Acessibilidade / Reportar erro

“Uma prisão ainda pior que aquela”: a culpa em Diário da Queda (2011) de Michel Laub

“An even worse prison than that”: the question of guilt in Diário da Queda (2011) by Michel Laub

Resumo

Este ensaio se utiliza das contribuições Primo Levi (2004) e Karl Jaspers (2018) para discutir a questão da culpa presente no romance Diário da queda (2011) de Michel Laub. Ao abordar experiências traumáticas por meio de memórias individuais, que se relacionam com os eventos da Segunda Guerra Mundial, a narrativa expressa, entre outros aspectos, o sentimento de culpa presente em três membros da linhagem do narrador. Embora possa ser entendido quase como uma herança familiar, ao passar a limpo a própria história, bem como a de seus ascendentes, o narrador nos aponta à necessidade de enfrentar as dores do passado a fim de poder vislumbrar um futuro transformado.

Palavras-chave:
Diário da queda; culpa; trauma

Abstract

This paper is based on the contributions of Primo Levi (2004) and Karl Jaspers (2018) to discuss the issue of guilt in Michel Laub’s novel Diário da queda (2011). By approaching traumatic experiences through individual memories, which relate to the events of the Second World War, the narrative portrays, among other aspects, the feeling of guilt present in three members of the narrator's lineage. Although it can be understood almost as a family heritage, by going over his own history, as well as of his ancestors’, the narrator points out the need to face the pain of the past in order to envision a transformed future.

Keywords:
Diário da queda; guilt; trauma

Resumen

Este ensayo se vale de las contribuciones de Primo Levi (2004) y Karl Jaspers (2018) para discutir el tema de la culpa, presente en la novela Diário da queda (2011) de Michel Laub. Al abordar experiencias traumáticas a través de recuerdos individuales, que se relacionan con los acontecimientos de la Segunda Guerra Mundial, la narrativa expresa, entre otros aspectos, el sentimiento de culpa presente en tres miembros de la familia del narrador. A pesar de que se puede entender casi como una herencia familiar, al repasar su propia historia, así como la de sus antepasados, el narrador nos señala la necesidad de enfrentar el dolor del pasado para vislumbrar un futuro transformado.

Palabras-clave:
Diário da queda; culpa; trauma

Sem sermos perdoados [...], liberados das consequências do que fizemos, nossa capacidade de agir estaria confinada a um único feito do qual nunca poderíamos nos recuperar, permaneceríamos sempre vítimas de suas consequências.

(Hannah Arendt, A Condição Humana)

O sentimento de culpa é tão complexo quanto presente em quase todas as culturas, envolvendo aspectos religiosos, sociais, psicanalíticos e de direito. No caso deste último, na cultura ocidental a culpa sempre esteve atrelada ao direito penal e à punição enquanto expiação ou retribuição, no entanto, também se relaciona diretamente com as tradições judaico-cristãs, com a fundação da modernidade, e pode ser encarada como um fenômeno necessário à nossa organização social (IATAURO, 2005IATAURO, Cristiane B. Um estudo sobre a culpa na neurose obsessiva na teoria freudiana. 2005. Tese (Mestrado em Psicologia Clínica) - Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005.). Sigmund Freud, em Totem e tabu (1913), relaciona a culpa à formação cultural da sociedade. Nesse percurso recorre ao mito da horda primeva para então pensá-la a partir de uma perspectiva mais coletiva e menos restrita à psicanálise. Ao delinear o nascimento da culpa, conclui que ela nunca deixará de existir, visto que é determinante para o desenvolvimento das religiões, muitas vezes definidoras, por sua vez, de toda uma moralidade social.

Assim, Freud confere à culpa lugar fundamental na relação do sujeito com a lei e a sociedade, e também supõe que junto com toda herança simbólica também seja transmitida a culpa. Nesse sentido, ela fornece a filiação e a genealogia do sujeito, sugerindo que a gênese da subjetividade só é possível no que ela parte do sentimento de culpa. (IATAURO, 2005IATAURO, Cristiane B. Um estudo sobre a culpa na neurose obsessiva na teoria freudiana. 2005. Tese (Mestrado em Psicologia Clínica) - Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005., p. 19).

Para o médico austríaco, portanto, a culpa passa a ser um aspecto intimamente ligado à condição do homem inserido em uma cultura. Considerando as ideias do autor, parece lícito afirmar que, como tal, é natural a literatura não se furtar em abordar a temática. Dessa forma, sua presença é bastante corrente em obras que receberam a alcunha de clássicos universais, como Crime e castigo (1866), de Dostoiévski, e O processo (1925), de Franz KafkaKAFKA, Franz. O processo. Tradução Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2018 [1925]. .

Anos após a publicação desses títulos, a questão é motivo de particular interesse em diferentes partes do mundo, especialmente no período denominado por Eric Hobsbawm (2003) como “a era da catástrofe”: o século XX. Nos meados desse século, os episódios de violência perpetrados na Segunda Guerra Mundial (1939-1945), sobretudo o genocídio da população judaica, nos impeliram a refletir sobre o contexto e buscar estratégias de elaboração e enfrentamento. Assim, pensadores de diferentes áreas lançaram um olhar para o tópico da culpa, dentre os quais, destacamos o filósofo e psiquiatra alemão Karl Jaspers (2018JASPERS, Karl. A questão da culpa: a Alemanha e o Nazismo. Tradução Claudia Dornbusch. São Paulo: Todavia, 2018. ), que propôs um denso ensaio discutindo a culpa do povo germânico e apresentando formas de superação diante do trauma ainda pulsante na comunidade.

Jaspers (2018JASPERS, Karl. A questão da culpa: a Alemanha e o Nazismo. Tradução Claudia Dornbusch. São Paulo: Todavia, 2018. ) distingue quatro formas de culpabilização: criminal, política, moral e metafísica. A primeira diz respeito a ações que contrariam leis incontestáveis e foi estabelecida na Alemanha a partir do próprio Tribunal de Nuremberg. Configurando-se como uma ação individual, portanto, atribuir a todo um povo uma culpa criminal se caracterizaria como algo despropositado. A segunda, diz respeito à responsabilidade dos indivíduos perante o Estado que o representa, uma vez que, para o filósofo “cada ser humano é corresponsável pelo modo como é governado” (JASPERS, 2018JASPERS, Karl. A questão da culpa: a Alemanha e o Nazismo. Tradução Claudia Dornbusch. São Paulo: Todavia, 2018. , p. 23). Julgar essa culpa ficaria a cargo da vontade do vencedor, cuja arbitrariedade pode ser atenuada com o reconhecimento das normas que regem o direito internacional (JASPERS, 2018). Já a terceira, reflete a culpabilidade pelas ações individuais, ainda que elas sejam motivadas por ordens políticas e militares as quais nos submetemos, afinal “muitos crimes continuam sendo crimes mesmo tendo sido ordenados” (JASPERS, 2018, p. 23). Como a culpa criminal, ela também só pode ser julgada individualmente pelo próprio sujeito e seu juízo moral. Por fim, na quarta, Jaspers aponta para a solidariedade entre os homens, sublinhando uma responsabilidade coletiva perante o que acontece com determinados grupos:

Existe uma solidariedade entre pessoas enquanto pessoas, que torna cada um corresponsável por toda incorreção e toda a injustiça do mundo, especialmente por crimes que acontecem em sua presença ou que são do seu conhecimento. Se não faço o que posso para evitar isso, também tenho culpa. Se não dediquei minha vida a evitar o assassinato de outros, mas fiquei ali, sinto-me culpado de certa forma que não é compreensível do ponto de vista jurídico, político e moral. [...] O fato de vigorar em algum lugar entre as pessoas a incondicionalidade de viver apenas em comunidade ou então não viver - caso sejam cometidos crimes contra um ou outro, ou caso as condições de vida precisem ser divididas - é o que perfaz a substância de sua essência. Mas isso não se estende à solidariedade de todas as pessoas, nem de todos os cidadãos, nem mesmo de grupos menores, mas se restringe apenas à mais íntima ligação humana, e é o que perfaz essa culpa de todos - a instância é apenas Deus. (JASPERS, 2018JASPERS, Karl. A questão da culpa: a Alemanha e o Nazismo. Tradução Claudia Dornbusch. São Paulo: Todavia, 2018. , p. 24).

O escritor e jornalista Michel Laub sintetiza essas modalidades de culpa no romance Diário da queda (2011LAUB, Michel. Diário da queda. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.). Nele, ante a descoberta de que seria pai, um narrador anônimo enxerga a necessidade de elaborar uma ferida aberta no seio da família judaica, bem como sua própria culpa em relação à queda e consequente ferimento de João, um colega de escola, quando ambos eram adolescentes de 13 anos de idade. Para tanto, passa a escrever um diário destinado ao filho que está para nascer. Além de pequenos excertos que seguem uma cronologia característica da memoração, o narrador ainda apresenta trechos de outros dois diários: de seu pai e de seu avô. Abandona, contudo, um traço que para Maurice Blanchot (2005BLANCHOT, Maurice. O diário íntimo e a narrativa. In: BLANCHOT, Maurice . O livro por vir. Tradução Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 270-278.) e Philippe Lejeune (2008LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet. Tradução Jovita Maria Gerheim Noronha e Maria Inês Coimbra Guedes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. ) é fundamental na composição de um diário: a indicação temporal. A ausência desse aspecto sugere que tal registro não apresenta grande relevância, especialmente quando os efeitos dos eventos continuam reverberando no presente do protagonista. Mais que isso, a data pouco importa quando os documentos se constituem como uma fonte valiosa para o narrador entender o pai, acessar a memória do avô e refletir acerca de seu silêncio em relação ao passado traumático que o levaria ao suicídio.

O passado em questão é a barbárie da Segunda Guerra e a violência perpetrada contra o povo judeu nos campos de concentração. O avô, após ser o único da família a sobreviver a Auschwitz, migra para o Brasil e precisa reconstituir-se enquanto sujeito, assim como o narrador precisa imaginar essa história, já que o pai de seu pai nunca falou sobre essa etapa de sua vida:

Meu avô não gostava de falar do passado. O que não é de estranhar, ao menos em relação ao que interessa: o fato de ele ser judeu, de ter chegado ao Brasil num daqueles navios apinhados, o gado para quem a história acaba aos vinte anos, ou trinta, ou quarenta, não importa, e resta apenas um tipo de lembrança que vem e volta e pode ser uma prisão ainda pior que aquela onde você esteve. (LAUB, 2011LAUB, Michel. Diário da queda. São Paulo: Companhia das Letras, 2011., p. 8).

De acordo com o narrador, portanto, as memórias relacionadas ao passado do avô se configurariam como uma prisão ainda pior do que a experienciada por ele e tantos outros sujeitos nos campos de concentração. Isso porque, mesmo distante de Auschwitz e dos eventos subsequentes que o trouxeram até o Brasil, seu antepassado ainda estava preso às lembranças do que fora vivido. Uma prisão íntima, agravada pelo fato de ser incapaz de traduzir sua experiência em palavras.

Esse bloqueio, contudo, longe de ser uma mera recusa, demonstra sua dificuldade em superar o estado de silêncio e estupor, que, de acordo com Maria Rita Kehl (2014KEHL, Maria R. A ironia e a dor. In: KUCINSKI, Bernardo. Você vai voltar pra mim e outros contos. São Paulo: Cosac Naify, 2014. ), “são as únicas reações possíveis ante o evento traumático” (p. 15). Segundo a psicanalista, passada a letargia, os sobreviventes sentem a necessidade de falar sobre seus traumas (KEHL, 2014KEHL, Maria R. A ironia e a dor. In: KUCINSKI, Bernardo. Você vai voltar pra mim e outros contos. São Paulo: Cosac Naify, 2014. , p. 15). É o que acontece com o avô, que mesmo não gostando de falar sobre o passado, recorre à escrita, ainda que de forma bastante tortuosa, para deixar seu testemunho. “Nos últimos anos de vida o meu avô passava o dia inteiro no escritório. Só depois da morte é que foi descoberto o que ele fazia ali, cadernos e mais cadernos preenchidos com letra miúda, e quando li o material é que finalmente entendi o que ele havia passado” (LAUB, 2011LAUB, Michel. Diário da queda. São Paulo: Companhia das Letras, 2011., p. 14). No entanto, esse entendimento se dá pela ausência de um conteúdo mais informativo. O avô não descrevera nada sobre sua origem, a família perdida, a religião ou suas estratégias para sobreviver ao campo. Longe de abordar sua vivência como prisioneiro, evidencia como isso o afetou profundamente, já que em seus cadernos cria verbetes que descrevem uma vida ideal e tudo o que isso envolve. Recria, assim, um passado ao subverter os fatos além de manifestar um grande desejo de permanecer sozinho e sem preocupações, ainda que não deixe claro a natureza de tais perturbações.

Hospital - lugar com médicos pacienciosos que explicam à mulher grávida os riscos da gravidez que são baixos e os riscos da operação de cesariana que são baixos também, e os riscos de infecção depois do parto que são inexistentes dados os procedimentos mais rigorosos de higiene no edifício [...] No hospital não há problemas que possam perturbar a paz do marido da esposa grávida, cujo filho irá selar a continuidade e doação amorosa dos dois, quando ele deseja caminhar sozinho pelos corredores ou ir para casa e ficar sozinho. (LAUB, 2011LAUB, Michel. Diário da queda. São Paulo: Companhia das Letras, 2011., p. 46).

Impossibilitado de lidar com a ferida da grande degradação sofrida no Lager, aliado às inúmeras perdas e a necessidade de se adaptar a um país estrangeiro, o avô comete suicídio no escritório onde costumava ficar trancado redigindo seus cadernos. Fora do campo diegético, o suicídio acaba sendo a saída de muitos que foram resgatados dos campos de concentração, mas que de certa forma continuaram lá. A leitores mais

desavisados, pode causar certa estranheza pensar, contudo, que podendo ter optado pelo suicídio enquanto sob o poder dos nazistas, o avô comete o ato anos após sua libertação, depois de ter formado uma família e construído uma carreira. O italiano Primo Levi (2004LEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes: os delitos, os castigos, as penas, as impunidades. Tradução Luís Sérgio Henrique. São Paulo: Paz e Terra, 2004.), conhecido por ser um dos primeiros sobreviventes a relatar sua experiência traumática e ter aberto espaço para que muitos outros trabalhos ganhassem espaço, tenta explicar o fenômeno a partir de três hipóteses. A primeira diz respeito à profunda desumanização a que os prisioneiros eram submetidos. Animalizados, não tinham opções ou escolhas, tampouco a de interromper a própria vida. A segunda reflete sobre a grande preocupação em manterem-se vivos, o que não permitiria cogitar a ideia de morte. Por fim, Primo Levi sustenta que na maioria dos casos, o suicídio advém de um sentimento de culpa que o sujeito é incapaz de aliviar. A partir disso, na terceira hipótese, entende que o sofrimento diário já era percebido com uma punição para essa culpa sentida, expiando-a cotidianamente. Nesse caso, o pensamento suicida também ficava relegado a segundo plano, podendo retornar após a libertação dos campos de concentração e extermínio.

Embora a narrativa não explique o suicídio do avô, tanto porque o narrador também não tinha respostas precisas, quanto porque o próprio ato costuma deixar um ponto de interrogação em familiares e amigos das vítimas, as suposições de Levi (2004LEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes: os delitos, os castigos, as penas, as impunidades. Tradução Luís Sérgio Henrique. São Paulo: Paz e Terra, 2004.), sobretudo a terceira hipótese, ajudam a compreender a personagem em sua lógica. Essa culpa, explicada pelo químico italiano, permanece latente em toda a trajetória das três gerações, e, dessa forma, em toda a narrativa de Laub, podendo ser vislumbrada na culpa do avô por ter sobrevivido; na culpa do pai em relação ao avô e na culpa do narrador, tanto por não se sentir pertencendo à religião de seus antepassados, quanto por ter participado de um ato de violência dirigido ao colega não-judeu. Ainda que, como descreve Giorgio Agamben (2008AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha. Tradução Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2018. ), o sentimento de culpa do sobrevivente seja “um locus classicus da literatura sobre os campos” (p. 94), o tema parece inesgotável dado seu contexto e complexidade. Nem o próprio Primo Levi após tanto escrever e compartilhar sua experiência foi capaz de se eximir da culpa por ter sobrevivido.

Primo Levi morreu aos sessenta e oito anos, em Turim, Itália, depois de ter escrito treze livros, boa parte sobre o Holocausto, e ter sido traduzido em várias línguas, e ter retomado sua carreira de químico, e casar e ter filhos, e receber prêmios e virar uma celebridade literária na Europa e no mundo, e fico imaginando se era nesta escolha, um número maior que o pé, um número menor, talvez o número exato por uma sorte invejável entre o milhão e meio de prisioneiros que passaram pelo campo, que ele estava pensando quando abriu a porta do apartamento e caminhou até a escada e nela caiu numa ocorrência que quase nenhum de seus biógrafos julga ter sido acidental. (LAUB, 2011LAUB, Michel. Diário da queda. São Paulo: Companhia das Letras, 2011., p. 77).

Na novela Os visitantes (2016), de Bernardo KucinskiKUCINSKI -. Os visitantes. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. , o narrador discorre sobre o Holocausto ao conversar com um amigo sobre os ascendentes que foram exterminados e os que tiveram que conviver com a culpa. Aqui, lembra de Primo Levi como alguém que se valeu do ato da escrita para manter-se vivo nos anos de prisão, no entanto, encerra o primeiro capítulo de sua novela frisando que “Primo Levi nunca se libertou verdadeiramente de Auschwitz” (2016, p. 16). Ou seja, embora KucinskiKUCINSKI, Bernardo. K - relato de uma busca. São Paulo: Cosac Naify, 2014. retome a ideia recorrente do caráter terapêutico da palavra, reconhece que os relatos do italiano não foram o suficiente para fazê-lo superar o terror vivido nos campos de concentração. Em um de seus livros anteriores, também apresenta um importante capítulo que chama a atenção para a questão, e, embora esteja inserido em um texto ficcional, ajuda a elucidar o silenciamento do avô, a morte de Primo Levi e tantos outros que morreram em Auschwitz 40 anos depois:

Embora cada história de vida seja única, todo sobrevivente sofre em algum grau o mal da melancolia. Por isso não fala de suas perdas a filhos e netos; quer evitar que contraiam esse mal antes mesmo de começarem a construir suas vidas. [...] O sobrevivente só vive o presente por algum tempo; vencido o espanto de ter sobrevivido, superada a tarefa da retomada da vida normal, ressurgem com força inaudita os demônios do passado. Por que eu sobrevivi e eles não? É comum esses transtornos tardios do sobrevivente, décadas depois dos fatos” (KUCISNKI, 2014, p. 166).

Esse questionamento carrega em si, para além da culpa, a vergonha por ter sobrevivido. Levi (2004LEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes: os delitos, os castigos, as penas, as impunidades. Tradução Luís Sérgio Henrique. São Paulo: Paz e Terra, 2004.) revela duas faces dessa vergonha: a vergonha de viver enquanto outros milhares não tiveram a mesma sorte e a vergonha de ter sobrevivido por não ter sido um dos melhores, já que sustenta que “os ‘salvos’ do Lager não eram os melhores [...] sobreviviam de preferência os piores, os egoístas, os violentos, os insensíveis, os colaboradores da ‘zona cinzenta’, os delatores” (LEVI, 2004LEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes: os delitos, os castigos, as penas, as impunidades. Tradução Luís Sérgio Henrique. São Paulo: Paz e Terra, 2004., p. 71).

Essa zona cinzenta diz respeito a um entre-lugar entre ser vítima e ser opressor. Nela, muitos prisioneiros atuavam como os algozes de seus próprios companheiros, de um lado garantindo sua sobrevivência, de outro tendo que lidar com as consequências por desempenharem tal papel. Nesse sentido, vale retomar os conceitos de culpa moral e metafísica mencionados no início deste ensaio, que apontam para a consciência do sujeito em relação a seus atos e a responsabilidade pela coletividade. De acordo com Jaspers (2018JASPERS, Karl. A questão da culpa: a Alemanha e o Nazismo. Tradução Claudia Dornbusch. São Paulo: Todavia, 2018. ) essa noção de solidariedade não nos permite encontrar desculpas definitivas para nosso conformismo, mesmo diante de ordens externas em situações extremas.

[...] cada um de nós tem culpa na medida em que permanece inativo. A culpa da passividade é diferente. A impotência perdoa; não se exige moralmente a morte efetiva. Platão achava óbvio esconder-se e sobreviver em tempos de desgraça e de situações desesperadoras. Mas a passividade sabe de sua culpa moral pelo fracasso da negligência, por não ter tomado toda e qualquer atitude possível de contra-ataque para proteger os ameaçados, para aliviar a injustiça. Mesmo ao se contentar com a impotência, sempre restou um espaço para a ação que, se não era desprovida de perigo, pelo menos com cuidado poderia ser eficaz. Ter deixado isso escapar por medo é o que cada um reconhecerá como sua culpa moral: a cegueira diante da desgraça dos outros, essa falta de imaginação do coração, e a indiferença interior diante do desastre que se viu. (JASPERS, 2018JASPERS, Karl. A questão da culpa: a Alemanha e o Nazismo. Tradução Claudia Dornbusch. São Paulo: Todavia, 2018. , p. 86).

Ainda que o distanciamento temporal permita entender que os prisioneiros tenham agido de acordo com um instinto de sobrevivência em um ambiente que contrariava os preceitos morais de uma comunidade dita civilizada, a aflição oriunda dessa culpa autoimposta e sua consequente vergonha por aquilo que julga passividade é ainda acrescida pela acusação “de ter falhado no aspecto da solidariedade humana” (LEVI, 2004LEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes: os delitos, os castigos, as penas, as impunidades. Tradução Luís Sérgio Henrique. São Paulo: Paz e Terra, 2004., p. 67). O italiano ainda acrescenta que poucos sobreviventes se sentem culpados por terem de fato agredido um companheiro, no entanto, a maioria se ressente pela omissão do socorro (LEVI, 2004). Assim, demonstra que o sobrevivente parece ter um sentimento de dívida para com os mortos. A sobrevivente Ruth Klüger (2005KLÜGER, Ruth. Paisagens da memória: autobiografia de uma sobrevivente do Holocausto. Tradução Irene Aron. São Paulo: Editora 34, 2005.), por outro lado, revela nunca ter acreditado que deveria ter morrido no lugar de outrem, “não tinha feito nada de mal, por que deveria pagar?” (p. 165). Embora pareçam contraditórios, ambos os depoimentos revelam que não há uma razão concreta para a culpa dos sobreviventes, estando sua maior motivação ligada justamente à experiência traumática que se faz, por vezes, insuperável pela sua incomunicabilidade.

No avô, essa incomunicabilidade acaba por inviabilizar sua vivência após sua vinda ao Brasil, comprometendo, inclusive, suas relações com familiares, sobretudo com o filho. Ao não falar sobre seu passado, causa uma fissura na história da família e uma falta de referência para o pai do narrador, que se vê sem pai e sem história quando tinha apenas 14 anos de idade. É apenas após a morte do patriarca da família que o pai do narrador tem acesso ao seu próprio pai ao ter a chance de ler seus escritos. No entanto, a história de sua linhagem continua embargada. Não há referências de como era sua vida antes de enfrentar as mazelas da guerra, não há palavras sobre seus pais e familiares, não há o registro da emoção que o filho estava esperando. Apesar disso, é dessa lacuna que nasce a vontade de entender o que se passou entre os muros do Lager.

Assim, o pai do narrador (re)cria sua história a partir de relatos de outros sobreviventes, bem como ficções sobre o período, já que lhe restou apenas “mergulhar naquilo que Primo Levi escreve a respeito” (LAUB, 2011LAUB, Michel. Diário da queda. São Paulo: Companhia das Letras, 2011., p. 80). Tal mergulho faz com que ele passe a manifestar interesse pelas questões que envolvem a religião da família e todo o seu peso histórico, bem como conhecer profundamente a história do povo judeu. A dimensão do sofrimento experienciado em Auschwitz, dado por esses relatos, o ajudam a justificar o modo de vida do pai, na medida em que tenta demonstrar empatia por ele e por toda sua linhagem. Para além disso, como pontua Jacques Fux (2013FUX, Jacques. Até quando os cegos continuarão sonhando? Revista de Letras, v. 2, n. 32, p. 47-52, ago/dez, 2013. Disponível em: http://www.periodicos.ufc.br/revletras/article/view/1465 . Acesso em: 06 set 2021.
http://www.periodicos.ufc.br/revletras/a...
), filhos de sobreviventes tendem a compreender sua responsabilidade enquanto sucessores representantes de uma geração e progenitora de outra. Até certo ponto da narrativa, aos olhos do narrador, o pai parece assumir esse legado com obstinação, já que procura sempre abordar o tópico, apesar do pouco contato com o filho.

Se eu fosse contar o tempo que passávamos juntos por semana não daria mais que algumas horas, e como nessas horas estavam incluídos os discursos sobre os judeus que morreram nas Olimpíadas de 1973, os judeus que morreram em atentados da OLP, os judeus que continuariam morrendo por causa dos neonazistas da Europa e da aliança soviética com os árabes e da inoperância da ONU e da má vontade da imprensa de Israel, é possível que mais da metade das conversas que ele teve comigo girassem em torno desse tema. (LAUB, 2011LAUB, Michel. Diário da queda. São Paulo: Companhia das Letras, 2011., p. 36).

No entanto, conforme o enredo se desenrola, esse anseio adquire maior complexidade a partir do momento que o narrador entende que é mais fácil culpar Auschwitz do que pensar no avô como pai e marido que deve ser julgado por suas escolhas. Essa compreensão só é possível quando o narrador tem acesso ao diário do pai, que, ao contrário dos cadernos do avô, expunha sua dificuldade em lidar com seu passado. “Não há como ler as memórias do meu pai sem ver nelas o reflexo dos cadernos do meu avô” (LAUB, 2011LAUB, Michel. Diário da queda. São Paulo: Companhia das Letras, 2011., p. 132). Em seus relatos, deixa transparecer certa raiva pelo fato de o pai ter se suicidado, abandonando esposa e filho e o impelindo a assumir a responsabilidade sobre a mãe e passar a participar ativamente dos negócios da família. Dessa forma, o peso que vem do avô refere-se não só às tradições judaicas e respeito por sua história, mas compreende o trauma do suicídio, a culpa por esse ressentimento em relação ao ato, mais o fato de, por anos, ter sido alheio ao passado do pai, que era também seu próprio passado.

Ao perceber as diferentes formas que aquilo o atingia, o narrador questiona ser mesmo possível odiar um sobrevivente de Auschwitz. “É permitido sentir esse ódio, sem que em nenhum momento se caia na tentação de suavizá-lo por causa de Auschwitz, sem que se sinta culpa por botar as próprias emoções acima de algo como a lembrança de Auschwitz?” (LAUB, 2011LAUB, Michel. Diário da queda. São Paulo: Companhia das Letras, 2011., p. 136). Mesmo não respondendo explicitamente a essas perguntas, a obra como um todo parece indicar que, a despeito de possíveis represálias, o fato de o avô ter sido vítima, não o isenta de sua responsabilidade enquanto pai. Além disso, não atenua a influência que isso teve na vida do filho.

As memórias da culpa do pai e do avô encontram eco na experiência do narrador, que as enxerga como um espelho de sua vivência. Assim, os traumas de seus ascendentes também não o exime da culpa de causar sofrimento a João e mais tarde ser um adulto de difícil relacionamento, que busca escape na bebida e é capaz de agredir a própria mulher.

É o episódio com João que atua como um divisor de águas na relação do narrador com o pai e como estopim da narrativa. João era um menino não-judeu que estudava na mesma escola do narrador graças a uma bolsa parcial conseguida em função de seu bom desempenho como aluno. O pai do menino, que era cobrador de ônibus e complementava a renda vendendo algodão-doce, via na educação uma forma de ascensão social, no entanto, despercebia as violências físicas e simbólicas que o filho sofria por ser visto como alguém deslocado naquela instituição educacional. João não pertencia à mesma religião dos colegas, tampouco tinha os mesmos privilégios. Além disso, deles destoava, sobretudo porque nunca reagia às agressões dos colegas. Para Leniza Menda (2013MENDA, Leniza K. Diário da Queda: a força da transmissão entre gerações e a transgeracionalidade. WebMosaica. Revista do Instituto Cultural Judaico Marc Chagall. Porto Alegre, vol. 5, n. 2, p. 20-30, jul/dez, 2013. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/webmosaica/article/view/45017 . Acesso em: 08 set 2021.
https://seer.ufrgs.br/webmosaica/article...
), a passividade de seu comportamento fazia com que João fosse visto como um alvo para que os colegas descarregassem suas frustrações e preconceito em relação ao diferente.

Uma vez um deles segurou um colega e o arrastou por quarenta metros e esticou seu braço direito e bateu com um portão de ferro várias vezes nos dedos, e quando o colega estava se contorcendo ele pegou o braço esquerdo e fez a mesma coisa. João era diferente: o colega o mandava ficar de pé, e ele ficava. O colega jogava o sanduíche de João longe, e ele ia buscar. O colega segurava João e o forçava a comer o sanduíche, mordida por mordida, e no rosto de João não se via nada - nenhuma dor, nenhum apelo, nenhuma expressão. (LAUB, 2011LAUB, Michel. Diário da queda. São Paulo: Companhia das Letras, 2011., p. 19).

Apesar disso, o pai de João decide organizar para o filho um Bar Mitzvah, cerimônia judaica que marca a passagem do menino à vida adulta. Não sendo judeu, a celebração seria uma mera convenção social, uma tentativa de incluí-lo no universo de seus companheiros de escola. No entanto, o evento acaba sendo uma oportunidade para os colegas brutalmente assinalarem o não-pertencimento do jovem àquele mundo.

na hora dos parabéns, e naquele ano era comum jogar o aniversariante para o alto treze vezes, um grupo o segurando nas quedas, como numa rede de bombeiros - nesse dia a rede abriu na décima terceira queda e o aniversariante caiu de costas no chão. [...] Ao cair ele machucou uma vértebra, teve de ficar de cama dois meses, usar colete ortopédico por mais alguns meses e fazer fisioterapia durante todo esse tempo, tudo depois de ter sido levado para o hospital e a festa ter se encerrado numa atmosfera geral de perplexidade, ao menos entre os adultos presentes [...]. (LAUB, 2011LAUB, Michel. Diário da queda. São Paulo: Companhia das Letras, 2011., p. 10-11).

Embora tenha participado do ato, o narrador sente-se perturbado por ter viabilizado a ação sem ao menos ter pensado no sem sentido de suas motivações e suas possíveis consequências. A conduta do grupo de amigos escancara o distanciamento do narrador em relação ao discurso que recebe em casa e na escola de que os judeus seriam vítimas. Afinal, como aproximar os judeus que foram perseguidos, desumanizados e mortos daqueles que agora hostilizam um colega em situação de vulnerabilidade por ser minoria?

A queda de João configura-se como um momento decisivo na vida do narrador, assim como Auschwitz o é para a trajetória do avô. Com isso, põem as experiências lado a lado e reflete sobre o impacto dos acontecimentos. “Se na época perguntassem o que me afetava mais, ver o colega daquele jeito ou o fato de meu avô ter passado por Auschwitz [...] eu não hesitaria em dar a resposta.” (LAUB, 2011LAUB, Michel. Diário da queda. São Paulo: Companhia das Letras, 2011., p. 13). Mesmo não respondendo ao próprio questionamento, o fato de ser um agente da violência dirigida a João, ao passo que precisa buscar a memória do avô em fotos e relatos de terceiros, sugere que para ele a experiência pessoal se sobressai à coletiva, ainda que essa envolva todo um povo e uma história.

No entanto, se de um lado o episódio do Bar Mitzvah serviu para alargar o abismo entre o narrador e seus antepassados, de outro é o que lhe permite ter acesso à história do avô e mudar as convicções que tivera até ali. Abalado com o feito e não conseguindo mais lidar com o silêncio, confessa o plano de deixar João cair, bem como as perseguições que sofria, para a coordenadora da escola. Ao provocar a punição dos colegas, passa a ser hostilizado pelo grupo e aproxima-se de João numa tentativa de expiar sua culpa por não ter ao menos esticado o braço e amortecido o tombo do aniversariante. Com a insustentabilidade das relações no colégio, ambos decidem trocar de escola. Contudo, a notícia é recebida com reprimenda pelo pai do narrador, que enxerga a atitude como uma forma de renunciar ao legado da família, o que o fere profundamente e gera conflitos com o filho. Além disso, o pai teme que o filho sofra preconceito em uma escola para não-judeus, e, mais que isso, comprometa seu desejo de que o filho se torne um grande médico, dentista, engenheiro ou comerciante, profissões dominantes na sua cultura. A insistência do pai na permanência do filho na escola, em choque com sua irredutibilidade, acaba por deixar cair a máscara de civilidade usada por ambos em uma briga que define o rumo do narrador.

Na briga que tivemos por causa da nova escola, eu disse a meu pai que não estava nem aí para os argumentos dele. Que usar o judaísmo como argumento contra a mudança era ridículo da parte dele. Que eu não estava nem aí para o judaísmo, e muito menos para o que tinha acontecido com o meu avô. Não é a mesma coisa que dizer da boca fora que odeia alguém e deseja a sua morte, e, qualquer pessoa que tenha um parente que passou por Auschwitz pode confirmar a regra, desde criança você sabe que pode ser descuidado com qualquer assunto menos esse, então o impulso que meu pai teve ao ouvir essa referência era previsível, ele dizendo repete o que você falou, repete se você tem coragem, e eu olhando para ele fui capaz de repetir, dessa vez devagar, olhando nos olhos dele, que eu queria que ele enfiasse Auschwitz e o nazismo e o meu avô bem no meio do cu [...] ele partiu pra cima de mim e eu tentei me desvencilhar, então ele me segurou firme e me golpeou repetidas vezes, nas costas no pescoço, até passar a raiva e aos poucos me largar deitado, com as orelhas fervendo, uma pausa para respirar antes de eu levantar e sentir o corpo todo trêmulo até tomar uma atitude. (LAUB, p. 49-50).

Mais do que confrontar o pai, o narrador o ataca naquilo que tem de mais caro, além de revelar sua face mais impiedosa. No entanto, o confronto permite que o pai entenda sua falha ao transmitir a memória da Shoah e, com isso, mude sua postura em relação à forma de tratar o tema ao trazê-lo para o filho. Foi só a briga motivada em última instância pela queda de João que trouxe apaziguamento para a relação entre pai e filho, permitindo que ele tivesse acesso aos cadernos do avô e o entendimento que isso implicava.

Todavia, a culpa pela fratura do colega e por ter sido leviano com o pai e o avô voltam quando o narrador já se encontra com 40 anos e se depara com a notícia de que o pai, que se esforçara para construir uma memória e preservá-la, estava com Alzheimer. A partir da iminência do esquecimento, o pai escreve os relatos sem os quais o filho provavelmente não conseguiria dimensionar o efeito do suicídio do avô e a necessidade de assumir precocemente as responsabilidades sobre a mãe viúva. Há um espelhamento entre o avô e o pai, uma imagem invertida à medida que um despendeu esforço para esquecer o passado e viveu de suas reminiscências e o outro, que a partir delas construiu sua memória para preencher uma lacuna. Ao longo dos anos, o narrador também se enxerga nesse espelho, ora como vítima, ora como algoz. A desordem que isso lhe causa, aliada à dificuldade de adaptação na nova escola, o leva ao consumo de álcool ainda aos 14 anos.

No novo educandário, João abandona seu papel de vítima e passa a ser um colega como qualquer outro, não é mais minoria, sabe se impor e estabelecer vínculos com os outros alunos. O narrador, por outro lado, não apresenta a mesma desenvoltura, ficando sempre à margem de João. Adaptado, João relata aos novos amigos o acontecido em seu aniversário e o envolvimento do narrador, que passa a receber manifestações de intolerância religiosa em forma de apelidos e desenhos não assinados, não sendo incomum para ele “achar dentro da mochila um papel com o desenho de Hitler” (LAUB, 2011LAUB, Michel. Diário da queda. São Paulo: Companhia das Letras, 2011., p. 81). Com isso, o narrador troca de papel com João, passando ele a ser vítima de perseguição por parte dos colegas. Certo de que é o amigo o responsável pelas mensagens de ódio que recebe, tenta devolver a agressão atingindo o menino naquilo que ele tinha de mais sagrado: a morte da mãe.

Não suportando a dor advinda de um câncer, a mãe de João teria se suicidado ao ingerir uma dose extra de seus medicamentos. O marido, inconformado, teria apagado os registros da esposa, mudando de casa e deixando para trás fotografias que pudessem evocar sua lembrança, não voltando a falar sobre ela. Assim, tal como o pai do narrador, João crescera privado de uma parte importante da família, e, assim como ele, também precisou lidar com o trauma do suicídio. Essa sombra, elucidaria a introspecção do menino, a revolta do pai, bem como o distanciamento do pai do narrador. Todos eles são, de certa forma, sobreviventes e como tais também carregam suas culpas, já que a surpresa, a culpa e as dúvidas quanto as motivações do suicídio são inevitáveis. Além disso, as explicações não podem ser verificadas justamente porque as respostas se foram junto à vida da pessoa.

Assim como atacou o pai em seu ponto mais fraco, mesmo sentindo-se vitimado pela situação, o narrador usou covardemente da mesma estratégia para com João, apontando que esse binarismo vítima-culpado nem sempre é consistente. Nesse sentido, também pode ser situado na zona-cinzenta de Primo Levi (2004LEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes: os delitos, os castigos, as penas, as impunidades. Tradução Luís Sérgio Henrique. São Paulo: Paz e Terra, 2004.).

É ridículo decidir responder na mesma moeda, [...] e não me orgulho de ter datilografado alguns bilhetes em casa com esse objetivo, uma tipologia insuspeita num papel insuspeito que eu largaria dentro da mochila de João assim que tivesse uma chance, quatro palavras apenas, a tua mãe morreu, ou seis, tua mãe está debaixo da terra, ou dezesseis, os coveiros abrem o caixão da tua mãe e fodem o esqueleto dela todos os dias. (LAUB, 2011LAUB, Michel. Diário da queda. São Paulo: Companhia das Letras, 2011., p. 87).

Apesar dessa relação conflituosa, João é descrito pelo narrador como seu melhor amigo, sendo a separação dele um processo tão doloroso que o narrador só experimenta novamente ao ter que revelar ao pai que ele estava com Alzheimer. A doença do pai o empurrava para uma realidade que lhe exigiria mais maturidade para, assim como ele fez décadas atrás, também se responsabilizar pela família. Além disso, em crise com seu terceiro casamento, sobretudo em função de seu vício em álcool, o narrador recebe um ultimato de sua mulher, que exige que ele pare de beber como condição para permanecerem juntos.

Se a queda de João se configura como um momento definidor na adolescência do narrador, o Alzheimer se constitui como outro momento de virada na fase adulta. É a partir dele que a narrativa assume uma postura que caminha para a superação das culpas e traumas. Isso porque são os escritos do pai que aproximam os dois e despertam no filho um profundo sentimento de gratidão pelo pai não ter tomado a mesma atitude do avô. Além disso, a retomada do convívio causada pelas novas demandas do pai, em conjunto com as emoções suscitadas por ela, fazem com que o narrador também decida tornar-se pai e, por isso, superar o vício condenado pela esposa. Após descrever o entusiasmo frente à decisão de “parar de destruir a si mesmo e aos outros” (LAUB, 2011LAUB, Michel. Diário da queda. São Paulo: Companhia das Letras, 2011., p. 149), o narrador anuncia a gravidez da esposa.

Ao revelar essa informação, adota uma perspectiva de segunda pessoa, sendo ela o próprio filho que está por vir. Esse filho é apresentado como uma redenção para o passado do narrador, que acredita que “ter um filho é deixar para trás a inviabilidade da experiência humana em todos os tempos e lugares, como se perdesse o sentido falar sobre as maneiras como ela se manifesta na vida de qualquer um, e as maneiras como cada um tenta e consegue se livrar dela” (LAUB, 2011LAUB, Michel. Diário da queda. São Paulo: Companhia das Letras, 2011., p. 151). Ao mesmo tempo, o próprio narrador se propõe a livrar o filho da culpa e do trauma que perpassam as três gerações. Com isso, ainda que o final destoe de toda a narrativa, e seja pouco crível que um sujeito que muitas vezes se apresenta ao mesmo tempo agressivo e covarde torne-se um pai responsável e amoroso, os últimos excertos do livro sinalizam o encerramento de um ciclo ao passar o passado a limpo. Ainda que o filho reconheça nas palavras do pai o eco de seus descendentes, não terá que lidar com a inviabilidade da experiência humana em todos os tempos e lugares, sendo livre para traçar um caminho novo.

Nesse sentido, mesmo se tratando de uma narrativa que gira basicamente em torno de um único núcleo familiar e dos efeitos da Segunda Guerra nas vítimas diretas e nas gerações posteriores, pode ser compreendida como uma grande metáfora que nos invoca, enquanto sociedade, a indagar o passado, sobretudo os eventos que se pretendem esquecidos. Jaspers (2018JASPERS, Karl. A questão da culpa: a Alemanha e o Nazismo. Tradução Claudia Dornbusch. São Paulo: Todavia, 2018. ) afirma que “o autoesclarecimento de um povo em reflexão histórica e o autoesclarecimento de cada um parecem ser duas coisas diferentes. Mas o primeiro acontece apenas no caminho que passa pelo segundo” (p. 93). Dessa forma, elaborando traumas individuais, temos chances de atingir um coletivo, limpando o terreno para que as próximas gerações não nasçam já tendo que lidar com um fardo que não escolheram e não podem ser responsabilizadas.

Referências

  • AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha. Tradução Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2018.
  • BLANCHOT, Maurice. O diário íntimo e a narrativa. In: BLANCHOT, Maurice . O livro por vir Tradução Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 270-278.
  • FUX, Jacques. Até quando os cegos continuarão sonhando? Revista de Letras, v. 2, n. 32, p. 47-52, ago/dez, 2013. Disponível em: http://www.periodicos.ufc.br/revletras/article/view/1465 Acesso em: 06 set 2021.
    » http://www.periodicos.ufc.br/revletras/article/view/1465
  • IATAURO, Cristiane B. Um estudo sobre a culpa na neurose obsessiva na teoria freudiana 2005. Tese (Mestrado em Psicologia Clínica) - Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005.
  • JASPERS, Karl. A questão da culpa: a Alemanha e o Nazismo. Tradução Claudia Dornbusch. São Paulo: Todavia, 2018.
  • KAFKA, Franz. O processo Tradução Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2018 [1925].
  • KUCINSKI, Bernardo. K - relato de uma busca São Paulo: Cosac Naify, 2014.
  • KUCINSKI -. Os visitantes São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
  • KLÜGER, Ruth. Paisagens da memória: autobiografia de uma sobrevivente do Holocausto. Tradução Irene Aron. São Paulo: Editora 34, 2005.
  • KEHL, Maria R. A ironia e a dor. In: KUCINSKI, Bernardo. Você vai voltar pra mim e outros contos São Paulo: Cosac Naify, 2014.
  • LAUB, Michel. Diário da queda São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
  • LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet. Tradução Jovita Maria Gerheim Noronha e Maria Inês Coimbra Guedes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
  • LEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes: os delitos, os castigos, as penas, as impunidades. Tradução Luís Sérgio Henrique. São Paulo: Paz e Terra, 2004.
  • MENDA, Leniza K. Diário da Queda: a força da transmissão entre gerações e a transgeracionalidade. WebMosaica Revista do Instituto Cultural Judaico Marc Chagall. Porto Alegre, vol. 5, n. 2, p. 20-30, jul/dez, 2013. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/webmosaica/article/view/45017 Acesso em: 08 set 2021.
    » https://seer.ufrgs.br/webmosaica/article/view/45017
  • ROSSI, Clóvis. O inferno nunca sai da alma. Folha de São Paulo, São Paulo, 22 maio 2012. Disponível em: https://m.folha.uol.com.br/colunas/clovisrossi/2012/05/1093730-o-inferno-nunca-sai-da-alma.shtml Acesso em 08 set 2021.
    » https://m.folha.uol.com.br/colunas/clovisrossi/2012/05/1093730-o-inferno-nunca-sai-da-alma.shtml
  • Parecer Final dos Editores

    Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    14 Jan 2022
  • Aceito
    30 Jun 2022
Programa de Pos-Graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras -UFRJ Av. Horácio Macedo, 2151, Cidade Universitária, CEP 21941-97 - Rio de Janeiro RJ Brasil , - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: alea.ufrj@gmail.com