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A partilha do sonho: Ailton Krenak e Glauber Rocha, uma aproximação intempestiva

Distributions of the dream: Ailton Krenak and Glauber Rocha, an untimely approximation

Resumo

A fim de explorar as possíveis aproximações entre Glauber Rocha e Ailton Krenak, este ensaio investiga os ecos e as relações entre duas figuras distintas em suas atribuições, lugares sociais e ambições político-estéticas, mas que compartilham um engajamento em questões urgentes no debate público de seus respectivos tempos históricos. Assim, propomos um diálogo transversal entre os dois pensadores a partir da dimensão onírica (a instituição do sonho), que talvez melhor atravesse suas afinidades e diferenças. Embora pareça inusitada uma associação entre Glauber Rocha e os ameríndios, ou entre Ailton Krenak e o Cinema Novo, o ensaio enfatiza a afinidade intempestiva da instituição do sonho nas ressonâncias e dissidências entre os manifestos de Glauber Rocha “Eztetyka da Fome” (1965) e “Eztetyka do sonho” (1971) e os livros de Ailton Krenak, Ideias para adiar o fim do mundo (2020) e A vida não é útil (2021).

Palavras-chaves:
Ailton Krenak; Glauber Rocha; Eztetyka do Sonho; sonho

Abstract

In order to explore possible connections between Glauber Rocha and Ailton Krenak, this essay investigates the echoes and relationships between these two figures who are different in their attributions, social positions, and political-aesthetic ambitions, but who share a commitment to urgent issues in the public debate of their respective historical times. Thus, we propose a transversal dialogue between the two thinkers in the oneiric dimension (the institution of the dream), which will perhaps best traverse their affinities and differences. Although an association between Glauber Rocha and the Amerindians or between Ailton Krenak and the Cinema Novo may seem unusual, this essay highlights the untimely affinity of the institution of the dream in the resonances and dissidences between Glauber Rocha's manifestos “Eztetyka da Fome” (1965) and “Eztetyka do sonho” (1971) and Ailton Krenak's books, Ideas to Postpone the End of the World (2020) and Life is Not Useful (2021).

Keywords:
Ailton Krenak; Glauber Rocha; Eztetyka do Sonho; dream

Resumen

Con el fin de explorar las posibles aproximaciones entre Glauber Rocha y Ailton Krenak, este ensayo investiga los ecos y las relaciones entre dos figuras distintas en sus atribuciones, lugares sociales y ambiciones político-estéticas, pero que comparten un compromiso con cuestiones urgentes en el debate público de sus respectivos tiempos históricos. Así, proponemos un diálogo transversal entre los dos pensadores a partir de la dimensión onírica (la institución del sueño), que quizás sea la que mejor atraviese sus afinidades y diferencias. Aunque parezca inusual una asociación entre Glauber Rocha y los amerindios, o entre Ailton Krenak y el Cinema Novo, el ensayo enfatiza la afinidad intempestiva de la institución del sueño en las resonancias y disidencias entre los manifiestos de Glauber Rocha “Eztetyka da Fome” (1965) y “Eztetyka do sonho” (1971) y los libros de Ailton Krenak, Ideias para adiar o fim do mundo (2020) y A vida não é útil (2021).

Palabras claves:
Ailton Krenak; Glauber Rocha; Eztetyka do Sonho; sueño

Os brancos não sonham tão longe quanto nós. Dormem muito, mas só sonham com eles mesmos. Seu pensamento permanece obstruído e eles dormem como antas ou jabutis. Por isso não conseguem entender nossas palavras. Davi Kopenawa e Bruce Albert, A queda do céu (2015KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: Palavras de um xamã yanomami. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés; prefácio de Eduardo Viveiros de Castro. São Paulo: Companhia das Letras , 2015. , p. 390)

Glauber Rocha, em julho de 1965, na cidade de Gênova, apontou uma dificuldade que parece perdurar no tempo: comunicar a miséria do terceiro mundo, sublinhando tanto a dificuldade do produtor latino-americano de representá-la, quanto a do observador europeu de absorvê-la. A fala tornar-se-ia o manifesto “Eztetyka da fome” (1965), marco teórico para o Cinema Novo, que formulou as bases para a busca de um cinema autoral, artístico e engajado. Glauber mirava no êxtase do espectador europeu diante das imagens do horror da fome, que, segundo ele, ocorria por uma certa nostalgia do primitivismo. Como no retrovisor de um automóvel, os europeus viam no terceiro mundo o passado de sua história ou aquilo que deixaram de ser, aquilo que superaram na sua altiva posição de civilização: “[...] e se ele [europeu] nos compreende [os latino-americanos], então, não é pela lucidez de nosso diálogo mas pelo humanitarismo que nossa informação lhe inspira” (ROCHA, 2004bROCHA, Glauber. Eztetyka da Fome 1965. In: ROCHA, Glauber. Revolução do Cinema Novo. Rio de Janeiro: Cosac Naify , 2004b. p. 63-67. , p. 64).

Glauber tinha em mente uma clara oposição ao que se formava nas produções do cinema brasileiro. Por um lado, os filmes dos grandes casarões e temas das elites, dos enquadramentos assépticos, das falas polidas e, por outro lado, uma série de filmes que tematizam a fome, com personagens que “comem terra”, “falam errado”, a partir de uma montagem inovadora, apesar de já conhecida nos circuitos europeus de vanguarda (RAMOS, 2018RAMOS, Fernão. A ascensão do novo jovem cinema. In: RAMOS, Fernão; SCHVARZMAN, Sheila. Nova história do cinema brasileiro: Volume 2. São Paulo: Edições SESC, 2018. p. 16-115., p. 68). É pensando nessa leva de filmes produzidos e filmados sobre a fome e a seca que Glauber Rocha elaborou, a partir dessa mazela brasileira (a fome), a potência do cinema de vanguarda que se desenhava no horizonte: “O Cinema Novo é um projeto que se realiza na política da fome, e sofre, por isto mesmo, todas as fraquezas consequentes de sua existência” (RAMOS, 2018RAMOS, Fernão. A ascensão do novo jovem cinema. In: RAMOS, Fernão; SCHVARZMAN, Sheila. Nova história do cinema brasileiro: Volume 2. São Paulo: Edições SESC, 2018. p. 16-115., p. 67). Tendo em vista esse estranho paradoxo, mas que fazia sentido para os jovens cineastas daquele período - ou pelo menos para Glauber Rocha -, a fome foi eleita como uma espécie de símbolo ou emblema cultural, como mazela e potência, vício e virtude daquela bomba que se implantava na década de 1960 sob a forma do cinema:

A fome latina [...] não é somente um sintoma alarmante: é o nervo de sua própria sociedade. Aí reside a trágica originalidade do Cinema Novo diante do cinema mundial: nossa originalidade é nossa fome e nossa maior miséria é que esta fome, sendo sentida, não é compreendida. (RAMOS, 2018RAMOS, Fernão. A ascensão do novo jovem cinema. In: RAMOS, Fernão; SCHVARZMAN, Sheila. Nova história do cinema brasileiro: Volume 2. São Paulo: Edições SESC, 2018. p. 16-115., p. 30).

Seu texto-manifesto foi lido na Europa em meio ao V Rassegna del Cinema Latino-Americano em Gênova, um evento sobre a relação entre o cinema de vanguarda brasileiro e o cinema mundial, tensionando o contato entre a produção latino-americana, suas mazelas, e o consumo mundial desse tipo de objeto artístico, sua recepção e suas implicações. Glauber fala diante dos europeus em tom provocador. Seu texto é da ordem do endereçamento, invertendo a rota geralmente tomada em que o europeu fala para o sujeito do terceiro mundo escutar, pois a fome é o tema em que nós não somos o “outro”. Se Glauber Rocha está, em seu manifesto, interessado em uma política pronominal, de nomeação de um nós (latino-americanos) e um eles (europeus), Ailton Krenak também o faz em diversas de suas falas públicas. Em O eterno retorno do encontro (1999KRENAK, Ailton. O eterno retorno do encontro. In: NOVAES, Adauto; FUNDAÇÃO NACIONAL DE ARTE (Brasil) (org.). A outra margem do ocidente. Brasília, São Paulo: Minc, FUNARTE; Companhia das Letras, 1999. p. 7-15.), por exemplo, Krenak remonta o contato dos europeus com o chamado Novo Mundo, reconstruindo a mítica cena do encontro entre brancos e povos nativos no território americano a partir de algumas perguntas:

Como essa história do contato entre os brancos e os povos antigos daqui desta parte do planeta tem se dado? Como temos nos relacionado ao longo desses quase 500 anos? É diferente para cada uma das nossas tribos o tempo e a própria noção desse contato? (KRENAK, 1999KRENAK, Ailton. O eterno retorno do encontro. In: NOVAES, Adauto; FUNDAÇÃO NACIONAL DE ARTE (Brasil) (org.). A outra margem do ocidente. Brasília, São Paulo: Minc, FUNARTE; Companhia das Letras, 1999. p. 7-15., p. 24).

Essa cena serve, num primeiro momento, à delimitação do espaço de tensão entre o “universal” (branco) e as alteridades das terras americanas (povos indígenas); e, posteriormente, para traçar questões que dizem respeito ao presente, como se o evento quinhentista pudesse se atualizar no Brasil. Partilhando da mesma política pronominal de Glauber Rocha, Krenak lança sua provocação intempestiva aos seus leitores/ouvintes:

Quando a data de 1500 é vista como marco, as pessoas podem achar que deviam demarcar esse tempo e comemorar ou debaterem de uma maneira demarcada de tempo o evento de nossos encontros. Os nossos encontros, eles ocorrem todos os dias e vão continuar acontecendo, eu tenho certeza, até o terceiro milênio, e quem sabe além desse horizonte. Nós estamos tendo a oportunidade de reconhecer isso, de reconhecer que existe um roteiro de um encontro que se dá sempre, nos dá sempre a oportunidade de reconhecer o Outro, de reconhecer na diversidade e na riqueza da cultura de cada um de nossos povos o verdadeiro patrimônio que nós temos, depois vêm os outros recursos, o território, as florestas, os rios, as riquezas naturais, as nossas tecnologias e a nossa capacidade de articular desenvolvimento, respeito pela natureza e principalmente educação para a liberdade. (KRENAK, 1999KRENAK, Ailton. O eterno retorno do encontro. In: NOVAES, Adauto; FUNDAÇÃO NACIONAL DE ARTE (Brasil) (org.). A outra margem do ocidente. Brasília, São Paulo: Minc, FUNARTE; Companhia das Letras, 1999. p. 7-15., p. 28).

Sabemos que Krenak, assim como uma série de outros autores indígenas, está interessado em “[...] uma contra-história e uma contra-antropologia indígenas, cujo objeto é a cultura dominante do Estado-nação que se abateu sobre os povos originários desta parte do mundo” (VIVEIROS, 2020VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Posfácio ― Perguntas inquietantes. In: KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras , 2020. p. 73-84., p. 75), como escreve o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro (2020) no posfácio “Perguntas Inquietantes” do livro Ideias para adiar o fim do mundo (2020), de Krenak. Essa reescrita da história, da corda bamba em que se equilibram as infinitas vozes que compõem o grande jogral étnico que é o Brasil, parte de um anseio próximo ao de Glauber nos seus manifestos, ou seja, de que maneira comunicar aquilo que marca nossa diferença, que se exibe na pele e nos afetos que nos ligam aos outros seres, mas que, ao mesmo tempo, é incapturável?

Para além dessa afinidade de método, é importante apontarmos as distâncias de estilo entre Ailton Krenak e Glauber Rocha, como, por exemplo, as temporalidades em jogo nas falas dessas duas figuras tão diferentes em suas embocaduras; o tom, o gesto e a velocidade da fala oral de cada um deles está impressa no interior da escritura, na fina camada da letra, transposta de maneira quase audível na forma como cada um deles se relaciona com a língua; a diferença da escrita apressada, incisiva e atropelada de Glauber e a lenta, de um outro tempo, menos incessante e mais compassada de Krenak - o que não significa que a de Krenak seja menos combativa ou que a de Glauber seja menos organizada. Enfim, como pensar as relações, os ecos e as aproximações de duas figuras tão díspares, tão afastadas em suas atribuições, lugares sociais, ambições político-estéticas, mas que, ao mesmo tempo, participaram e participam do debate público, do contato das minorias com as maiorias, engajados em questões da ordem da urgência? Como dar conta da intempestividade desses autores, sem reduzi-los ao mesmo problema e sem apartá-los totalmente em suas provocações? Tendo em vista essa série de questões, nosso interesse neste ensaio é construir um diálogo transversal entre esses dois autores a partir da instituição do sonho, talvez a dimensão que melhor atravessa suas afinidades e dissonâncias.

Uma política do sonho

Nos livros Ideias para adiar o fim do mundo (2020KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.) e A vida não é útil (2021KRENAK, Ailton. A vida não é útil. Pesquisa e organização Rita Carelli. São Paulo: Companhia das Letras , 2021.), Ailton Krenak parece-nos alinhado ao movimento mais recente do mercado editorial mainstream e ao desejo de lideranças indígenas de se endereçar ao mundo branco através daquilo que entendemos melhor: a palavra escrita, como defende o xamã yanomami Davi Kopenawa em sua parceria etnográfica transcultural com Bruce Albert, no início de A queda do céu:

Eu não tenho velhos livros como eles [brancos], nos quais estão desenhadas as histórias dos meus antepassados [...]. São essas palavras que pedi para [...] fixar nesse papel [...]. Quem sabe assim eles finalmente darão ouvidos ao que dizem os habitantes da floresta [...]. (KOPENAWA; ALBERT, 2015KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: Palavras de um xamã yanomami. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés; prefácio de Eduardo Viveiros de Castro. São Paulo: Companhia das Letras , 2015. , p. 65-66).

O chamado de Krenak ecoa outras vozes desses povos nas mais diferentes áreas, da antropologia às artes plásticas, em um contexto de intensificação de ataques do Estado brasileiro aos povos indígenas: ressurreição de projetos de hidrelétricas no Norte do país; acúmulo da violência histórica perpetrada pelos governos e seus asseclas; recente acirramento dos conflitos na esfera pública, materializado nos representantes declaradamente anti-indígenas do governo Bolsonaro; ofensivas como o marco temporal; e, é claro, o Antropoceno, a maior ameaça já enfrentada pela humanidade enquanto espécie, cujos efeitos dizem respeito diretamente aos povos indígenas e aqueles que vêm da Terra e a ela pertencem. Os dois livros ressoam discussões contemporâneas e as colocam cara a cara com as cosmologias indígenas, em especial ao mundo dos Krenak, que vivem à beira do Rio Doce, recentemente afetado pelo desastre ecocída1 1 A expressão “ecocídio” foi cunhada pela advogada e ativista Polly Higgins, conhecida por sua luta pelos direitos humanos e ambientais, a fim de descrever um tipo de delito específico que causa danos irreparáveis ao ecossistema. A principal meta de Higgins era incluir esse conceito como o quinto crime contra a paz nas convenções internacionais, permitindo assim que indivíduos responsáveis por atos que resultem na ampla destruição, dano ou perda de um ecossistema em um território específico sejam julgados pelo Tribunal Penal Internacional. da Vale S.A.

Um dos pontos que nos interessa é o da instituição do sonho, que não aparece, nesses livros, como um espaço especulativo de fuga dos problemas que Krenak, como ativista e liderança, está engajado em denunciar e combater. Pelo contrário, o espaço do sonho age politicamente nas cosmologias indígenas no âmago do cotidiano, como uma das formas de orientar o dia e o mundo, reprogramando práticas do contato sempre perigoso com o fora, com a potência das alteridades. O apelo de Krenak pelo cultivo do sonho é o de um chamamento às práticas de desaceleração - como nos remete o título de seu livro, um adiamento, poderíamos dizer - e ao estabelecimento de uma outra relação com o tempo, uma outra experiência comunitária:

Quando eu sugeri que falaria do sonho e da terra, eu queria comunicar a vocês um lugar, uma prática que é percebida em diferentes culturas, em diferentes povos, de reconhecer essa instituição do sonho não como experiência cotidiana de dormir e sonhar, mas como exercício disciplinado de buscar no sonho as orientações para as nossas escolhas do dia a dia. Para algumas pessoas, a ideia de sonhar é abdicar da realidade, é renunciar ao sentido prático da vida. Porém, também podemos encontrar quem não veria sentido na vida se não fosse informado por sonhos, nos quais pode buscar os cantos, a cura, a inspiração e mesmo a resolução de questões práticas que não consegue discernir, cujas escolhas não consegue fazer fora do sonho, mas que ali estão abertas como possibilidades. (KRENAK, 2020KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2020., p. 22).

Interessante perceber como a relação com o sonho não aparece em Krenak como uma exclusividade indígena, mas como um espaço que pode ser reivindicado, convocando os leitores para a experimentação marcadamente cotidiana, vinculada ao ínfimo do dia a dia, de uma relação pessoal e comunitária:

O tipo de sonho a que eu me refiro é uma instituição. Uma instituição que admite sonhadores. Onde as pessoas aprendem diferentes linguagens, se apropriam de recursos para dar conta de si e do seu entorno. [...] Os sonhos de alguém que está hoje preocupado com cataclismas, com a tragédia ambiental do planeta, podem ser mais parecidos com os de um pajé Xavante. (KRENAK, 2021KRENAK, Ailton. A vida não é útil. Pesquisa e organização Rita Carelli. São Paulo: Companhia das Letras , 2021., p. 34-35).

Ao contar a história da sua relação com um pajé, Krenak confessa que “[...] desde aquela época, experiencio o sentido do sonho como instituição que prepara as pessoas para se relacionarem com o cotidiano” (KRENAK, 2021KRENAK, Ailton. A vida não é útil. Pesquisa e organização Rita Carelli. São Paulo: Companhia das Letras , 2021., p. 37), e continua:

Essa instituição também se comunica com esferas mais domésticas. Sonhar é uma prática que pode ser entendida como regime cultural em que, de manhã cedo, as pessoas contam o sonho que tiveram. Não como uma atividade pública, mas de caráter íntimo. Você não conta seu sonho em uma praça, mas para as pessoas com quem tem uma relação. O que sugere também que o sonho é um lugar de veiculação de afetos. Afetos no vasto sentido da palavra: não falo apenas de sua mãe e seus irmãos, mas também de como o sonho afeta o mundo sensível; de como o ato de contá-los é trazer conexões do mundo dos sonhos para o amanhecer, apresentá-los aos seus convivas e transformar isso, na hora, em matéria intangível. Quando o sonho termina de ser contado, quem o escuta já pode pegar suas ferramentas e sair para as atividades do dia: o pescador pode ir pescar, o caçador pode ir caçar e quem não tem nada a fazer pode se recolher. Não há nenhum véu que o separa do cotidiano e o sonho emerge com maravilhosa clareza. (KRENAK, 2021KRENAK, Ailton. A vida não é útil. Pesquisa e organização Rita Carelli. São Paulo: Companhia das Letras , 2021., p. 37-38).

A domesticidade e a cotidianidade do sonho surgem na fala de Krenak como uma instância inexorável deste como um espaço de experimentação e de engendramento de uma prática e política do mundo comunitário. Não sendo o oposto da “realidade”, do mundo acordado (o avesso do ficcional), o sonho aparece justamente como uma experiência que organiza e, no limite, produz o cotidiano. Gostaríamos rapidamente de sublinhar, à guisa de exemplo, duas experiências etnográficas que atestam essa dimensão cotidiana e constitutiva dos sonhos na vida indígena. A primeira delas é a descrição feita por Philippe Descola, “discípulo” e “herdeiro” da cátedra de Claude Lévi-Strauss no Collège de France, da relação dos Achuar, povo comumente conhecido como jivaro, habitantes da fronteira amazônica entre o Peru e o Equador, com os sonhos e o cotidiano da aldeia:

Os achuar se levantam muito cedo, por volta das três ou quatro da manhã, mas vão dormir também muito cedo, pois às seis e meia já é noite no Equador, e às oito horas todo mundo está dormindo. Pouco antes do amanhecer, eles se reuniam ao redor de uma fogueira para decidir o que fariam durante o dia em função daquilo que haviam sonhado à noite. Na maior parte das vezes, interpretavam os sonhos segundos regras simples, baseadas geralmente na inversão entre a imagem sonhada e a indicação que podiam extrair dessa imagem. Por exemplo, sonhar que pescavam um peixe era um bom sinal para ir à caça e, ao contrário, sonhar que matavam um caititu era um bom sinal para ir à pesca. (DESCOLA, 2016DESCOLA, Philippe. Outras naturezas, outras culturas. Tradução de Cecília Ciscato. São Paulo: Editora 34 , 2016., p. 11-12).

A instituição do sonho para os Achuar ressoa bastante as características, objetivos e potências as quais Krenak se refere, isso porque o sonho participa e constrói o cotidiano, como se o dia precisasse ser “montado” coletivamente diante da partilha do mundo onírico, que, evidentemente, sempre tem algo a dizer ao grupo. O texto de Descola é, assim como os de Krenak, a transcrição de uma fala pública, dessa vez endereçada a um público jovem, estudantes de lycée.

Já o outro exemplo, trecho da etnografia de Tânia Stolze Lima, que atende a outros objetivos teóricos e conceituais, discorre sobre o papel dos sonhos nas dualidades da caça entre os Yudjá no Alto Xingu:

Considerando-se que a metafísica da caça situa um sonho no início e outro no fim da história de uma caçada, dados como caça antecipada e prolongamento de caça já realizada na experiência sensível; considerando-se também que essa metafísica coloca o passado e o futuro em uma relação metafórica ou de paralelismo, podemos afirmar que o sonho inicial é paralelo ao sonho final, formando assim a moldura das demais linhas da caça. A história do caçador (afora o fato de ele trazer na pele cicatrizes que lhe permitem recordar antigas aventuras) compõe-se, assim, de inúmeros motivos - muitos dos quais incompletos, por sorte ou azar seu - emoldurados por sonhos (seus ou de outrem, factuais ou virtuais), eles mesmos emoldurados pelas compridas linhas da Vida e do Sonho do caçador. (LIMA, 1996LIMA, Tânia Stolze. O dois e seu múltiplo: reflexões sobre o perspectivismo em uma cosmologia tupi. Mana, v. 2, n. 2, p. 21-47, 1996., p. 42).

De que forma esses relatos se comunicam com aquilo que Glauber Rocha fez no cinema e escreveu em seus manifestos “Eztetyka da fome” (1965ROCHA, Glauber. Eztetyka da Fome 1965. In: ROCHA, Glauber. Revolução do Cinema Novo. Rio de Janeiro: Cosac Naify , 2004b. p. 63-67. ) e “Eztetyka do sonho” (1971ROCHA, Glauber. Eztetyka do Sonho 1971. In: ROCHA, Glauber. Revolução do Cinema Novo. Rio de Janeiro: Cosac Naify, 2004a. p. 248-251.)? Sabemos que, na década de 1970, o cineasta estabeleceu uma relação com outra parte do terceiro mundo, especificamente com a comunicação transoceânica entre o Brasil e o continente africano, cuja maior expressão cinematográfica é Der Leone have sept cabeças (1970), gravado na República do Congo, com ampla participação da população “nativa”, mergulhando no debate sobre a descolonização de países africanos.

Ivana Bentes, em “Terra de fome e sonho: o paraíso material de Glauber Rocha” (2002BENTES, Ivana. Terra de Fome e sonho: O paraíso material de Glauber Rocha. In: Ressonâncias do Brasil. Espanha: Fundación Santillana, 2002. p. 90-109.), indica uma certa linha do tempo que podemos seguir para tentar encontrar o elo perdido entre Glauber Rocha e os ameríndios, partindo da Semana de Arte Moderna de 1922 até o tropicalismo dos anos 1970 (BENTES, 2002BENTES, Ivana. Terra de Fome e sonho: O paraíso material de Glauber Rocha. In: Ressonâncias do Brasil. Espanha: Fundación Santillana, 2002. p. 90-109., p. 1) - por mais que esse elo não exista de fato, é justamente pela busca extemporânea que podemos especular conexões imaginárias entre Glauber e esses outros povos. Por mais que saibamos que o cinema não foi uma expressão artística amplamente valorizada pelos idealizadores da Semana de 1922 (CAVOUR et al., 2022CAVOUR, Diogo et al. Por onde anda 1922? Imagens e palavras em movimento. In: CAVOUR, Diogo et al. (org.). Ecos de 1922: Modernismo no cinema brasileiro. Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília: CCBB, 2022. p. 3-11., p. 5), a geração do Cinema Novo reverberou o modernismo paulista, assumindo de frente essa herança, com diversas adaptações de romances, com a descoberta de Oswald de Andrade e com a incorporação de elementos caros à primeira geração heroica, como a experimentação com a linguagem, a antropofagia e o retorno ao “Brasil profundo”. A necessidade de fundar um cinema nacional, como já estava claro no primeiro manifesto, unido ao reconhecimento da herança da literatura nacional, produziram as linhas de força do Cinema Novo. É justamente aí que a nossa hipótese sobre o encontro de Glauber com os ameríndios se fortalece, ou pelo menos da valorização desse tópos como matéria para a experimentação artística.

Em outro momento, Glauber Rocha, num pequeno texto intitulado “Tropicalismo, antropologia, mito, ideograma” (1969), antes de adentrar em uma discussão sobre a linguagem cinematográfica, faz uma breve referência à Semana de Arte Moderna de 1922 e à “revolução cultural” que foi aquele ano. Curioso como Oswald de Andrade aparece descrito como “genial” por Glauber, que, àquela altura, nos anos 1960, estava sendo redescoberto pela intelectualidade brasileira, especificamente por Haroldo de Campos, Augusto de Campos e pela geração ligada à poesia concreta. Glauber Rocha chega a afirmar categoricamente que “[...] a antropofagia e seu desenvolvimento são a coisa mais importante hoje na cultura brasileira” (ROCHA, 2013ROCHA, Glauber. Tropicalismo, antropologia, mito, ideograma 1969. In: ROCHA, Glauber. Revolução do Cinema Novo. São Paulo: Cosac Naify, 2013. p. 150-154. , p. 150). Para além dessa especulação e tentativa sempre equivocada de remontar a origem e o problemático encontro entre Glauber Rocha e os ameríndios, cabe-nos aqui ressaltar a afinidade extemporânea entre o sonho de Krenak e o sonho proposto pelo cineasta em seu segundo manifesto.

Uma estética do sonho

Em “Eztetyka do sonho” (1977), também escrito e proferido fora do Brasil, dessa vez em Nova Iorque, na Columbia University, Glauber estava interessado em “atualizar” seu primeiro manifesto. No texto, o cineasta se demora na discussão da arte revolucionária e da produção de um cinema politicamente engajado e implicado: “Uma obra de arte revolucionária deveria não só atuar de modo imediatamente político como também promover a especulação filosófica, criando uma estética do eterno movimento humano rumo à sua integração cósmica” (ROCHA, 2004aROCHA, Glauber. Eztetyka do Sonho 1971. In: ROCHA, Glauber. Revolução do Cinema Novo. Rio de Janeiro: Cosac Naify, 2004a. p. 248-251., p. 249). Seu projeto tinha como objetivo se distanciar do panfletarismo que infligiu parte do cinema de esquerda, como é o caso de La hora de los hornos (1973), do argentino Fernando Ezequiel Solanas, citado como contraexemplo por Glauber em seu manifesto.

Glauber Rocha, assim como Ailton Krenak, atribui os males de suas questões - no caso do cineasta a arte, no caso de Krenak os modos de vida - ao racionalismo, o sistema mental que organiza a vida social nas ditas “civilizações”, aquilo que, para Krenak, torna a vida refém de um utilitarismo despotencializado, nascedouro das nossas maiores catástrofes. Para Glauber, é nessa encruzilhada que também se encontra a formalização excessiva dos filmes revolucionários, o que transforma o povo no mito da burguesia, como escreve em seu manifesto. Com apenas um golpe, Glauber Rocha acerta direita e esquerda: a primeira por motivos óbvios, já que o Brasil estava em plena Ditadura Militar, e a segunda graças à recepção controversa de sua obra por alguns grupos descritos por ele como “sectários”. Também como Krenak, para Glauber, a “[...] ruptura com os racionalismos colonizadores é a única saída” (ROCHA, 2004aROCHA, Glauber. Eztetyka do Sonho 1971. In: ROCHA, Glauber. Revolução do Cinema Novo. Rio de Janeiro: Cosac Naify, 2004a. p. 248-251., p. 250), a transformação do nosso modo de vida e a reconfiguração da arte são as únicas coordenadas possíveis para traçar uma linha de fuga do ponto de inflexão que nos encontrávamos.

Alegoria como problema

Ana Kiffer, em “Glauber Rocha, do dialético ao intempestivo” (2012KIFFER, Ana. Glauber Rocha, do dialético ao intempestivo. In: KIFFER, Ana; BIDENT, Cristophe (org.). Anacronismos. Rio de Janeiro: 7Letras, 2012. p. 11-24.), ensaia uma leitura alternativa ao caminho fome-sonho de Glauber Rocha em seus manifestos:

[...] nos parece urgente destacar que, mesmo tendo revisto dez anos depois a estética da fome em texto intitulado “A estética do sonho” (1971), o sonho não funcionará nem como negação nem como antítese de um processo dialético que resultará em seu último e incompreensível filme A idade da terra. Ao contrário, nos parece que a negatividade ou a opacidade dessa experiência limite da fome vai se radicalizando em metamorfoses constantes na obra de Glauber. O sonho não deve ser entendido enquanto saída de um coletivo pensando no final de sua obra, como comumente se faz. (KIFFER, 2012KIFFER, Ana. Glauber Rocha, do dialético ao intempestivo. In: KIFFER, Ana; BIDENT, Cristophe (org.). Anacronismos. Rio de Janeiro: 7Letras, 2012. p. 11-24., p. 19).

Ora, se não existe uma mutação qualitativa e ontológica entre a fome e o sonho, a leitura caminha para a descoberta do sonho em Glauber como um desdobramento interno da fome, uma transformação imanente, como se o sonho, aqui, fosse uma das formas de expressão e continuidade da fome, uma de suas virtualidades. Afinado com essa leitura, Gilles Deleuze, em Cinéma 2: L’image-temps (1985), pensa nas diversas configurações de povo nos primeiros filmes de Glauber Rocha.2 2 A referência primordial que aparece para a análise da constituição desses povos no cinema do terceiro mundo - aspecto importante para Deleuze nos filmes da América do Sul, radicalmente diferente do que ele nomeia como cinema político clássico - é o texto de Roberto Schwarz acerca da produção cultural dos anos 1960, “Remarques sur la culture et la politique au Brésil, 1964-1969” (1970), publicado na revista Les Temps Modernes. O filósofo acompanha a leitura de Schwarz sobre Glauber, afastando-se da leitura dialética e lhe atribuindo um caráter extemporâneo e intempestivo, a partir de uma discussão sobre a justaposição entre o arcaico e o moderno no cinema: “[...] não se trata de analisar o mito para descobrir seu sentido ou estrutura arcaica, mas sim referir o mito arcaico ao estado das pulsões em uma sociedade perfeitamente atual, fome, sede, sexualidade, potência, morte, adoração” (DELEUZE, 2018DELEUZE, Gilles. Cinema 2 ― A imagem-tempo. São Paulo: Editora 34, 2018., p. 317). Essa indistinção entre arcaico e contemporâneo, de virtualização dos problemas seculares na malha do presente, é que torna a leitura de Deleuze e de Kiffer interessantes para pensar a consubstancialidade da fome e do sonho e a radical atualidade desses problemas e produções artísticas para se pensar o Brasil. Ainda, Ana Kiffer sintetiza essa proposta e nos apresenta a importância de se pensar fome e sonho como duas faces de uma mesma moeda, ambas implicadas na constituição de um povo que ainda não existe, em uma atualização constante dos mitos arcaicos nos problemas contemporâneos:

[...] parece que algo do Brasil revolucionário se faz, para Glauber Rocha, nessa passagem da fome ao sonho, mas não enquanto ultrapassar da primeira através da segunda. Ao contrário, a fome é central para que o sonho de Glauber se afaste do alegórico e se encarne no delírio de um povo por vir. (KIFFER, 2012KIFFER, Ana. Glauber Rocha, do dialético ao intempestivo. In: KIFFER, Ana; BIDENT, Cristophe (org.). Anacronismos. Rio de Janeiro: 7Letras, 2012. p. 11-24., p. 21).

O interesse desse gesto só se justifica enquanto metodologia de uma intempestividade crítica, atualizando os “[...] acontecimento[s] ainda e sempre presentes” (KIFFER, 2012KIFFER, Ana. Glauber Rocha, do dialético ao intempestivo. In: KIFFER, Ana; BIDENT, Cristophe (org.). Anacronismos. Rio de Janeiro: 7Letras, 2012. p. 11-24., p. 12). Isso porque, o tipo de leitura que a autora recusa é o de certa crítica brasileira que tentou pensar os filmes de Glauber como um desencapsulamento das formações alegóricas nacionais, como se essa obra estivesse irremediavelmente conectada ao passado, à “representação” da fome e à reincidência de problemas no mundo político. Dessa maneira, existe uma coincidência oportuna entre esse tipo de leitura e a posição pessoal de Glauber Rocha como “filiado” a uma perspectiva histórica e filosófica dialética. Essa espécie de alinhamento entre crítica e biografia marxianas garantiu densidade às leituras alegorizantes da obra de Glauber, tornando-a hegemônica na recepção de seus filmes. Na contramão dessa recepção, Ana Kiffer apresenta como no corpo a corpo com a obra do autor surge uma certa intempestividade na aparente predisposição dialética de suas imagens, nas quais, agora, o problema da fome não trata mais de algo atomizado no passado colonial que as imagens tentam dar conta de “representar”, mas revelam uma atualidade insistente dessas estruturas no presente, abrindo sua obra para um anacronismo potente, cujos problemas dizem respeito ao passado, ao presente e ao porvir do Brasil (KIFFER, 2021KIFFER, Ana. Brasil: notas de um retorno ao país da fome. Alter - Revista de Filosofia e Cultura, v. 15, n. 01, p. 135-138, 2021.).

Relações intempestivas

Se, para Ana Kiffer, Glauber Rocha em “Eztetyka da fome” (1965) mirava o dialético e acertava o intempestivo, ao nosso ver, em “Eztetyka do sonho” (1971) ele mirava a arte revolucionária e encontrava as cosmologias ameríndias. Podemos afirmar que se o intempestivo em Glauber rompe aqui com a dialética, estabelecendo-se em um pensamento da diferença, em Ailton Krenak, o pensamento da diferença aponta para as alianças com os demais seres da terra, na direção da sobrevivência de um povo, cujo conhecimento se constrói no sonho, isto é, escapando da tutela limitadora da razão utilitária e econômica.

Essa ilação um tanto quanto forte deve-se ao fato de que, apesar das diferenças, podemos imaginar algumas aproximações entre o sonho para o cineasta e para Krenak - a quem a instituição do sonho, por mais que seja pensada a partir da sua experiência enquanto membro da comunidade Krenak, acaba figurando como uma metonímia do sonho indígena de maneira generalizada, como foi demonstrado ao longo deste ensaio com os exemplos dos povos Achuar e Yudjá.3 3 A dimensão do sonho no mundo indígena foi discutida no recente livro O desejo dos outros: uma etnografia dos sonhos Yanomami da antropóloga Hanna Limulja, fruto da sua tese de doutorado em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina. O livro foi publicado em 2022 pela Ubu Editora e contou, ainda, com a interlocução de Davi Kopenawa nas ilustrações. Ailton Krenak usa o sonho como uma maneira de projetar outros modos de vida, de imaginar outros possíveis, graças ao estatuto que os sonhos têm na composição do cotidiano e na afetação do ritmo do dia para as comunidades indígenas. O sonho é mobilizado como um espaço de experimentação à disposição de todos para pensar a desaceleração da vida e, consequentemente, o adiamento do fim do mundo, já que, para Krenak, o Antropoceno é incontornável devido ao nosso modo de consumir, inteiramente ligado ao racionalismo colonizador que Glauber Rocha denuncia em seu segundo manifesto. Para tanto, Krenak usa a figura do paraquedas, um instrumento que serve para nos salvar, mas que guarda um sentido físico muito específico: desacelerar até o encontro com a superfície. O contato do corpo com o chão, que, sem o paraquedas, seria mortal, é inevitável, escreve Krenak:

De que lugar se projetam os paraquedas? Do lugar onde são possíveis as visões e o sonho. Um outro lugar que a gente pode habitar além dessa terra dura: o lugar do sonho. Não o sonho comumente referenciado de quando se está cochilando ou que a gente banaliza “estou sonhando com o meu próximo emprego, com o próximo carro”, mas que é uma experiência transcendente na qual o casulo do humano implode, se abrindo para outras visões da vida não limitada. Talvez seja outra palavra para o que costumamos chamar de natureza. Não é nomeada porque só conseguimos nomear o que experimentamos. O sonho como experiência de pessoas iniciadas numa tradição para sonhar. Assim como quem vai para uma escola aprender uma prática, um conteúdo, uma meditação, uma dança, pode ser iniciado nessa instituição para seguir, avançar num lugar do sonho. Alguns xamãs ou mágicos habitam esses lugares ou têm passagem por eles. São lugares com conexão com o mundo que partilhamos; não é um mundo paralelo, mas que tem uma potência diferente. (KRENAK, 2020KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2020., p. 65-67).

Essa distinção importante que Krenak faz entre o sonho dos brancos (o do próximo emprego, do novo carro, quer dizer, ontologicamente oposto à realidade) e o sonho dos indígenas (ligado ao cotidiano, em contato direto com a realidade, com o poder de modificar as práticas que norteiam o dia a dia) é cabal para compreender a política do sonho indígena. É por essas bandas que caminha também o sonho de Glauber, não necessariamente ligado ao cotidiano, mas interessado no contato com a realidade, como confirma Ana Kiffer: “Sua acepção [de Glauber Rocha] de sonho não é surrealista, não se trata do sonho como fantasia, avesso à realidade da fome. O seu sonho deveria ser aproximado da vidência, do acontecimento, daquilo que não se ultrapassa” (KIFFER, 2012KIFFER, Ana. Glauber Rocha, do dialético ao intempestivo. In: KIFFER, Ana; BIDENT, Cristophe (org.). Anacronismos. Rio de Janeiro: 7Letras, 2012. p. 11-24., p. 21). O sonho de Glauber, portanto, é esse espaço, distante do realismo engajado, do panfletarismo político, que pode engendrar novas linguagens artísticas e proporcionar, ao realizador do terceiro mundo, uma particularidade comunicativa que lhe dá vantagem em relação ao colonizador. Para Glauber, a distinção entre colonizador e colonizado não representa simplesmente uma diferenciação entre o latino-americano e o europeu, já que, para o cineasta, a burguesia nacional figura como colonizadora. Esse espaço ligado à realidade garante ao sonho a tessitura para a composição de novas formas, de revigoramento da arte revolucionária. “O sonho é o único direito que não se pode proibir” (ROCHA, 2004aROCHA, Glauber. Eztetyka do Sonho 1971. In: ROCHA, Glauber. Revolução do Cinema Novo. Rio de Janeiro: Cosac Naify, 2004a. p. 248-251., p. 251), escreve Glauber em seu manifesto, marcando o espaço incapturável pela ordem capitalista4 4 Interessante pensar no argumento de Jonathan Crary em seu livro 24/7: Capitalismo tardio e os fins do sono (2016), no qual o sono é visto como uma das últimas zonas fora do alcance do racionalismo produtivista capitalista, cujo domínio tem sido objeto de estudos científicos para colonizá-lo, tal como escreve o autor: “O sono afirma a ideia de uma necessidade humana e de um intervalo de tempo que não pode ser colonizado nem submetido a um mecanismo monolítico de lucratividade, e desse modo permanece uma anomalia incongruente e um local de crise no presente global. Apesar de todas as pesquisas científicas, frustra e confunde qualquer estratégia para explorá-lo ou redefini-lo. A verdade chocante, inconcebível, é que nenhum valor pode ser extraído do sono” (CRARY, 2016, p. 20). que é atribuída ao sonho, esse espaço não localizável pelo colonialismo, livre dos clichês das formas, mas que, mesmo assim, pode compor com o cotidiano da montagem, da filmagem e da criação artística.

A coextensividade entre sonho, cotidiano e realidade está na acepção indígena desta instituição: “[...] o cotidiano era uma extensão do sonho. E as relações, os contratos tecidos no mundo dos sonhos, continuavam tendo sentido depois de acordar” (KRENAK, 2021KRENAK, Ailton. A vida não é útil. Pesquisa e organização Rita Carelli. São Paulo: Companhia das Letras , 2021., p. 46-47), escreve Krenak acerca dos encontros e acordos firmados em sonho com outras comunidades humanas e não-humanas e que continuavam depois do despertar, o que confirma a falsidade da oposição entre sonho e realidade para os brancos. Existe algo de incapturável no sonho, como já descrito por Glauber, porém, antes de não localizável, existe outra questão-chave, o sonho aqui é indescritível, da ordem da experimentação, escreve o cineasta: “Não justifico nem explico meu sonho porque ele nasce de uma intimidade cada vez maior com o tema dos meus filmes, sentido natural de minha vida” (ROCHA, 2004aROCHA, Glauber. Eztetyka do Sonho 1971. In: ROCHA, Glauber. Revolução do Cinema Novo. Rio de Janeiro: Cosac Naify, 2004a. p. 248-251., p. 251). É desse ponto em que o sonho se comunica com o fazer cotidiano.

As raízes indígenas da cultura latino-americana aparecem em “Eztetyka do sonho” (1971) como uma das poucas potências - além da africana - contra o racionalismo colonizador que denuncia Glauber Rocha, assumindo ainda a dimensão colonial da burguesia e classes médias brasileiras. Encontrando-se na linguagem e nos saberes populares, Glauber mira no futuro e encontra os indígenas, não como a cristalização de um mito de origem da identidade nacional, mas como força motora para a produção de uma arte revolucionária engajada na produção de novas linguagens, de descasque da carapaça cultural capitalista, dos clichês da indústria de massa e de uma nova relação com o tempo cinematográfico:

As raízes índias e negras do povo latino-americano devem ser compreendidas como única força desenvolvida deste continente. Nossas classes médias e burguesias são caricaturas decadentes das sociedades colonizadoras. A cultura popular não é o que se chama tecnicamente de folclore, mas a linguagem popular de permanente rebelião histórica. (ROCHA, 2004aROCHA, Glauber. Eztetyka do Sonho 1971. In: ROCHA, Glauber. Revolução do Cinema Novo. Rio de Janeiro: Cosac Naify, 2004a. p. 248-251., p. 251).

Personagens fora-do-tempo

Eldorado, como sabemos em Terra em transe (1967), é uma ex-colônia, na qual podemos escutar, pela voz de Porfírio Diaz (Paulo Autran), na célebre cena da coroação, as seguintes palavras de promessa de ordenação e civilidade: “Aprenderão! Dominarei esta terra. Botarei estas histéricas tradições em ordem. Pela força. Pelo amor à força! Pela harmonia universal dos infernos. Chegaremos a uma civilização!”. O desejo de poder de Porfírio Diaz revela o delírio mais íntimo de um populista decadente: transformar o primitivo em civilizado. Os aspectos políticos da resistência à transformação (civilização) são diferentes em Krenak e em Glauber: o primeiro mais interessado nisso que podemos chamar, grosso modo, de “bárbaro tecnizado” (ANDRADE, 1990ANDRADE, Oswald de. Manifesto Antropófago. In: A utopia antropofágica. São Paulo: Globo; Secretaria de Estado da Cultura, 1990. p. 47-52., p. 48), ou seja, a projeção futura do selvagem como um porvir, e o segundo mais engajado na resistência à modernização e às diversas formas de colonização, naquilo que o próprio Glauber reclama como “[...] o artesanato contra a tecnologia”, na abertura de um de seus programas da TV Tupi no final da década de 1970. Para além dessa diferença, existe um aspecto comum aos dois: o da valorização dessa herança “artesanal”, popular, bárbara, selvagem e, no limite, primitiva. A composição com essa série de forças delineia aquilo que Glauber chama de sonho, algo da ordem do delírio, e o que também Krenak evoca com o mesmo nome, algo que está em alinhamento direto com o cotidiano, da elaboração da vida comunitária e na relação íntima com as alteridades - seja no mundo onírico, seja na fricção dos afetos em comunidade; se é que essa distinção faz sentido para esses povos. A intempestividade de Glauber Rocha está nos manifestos, na atualidade e na potência da fome como mazela e singularidade, mas também no fora-do-tempo5 5 A expressão “fora-do-tempo” é usada pelo filósofo Jacques Rancière para descrever alguns personagens dos filmes de John Ford e Pedro Costa, nos quais a figura do camponês e/ou dos trabalhadores aparecem como testemunhas da História, cada um em sua performance, mas revelando algo sobre a condição global e transtemporal de seus próprios corpos (RANCIÈRE, 2021, p. 151). dos personagens de seus filmes, na anacronicidade (não ahistórica, mas transtemporal) de seus símbolos. Os personagens de Glauber Rocha - como Porfírio Diaz ou as diversas modulações do povo - são filmados como fora-do-tempo, extemporâneos, que atravessam as camadas do tempo e convivem em sua orquestra cinematográfica. Já Krenak, por tematizar aquilo que seria a maior urgência da atualidade, a crise climática, e, consequentemente, a remodelação das práticas cotidianas, pode-se atribuir a alcunha do intempestivo, apostando nos indígenas a chave do porvir, da resolução parcial dos conflitos entre sociedade, natureza e clima, de uma maneira melhor de viver e morrer no Antropoceno.

Referências

  • ANDRADE, Oswald de. Manifesto Antropófago. In: A utopia antropofágica São Paulo: Globo; Secretaria de Estado da Cultura, 1990. p. 47-52.
  • BENTES, Ivana. Terra de Fome e sonho: O paraíso material de Glauber Rocha. In: Ressonâncias do Brasil Espanha: Fundación Santillana, 2002. p. 90-109.
  • CAVOUR, Diogo et al Por onde anda 1922? Imagens e palavras em movimento. In: CAVOUR, Diogo et al (org.). Ecos de 1922: Modernismo no cinema brasileiro. Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília: CCBB, 2022. p. 3-11.
  • CRARY, Jonathan. 24/7: Capitalismo tardio e os fins do sono. São Paulo: Ubu Editora, 2016.
  • DELEUZE, Gilles. Cinema 2 ― A imagem-tempo São Paulo: Editora 34, 2018.
  • DESCOLA, Philippe. Outras naturezas, outras culturas Tradução de Cecília Ciscato. São Paulo: Editora 34 , 2016.
  • KRENAK, Ailton. O eterno retorno do encontro. In: NOVAES, Adauto; FUNDAÇÃO NACIONAL DE ARTE (Brasil) (org.). A outra margem do ocidente Brasília, São Paulo: Minc, FUNARTE; Companhia das Letras, 1999. p. 7-15.
  • KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
  • KRENAK, Ailton. A vida não é útil Pesquisa e organização Rita Carelli. São Paulo: Companhia das Letras , 2021.
  • KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: Palavras de um xamã yanomami. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés; prefácio de Eduardo Viveiros de Castro. São Paulo: Companhia das Letras , 2015.
  • KIFFER, Ana. Glauber Rocha, do dialético ao intempestivo. In: KIFFER, Ana; BIDENT, Cristophe (org.). Anacronismos Rio de Janeiro: 7Letras, 2012. p. 11-24.
  • KIFFER, Ana. Brasil: notas de um retorno ao país da fome. Alter - Revista de Filosofia e Cultura, v. 15, n. 01, p. 135-138, 2021.
  • LIMULJA, Hanna. O desejo dos outros: uma etnografia dos sonhos Yanomami. São Paulo: Ubu Editora, 2022.
  • LIMA, Tânia Stolze. O dois e seu múltiplo: reflexões sobre o perspectivismo em uma cosmologia tupi. Mana, v. 2, n. 2, p. 21-47, 1996.
  • RAMOS, Fernão. A ascensão do novo jovem cinema. In: RAMOS, Fernão; SCHVARZMAN, Sheila. Nova história do cinema brasileiro: Volume 2. São Paulo: Edições SESC, 2018. p. 16-115.
  • RANCIÈRE, Jacques. Tempos Modernos: Arte, tempo, política. São Paulo: n-1 edições, 2021.
  • ROCHA, Glauber. Eztetyka do Sonho 1971. In: ROCHA, Glauber. Revolução do Cinema Novo Rio de Janeiro: Cosac Naify, 2004a. p. 248-251.
  • ROCHA, Glauber. Eztetyka da Fome 1965. In: ROCHA, Glauber. Revolução do Cinema Novo Rio de Janeiro: Cosac Naify , 2004b. p. 63-67.
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  • VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Posfácio ― Perguntas inquietantes. In: KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo São Paulo: Companhia das Letras , 2020. p. 73-84.
  • 1
    A expressão “ecocídio” foi cunhada pela advogada e ativista Polly Higgins, conhecida por sua luta pelos direitos humanos e ambientais, a fim de descrever um tipo de delito específico que causa danos irreparáveis ao ecossistema. A principal meta de Higgins era incluir esse conceito como o quinto crime contra a paz nas convenções internacionais, permitindo assim que indivíduos responsáveis por atos que resultem na ampla destruição, dano ou perda de um ecossistema em um território específico sejam julgados pelo Tribunal Penal Internacional.
  • 2
    A referência primordial que aparece para a análise da constituição desses povos no cinema do terceiro mundo - aspecto importante para Deleuze nos filmes da América do Sul, radicalmente diferente do que ele nomeia como cinema político clássico - é o texto de Roberto Schwarz acerca da produção cultural dos anos 1960, “Remarques sur la culture et la politique au Brésil, 1964-1969”SCHWARZ, Roberto. Remarques sur la culture et la politique au Brésil, 1964-1969. Les Temps Modernes, n. 288, 1970. (1970), publicado na revista Les Temps Modernes.
  • 3
    A dimensão do sonho no mundo indígena foi discutida no recente livro O desejo dos outros: uma etnografia dos sonhos YanomamiLIMULJA, Hanna. O desejo dos outros: uma etnografia dos sonhos Yanomami. São Paulo: Ubu Editora, 2022. da antropóloga Hanna Limulja, fruto da sua tese de doutorado em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina. O livro foi publicado em 2022 pela Ubu Editora e contou, ainda, com a interlocução de Davi Kopenawa nas ilustrações.
  • 4
    Interessante pensar no argumento de Jonathan Crary em seu livro 24/7: Capitalismo tardio e os fins do sono (2016), no qual o sono é visto como uma das últimas zonas fora do alcance do racionalismo produtivista capitalista, cujo domínio tem sido objeto de estudos científicos para colonizá-lo, tal como escreve o autor: “O sono afirma a ideia de uma necessidade humana e de um intervalo de tempo que não pode ser colonizado nem submetido a um mecanismo monolítico de lucratividade, e desse modo permanece uma anomalia incongruente e um local de crise no presente global. Apesar de todas as pesquisas científicas, frustra e confunde qualquer estratégia para explorá-lo ou redefini-lo. A verdade chocante, inconcebível, é que nenhum valor pode ser extraído do sono” (CRARY, 2016CRARY, Jonathan. 24/7: Capitalismo tardio e os fins do sono. São Paulo: Ubu Editora, 2016., p. 20).
  • 5
    A expressão “fora-do-tempo” é usada pelo filósofo Jacques Rancière para descrever alguns personagens dos filmes de John Ford e Pedro Costa, nos quais a figura do camponês e/ou dos trabalhadores aparecem como testemunhas da História, cada um em sua performance, mas revelando algo sobre a condição global e transtemporal de seus próprios corpos (RANCIÈRE, 2021RANCIÈRE, Jacques. Tempos Modernos: Arte, tempo, política. São Paulo: n-1 edições, 2021., p. 151).

Editado por

Parecer Final dos Editores:

Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    15 Jun 2022
  • Aceito
    15 Mar 2023
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