conde da Vidigueira e 1.º Marquez de Nisa, D. Vasco Luiz da Gama” (CASTANHOSO, 1898CASTANHOSO, Miguel de. Dos Feitos de D. Christovam da Gama em Ethiopia. Lisboa: Imprensa Nacional, 1898. 152 p., p. 37). Como se vê, não faltaram esforços para o culto do jovem capitão-mor martirizado nas terras do Preste João.

Parece mesmo que os esforços de D. Francisco da Gama vinham se arrastando por mais de uma década, o que remonta aos tempos em que ocupava a presidência do Conselho da Índia, quando, em 1609, pode ter cogitado na canonização de D. Cristóvão. Difícil dizer se isso esteve em seus projetos. De toda forma, por essa época, levou a Mesa da Câmara de Goa a autorizar a edificação de nova estátua de Vasco da Gama, seu bisavô. Mas tudo leva a crer que, em tempos de dominação filipina, seus projetos minguaram. António Coimbra Martins diz que Diogo do Couto, amigo pessoal de D. Francisco e devoto político dos Gama, chegou mesmo a escrever o discurso de inauguração da estátua, nunca lido nem publicado, em que o cronista, para além do elogio de Vasco, apresentava louvores em favor do martírio glorioso de D. Cristóvão, garantindo que “é certo que, cortando-lhe o rei tirano a cabeça, na parte em que caiu, se abriu logo uma fonte de água cristalina, que dizem dava saúde a muitas enfermidades” (MARTINS, 1985MARTINS, António Coimbra. Em torno de Diogo do Couto. Coimbra: Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, 1985. 143 p., p. 79).

Mas Diogo do Couto, pelo menos nas crônicas, nunca havia dado crédito aos eventos sobrenaturais na África, o que sugere certa necessidade de adequação de suas convicções ao fazer as loas da família no discurso. Na Década V da Ásia, o cronista, mesmo confessando ter em mãos o relato de Castanhoso e tomá-lo por verdadeiro, sequer alude aos feitos milagrosos de D. Cristóvão ou às circunstâncias míticas de sua morte. Ao contrário, chama-lhe “mancebo orgulloso e bom cavaleiro, mas de pouca experienssia nas cousas da gr.a” (COUTO, 1936COUTO, Diogo do. Década Quinta da “Ásia”. Coimbra: Biblioteca da Universidade, 1936. 768 p., p. 545), especialmente por não ter dado ouvidos às instruções da rainha Sabele Engel. No entanto, reconhece-lhe a bravura e a grandeza de caráter na hora do martírio, que ele sofreu “cõ muito grande animo e passiencia e cõ o corassão posto em Deos” (COUTO 1936COUTO, Diogo do. Década Quinta da “Ásia”. Coimbra: Biblioteca da Universidade, 1936. 768 p., p. 551). Já no Tratado dos feitos de Vasco da Gama e de seus filhos, concluído pouco antes, em 1599, e não publicado em vida do autor, texto encomendado pelos Vidigueira, preferiu poetizar a narrativa do martírio do jovem capitão, afiançando que “sua alma foisse aprezentar na gloria, banhada no fresco sangue de seu gloriozo martiriomartírio, pello qual entrou fermoza e triunfante, onde recebeu a coroa que está guardada, para todos os que morrerem por sua fé, e por seu serviço” (COUTO, 1998COUTO, Diogo do. Década Quinta da “Ásia”. Coimbra: Biblioteca da Universidade, 1936. 768 p., p. 173).

A influência de Castanhoso encontrou alguma ressonância nas crônicas portuguesas, para além dos textos de Couto. Gaspar Correa, que esteve às voltas com as suas Lendas da Índia pelo menos até 1563 (CORREIA, 1975CORREIA, Gaspar. Lendas da Índia. Porto: Lello & irmão, 1975. vol. 4.), segue em quase tudo as pegadas de Castanhoso, mencionando-lhe o nome, inclusive, como fonte de consulta (CORREIA, 1975CORREIA, Gaspar. Lendas da Índia. Porto: Lello & irmão, 1975. vol. 4., p. 345): registra a bruxa moura, a fonte curadora em que caíra a cabeça de D. Cristóvão, a árvore dos frades, e fecha a narrativa em tom profético: “E os abexis assy tinhão esta profecia, que foy comprida com o sangue dos portugueses, que forão a tão longes terras por seruir a Deos, e seu Rey” (CORREIA, 1975CORREIA, Gaspar. Lendas da Índia. Porto: Lello & irmão, 1975. vol. 4., p. 398). Correia, que assimilou a tonalidade mítica do livro de Castanhoso, viu-se também disposto a compor de D. Cristóvão um perfil nobre, quase trágico, de grande general virtuoso2 2 Sobre o engrandecimento da figura do general sábio e virtuoso nas crônicas portuguesas do séc. XVI, veja Henriques (2014). : o capitão-mor faz justiça violenta a um de seus soldados que desertou, decepando-lhe as mãos; e é visto mais tarde inconsolável, em lamentações profundas, pouco antes de cair em mãos de inimigos, como um Cristo que será entregue e martirizado: “Todos lhe dizião palauras de consolação, mas elle nom cessaua de fazer suas lamentações” (CORREIA, 1975CORREIA, Gaspar. Lendas da Índia. Porto: Lello & irmão, 1975. vol. 4.).

Se Gaspar Correia concluiu suas Lendas da Índia até 1563, ou pouco mais, e já legitima em seu relato os fatos miraculosos de D. Cristóvão, é provável que tenha conhecido uma cópia manuscrita de Castanhoso, pois não poderá ter consultado a edição impressa, que só veio a lume em 1564. Whiteway (1902WHITEWAY, R. S. The Portuguese expedition to Abyssinia in 1541-1543 as narrated by Castanhoso […]. London: Hackluyt Society, 1902. 464 p, p. XLV), que verteu o livro de Castanhoso para o inglês, confirma que este teria dado a Correia uma cópia de seu tratado em 1544, no caminho da Índia para Portugal. Nesse sentido, a hipótese de que o editor da História das Cousas, João de Barreira, “terá adicionado alguma erudição ao texto, modificando-o na descrição do martírio de D. Cristóvão” (HENRIQUES, 2017HENRIQUES, Luís Miguel Ferreira. Uma expedição ao ethos do Preste João. In: SOARES, Nair de Nazaré Castro; TEIXEIRA, Cláudia (ed.). Legado clássico no renascimento e sua receção: contributos para a renovação do espaço cultural europeu. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2017. p. 171-200., p. 174), não pode ser inteiramente válida, pois Correia, tendo se servido de uma cópia manuscrita de Castanhoso, não teria conhecido as supostas intervenções do editor. Ademais, o martírio de D. Cristóvão, ainda que narrado brevemente num livro que por si já é resumido, não é um elemento a mais na composição do imaginário de Castanhoso, mas o coroamento de uma totalidade, pois que seu relato, se nasceu como tratado histórico da guerra na Etiópia, acabou por assumir feição mais ampla, toda ela envolvida por uma atmosfera mítica e profética que caracteriza o livro.

Como se sabe, João de Barreira, o editor da História das Cousas, acrescentou à base inicial do livro uma dedicatória a D. Francisco de Portugal, filho do Conde da Vidigueira, em que expressou seu “grande afecto e devoção [...] à ilustre casa dos Gama” (CASTANHOSO, 1988CASTANHOSO, Miguel de. História das cousas que o mui esforçado capitão Dom Cristóvão da Gama fez nos reinos do Preste João com quatrocentos portugueses que consigo levou. Lisboa: Publicações Europa-América , 1988. 126 p., p. 14) e expôs sua visão pessoal sobre o martírio de D. Cristóvão, legitimando seu heroísmo e garantindo que o “mancebo de pouca idade” “morreu finalmente, sendo mártir, não se contentando haver a coroa da glória cá na terra, senão ainda a do martírio no céu” (CASTANHOSO, 1988CASTANHOSO, Miguel de. História das cousas que o mui esforçado capitão Dom Cristóvão da Gama fez nos reinos do Preste João com quatrocentos portugueses que consigo levou. Lisboa: Publicações Europa-América , 1988. 126 p., p. 14). A dedicatória revela não apenas certa intimidade com a casa da Vidigueira, mas também a confirmação do olhar profético de Castanhoso, o que deve sugerir que Barreira não apenas editou o livro, mas também se envolveu pessoalmente com sua temática e com a defesa de sua autenticidade.

Barreira, um dos mais insignes editores portugueses de seu século, com cerca de cem edições sob a sua rubrica, esteve de fato às voltas com matéria religiosa. Para além dos trabalhos como impressor régio e impressor da Universidade de Coimbra, recebeu em 1567 um alvará concedendo-lhe a exclusividade por oito anos na impressão dos livros da Companhia de Jesus em Portugal, embora ele já viesse trabalhando para a Companhia por décadas (SOUSA VITERBO, 1924SOUSA VITERBO, Francisco Marques de. O movimento tipográfico em Portugal no século XVI. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1924., p. 156).

Se João de Barreira esteve por toda uma vida dedicado à disseminação de ideais jesuíticos, a ponto de receber alvará régio para um compromisso de exclusividade editorial com a Companhia, ele teve motivos para se envolver pessoalmente com o projeto de edição do livro de Castanhoso. Afinal, mais que um relato de guerra, era um livro sobre profecias, martírios e milagres nas míticas terras do Preste João. E isso poderia interessar aos próprios jesuítas, que até o fim do século vão promover um culto dos mártires que foi além da veneração aos santos tradicionais. Mesmo nos primórdios da fundação da Companhia, Inácio de Loyola já exortava seus membros ao exercício da humildade e do martírio em terras estrangeiras (CYMBALISTA, 2015CYMBALISTA, Renato. A Companhia de Jesus nos séculos XVI-XVIII: uma comunidade global de mártires. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA: lugares dos historiadores, velhos e novos desafios, 28., 2015, Florianópolis. Anais [...]. Florianópolis: ANPUH, 2015. .). “Em algumas cidades, foram instituídas pelos jesuítas verdadeiras ‘fábricas’ de mártires, como o colégio inglês de Roma, fundado em 1576 com o propósito de formar missionários para a Inglaterra, cujo destino provável era o martírio.” (CYMBALISTA, 2010CYMBALISTA, Renato. Os mártires e a cristianização do território na América portuguesa, séculos XVI e XVII. Anais do Museu Paulista, vol. 28, n. 1, p. 43-82, ago. 2010., p. 54).

Embora não seja um livro sobre martírio, a História das cousas de Castanhoso propõe elementos importantes sobre esse conceito. Como já vimos, a edição saiu em 1564, apenas um ano depois da conclusão do longo e exaustivo Concílio de Trento, que debateu vivamente a questão dos santos e mártires. Como resposta à ameaça protestante, a Igreja precisou, na segunda metade do séc. XVI, redefinir e reformar profundamente os conceitos de santidade e de martírio, à luz das novas perspectivas estabelecidas pelo pensamento pós-tridentino.

Alejandro Cañeque (2020CAÑEQUE, Alejandro. Un imperio de Mártires: religión y poder en las fronteras de la Monarquía. Madri: Marcial Pons Ediciones de Historia, 2020. 480 p.) fala de uma cultura martirial que teria tomado conta da Europa por volta de 1580, com fervor especial em terras hispânicas pelo menos até meados do séc. XVIII. Tendo perdido a razão do martírio desde o fim das perseguições aos primeiros cristãos, a Europa, portanto, revitalizou a grandeza de seus mártires e santos especialmente em função do avanço protestante e das batalhas contra hereges e mouros nos princípios da modernidade. E nesse cenário, as crônicas martiriais serviram para consolidar preconceitos religiosos da época, como a brutalidade e a crueldade de pagãos, hereges, apóstatas e bárbaros (CAÑEQUE, 2020CAÑEQUE, Alejandro. Un imperio de Mártires: religión y poder en las fronteras de la Monarquía. Madri: Marcial Pons Ediciones de Historia, 2020. 480 p.). Desde a segunda metade do séc. XVI, a Espanha criou uma forte conexão entre império, evangelização e martírio, seja porque ansiou por projetar a política da sua monarquia em Roma, seja porque as próprias ordens religiosas dependiam da coroa.

A Igreja foi lentamente tentando manter controle sobre o culto dos santos e das relíquias em torno de sua autoridade. Já por volta de 1200, o processo de canonização era de exclusividade da Igreja, e a mentalidade tridentina deverá consolidar essa determinação (MARINO, 2018MARINO, Gabriele. Approaching the Martyrologium Romanum: a semiotic perspective. Lexia: Rivista di semiotica, Torino, vol. 31-32, p. 175-215, 2018., p. 183). Naquele distante séc. XIII, o monge dominicano, Jacopo da Varazze, reuniu, a partir de fontes eruditas, bem como de textos apócrifos e de relatos populares, uma coletânea de biografias de pelo menos 154 santos, 91 dos quais tinham sido martirizados das mais diversas formas (VARAZZE, 2003VARAZZE, Jacopo da. Legenda Áurea. Tradução e introdução de Hilário Franco Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. 1080 p.). Sua Legenda áurea, traduzida para diversas línguas, teve, entre 1470 e 1500, mais edições do que a própria Bíblia. Em Portugal, recebeu o nome de Flos sanctorum, editado em 1513. Deve ter sido essa edição que o padre Francisco Álvares mostrou a Lebna Dengel, imperador da Etiópia, na missão diplomática de 1520, quando este lhe perguntou por que Portugal tinha mais santos do que a Etiópia, que àquela época vergonhosamente não tinha nenhum (ÁLVARES, 1989ÁLVARES, Francisco. Verdadeira informação das terras do Preste João das Índias. Lisboa: Publicações Europa-América, 1989. 311 p., p. 164).

Varazze foi um dos responsáveis por consolidar no imaginário medieval da Europa um modelo de narrativa hagiográfica, com forte impacto na iconografia: seus santos são brutalmente martirizados, queimados, decapitados, mas permanecem serenos e impassíveis, imbuídos de poderes taumatúrgicos, em cenas com amplos elementos sobrenaturais. Em geral, são vitimados por torturadores romanos e atormentados por demônios, seres fabulosos, sátiros, centauros e outras figuras do acervo pagão. Miguel de Castanhoso não deixa de seguir essa representação, quando exibe triunfalmente D. Cristóvão, o típico soldado cristão que, apesar de guerreiro, sofre “com muita paciência” o seu martírio, fazendo nascer uma fonte curadora (CASTANHOSO, 1988CASTANHOSO, Miguel de. História das cousas que o mui esforçado capitão Dom Cristóvão da Gama fez nos reinos do Preste João com quatrocentos portugueses que consigo levou. Lisboa: Publicações Europa-América , 1988. 126 p., p. 89), ao que Gaspar Correia acrescenta: “com os olhos no céu” (CORREIA, 1975CORREIA, Gaspar. Lendas da Índia. Porto: Lello & irmão, 1975. vol. 4., p. 379). É a imitação dos chamados santos militares, ou santos guerreiros, célebres mártires que sofreram as perseguições posteriores ao governo de Diocleciano nos sécs. III-IV, como São Jorge, São Sebastião, Santo Eustáquio, dentre inúmeros outros. Castanhoso terá substituído a figura dos demônios pagãos pela imagem mais concreta do torturador muçulmano, que parece se divertir cruelmente com o torturado. Afinal, D. Cristóvão, conforme o relato, foi levado humilhantemente para que “visitasse todas tendas dos seus capitães [dos mouros], para seu refrigério” (CASTANHOSO 1988CASTANHOSO, Miguel de. História das cousas que o mui esforçado capitão Dom Cristóvão da Gama fez nos reinos do Preste João com quatrocentos portugueses que consigo levou. Lisboa: Publicações Europa-América , 1988. 126 p., p. 89).

À época em que Castanhoso escrevia e publicava seu relato, portanto, a Igreja reconstruía as bases dos seus conceitos de santidade e de martírio. O Concílio de Trento proibiu terminantemente o culto a santos não canonizados pela Igreja, o que vinha sendo determinado, mas nunca cumprido, desde o fim da Idade Média. Em 1580, o papa Gregório XIII pediu ao cardeal Guglielmo Sirleto que preparasse uma coletânea de novas biografias de santos e mártires, já sob os auspícios e determinações do Concílio, um livro que pudesse substituir a popularíssima Legenda áurea de Varazze, sempre tida como documento não oficial. Mas é Cesare Baronio quem prepara o famoso Martirológio romano, cuja primeira versão latina saiu em 1583, com primeira versão italiana já em 1586. A versão de Baronio foi mantida pelo menos até 2001, quando a Igreja promoveu uma reescrita radical do texto, embora mantendo o estilo modesto do original, destinando um espaço exclusivamente restrito à descrição das torturas e das agonias sofridas por seus personagens (MARINO, 2018MARINO, Gabriele. Approaching the Martyrologium Romanum: a semiotic perspective. Lexia: Rivista di semiotica, Torino, vol. 31-32, p. 175-215, 2018., p. 190). De fato, o Martirológio romano é um calendário de santos e mártires, escrito em prosa seca e sem poesia, se considerarmos que se trata de um documento litúrgico, embora pouco tenha sido usado como liturgia (MARINO, 2018MARINO, Gabriele. Approaching the Martyrologium Romanum: a semiotic perspective. Lexia: Rivista di semiotica, Torino, vol. 31-32, p. 175-215, 2018., p. 177-178). A edição italiana moderna adverte o leitor de que “è lecito venerare con culto pubblico soltanto quei servi di Dio che l’autorità della Chiesa iscrive nel novero dei Santi o dei Beati” (MARTIROLOGIO romano, 2004MARTIROLOGIO romano. Roma: Libreria Editrice Vaticana, 2004. 1140 p., p. 20).

No século seguinte, pouco antes de D. Francisco da Gama, 4º Conde da Vidigueira, mandar buscar as relíquias de D. Cristóvão no meio da Etiópia, o papa Urbano VIII fazia outras reformas substanciais no culto dos santos e mártires, dessa vez ratificando a veneração de santos apenas canonizados pela Igreja, reconhecendo a virtude heroica como grande modelo de martírio (em resposta à doutrina luterana da salvação) e, por fim, determinando a importância das “provas” científicas no reconhecimento dos supostos milagres, contando, para isso, com o apoio da medicina e com a importância das testemunhas oculares (VIDAL, 2007VIDAL, Fernando. Miracles, Science, and Testimony in Post-Tridentine Saint-Making. Science in Context, Cambridge, vol. 20, n. 3, p. 481-508, sept. 2007.). A partir de 1620, a constatação do milagre passou a requerer pelo menos dois peritos para legitimar que uma cura milagrosa, por exemplo, ocorreu ex causa naturalis, o que atribuía à medicina forense certa autoridade para determinar a natureza sobrenatural dos milagres (VIDAL, 2007VIDAL, Fernando. Miracles, Science, and Testimony in Post-Tridentine Saint-Making. Science in Context, Cambridge, vol. 20, n. 3, p. 481-508, sept. 2007.).

As discussões do Concílio de Trento e a indefinição da Igreja sobre determinados temas espinhosos, por certo motivada pelas novas tensões ideológicas provocadas pela reforma protestante, fizeram com que, entre 1523-1588 (período de maior confronto entre protestantes e católicos), não houvesse canonizações formais na Igreja (FERNANDES, 1996FERNANDES, Maria de Lurdes Correia. História, santidade e identidade: o Agiologio Lusitano de Jorge Cardoso e o seu contexto. Via Spiritus, Porto, n. 3, p. 25-68, abr. 1996.). Pouco antes das reformas de Urbano VIII, em março de 1622, Gregório XV, grande aliado dos jesuítas espanhóis, canonizou, de uma única vez, os nomes mais significativos da expansão das novas ordens e congregações na Europa e em terras estrangeiras, como Felipe Néri, Inácio de Loyola, Francisco Xavier, Isidro e Teresa de Ávila, o que, de certa forma, contribuiu para a formulação de novos modelos de santidade, sustentados na evangelização e nas reformas espirituais (FERNANDES, 1996FERNANDES, Maria de Lurdes Correia. História, santidade e identidade: o Agiologio Lusitano de Jorge Cardoso e o seu contexto. Via Spiritus, Porto, n. 3, p. 25-68, abr. 1996.). Afinal, são todos modelos de santidade evangelizadora, fundadora ou reformista. Dos cinco, quatro são espanhóis, o que, de resto, apenas comprova a estreita ligação entre os Felipe da Espanha e a Cúria Romana à época do siglo de oro.

O projeto de Urbano VIII, convém lembrar, fez questão de reconhecer a virtude heroica como grande modelo de martírio, talvez por lembrança dos nomes que se dedicaram à fé em terras estrangeiras, nas lutas contra mouros e protestantes. D. Cristóvão, a considerar esse viés, poderia ter tido o seu tempo e a sua oportunidade. Não é à toa que D. Francisco da Gama mandou recuperar suas relíquias quatro anos depois que a Igreja voltava a reconhecer como santos seus heróis evangelizadores e guerreiros. Mas o processo de D. Cristóvão perdeu o seu tempo, mesmo com o extraordinário empenho português para recuperar a história de seus ilustres heróis depois da dominação filipina. Não é possível conhecer as intenções da casa de Vidigueira em torno do nome de D. Cristóvão, mas o fato é que seu martirológio ficou restrito ao testemunho pouco impactante de Miguel de Castanhoso.

Em 1652, o padre Jorge Cardoso publicava o primeiro tomo de seu Agiologio Lusitano, um compêndio gigantesco de mártires, beatificados, santos canonizados, varões, donzelas e matronas que compunham o acervo da milícia de Cristo em terras portuguesas. O imperador Lebna Dengel (ou Dawit I) parecia estar com a razão, quando perguntou ao padre Francisco Álvares, na expedição de 1520, por que a Etiópia não tinha os seus santos, como a intuir que a canonização podia promover certo prestígio de identidade nacional. Maria de Lourdes Fernandes (1996FERNANDES, Maria de Lurdes Correia. História, santidade e identidade: o Agiologio Lusitano de Jorge Cardoso e o seu contexto. Via Spiritus, Porto, n. 3, p. 25-68, abr. 1996.) nos ensina que, de fato, Jorge Cardoso buscou validar a santidade como forma de consolidar a memória lusitana e promover certa projeção política do reino pós-filipino. Ao longo da história, países, regiões, províncias ou mesmo famílias quiseram dar visibilidade a seus santos e a seus heróis.

O Agiologio Lusitano, projeto que se estendeu até o séc. XVIII, com quatro volumes publicados, num acervo de 2.233 entradas em ordenação diária, e não cronológica nem alfabética, ao estilo do Martirológio romano, favoreceu-se ricamente dos mártires da conquista e da expansão portuguesa. O nome de D. Cristóvão da Gama sequer aparece como biografado, e seu nome é citado apenas transversalmente, num registro sobre João Bermudes, tido ali como “patriarca de Alexandria”, na verdade um farsante, um aventureiro, cirurgião militar e clérigo que esteve na Etiópia, na embaixada de Rodrigo de Lima, e que se autoproclamou patriarca das Índias Orientais quando a embaixada foi embora e ele se viu sozinho com o Preste João (SANCEAU, 1944SANCEAU, Elaine. The land of Prester John: a chronicle of portuguese exploration. New York: Alfred A. Knopf, 1944. 243 p.; ALMEIDA, 1999ALMEIDA, André Ferrand de. Da demanda do Preste João à missão jesuíta da Etiópia: a cristandade da Abissínia e os portugueses nos séculos XVI e XVII. Lusitania Sacra, Lisboa, vol. 2, n. 11, p. 247-294, jan. 1999.). O Agiologio rende homenagem à campanha dos 400 soldados, e D. Cristóvão, o capitão, é ali lembrado como “inclyto martyr de Christo” (CARDOSO, 2002CARDOSO, Jorge. Agiologio lusitano dos santos e varoens illustres em virtude do reino de Portugal e suas conquistas. Porto: Faculdade de Letras do Porto, 2002. vol. 3., p. 358).

Se Miguel de Castanhoso não foi tomado pelo êxtase da chamada cultura martirial de que fala Alejandro Cañeque (2020CAÑEQUE, Alejandro. Un imperio de Mártires: religión y poder en las fronteras de la Monarquía. Madri: Marcial Pons Ediciones de Historia, 2020. 480 p.), que só começaria na Europa no final do séc. XVI, é certo que sua pouca leitura humanística terá se beneficiado das crônicas de martírios medievais. Em Portugal, a edição da Legenda de Varazze (2003VARAZZE, Jacopo da. Legenda Áurea. Tradução e introdução de Hilário Franco Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. 1080 p.), a já mencionada Flos sanctorum (1513), fora feita a partir da versão espanhola de 1478. O editor, no entanto, suprimiu os nomes de alguns santos, orientado por critérios nacionalistas, e, tendo em conta que a identidade nacional portuguesa no início do séc. XVI se exprimia por oposição a Castela, é curioso que os santos a serem eliminados da Flos sanctorum de 1513 fossem precisamente os espanhóis (SOBRAL, 2001-2002SOBRAL, Cristina. O Flos Sanctorum de 1513 e suas adições portuguesas. Lusitânia Sacra, Lisboa, 2ª série, vol. 13-14, p. 531-568, 2001-2002.). Além da Flos, outros dois legendários em português circularam entre leitores: os Autos dos Apóstolos e o Livro dos Mártires de 1513, herdeiros todos eles das crônicas martiriais da Idade Média, como o martirológio de Usuardo de Saint-Germain, a História eclesiástica de Eusébio de Cesareia, ou, por fim, os sermonários, breviários e outras obras medievais em prosa, como o Orto do esposo (SOBRAL, 2007SOBRAL, Cristina. Hagiografia em Portugal: balanço e perspectivas. Medievalista, ano 3, n. 3, p. 1-18, jan. 2007.). Sobre os traços distintos desse corpus literário disponível em Portugal, Cristina Sobral chama a atenção para os seus aspectos a) extratextuais, como “a intencionalidade (promover a imitação, catequizar, edificar) e a funcionalidade do texto hagiográfico (promover ou apoiar o culto)”; e b) textuais, como “o discurso panegírico com enumeração de virtudes, o maravilhoso, a intertextualidade bíblica e litúrgica e a atemporalidade da narrativa” (SOBRAL, 1995SOBRAL, Cristina. O modelo discursivo hagiográfico. In: COLÓQUIO DA SECÇÃO PORTUGUESA DA ASSOCIAÇÃO HISPÂNICA DE LITERATURA MEDIEVAL, 5., 1995, Porto. Anais [...]. Porto: Faculdade de Letras, 1995. p. 97-107., p. 98).

A narrativa sobre os feitos miraculosos de D. Cristóvão da Gama parece levar em conta todo esse conjunto de aspectos. Voltemos a 1544: Miguel de Castanhoso entregava a D. João III, além das cartas do imperador Galawdewos, uma cópia de sua História das cousas, sobre a campanha dos 400 soldados de D. Cristóvão na Etiópia, que o hagiológio de Jorge Cardoso vai lembrar pouco mais de um século depois. Àquela época, a mística em torno do Preste João ainda tinha algum significado no imaginário de Portugal e da Europa. Depois da embaixada de 1520, e especialmente depois da campanha de 1541-1543, o tom profético e a mitologia em torno do nome do Preste perderam muito de seu sentido (RAMOS, 2003RAMOS, Manuel João. The Myth of Prester John and Iberian visions of Ethiopia. In: INTERNATIONAL SEMINAR ON PEDRO PÁEZ IN 17TH CENTURY ETHIOPIA, 2003, Addis Ababa. Anais […]. Addis Ababa, 2003. ). Os feitos de D. Cristóvão na África, embora importantes e significativos para a história das conquistas portuguesas, já não terá a mesma grandeza mítica que teve a seu tempo, quando Castanhoso quis transformar o jovem capitão em mártir - ou santo. No séc. XVII, os jesuítas portugueses, na insistência por converter sem sucesso a Etiópia ao catolicismo, consideraram, por fim, que aquele era um país bárbaro e herege. As relações entre Portugal e Etiópia findaram-se irremediavelmente em 1636, quando se desfez o patriarcado da Etiópia e os jesuítas foram expulsos.

No desfecho de seu livro, Castanhoso ainda acena para o leitor com uma última mensagem miraculosa de despedida, como se quisesse reiterar, uma vez mais, que estamos nas terras do Preste João: falando das célebres igrejas de Lalibela, monumento extraordinário no coração da Etiópia, datado do séc. XII, o soldado-escritor português diz que, certa vez, “el-Rei de Zeila viera a ver estes edifícios, e que dous mouros quiseram entrar a cavalo dentro nas igrejas, e, querendo entrar, lhes arrebentaram os cavalos, o qual milagre os frades tinham escrito e falam muito nele” (CASTANHOSO, 1988CASTANHOSO, Miguel de. História das cousas que o mui esforçado capitão Dom Cristóvão da Gama fez nos reinos do Preste João com quatrocentos portugueses que consigo levou. Lisboa: Publicações Europa-América , 1988. 126 p., p. 114). Nosso escritor parecia particularmente interessado no anedotário do país onde prestou o serviço militar por dois anos. Sim, estamos nas terras do Preste João. Conforme o relato de Castanhoso, os sobreviventes portugueses celebram santamente o Natal de 1543 e, depois, vão para a Índia, de onde partirão de volta ao reino. O autor da narrativa saía ferido, mas feliz de ter prestado honras ao seu rei, lutando contra infiéis e compondo um tratado de guerra que, a par das notícias militares destinadas à sua verdade da história, dava conta igualmente dos primórdios para a mitificação de seu capitão-mor.

O projeto de martirológio de D. Cristóvão, no entanto, sofreu decepção inevitável, a despeito das tentativas futuras de D. Francisco da Gama para trazer suas relíquias e reconsiderar sua história. Por se tratar de testemunha ocular, Miguel de Castanhoso seria útil nessa hora difícil em que Portugal padecia a decadência política e em que Lisboa e Madri moviam rivalidades entre si, com clara vantagem de Madri nos assuntos da Cúria Romana. Com Lisboa sem prestígio, D. Cristóvão da Gama não teve qualquer chance de ver seu nome brilhar no panteão dos novos mártires do século. Afinal, as canonizações de 1622 ignoraram até mesmo José de Anchieta, o apóstolo do Brasil, que, por sua vez, também andava fazendo milagres na América e que, a despeito da origem basca, defendeu entusiasmado a grandeza do reino português, sempre a lembrar-se de sua formação em Coimbra. O padre Pero Rodrigues, provincial da Companhia de Jesus no Brasil, preparara em 1597 uma biografia de Anchieta, com claros propósitos hagiográficos. Sem resultados. As canonizações de 1622 foram taxativas: mostraram o grande prestígio dos Felipe da Espanha junto à Igreja de Roma e a pouca força política dos Gama de Portugal, com seu império arruinado (CAÑEQUE, 2020CAÑEQUE, Alejandro. Un imperio de Mártires: religión y poder en las fronteras de la Monarquía. Madri: Marcial Pons Ediciones de Historia, 2020. 480 p.). O jeito era compor um hagiológio dentro de casa, em que os ilustres da terra tinham luz própria.

Referências

  • ALBUQUERQUE, Luís de (dir.). Dicionário de história dos descobrimentos portugueses Lisboa: Círculo de Leitores, 1991. 2 v.
  • ALMEIDA, André Ferrand de. Da demanda do Preste João à missão jesuíta da Etiópia: a cristandade da Abissínia e os portugueses nos séculos XVI e XVII. Lusitania Sacra, Lisboa, vol. 2, n. 11, p. 247-294, jan. 1999.
  • ÁLVARES, Francisco. Verdadeira informação das terras do Preste João das Índias Lisboa: Publicações Europa-América, 1989. 311 p.
  • ARAGÃO, Augusto Carlos Teixeira. D. Vasco da Gama e a villa da Vidigueira: bosquejo histórico. Lisboa: Typographia Universal de Thomas Quintino Antunes, 1871. 47 p.
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  • 1
    O livro de Elaine Sanceau (1944SANCEAU, Elaine. The land of Prester John: a chronicle of portuguese exploration. New York: Alfred A. Knopf, 1944. 243 p.) propõe uma análise histórica sobre as relações entre Portugal e Etiópia, tendo como ponto de referência a busca pelo Preste João.
  • 2
    Sobre o engrandecimento da figura do general sábio e virtuoso nas crônicas portuguesas do séc. XVI, veja Henriques (2014HENRIQUES, Luís Miguel Ferreira. O capitão-soldado na historiografia portuguesa de Quinhentos. Talia dixit, Extremadura, v. 9, p. 47-71, out. 2014.).
  • Parecer Final dos Editores

    Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    19 Set 2021
  • Aceito
    30 Abr 2022
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