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Corpo e imagem no contexto da Segunda Guerra: uma leitura de “Helga”, de Lygia Fagundes Telles

Body and image in the context of World War II: a reading of “Helga” by Lygia Fagundes Telles

Resumo

O historiador e crítico de arte francês Georges Didi-Huberman tem um vasto e profundo percurso teórico dedicado a examinar o papel das imagens na legibilidade da história. Em vários de seus ensaios dedicou-se a pensar os problemas em torno da representação da Shoah e os modos com que as imagens relativas a esse evento-limite adensam os sentidos daquilo que se mostra. Nosso objetivo é propor uma leitura do conto “Helga”, de Lygia Fagundes Telles, à luz do conceito de imagem depreendida por Didi-Huberman em textos dedicados à experiência da Shoah. Nosso foco recai, sobretudo, na centralidade do corpo no conto de Lygia Fagundes como uma imagem-sintoma, a qual confere peso de significado à narrativa pelo que falta, por aquilo que foi mutilado.

Palavras-chave:
corpo; imagem; Shoah; Georges Didi-Huberman; Lygia Fagundes Telles

Abstract

The French historian and art critic Georges Didi-Huberman has a vast and profound theoretical trajectory devoted to examining the role of images in the legibility of history. In several of his essays, he sets about to reflect on the problems surrounding the representation of the Shoah and the ways in which the images related to this limit event deepen the senses of what is depicted. We aim to propose a reading of the short story "Helga", by Lygia Fagundes Telles, in the light of the concept of image conceived by Didi-Huberman in texts devoted to the experience of the Shoah. Our focus is, above all, on the centrality of the body in Lygia Fagundes' short story as a symptom image, which gives the weight of meaning to the narrative for what is missing, for what has been mutilated.

Keywords:
body; image; Shoah; Georges Didi-Huberman; Lygia Fagundes Telles

Resumen

El historiador y crítico de arte francés Georges Didi-Huberman tiene un vasto y profundo camino teórico dedicado a examinar el papel de las imágenes en la legibilidad de la historia. En varios de sus ensayos se dedicó a pensar en los problemas que rodean la representación de la Shoah y las formas en que las imágenes relacionadas con este evento límite profundizan los sentidos de lo que se muestra. Nuestro objetivo es proponer una lectura del cuento "Helga" de Lygia Fagundes Telles, a la luz del concepto de imagen desarrollado por Didi-Huberman en textos dedicados a la experiencia de la Shoah. Nuestro enfoque está, sobre todo, en la centralidad del cuerpo en el cuento de Lygia Fagundes como imagen sintomática, que da peso de significado a la narrativa de lo que falta, de lo que ha sido mutilado.

Palabras clave:
cuerpo; imagen; Shoah; Georges Didi-Huberman; Lygia Fagundes Telles

O historiador e crítico de arte francês Georges Didi-Huberman tem um vasto e profundo percurso teórico dedicado a examinar o papel das imagens na legibilidade da história. Em vários de seus ensaios dedicou-se a pensar os problemas em torno da representação da Shoah e os modos como as imagens relativas a esse evento-limite adensam os sentidos daquilo que se mostra e se esconde. O objetivo é passar por alguns destes textos, tais como Remontagens do tempo sofrido: o olho da história II (2018) e Imagens apesar de tudo (2020) - textos nos quais as imagens em torno do contexto da Segunda Guerra Mundial são o foco principal - e A semelhança informe (2015), obra em que o autor dá uma atenção especial ao corpo, a fim de investigar os modos como Didi-Huberman constrói um repertório teórico, crítico e analítico para propor uma concepção de imagem ligada à ideia de sintoma.

Partindo das ideias de Didi-Huberman propomos uma análise do conto “Helga”, de Lygia Fagundes Telles, publicado em Antes do baile verde. Esse conto situa uma narrativa no contexto imediatamente após a Segunda Guerra Mundial, ainda no período de reconstrução dos países mais atingidos, sobretudo a Alemanha, no caso específico desta narrativa. Trata-se da participação de um jovem brasileiro, descendente de família alemã radicada no Brasil desde o final do século XIX, na Segunda Guerra, e seu envolvimento com Helga, moça alemã severamente atingida pela guerra.

Entendendo que a questão do corpo é central nesse conto de Lygia Fagundes Telles, este artigo discute a suspeita daquilo que falta. No caso específico de Helga a falta de uma das pernas em decorrência dos bombardeios na cidade de Hamburgo, ocasião em que ela perdeu não só uma das pernas, mas também quase a totalidade de sua família, sobrevivendo seu pai e ela somente; e no caso mais amplo dos sentidos possíveis desse conto, interrogar sobre a função formal da proposição de imagens no contexto da Segunda Guerra Mundial como aquilo que Didi-Huberman (2020) chamou de “drama da imagem humana”. (DIDI-HUBERMAN, 2020DIDI-HUBERMAN, Georges. Imagens apesar de tudo. Tradução de Vanessa Brito e João Pedro Cachopo. São Paulo: Editora 34, 2020. 272 p., p. 65).

As imagens como formas do sintomal

Em Remontagens do tempo sofrido: o olho da história II, traduzido e publicado no Brasil em 2018, Didi-Huberman volta seu interesse de estudo para o sexagésimo aniversário da liberação de Auschwitz, e, a partir desse evento, que despertou uma série de manifestações como discursos, peregrinações e minutos de silêncio, o ponto específico de sua atenção voltou-se para uma segunda abertura, a das imagens. A questão levantada pelo crítico passa pelo problema do retorno de certas imagens que foram vistas novamente. Durante algumas semanas circularam em capas de revistas, programas de TV, filmes, documentários e exposições, imagens do horror dos campos. Esse exibicionismo das imagens do horror foi visto por Annette Wieviorka (2005, p. 9 apudDIDI-HUBERMAN, 2018DIDI-HUBERMAN, Georges. Remontagens do tempo sofrido: O olho da história II. Tradução de Márcia Arbex e Vera Casa Nova. Belo Horizonte: UFMG, 2018. 266 p., p. 18) como uma “memória saturada”, uma “fascinação perversa pelo horror, gosto mortífero do passado, instrumentalização política das vítimas”, o que levanta questionamentos sobre a pertinência de ainda voltar-se a trabalhar sobre essa parte da história.

Diante da leitura crítica de Wieviorka, a questão perseguida por Didi-Huberman ao longo do livro é pensar os modos e meios de como “dessaturar a memória”. Quando a memória se vê ameaçada pelo efeito de saturação, como “dessaturá-la” sem apelar ao esquecimento, apagamento total de um arquivo? A proposta sugerida para reinventar uma arte da memória capaz de tornar legível a história passa, segundo Didi-Huberman (2018DIDI-HUBERMAN, Georges. Remontagens do tempo sofrido: O olho da história II. Tradução de Márcia Arbex e Vera Casa Nova. Belo Horizonte: UFMG, 2018. 266 p.), por uma forma de trabalho conjunto a partir da qual “as fontes escritas, os testemunhos dos sobreviventes e a documentação visual” possam convergir e remontar o tempo. (DIDI-HUBERMAN, 2018DIDI-HUBERMAN, Georges. Remontagens do tempo sofrido: O olho da história II. Tradução de Márcia Arbex e Vera Casa Nova. Belo Horizonte: UFMG, 2018. 266 p., p. 18).

É possível sugerir paralelamente ao pensamento teórico de Didi-Huberman um princípio metodológico de compreensão da história baseado no processo de reconstrução das experiências a partir de suas condições de visibilidade. Nesse sentido, o conhecimento histórico só se dá a partir de um “agora”, isto é, a partir de uma experiência temporal presente de onde emerge, na confluência entre textos, imagens e testemunhos, um sintoma, um mal-estar. Pensar a imagem como sintoma significa estar diante de vestígios incompletos do tempo, de modo que apenas reconhecendo tais abismos lacunares, as zonas de sombras do tempo, se faz possível compreender que as imagens da história vivem ao ritmo de repressões e retornos, apagamentos e sobrevivências, “[...] o que no presente nos volta de muito longe, nos toca no mais íntimo e, como um trabalho insistente de retorno, mas imprevisível, vem trazer o sinal ou seu sintoma” (DIDI-HUBERMAN, 2013DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da imagem. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2013. 360 p., p. 113).

Seguindo essa concepção sintomática, Georges Didi-Huberman pensa o evento-limite da Shoah. Em Imagens apesar de tudo (2020), um estudo detido de quatro fotografias do campo de concentração de Auschwitz, lançado originalmente em francês, em 2003, haverá um aceno exatamente para o caráter de interrogação que as imagens nas quais “não se vê nada” sugerem.

O percurso de constituição do livro é variado e ganhou corpo ao longo de um processo polêmico de discussões. Hoje, na forma como se apresenta, o livro organiza-se em duas partes: “Imagens apesar de tudo” e “Apesar de toda imagem”. O grande ponto de discussão do livro recai sobre quatro fotografias - as únicas quatro fotografias - capturadas em agosto de 1944, no crematório V do campo de extermínio de Auschwitz-Birkenau, por membros do Sonderkommando. Este grupo, formado por judeus capturados, tinha o trabalho de “manipular a morte de milhares de semelhantes. Ser testemunho de todos os últimos momentos.” (DIDI-HUBERMAN, 2020DIDI-HUBERMAN, Georges. Imagens apesar de tudo. Tradução de Vanessa Brito e João Pedro Cachopo. São Paulo: Editora 34, 2020. 272 p., p. 13).

Quando em 2001, em Paris, por ocasião da exposição “Memoire des camps - Photographies des camps de concentration et d’extermination nazis 1933-1999”, na qual essas mesmas quatro fotografias foram apresentadas, Didi-Huberman escreve a “Parte I” de “Imagens apesar de tudo” como texto crítico para o catálogo da exposição. No catálogo a força de expressão de seu texto concentra esforços no que ele chamou de “quatro pedaços de película arrancadas do inferno”. A exposição, por sua vez, sofreu severas críticas, tendo Claude Lanzmann como uma das principais vozes contrárias. Após as violentas críticas a que fora submetido, Didi-Huberman escreve a “Parte II” de Imagens apesar de tudo como forma de resposta às críticas sofridas. A versão traduzida e publicada no Brasil em 2020 é a reunião desses dois movimentos críticos.

Georges Didi-Huberman (2020DIDI-HUBERMAN, Georges. Imagens apesar de tudo. Tradução de Vanessa Brito e João Pedro Cachopo. São Paulo: Editora 34, 2020. 272 p.) pondera ao longo desse livro o caráter do “possível imaginável” da memória da Shoah. Sua crítica se dirige àqueles que pensam a Shoah pela via de seu caráter indizível, pela leitura do que é impensável e inimaginável nos testemunhos de Auschwitz. Ao afirmar que os arquivos da Shoah são, sem dúvidas, “um território incompleto, resgatado, fragmentário” (DIDI-HUBERMAN, 2020DIDI-HUBERMAN, Georges. Imagens apesar de tudo. Tradução de Vanessa Brito e João Pedro Cachopo. São Paulo: Editora 34, 2020. 272 p., p. 39), o crítico francês sugere que devemos olhar para aquilo que restou. Ao longo da primeira parte do livro ele se dedica a problematizar o próprio conceito de imagem em uma aproximação com a noção de sintoma, tomando como base as quatro fotografias de Auschwitz como memória que sobrevive nos restos. As quatro fotografias são, ao mesmo tempo, testemunho da violência e testemunho da ausência.

As mesmas quatro fotografias capturadas naquele verão de 1944 também apresentam uma força de sobrevivência material. Didi-Huberman acentua uma prática de extermínio duplo nos campos: o dos corpos e o da memória. Citando Filip Müller, Didi-Huberman (2020DIDI-HUBERMAN, Georges. Imagens apesar de tudo. Tradução de Vanessa Brito e João Pedro Cachopo. São Paulo: Editora 34, 2020. 272 p.) informa que mesmo após os membros do Sonderkommando terem exterminado e incinerado os cadáveres, tiveram de queimar, em seguida, sob forte vigilância, todos os documentos sobre os detidos - fichários, processos, mandados de prisão, etc. - isso porque era necessário “juntamente com os utensílios do desaparecimento, fazer desaparecer os arquivos, a memória do desaparecimento”. (DIDI-HUBERMAN, 2020DIDI-HUBERMAN, Georges. Imagens apesar de tudo. Tradução de Vanessa Brito e João Pedro Cachopo. São Paulo: Editora 34, 2020. 272 p., p. 20). O resgate das quatro fotografias, portanto, mais do que atestar um fato histórico, “dá-nos a ver a própria situação, o espaço de possibilidade, a condição de existência destas fotografias” (DIDI-HUBERMAN, 2020DIDI-HUBERMAN, Georges. Imagens apesar de tudo. Tradução de Vanessa Brito e João Pedro Cachopo. São Paulo: Editora 34, 2020. 272 p., p. 60).

A condição muito precária das quatro imagens aponta para o fato de que só se pode concebê-las naquilo em que elas não mostram. Ou antes, naquilo que emerge como sintoma dessas imagens. As fotografias têm uma predominância de sombras, uma “massa negra” que envolve toda a imagem, sendo a única condição de existência e de apresentação de tais fotografia. O jogo entre luz e sombra das quatro fotografias não é mero elemento estrutural da foto, mas sim, como afirma Didi-Huberman (2020DIDI-HUBERMAN, Georges. Imagens apesar de tudo. Tradução de Vanessa Brito e João Pedro Cachopo. São Paulo: Editora 34, 2020. 272 p.), o “limiar paradoxal entre um interior (a câmara de morte que preserva, até então, a vida do fotógrafo) e um exterior (a ignóbil incineração das vítimas que acabaram de ser gaseadas)”. (DIDI-HUBERMAN, 2020DIDI-HUBERMAN, Georges. Imagens apesar de tudo. Tradução de Vanessa Brito e João Pedro Cachopo. São Paulo: Editora 34, 2020. 272 p., p. 61).

Estar diante dessas imagens, portanto, significa estar diante do tempo. Do mesmo modo como Walter Benjamin (2012BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica - primeira versão. In: Magia e técnica, arte e política; ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 2012. p. 179-212.) ponderou não ser possível conhecer o passado exatamente como ele foi, mas sim “apropriar-se de uma recordação como ela relampeja num momento de perigo” (BENJAMIN, 2012BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica - primeira versão. In: Magia e técnica, arte e política; ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 2012. p. 179-212., p. 243), pensar o sintoma das imagens é mergulhar em um espaço outro para o qual somos arrastados por meio da “potência do negativo” que as imagens sugerem. Estar diante da imagem, em síntese, é um exercício de regressão que conduz a uma elaboração simbólica daquilo que havia sido recoberto. Daí o processo de irrupção da imagem que surge como um limiar, o que o Didi-Huberman (2013DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da imagem. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2013. 360 p.) denomina de materia informis, isto é, “[...] a apresentação quando aflora da representação, a opacidade quando aflora da transparência, o visual quando aflora do visível”. (DIDI-HUBERMAN, 2013DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da imagem. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2013. 360 p., p. 189)

Para Didi-Huberman (2020DIDI-HUBERMAN, Georges. Imagens apesar de tudo. Tradução de Vanessa Brito e João Pedro Cachopo. São Paulo: Editora 34, 2020. 272 p.), não se trata de uma representação das cenas de violência ocorridas na Shoah. Mais que isso, por mais insustentável e impossível que pareça, é preciso imaginar. Apesar de tudo, o que essas quatro fotografias exigem de nós é uma “ética da imagem: nem o invisível por excelência, nem o ícone do horror, nem o simples documento. [...] Diria que a imagem aqui é o olho da história: a sua tenaz vocação para tornar visível”. (DIDI-HUBERMAN, 2020DIDI-HUBERMAN, Georges. Imagens apesar de tudo. Tradução de Vanessa Brito e João Pedro Cachopo. São Paulo: Editora 34, 2020. 272 p., p. 63 grifo no original).

O que está em jogo no modo como as quatro fotografias são lidas, isto é, naquilo que se pode depreender da Shoah como imagem, é entender o sintoma como lugar acidental. O movimento crítico de Didi-Huberman se dá pelo esforço de superar uma leitura da ideia de sintoma ligada ao imperativo clínico e propor um entendimento crítico desse conceito como forma de alargamento de seu alcance. O sintoma, na abertura aqui proposta, é pensado na esfera da reflexão estética justamente na passagem de um fenômeno insólito ligado à existência de uma doença para uma compreensão dialética que o situa como uma forma de contato entre a semelhança e dessemelhança no humano, ou o que sobrevive como impossibilidade de síntese.

Nessa chave de leitura, os corpos ganham relevância por assumirem para si o locus privilegiado para a manifestação do sintoma. Desde já é preciso entender que os corpos foram delineados, forjados e significados historicamente, dando abertura para se pensar na manifestação de sintomas na civilização. Isso significa dizer que os corpos têm historicidade, e que as relações sociais, políticas e culturais que recaem sobre as corporeidades se modificam dependendo do tempo e do espaço em que um sujeito se encontra.

Em suas “Notas e Esboços”, publicadas em Dialética do esclarecimento, Adorno e Horkheimer escreveram o texto “Interesses pelo corpo”. A tese levantada pelos autores sugere que “sob a história conhecida da Europa corre, subterrânea, uma outra história”. (ADORNO; HORKHEIMER; 1985ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Tradução de Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. 224 p., p. 190). O complemento dessa tese se dará exatamente na proposição segundo a qual os corpos podem dar acesso à história subterrânea, isto é, histórias que não estão contadas ou que estão parcialmente acessadas. Nas palavras dos autores, há uma “espécie de mutilação [que] afeta sobretudo a relação com o corpo”. (ADORNO; HORKHEIMER; 1985ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Tradução de Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. 224 p., p. 190). Ora, numa aproximação entre as teses de Adorno e Horkheimer e as teses de Georges Didi-Huberman seria possível aventar a hipótese segundo a qual os sintomas que latejam nos corpos produzem formas de dar visibilidade às histórias silenciadas. No conto de Lygia Fagundes Telles, temas como a mutilação do corpo, a falta, a culpa e a reificação da vida são trazidos à tona como índices de construção de imagens que dão a ver o drama dos horrores da Segunda Guerra.

A imagem do corpo em Helga

O conto “Helga”, de Lygia Fagundes Telles, fora publicado, ao lado dos contos “Verde Lagarto Amarelo” e “Apenas um Saxofone”, na antologia Os 18 melhores contos do Brasil, em 1968, sob o título “trilogia da confissão”, antes de ser inserido em Antes do baile verde, ainda em sua primeira edição, em 1970. O enfoque sob o qual esse conto surge, o da confissão, norteou a recepção crítica a que foi submetido, tendo sido lido por seu caráter testemunhal e ligado aos temas que ficaram conhecidos como as linhas de força da literatura de Lygia Fagundes, a saber, a memória e o esquecimento.

“Helga” tem como narrador Paulo Silva Filho, ou Paul Karsten, brasileiro e filho de uma família alemã radicada no Brasil, mais precisamente em Blumenau, no Vale do Itajaí. Narrado em primeira pessoa, Paulo Silva recupera suas experiências enquanto esteve na Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial. Acostumado a passar férias na Alemanha para cursos de aperfeiçoamento, amores e amizades, eis que coincide com o estouro da guerra e acaba permanecendo no país e combatendo pelo exército alemão. A narrativa, portanto, situa-se temporalmente distante dos acontecimentos, e se dá pela retomada que Paulo Silva faz de suas memórias, em especial o encontro com Helga e o farmacêutico Wolf, pai de Helga, em Dusseldorf.

A própria Lygia Fagundes Telles, no texto “Bolas de sabão”, de Conspiração de nuvens (2007TELLES, Lygia Fagundes. Conspiração de nuvens. Rio de Janeiro: Rocco, 2007. 134 p.), obra em que mistura comentários, ficção e testemunho sobre o ato de escrita, faz um relato sobre o personagem Paul Karsten, narrador do conto “Helga”:

O jovem Paulo Silva, assumindo o nome Paul Karsten, mal entrou na guerra que já estava no fim e sem poder voltar para o Brasil, foi ficando por lá fazendo pequenos negócios até descobrir o negócio maior, o casamento com a suave Helga e o furto da perna mecânica. Prossegue a invenção. Paulo Silva acabou voltando anistiado, rico e virtuoso, mas tão atormentado que procurou os maiores psiquiatras para explicar o inexplicável, na noite de núpcias esconder a perna mecânica da noiva e fugir?! É bom insistir, virtuoso e procurando até a morte por uma resposta, ah! que difícil apagar a lembrança daquela noite em que a doce Helga acordou do seu sonho de amor e viu o leito vazio e vazia a cadeira onde deixara a perna, direita ou esquerda. Da minha parte é o que posso esclarecer porque é complicado lidar com a memória enleada na invenção, ficou um conto cruel? (TELLES, 2007TELLES, Lygia Fagundes. Conspiração de nuvens. Rio de Janeiro: Rocco, 2007. 134 p., p. 21).

Um dos primeiros pontos de interesse de significado do conto é a ambiguidade com que Paulo Silva se identifica. Essa ambiguidade marca os movimentos que dão a ver a construção de um estado duplo, tanto da identidade do narrador, quanto de suas ações no tempo e no espaço. O próprio narrador diz: “é bom dizer logo quem eu sou: Paulo Silva, brasileiro. Mas fui alemão” (TELLES, 2009TELLES, Lygia Fagundes. Antes do Baile Verde. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 208 p., p. 41). Logo no início a narrativa abre essa brecha de duplicidades, de modo a situar a história entre dois tempos - o tempo da guerra e o tempo do presente -, entre dois espaços - a Alemanha e o Brasil -, e por fim entre duas identidades - Paulo Silva Filho e Paul Karsten. Essa rede de duplicidade é significativa para dar forma ao ritmo do conto, construído de forma fragmentária, lacunar e marcado pela projeção de imagens que induzem o leitor a repressões e retornos, apagamentos e sobrevivências, lembranças e esquecimento.

É importante observar que esse ritmo duplicado também induz a dois entendimentos da história, ambos ligados ao modo como a história é narrada. De um lado há uma tentativa de dar a ver aquilo que Paul Karsten fez enquanto esteve na Alemanha, e de outro aquilo que Paulo Silva se furta em narrar e tenta esquecer. É nesse ponto de duplicidade do conto que se encontra o estado sintomal das imagens, tendo o corpo centralidade para o entendimento da história, sobretudo porque dá a ver a suspeita exatamente naquilo que falta.

A primeira suspeita já está localizada no primeiro parágrafo do conto:

Era uma, una, única, apesar de ter uma só perna, aliás bela como ela toda. Mas é cedo para falar não sobre sua beleza - que deve ser lembrada sem enfado quantas vezes forem necessárias - mas cedo para falar sobre a perna que vai exigir explicação. A perna envolve viagem, guerra, a perna vai tão além… Sem esclarecimento tudo será apenas crueldade. (TELLES, 2009TELLES, Lygia Fagundes. Antes do Baile Verde. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 208 p., p. 41).

A frase dita pelo narrador “mas é cedo para falar sobre a perna que vai exigir explicação” (TELLES, 2009TELLES, Lygia Fagundes. Antes do Baile Verde. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 208 p., p. 41) coloca a narrativa em estado de suspeição, o que pode ser confirmado pela frase que encerra o parágrafo, uma vez que o narrador tentará se furtar da crueldade que cometeu. Paulo Silva parece atribuir ao passado um entendimento de que o ocorrido foi fruto de uma intervenção do destino, ou mesmo uma atitude tomada sob as forças das circunstâncias daquele momento, ao mesmo tempo em que também atribui todas as atitudes a Paul Karsten, ele próprio no passado.

A intenção sugerida pelo narrador, portanto, é atribuir o ato de maldade a Paul Karsten, reservando para essa identidade o que ele fez de mais reprovável, e cujo acontecimento tem a ver com a perna de Helga, exposta logo no início da narrativa. Desse modo, a duplicidade é constitutiva de uma imagem de retorno, sobretudo pela tentativa do narrador de se mostrar agora como um outro homem, hoje virtuoso, mas que no passado fora uma má pessoa. Ao retomar a história, inevitavelmente, o narrador traz à tona lembranças indesejadas e a sensação daquilo que ele ainda é, ou mesmo a sobrevivência daquilo que ele nunca deixou de ser.

Há, na condução da narrativa, uma tentativa de escamotear a sua personalidade, mas o fluxo das lembranças aclara os pormenores da narrativa, os quais revelam as marcas de seu passado, desde quando optou pela ascendência germânica em detrimento de seu sobrenome brasileiro - “Filho de alemã de Santa Catarina e desse Silva brasileiro que não cheguei a conhecer. Mãe alemã nascida no Vale do Itajaí, neta de proprietários em Vila Corinto desde 1890, pude ver isso nos papéis. Mas alemã malvista porque se casou com o Silva, Paulo também, o que me faria Paulo Silva Filho” (TELLES, 2009TELLES, Lygia Fagundes. Antes do Baile Verde. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 208 p., p. 41) - até a sua predileção aos valores nazistas desenvolvidos na Alemanha, onde exerceu um “hitlerismo jovem, leal, risonho e franco”, além de expor o “ódio abstrato e longínquo, aos judeus, aos comunistas e a outras coisas mais que já esqueci” (TELLES, 2009TELLES, Lygia Fagundes. Antes do Baile Verde. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 208 p., p. 42).

Esses traços da personalidade do narrador contradizem a tentativa de conformar um vitimismo. Paulo Silva é o mesmo Paul Karsten e o que cometeu foi uma escolha planejada. Ao contar que após a guerra descobriu que a sua situação jurídica “era nada mais, nada menos, do que a de um traidor, quer dizer, uns 15 anos de cadeia, por aí. Era só voltar e a condenação viria na certa” (TELLES, 2009TELLES, Lygia Fagundes. Antes do Baile Verde. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 208 p., p. 44), Paul decide permanecer na Alemanha e sobrevive do que ele denominou de “pequeno comércio de troféus”. Vendia “capacetes e punhal com a cruz suástica”, além de “cigarros, chocolate, leite em pó e outras latarias” (TELLES, 2009TELLES, Lygia Fagundes. Antes do Baile Verde. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 208 p., p. 44). Esse período de permanência é narrado por Paul de forma bastante lacunar, como uma improvisação. Sua vida se situa entre o momento em que ainda não tinha conhecido Helga - “Helga ainda não aparecera na minha vida e o hitlerismo e a guerra ainda não tinham me marcado para sempre. Ainda não” (TELLES, 2009TELLES, Lygia Fagundes. Antes do Baile Verde. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 208 p., p. 43) - e o momento em que a conheceu, sem, no entanto, saber com precisão como e quando foi: “Naquela improvisação de vida ao deus-dará, o tempo perdeu a medida e hoje não sou mesmo capaz de lembrar quando exatamente conheci Helga” (TELLES, 2009TELLES, Lygia Fagundes. Antes do Baile Verde. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 208 p., p. 44).

Uma das hipóteses de leitura crítica para essa postura de Paulo Silva está na chave do “narrador infiel”, como propôs Alfredo Leme Coelho de Carvalho (2005CARVALHO, Alfredo Leme Coelho de. O narrador infiel, e outros estudos de teoria e crítica literária. São José do Rio Preto: Rio-Pretense, 2005. 232 p.). Para Carvalho, há uma linha narrativa, advinda sobretudo da tradição de Dom Casmurro, que relegou à literatura brasileira uma série de narradores infiéis. No caso de Paulo Silva Filho, se trata de um narrador que manipula a história, dando aos fatos uma versão pessoal a fim de minimizar suas atitudes. Todavia, o grande risco que o narrador corre é o autoengano, uma vez que “os traços que sobressaem, presentes em todos os lances importantes do enredo, são as suas características morais. Péssimas, naturalmente, e apenas atenuadas, nas suas aparências, por ser ele o narrador” (CARVALHO, 2005CARVALHO, Alfredo Leme Coelho de. O narrador infiel, e outros estudos de teoria e crítica literária. São José do Rio Preto: Rio-Pretense, 2005. 232 p., p. 16). Paul fracassa duas vezes, uma ao trair Helga, e outra ao trair a fidelidade dos fatos e não assumir as responsabilidades. Carvalho ainda fala da suspeita que o leitor cria ao perceber que o narrador se coloca o tempo todo em uma situação de defesa de si, o que mais uma vez é desmascarado diante do modo como o crime foi cometido:

Em primeiro lugar, o crime foi cometido contra vítimas indefesas: uma pobre moça mutilada e um homem precocemente envelhecido. O aparelho roubado era essencial à felicidade da moça, uma vez que lhe permitia um andar quase normal, e era, naquelas circunstâncias, impossível a sua substituição. É particularmente revoltante a escolha da noite de núpcias para a prática do crime. A não referência a qualquer conflito íntimo naquela situação sugere o cálculo frio da ocasião materialmente mais fácil para que se executasse o roubo. [...] Vemos, pois, que o arrependimento de Karsten é tardio e ineficaz, pois que não resulta em nenhuma ação reparadora. [...] Chegamos assim à conclusão de que o tom humilde e arrependido de Paul Karsten nada mais é que a máscara que para si fez, próprio como aos seus leitores. (CARVALHO, 2005CARVALHO, Alfredo Leme Coelho de. O narrador infiel, e outros estudos de teoria e crítica literária. São José do Rio Preto: Rio-Pretense, 2005. 232 p., p. 10-11).

A construção deste narrador corrobora o processo de irrupção de imagens. O conto se dá nos detalhes e pistas falsas empregadas ao longo da narrativa, suscitando imagens que sugerem o que falta, o que se apresenta sem alardes. O mal instala-se e vai deglutindo o enredo aos poucos. Há o que Antonio Dimas (2009DIMAS, Antonio. Garras de Veludo. São Paulo: Companhia das Letras, 2009., p. 190-191) chama de “corrosão das expectativas”, estratégia narrativa muito presente nos contos de Lygia Fagundes, e a partir da qual o leitor é seduzido pela brandura inicial, de que faz parte o personagem de aparência neutra ou inocente, mas perde as expectativas com os desatinos posteriores.

Entre as idas e vindas da narrativa fica patente os vários lampejos e acenos da importância de Helga para a história, muito mais do que os feitos de Paul durante a guerra, uma vez que ele próprio deixa isso claro: “Não vou contar minha guerra, Polônia, França, Grécia, Rússia…[...] Nela fiz mais ou menos tudo o que os outros fizeram e até menos do que vi ser feito em matéria de luta ou crime” (TELLES, 2009TELLES, Lygia Fagundes. Antes do Baile Verde. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 208 p., p. 42). A narrativa é o tempo todo interrompida pela presença de Helga, mas há uma demora em se chegar até ela e naquilo que de fato aconteceu entre ambos. Essa demora parece reforçar a presença do “narrador infiel”, uma vez que Paul Karsten ganha tempo seduzindo o interlocutor a fim de que a versão que opta por apresentar o favoreça, deixando a revelação do crime para o último instante da narrativa. Assim, já teria - ao menos parece ser este o plano - conquistado a confiança de quem o ouve.

Helga vai sendo apresentada de forma fragmentária, tal como o ritmo e o fluxo da narração. Primeiro é apresentada por sua beleza, comparada “com os tenros cogumelos dos bosques ou com as manhãs de bicicleta nas estradas impecáveis ou com as primeiras cerejas da primavera” (TELLES, 2009TELLES, Lygia Fagundes. Antes do Baile Verde. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 208 p., p. 41). Depois, há a menção às partes de seu corpo, o que o narrador chama de “pormenores”, como é o caso da perna, e mais adiante as unhas do pé pintadas com esmalte rosa.

Há um pormenor que me ocorre com tamanha insistência que fico às vezes pensando, pensando e não descubro por que me lembro tanto das unhas do seu pé pintadas com esmalte rosa. Não sei qual perna lhe restara mas revejo seu pé, só o pé com as unhas pintadas, não pintava as unhas das mãos, limpas, polidas mas sem esmalte. Pintava as do pé, economizando assim o esmalte que naquele tempo era raro como todo o resto, comida, roupa. Unhas de um tom de rosa delicado, ela gostava das cores tímidas. (TELLES, 2009TELLES, Lygia Fagundes. Antes do Baile Verde. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 208 p., p. 43).

Nesse ponto da narrativa há um recurso de close-up, trazendo com detalhes para o primeiro plano uma parte menor do corpo. É possível associar essa passagem do conto com aquilo que Georges Didi-Huberman, ao retomar o texto de Georges Bataille sobre o “dedão do pé”, em Documents, chama de “baixa sedução” (DIDI-HUBERMAN, 2015DIDI-HUBERMAN, Georges. A semelhança informe ou o gaio saber visual segundo Georges Bataille. Tradução de Caio Meira, Fernando Scheibe e Marcelo Jacques Moraes. Rio de Janeiro: Contraponto, 2015. 460 p., p. 72). A ilustração de um pedaço do pé não sugere um olhar para um conjunto, ou para um dado harmônico, ao contrário, a captura de uma parte específica - as unhas pintadas do pé - torna irreconhecível e incognoscível a imagem de Helga. Se lido sob a perspectiva de Didi-Huberman (2015DIDI-HUBERMAN, Georges. A semelhança informe ou o gaio saber visual segundo Georges Bataille. Tradução de Caio Meira, Fernando Scheibe e Marcelo Jacques Moraes. Rio de Janeiro: Contraponto, 2015. 460 p.), esse pormenor pode ser entendido como “uma imagem capaz de transgredir a imagem” (DIDI-HUBERMAN, 2015DIDI-HUBERMAN, Georges. A semelhança informe ou o gaio saber visual segundo Georges Bataille. Tradução de Caio Meira, Fernando Scheibe e Marcelo Jacques Moraes. Rio de Janeiro: Contraponto, 2015. 460 p., p. 72), isto é, no caso do conto “Helga”, já há aí o prenúncio de que Paul Karsten precisa tornar Helga uma pessoa desconhecida, no sentindo mais amplo do desconhecimento, no sentido mesmo de rebaixá-la a uma espécie de animal, de objeto, expurgando todo o desejo de sedução para apropriar-se de seu corpo. O efeito de retirar uma parte de um conjunto sugere, aqui, um “corte-sacrifício”.

Para Didi-Huberman, o corte-sacrifício está ligado ao plano do sintoma, não no sentido de localizar, precisamente, tal ou tal doença que impediria tal ou tal pessoa de viver ou de ser. O sintoma seria, antes, algo que “dilacera”, que “desclassifica” e “desmente a ideia humanista que costuma se fazer do ser” (DIDI-HUBERMAN, 2015DIDI-HUBERMAN, Georges. A semelhança informe ou o gaio saber visual segundo Georges Bataille. Tradução de Caio Meira, Fernando Scheibe e Marcelo Jacques Moraes. Rio de Janeiro: Contraponto, 2015. 460 p., p. 365). Na leitura que faz do texto Culpado, de Bataille, o crítico localiza o sintoma que irrompe com o efeito do corte e sugere que há uma dialética constante entre “o psíquico (a culpa) e o orgânico (o corte)” como elementos indissociáveis (DIDI-HUBERMAN, 2015DIDI-HUBERMAN, Georges. A semelhança informe ou o gaio saber visual segundo Georges Bataille. Tradução de Caio Meira, Fernando Scheibe e Marcelo Jacques Moraes. Rio de Janeiro: Contraponto, 2015. 460 p., p. 365). Nessa chave de leitura, a composição imagética da narrativa de Lygia Fagundes Telles se dá pelo sintoma daquilo que foi cortado, mutilado, ao mesmo tempo em que Paul Karsten se apresenta como o culpado, ainda que tente disfarçar.

Quando finalmente há o primeiro encontro de Paul com Helga ela está atrás de um balcão de farmácia, e novamente não se vê seu corpo na íntegra: “Só sei que sua beleza me surgiu inicialmente da cintura para cima atrás do balcão da farmácia, se assim podemos chamar àquele casebre de madeira enegrecida, toscamente erguido no meio das ruínas do sudeste industrial de Dusseldorf” (TELLES, 2009TELLES, Lygia Fagundes. Antes do Baile Verde. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 208 p., p. 44). Há sempre um jogo entre o todo e a parte quando se trata da apresentação de Helga. Se olharmos para esse modo de construção narrativa sob o enfoque dos interesses pelo corpo e por aquilo que os corpos sugerem de subterrâneo na história, há uma razão central para que Paul construísse Helga fragmentariamente.

Essa razão está associada à mutilação de uma das pernas de Helga durante o bombardeio em Hamburgo, fato que cria um estado de fragilidade e vulnerabilidade de Helga diante de um criminoso em potencial. Paul Karsten se aproveita da condição precária de Helga para colocar em prática o roubo. Isso fica claro quando o próprio narrador diz que já sabia da condição da perna:

Já sabia então da sua perna, ela mesma me contou quando recusou-se a me acompanhar a um local de danças, improvisado nos escombros do museu. Fiz o convite quando fui cedo à farmácia, soubera das danças e não vi melhor oportunidade para sair com ela. Estava como sempre detrás do balcão mas assim que lhe falei em dançarmos teve um movimento de fuga enquanto uma nuvem preta pareceu baixar sobre seu rosto tão limpo. Mas logo espantou a nuvem e sorriu quase natural quando confessou que não podia dançar as valsas que lá tocavam, tinha uma perna só. Aquela noite pensei muito na mutilação de Helga, mutilação antiga, pois ela perdera a perna e o resto da família, menos o pai, no primeiro bombardeio de Hamburgo. (TELLES, 2009TELLES, Lygia Fagundes. Antes do Baile Verde. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 208 p., p. 45).

Além da condição de precarização do corpo, há o peso do contexto de terror e horror da guerra, ampliando os sentidos da narrativa para um plano de projeção da imagem do homem em geral, por um lado. Tal modo de olhar para o corpo mutilado em função dos horrores da Segunda Guerra restitui às imagens o elemento antropológico que as põe em jogo. Didi-Huberman, em Imagens apesar de tudo, afirma que o cerne do sentido antropológico de Auschwitz está na “negação do humano”, isto é, a construção de um modo de olhar pelo dessemelhante, pelo informe, de modo a construir um processo de entendimento que desempenhava um papel fundamental na lógica nazista: tornar o homem um “ser demolido”, o que significa “antes de mais nada o homem tornado apático em relação ao mundo e a si mesmo, ou seja, incapaz de empatia, ou mesmo de desespero” (DIDI-HUBERMAN, 2020DIDI-HUBERMAN, Georges. Imagens apesar de tudo. Tradução de Vanessa Brito e João Pedro Cachopo. São Paulo: Editora 34, 2020. 272 p., p. 67).

Por outro lado, a desmontagem do humano é igualmente significativa quando pensada pela supressão, pela falta. Inúmeras vezes ao longo do conto o narrador se identifica com a falta: “Ela era uma só”; “A beleza de Helga e a sua perna. Confesso que durante muito tempo não sei em qual pensei mais, se na que tinha ou se na que perdera”; “Curioso é que hoje já não consigo lembrar qual a perna que Helga perdera, se a direita ou a esquerda” (TELLES, 2009TELLES, Lygia Fagundes. Antes do Baile Verde. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 208 p., p. 45). É bastante sintomático nesse conto o quanto a desorganização do corpo replica-se na desorganização da própria linguagem. Os lapsos de memória do narrador correspondem aos momentos em que a falta da perna de Helga vem à tona. Inclusive o seu próprio nome, em um determinado momento, é justificado pela falta: “na escola eu já era Paul sem o ‘o’, Paul Karsten”. (TELLES, 2009TELLES, Lygia Fagundes. Antes do Baile Verde. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 208 p., p. 41).

A falta da perna de Helga foi preenchida por uma perna mecânica, “a magnífica perna ortopédica que comprou para a filha, daquelas que durante a guerra eram reservadas para heróis excepcionais, membros graúdos do Partido Nacional-Socialista ou oficiais superiores” (TELLES, 2009TELLES, Lygia Fagundes. Antes do Baile Verde. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 208 p., p. 45). Com o ímpeto de enriquecer, e com a sugestão de uma alternativa bastante lucrativa dada pelo próprio pai de Helga - contrabandear e vender ilegalmente penicilina - Paul se aproxima de Helga, inicia um processo de sedução e construção de laços afetivos, até o dia em que se casa com Helga para roubá-la a perna ortopédica: “O fato é que me casei e na própria madrugada de núpcias fugi para Hamburgo levando a perna ortopédica que em seguida vendi. De posse do capital inicial, não foi difícil encontrar o tal major e no tempo previsto pelo velho Wolf, seis meses mais ou menos, fiz fortuna” (TELLES, 2009TELLES, Lygia Fagundes. Antes do Baile Verde. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 208 p., p. 47).

Nota-se o quanto Paul foi meticuloso ao planejar o crime que cometeu, além de haver uma correspondência bastante coerente entre seus ideais hitleristas e suas ações. O que se nota nesse processo de desmontagem do corpo é uma tensão entre a unidade corpórea, o que conduz a narrativa para o plano de um olhar o corpo para a sedução (a beleza de Helga, por exemplo), e a fragmentação do corpo cujo movimento do olhar é para o corte (a objetificação do corpo).

O peso do contexto da Segunda Guerra para os desdobramentos de sentidos do conto apela, tal qual aquelas quatro fotografias do campo de concentração, para uma ética da imagem. A razão pela qual Paul relaciona a fragmentação do eu à fragmentação do próprio corpo indica uma atitude antiética profunda, qual seja, tornar o corpo um objeto descartável.

Adorno, quando escreveu Educação após Auschwitz, pensou uma educação para o corpo como forma de desbarbarizar o mundo e evitar que Auschwitz viesse a se repetir. Para o filósofo alemão “em cada situação em que a consciência é mutilada, isto se reflete sobre o corpo e esfera corporal de uma forma não-livre e que é propícia à violência” (ADORNO, 1995ADORNO, Theodor. Educação e Emancipação. Tradução de Wolfgan Leo Maar. Petrópolis: Vozes, 1995., p. 126). Esse é um tema que reaparece nos “Interesses sobre o corpo”, de Dialética do esclarecimento, quando se pensa a consciência reificada e a burocratização da racionalidade humana associada ao desvio das formas de desejo, sejam eles de cunho sexual/libidinal, espirituais ou metafísicos, para uma forma de pensamento ligada à formalização e ao apego às máquinas, aos instrumentos, e que tem como fundamento o culto a uma certa eficiência a qual retira os imperativos éticos de campo para justificar suas atitudes mecânicas. Para Adorno e Horkheimer,

As obras da civilização são o produto da sublimação, desse amor-ódio adquirido pelo corpo e pela terra, dos quais a dominação arrancou todos os homens. A medicina torna produtiva a reação psíquica à corporificação do homem [Verkörperung]; a técnica, a reação à reificação da natureza inteira. Mas o assassino, o homicida, os colossos animalizados, que são secretamente empregados pelos donos do poder - legais e ilegais, grandes e pequenos - como seus executores, os homens violentos, que estão sempre aí quando se trata de eliminar alguém, os linchadores e os membros da Ku-Klux-Klan, o brutamontes que logo se ergue quando alguém começa a querer aparecer, as figuras terríveis às quais a gente se vê entregue tão logo a mão protetora do poder se retira, quando se perde dinheiro e posição, todos os lobisomens que vivem nas trevas da história e alimentam o medo sem o qual não haveria nenhuma dominação: neles, o amor-ódio pelo corpo é brutal e imediato, eles profanam tudo o que tocam, aniquilam tudo o que veem à luz, e esse aniquilamento é o rancor pela reificação, eles repetem numa fúria cega sobre o objeto vivo tudo o que não podem mais fazer desacontecer: a cisão da vida no espírito e seu objeto. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Tradução de Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. 224 p., p. 193).

Esse princípio de reificação do corpo pode ser localizado nos marcos das figuras autoritárias e do caráter manipulador dos líderes donos do poder, segundo Adorno. No conto de Lygia Fagundes Telles fica clara a adoração de Paul a Hitler: “De Hitler, é bom lembrar. [...] Treinos. O aço das metralhadoras sem carga encostado no peito banhado de suor. As bandeiras apoiadas no ombro no desfile diante de Hitler e Mussolini no estádio de Berlim, os alemães da América do Sul marchando logo atrás dos países sudetos e antes mesmo dos alemães da América do Norte” (TELLES, 2009TELLES, Lygia Fagundes. Antes do Baile Verde. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 208 p., p. 42). Logo, Helga é para Paulo Silva Filho somente uma peça que não funciona, um objeto que é perturbado por sua estranha imobilidade. Para ele se trata de um corpo já inutilizado pela guerra e do qual fora retirado todos os princípios morais, políticos, sociais e religiosos, um corpo seccionado que está apto a ser explorado.

Diante dessa narrativa, o estudo das imagens e dos corpos em contexto da Segunda Guerra sugere que formar uma imagem de algo é alcançar o que não é dado imediatamente. Ao fazer o que estava subterrâneo aparecer, a imagem dá acesso ao que fora mutilado, suprimido. À luz das proposições de Georges Didi-Huberman e com base nas imagens sugeridas pelo conto de Lygia Fagundes Telles é possível concluir que olhar para as imagens é olhar para os ausentes de modo a expor o risco de encarar o que ficou apagado. O conto “Helga” mostra como a integridade do corpo vivo depende paradoxalmente de sua condição de precariedade. A perna mecânica seria, então, uma imagem do drama humano diante de uma realidade antijurídica inventada e endossada pela lógica político-racial da Shoah, uma lógica que construiu a possibilidade da repulsão e reificação de determinados corpos.

Referências

  • ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento Tradução de Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. 224 p.
  • ADORNO, Theodor. Educação e Emancipação Tradução de Wolfgan Leo Maar. Petrópolis: Vozes, 1995.
  • BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica - primeira versão. In: Magia e técnica, arte e política; ensaios sobre literatura e história da cultura Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 2012. p. 179-212.
  • CARVALHO, Alfredo Leme Coelho de. O narrador infiel, e outros estudos de teoria e crítica literária São José do Rio Preto: Rio-Pretense, 2005. 232 p.
  • DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da imagem Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 2013. 360 p.
  • DIDI-HUBERMAN, Georges. A semelhança informe ou o gaio saber visual segundo Georges Bataille Tradução de Caio Meira, Fernando Scheibe e Marcelo Jacques Moraes. Rio de Janeiro: Contraponto, 2015. 460 p.
  • DIDI-HUBERMAN, Georges. Remontagens do tempo sofrido: O olho da história II. Tradução de Márcia Arbex e Vera Casa Nova. Belo Horizonte: UFMG, 2018. 266 p.
  • DIDI-HUBERMAN, Georges. Imagens apesar de tudo Tradução de Vanessa Brito e João Pedro Cachopo. São Paulo: Editora 34, 2020. 272 p.
  • DIMAS, Antonio. Garras de Veludo São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
  • TELLES, Lygia Fagundes. Conspiração de nuvens Rio de Janeiro: Rocco, 2007. 134 p.
  • TELLES, Lygia Fagundes. Antes do Baile Verde São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 208 p.
  • Parecer Final dos Editores

    Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    13 Jan 2022
  • Aceito
    30 Jun 2022
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