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Demarcações espectrais: a ideia de ordem em Wallace Stevens

Spectral demarcations: the idea of order in Wallace Stevens

Resumo

A partir da análise do poema “The Idea of Order at Key West”, de Wallace Stevens, o presente artigo propõe-se a discutir o conceito de ordem conforme formulado na obra poética do autor. Diferentemente do trabalho da “nova crítica” [new criticism], que idealiza preservar intactas as fronteiras entre os espaços extrínseco e intrínseco que compõem os artefatos artísticos, a ideia de ordem em Stevens busca tragar para dentro do poema toda a sua exterioridade, reconfigurando criativamente a realidade.

Palavras-chave:
Stevens; ordem; autodeterminação.

Abstract

Based on the analysis of the poem “The Idea of Order at Key West”, by Wallace Stevens, this article intends to discuss the concept of order as formulated in the author’s poetic work. Unlike the literary criticism carried out by the “new critics”, which idealized preserving intact the boundaries between the extrinsic and intrinsic spaces that compose the artistic artifacts, the idea of order in Stevens seeks to bring into the poem all its exteriority, creatively reconfiguring the reality.

Keywords:
Stevens; order; self-determination.

Resumen

A partir del análisis del poema “The Idea of Order at Key West”, de Wallace Stevens, este artículo se propone discutir el concepto de orden tal como se formula en la obra poética del autor. A diferencia del trabajo de la “nueva crítica” [new criticism], que idealiza conservar intactas las fronteras entre los espacios extrínsecos e intrínsecos que conforman los artefactos artísticos, la idea de orden en Stevens busca tragar en el poema toda su exterioridad, reconfigurando creativamente la realidad.

Palabras clave:
Stevens; orden; autodeterminación.

The only possible order in life is one in which all order is incessantly changing. 1 1 “A única ordem possível na vida é aquela em que toda ordem muda incessantemente” (STEVENS, 1996, p. 291-292, tradução nossa).

A força de uma obra reside, entre outras coisas, na sua capacidade de recusar os lugares que a crítica literária não deixa de lhe atribuir. Mais que isso: a resistência à predicação é a sua condição de vida. Nada mais inócuo do que ler, por exemplo, Mário de Andrade ou Graciliano Ramos para neles reconhecer ou confrontar as características do modernismo brasileiro em suas diferentes gerações; da mesma forma - recorrendo aqui a um caso emblemático mais recente -, nada menos frutífero do que acessar os romances de Carolina Maria de Jesus para neles exaltar o amor pela literatura em meio a um contexto material desfavorável. Se o acúmulo de fortuna crítica em torno de um autor tende, por um lado, a lhe assegurar um espaço de visibilidade no disputado campo da atenção pública, leituras insistentemente reiterativas produzem, por outro, o efeito inverso, de converter a sua obra em um todo acabado e disponível para pronta apropriação, seja em um manual de historiografia literária, no melhor dos cenários, seja em uma entrada do Wikipédia, no pior. É quando as interpretações anteriores já não parecem mais suficientes, quando determinada análise vai perdendo a sua pertinência com o passar do tempo, que um autor volta a converter-se em problema relevante para a crítica. E é somente a partir desse descompasso entre obra e comentário que faz sentido falar na permanência do passado ou em tradição literária (CECHINEL, 2022CECHINEL, A. Tradição em T. S. Eliot: contornos do conceito. São Paulo: Edusp, 2022. ).

Nenhum escritor modernista de língua inglesa é tão capaz de confundir lugares, de colocar a leitura em curto-circuito, de solicitar a revisão contínua dos manuais de literatura, de acomodar e invalidar análises mutuamente excludentes, quanto o poeta estadunidense Wallace Stevens (1879-1955). Essa dificuldade de estabilizar o autor nas mesmas posições manualescas habitualmente associadas ao modernismo anglófono, ao legado de nomes como Ezra Pound, T. S. Eliot e James Joyce, embora pudesse servir de alimento para a crítica brasileira, talvez esclareça a carência de estudos de fôlego dedicados à sua obra em nosso contexto, o que contrasta com a imensidão de volumes que se acumulam ano após ano, em inglês, sobre títulos imprescindíveis, como Harmonium (1923), Ideas of Order (1935), The Man with the Blue Guitar (1937), entre outros.2 2 Entre os principais estudos da obra de Stevens no Brasil, cf. DURÃO, Fabio. “A pressão da realidade e a válvula de escape da verdade”. In: Modernismo e coerência: quatro capítulos de uma estética negativa. São Paulo: Nankin Editorial, 2012; SANTOS, A. C. dos. “A imaginação como metafísica: uma leitura do poema ‘O percurso de um particular’, de Wallace Stevens”. In: Texto Poético, 9 (15), 2013, p. 25-46. Talvez isso explique, aliás, as poucas tentativas de tradução de seus livros e o número significativo de poemas nunca vertidos para o português.3 3 A principal tradução da obra de Stevens para o português permanece o volume de Paulo Henriques Britto de 1987, atualizado e ampliado em edição de 2017. Cf. STEVENS, Wallace. O imperador do sorvete e outros poemas. Tradução e apresentação de Paulo Henriques Britto. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. Tudo isso contribui, é claro, para ampliar o fosso entre a complexidade do modernismo de língua inglesa tal como concebido pela fortuna crítica historicamente acumulada em inglês, e o retrato por vezes caricatural com que ele nos chega e é reproduzido ou atualizado em nossas formulações. Seja como for, se Stevens permanece em grande medida um desconhecido no Brasil, sua obra não tem deixado de promover um impasse produtivo para a crítica literária anglófona, desconcertando classificações estanques da literatura modernista ou representações que tendem a reproduzir sínteses definitivas de suas formas e procedimentos.

Conforme Gül Bilge Han (2019HAN, G. B. Wallace Stevens and the poetics of modernist autonomy. New York: Cambridge University Press, 2019.) expõe, há dois vetores críticos essenciais que atravessam a história de leituras da obra de Stevens. Por um lado, principalmente nas décadas inicias de recepção e sob a influência direta das formulações teóricas da “nova crítica”,4 4 Segundo a definição de Ivan Teixeira (1998, p. 34), a “nova crítica” compreende a obra literária “[...] como uma entidade independente, livre das supostas relações determinantes da sociedade com o artista e deste com o texto”. pode-se falar na constituição de uma vertente formalista de análise dos poemas. Segundo os pareceres habituais dos críticos representantes dessa primeira posição, os versos de Stevens se fecham a qualquer exterioridade contextual, numa autorreferencialidade ou autossuficiência estética que, para os leitores de hoje, não tarda a remeter ao ideário das “urnas bem urdidas” celebradas por Cleanth Brooks e seus pares. Segundo esse esquema de interpretações, a obra do poeta não cederia aos acontecimentos políticos imediatos de sua época, fechando-se em si mesma e resistindo à “pressão da realidade”, para utilizar aqui uma expressão muito cara ao próprio Stevens.5 5 “Por pressão da realidade, refiro-me à pressão de um ou mais eventos externos quaisquer sobre a consciência, a ponto de excluir qualquer poder de contemplação” (STEVENS, 1997, p. 654). A frase inicial e a declaração final de um célebre ensaio de R. P. Blackmur podem dar conta de ilustrar a preocupação fundamentalmente linguística que paira, nesse momento, sobre as posturas analíticas dos new critics e de seus sucessores: “O aspecto mais impressionante, se não o mais importante, dos versos de Stevens é o seu vocabulário”; “A natureza torna-se apenas palavras, e para um poeta as palavras são tudo” (BLACKMUR, 1986BLACKMUR, R. P. Selected essays of R. P. Blackmur. Edited with and introduction by Denis Donoghue. New York: The Ecco Press, 1986., p. 71 e 100). A literatura de Stevens criaria um espaço separado e intocado pelo exterior, convertendo-se num exercício desconectado da realidade, tal como acusarão alguns de seus detratores posteriormente, críticos e escritores preocupados com o mundo objetivo para o qual o poeta teria virado as costas em nome da uma pirotecnia verbalista.

Mais recentemente, por outro lado, há uma série de críticos que tentam demonstrar, a partir do estudo do desenvolvimento histórico da produção de Stevens, que essa primeira linha formalista de apreciação de seus versos está equivocada, que há, sim, em sua obra, reações claramente politizadas ao contexto histórico da época, principalmente em referência a acontecimentos como a quebra da Bolsa de Nova York em 1929, a Guerra Civil Espanhola (1936-1939) e as tensões do período entreguerras (1918-1939). Menos que entes autorreflexivos fechados para o seu exterior, os poemas de Stevens, especialmente aqueles da década de 1930, constituiriam respostas objetivas e políticas à crise econômica e aos horrores da guerra, tudo isso a partir de um conceito de resistência que já não teria que ver com a separação entre o artifício formal do poeta e a sociedade à qual ele busca responder crítica e criativamente em seus versos. Para citar um entre tantos outros exemplos, nas palavras de James Longenbach (1991LONGENBACH, J. Wallace Stevens: the plain sense of things. New York; Oxford: Oxford University Press, 1991. , p. 172) em seu Wallace Stevens: The Plain Sense of Things, “‘The Man With the Blue Guitar’, em que pese a sua natureza autorreferencial e teórica, nasceu do engajamento de Stevens com as questões políticas e estéticas que a Grande Depressão colocou em relevo”. Não se trata de declarar que os poemas sustentam um diálogo com a realidade a partir da sua forma, mas sim de ver uma relação de causa e consequência na própria origem de seus volumes, como no caso citado por Longenbach.

Se é bem verdade que ambas as vertentes interpretativas, a formalista e a historicista, enriquecem a obra de Stevens e ampliam as camadas de sentido que nela vão se acumulando, o certo é que elas, tomadas como respostas opositivas uma à outra, perdem de vista um aspecto central para a compreensão dos versos do poeta. Em outras palavras, a poesia como “ficção suprema” é desde sempre uma interferência da imaginação humana - por precária ou momentânea que seja - na realidade objetiva e concreta das coisas.6 6 Segundo Stevens (1996, p. 820), a poesia explora “[...] a possibilidade de uma ficção suprema, reconhecida como uma ficção, em que os seres humanos pudessem propor a eles próprios uma realização [fulfillment]”. Nesse sentido, a ideia de “literatura engajada” é um equívoco, um pleonasmo; a literatura é, de saída, uma violência organizada que se dirige contra o mundo e, portanto, uma operação política. O poema corresponde a uma composição capaz de dissolver as fronteiras que separam o dentro e o fora, de abolir os contornos que demarcam o espaço interno e externo, um ato criativo cuja força está em puxar para dentro de si todo o seu entorno, ou melhor, em converter a vida num prolongamento ou extensão sua, transformando-a. A separação do poeta na forma literária, sua dedicação ao aspecto construtivo do verso, é, ao mesmo tempo, um engajamento no mundo, uma intervenção ativa no sentido de reconstruir a realidade, de conferir-lhe uma outra ordenação, ainda que transitória. O presente ensaio propõe-se a compreender como dentro e fora se articulam e se afetam mutuamente na experiência estética a partir da análise do poema “The Idea of Order at Key West” - escrito em 1934 e presente no livro Ideas of Order (1935) - e do conceito de ordem nele formulado.

Materialidades espectrais - “The Idea of Order at Key West”

She sang beyond the genius of the sea. The water never formed to mind or voice, Like a body wholly body, fluttering Its empty sleeves; and yet its mimic motion Made constant cry, caused constantly a cry, That was not ours although we understood, Inhuman, of the veritable ocean. The sea was not a mask. No more was she. The song and water were not medleyed sound Even if what she sang was what she heard, Since what she sang was uttered word by word. It may be that in all her phrases stirred The grinding water and the gasping wind; But it was she and not the sea we heard. For she was the maker of the song she sang. The ever-hooded, tragic-gestured sea Was merely a place by which she walked to sing. Whose spirit is this? we said, because we knew It was the spirit that we sought and knew That we should ask this often as she sang. If it was only the dark voice of the sea That rose, or even colored by many waves; If it was only the outer voice of sky And cloud, of the sunken coral water-walled, However clear, it would have been deep air, The heaving speech of air, a summer sound Repeated in a summer without end And sound alone. But it was more than that, More even than her voice, and ours, among The meaningless plungings of water and the wind, Theatrical distances, bronze shadows heaped On high horizons, mountainous atmospheres Of sky and sea. It was her voice that made The sky acutest at its vanishing. She measured to the hour its solitude. She was the single artificer of the world In which she sang. And when she sang, the sea, Whatever self it had, became the self That was her song, for she was the maker. Then we, As we beheld her striding there alone, Knew that there never was a world for her Except the one she sang and, singing, made. Ramon Fernandez, tell me, if you know, Why, when the singing ended and we turned Toward the town, tell why the glassy lights, The lights in the fishing boats at anchor there, As the night descended, tilting in the air, Mastered the night and portioned out the sea, Fixing emblazoned zones and fiery poles, Arranging, deepening, enchanting night. Oh! Blessed rage for order, pale Ramon, The maker’s rage to order words of the sea, Words of the fragrant portals, dimly-starred, And of ourselves and of our origins, In ghostlier demarcations, keener sounds.7 7 “Ela cantava além do gênio do mar. / A água não formava mente ou voz, / Como um corpo todo corpo, agitando / As mangas ocas; essa mímica, no entanto, / Era um grito constante, sempre um grito / Que não era nosso, embora o entendêssemos, / Inumano, do verdadeiro oceano. // O mar não era máscara. Nem ela. / Canto e água não eram contraponto / Ainda que ela ouvisse o que cantava: / Seu canto era palavra por palavra. / Talvez em cada frase transpirasse / Água a ranger, vento a resfolegar; / Mas era ela e não o mar que ouvíamos. // Se fosse só a escura voz do mar / A se elevar, mesmo com a cor de muitas ondas; Se fosse só a voz exterior do céu / E nuvem, e coral murado em água, / Ainda que clara, seria ar profundo, / Fala arquejante de ar, som estival / A repetir-se num verão sem fim, Apenas som. Mas era mais que isso, / Mais que a voz dela até, e as nossas, entre / Mergulhos sem sentido de água e vento, / Distâncias teatrais, sombras de bronze / Apinhadas no horizonte, atmosferas / Montanhosas de céu e mar. // Era a voz dela / Que aguçava o céu em sua agonia. / Ela media-lhe da solidão a hora. / Ela era a artífice única do mundo / Em que cantava. E, ao cantar, o mar, / Fosse o que fosse antes, se tornava / O ser do canto dela, a criadora. E nós, / Ao vê-la esplêndida e sozinha, compreendemos / Que para ela nunca houve outro mundo /. Senão aquele que, ao cantar, ela criava. // Ramon Fernandez, se souber, me diga / Por quê, ao fim do canto, quando íamos / Rumo à cidade, por que as luzes vítreas, / As luzes das traineiras ancoradas, / Pensas no ar do entardecer, dominavam / A noite e parcelavam todo o mar, fixando / Regiões feéricas, polos de fogo, / Dispondo, aprofundando, enfeitiçando a noite. // Ah, pálido Ramon, bendito afã / De ordem, afã do criador de ordenar / Palavras do mar, de portais fragrantes, / Estrelados, e de nós, de nossa origem, / Em espectrais demarcações, em sons pungentes.”. (STEVENS, 2017, p. 89-93).

Já em seu verso inicial, o poema introduz um dos temas mais caros à obra de Stevens, seu topos fundamental, ou seja, a relação entre a imaginação ou o ato criativo, de um lado, e a realidade ou a materialidade objetiva das coisas, de outro. Uma mulher engendra um canto que se dirige ao mar, que buscar encarnar a voz do mar, mas que, contudo, situa-se “além do gênio do mar”, incapaz de apreendê-lo, de reproduzi-lo em seus movimentos próprios, de permanecer em sincronia, unidade ou coincidência com ele. Algumas palavras chamam aqui a atenção, não só o termo “além” [beyond], que estabelece uma não correspondência ou um descompasso espacial, temporal ou mesmo físico entre as duas posições, a do canto e a do mar, mas também o item “gênio” [genius], que se refere a um “caráter”, “personalidade” ou “espírito” que o mar possui e que não se deixa incorporar no canto. Trata-se, pois, de uma disputa irreconciliável entre a tentativa de capturar a realidade em si e a recusa dessa mesma realidade em deixar-se dominar, em se apresentar como uma coisa disponível ou finalizada, o que resulta, por fim, no inevitável risco de antropomorfização da cena que será desenvolvido e tematizado ao longo do poema inteiro. No anseio de tentar apreender a voz do mar, deparamo-nos fundamentalmente com a nossa própria voz e com uma reivindicação não cumprida, destinada a um mundo que nos abriga, mas que não se remete a nós em particular.

Ora, se o mar possui um “gênio”, essa sua suposta coerência interna permanece impenetrável para o canto humano, sem dar forma à “mente ou voz”, “como um corpo todo corpo” que apenas agita “suas mangas ocas”.8 8 Conforme Frank Lentricchia (1968, p. 180) observa, segundo a “[...] tradição clássica, ‘gênio’ significa um deus ou espírito ordenador ou tutelar que preside um determinado lugar”. A relação de oposição introduzida pelo “no entanto” [yet] no quarto verso, contudo, não deve ser menosprezada, e será decisiva para os demais desdobramentos do poema: embora a agitação incessante do mar, em seu corpo instável de “mangas ocas”, não permita integrar-se ao canto humano, seu “movimento mímico” - uma ação imitativa encarnada formalmente pela repetição do fonema /m/ - produz um “grito constante” que exerce um apelo à mente humana, solicitando a interpretação. O “grito constantemente causado”9 9 Seria este “grito” [cry], aliás, o barulho das ondas, aqui anunciado pela reverberação do fonema /c/, em seu ato de permanente composição e decomposição? pelo movimento mímico do mar não concerne a nós, porém o acesso a ele não nos está inteiramente vetado, pois há algo ali que, mesmo “inumano”, pertencendo apenas ao “verdadeiro oceano”, é ressonante e comunica um conteúdo que precisa ser averiguado. A ideia de “ordem” anunciada no título do poema corresponde justamente a esse exercício tateante de verificação, ou melhor, à tentativa incontornável de conferir sentido ou arranjo provisório a uma atividade da natureza que, profundamente reveladora, apenas nos oferece lateralmente e em meio a um deslocamento contínuo, sem se reportar ao humano em particular no horizonte de seus atos. Nas palavras de Bart Eeckhout (2002EECKHOUT, B. Wallace Stevens and the limits of reading and writing. Columbia; London: University of Missouri Press, 2002.):

O poema abre estabelecendo uma enorme lacuna entre o humano e o natural - a lacuna onde a poesia pode começar a ser escrita e a música a ser composta. [...] Este é o paradoxo da nossa relação humana com a natureza: os efeitos sensuais que registramos “não são nossos” e, no entanto, somos apenas “nós” que podemos afirmar que os “compreendemos”; mas essa compreensão em si deve, de alguma forma, permanecer nossa, pois nunca pode ser uma compreensão da profunda alteridade do “inumano”, do “verdadeiro oceano” em si. Stevens repete o clássico dilema epistemológico que afeta fundamentalmente nosso impulso para a representação mimética. (EECKHOUT, 2002EECKHOUT, B. Wallace Stevens and the limits of reading and writing. Columbia; London: University of Missouri Press, 2002., p. 212-213).

“The Ideia of Order at Key West” é, portanto, um poema sobre o significado ou resultado da ação de ordenar e conferir legibilidade analítica às coisas quando voltadas a um objeto cujo impulso fundamental é o de não se manifestar como unidade, de só se exibir em fuga, em desordem. Não por acaso o que as cinco primeiras do total de sete estrofes do poema encenam é uma espécie de tática reiterativa de aproximação, um reenquadramento obstinado do mesmo problema sob diferentes ângulos. À reconfiguração do grito do mar, à assincronia entre o canto e o som das águas, os versos respondem com a recomposição dos vetores de entrada no deslizamento da substância em si para a tradução criativa. Esse impulso de desarmar o cenário em trânsito, de fabricar, como numa tocaia, um instante de aprisionamento do seu significado, não nos deixa confundir a poética de Stevens com qualquer resquício de transcendentalismo romântico. Em outras palavras, a não coincidência entre a voz que canta e o gênio do mar no poema de 1934 em nada se assemelha às noções de “harmonia”, de “combinação” ou de “sublime” com que William Wordsworth, por exemplo, descreve o instante de acesso à verdade profunda das coisas por meio da imaginação humana. A rigor, a literatura de Stevens, consciente da inevitável antropomorfização do mundo e por ela para sempre assombrada, contrasta vivamente com o ideário da simbiose entre natureza e imaginação a ponto de poder ser lida, inclusive, como uma crítica contundente à tradição romântica. Estamos distantes do “sentido sublime” narrado por Wordsworth em “Lines Composed a Few Miles above Tintern Abbey” - com o qual “The Idea of Order at Key West” costuma ser comparado -, ou da “mente poderosa” descrita no décimo terceiro livro, versos 66-73, de seu Prelúdio:

A meditation rose in me that night Upon the lonely Mountain when the scene Had passed away, and it appeared to me The perfect image of a mighty Mind, Of one that feeds upon infinity, That is exalted by an underpresence, The sense of God, or whatso’er is dim Or vast in its own being;10 10 “Uma meditação me ocorreu naquela noite / Na Montanha solitária quando a cena / Havia terminado, e a mim apareceu / A imagem perfeita de uma Mente poderosa, / Uma Mente que se alimenta do infinito, / Que é exaltada por uma subpresença, / O sentido de Deus, ou o que quer que seja obscuro / Ou vasto em seu próprio ser;” (WORDSWORTH, 2010, p. 506-507, tradução nossa). And I have felt A presence that disturbs me with the joy Of elevated thoughts; a sense sublime Of something far more deeply interfused, Whose dwelling is the light of setting suns, And the round ocean, and the living air, And the blue sky, and in the mind of man, A motion and a spirit, that impels All thinking things, all objects of all thought, And rolls through all things.11 11 “E eu tenho sentido / Uma presença que me perturba com a alegria / De pensamentos elevados; um sentido sublime / De algo muito mais profundamente impregnado, / Cuja morada é a luz do sol poente, / E do oceano redondo, e do ar vivo, / E do céu azul, e da mente do homem, / Um movimento e um espírito, que impele / Todas as coisas pensantes, todos os objetos pensados, / E perpassa por todas as coisas.” (WORDSWORTH, 2010, p. 51, tradução nossa).

Como dito, os versos de Stevens procedem por meio de um mecanismo de ajustamento ou retificação de suas próprias ideias e imagens, como se o poema se desse no próprio ato do pensamento ou em processo. Entre as autocorreções que se sobressaem na segunda estrofe, vale destacar o esclarecimento de que canto e água não se cruzam nem se misturam [were not medleyed sound], mesmo que o canto esteja todo ele sob o controle de sua autora, ou busque repetir, “palavra por palavra”, o som do mar. Nesse sentido, nem canto nem mar são “máscaras” - “O mar não era máscara. Nem ela.” -, vias de acesso provisórias ou ficcionais para uma realidade mais ampla, transcendente, como no caso dos exemplos extraídos da poética de Wordsworth; conforme James S. Hans (1990HANS, J. S. The value(s) of literature. New York: State University of New York Press, 1990., p. 65) assinala, por mais que poetas ou cantores pensem “[...] expressar a essência da natureza em sua obra - como é o caso em Walt Whitman -, os sons da canção e da água apenas confirmam que o mundo humano está separado do mundo natural”, e que essa é uma condição irreparável, intransponível. Mesmo diante da possibilidade de maior contágio, de maior interação entre as duas atividades - “Talvez em cada frase transpirasse / Água a ranger, vento a resfolegar” -, o poema não nos deixa esquecer: “Mas era ela e não o mar que ouvíamos”. Interessante observar que o verso em inglês - “it was she and not the sea we heard” - aproxima she e sea nesse instante, como que dramatizando formalmente aquela mesma mistura, agora situada no campo sonoro, que os versos lutam insistentemente para descartar como resultado de um equívoco.

As próximas três estrofes seguem inquirindo sobre o mesmo embate entre canto e mar, porém agora a partir de uma recomposição do ângulo de entrada na relação entre um e outro. Em linhas gerais, o foco passa a recair principalmente sobre aquela que o eu-lírico considera a pergunta fundamental que surge com o canto, que decorre do contato com a voz da mulher em sua interlocução com o mar: “De quem é esse espírito?” - “whose spirit is this?” -, ou seja, a quem pertence o “espírito” que nasce do choque não transcendente, harmônico, extático ou sublime entre o som dos “gestos trágicos” do mar e o canto entoado? Como já foi devidamente esclarecido pelas estrofes iniciais, não devemos confundir um e outro: “era ela a autora de seu canto”, assim como o mar “era cenário de seu canto, apenas”. Contudo, um espírito mais amplo - que, uma vez mais, não corresponde a um terceiro termo sintetizador, apaziguador ou elevado da experiência, nem se refere a uma superação definitiva da separação entre canto e mar - irrompe em forma de sofisticação sensorial, de uma descrição mais apurada do efeito do cantar sobre a percepção dos movimentos do mar, resultado da imaginação criativa. Trata-se, então, curiosamente, de um espírito “material”, que se manifesta materialmente, de modo palpável, no convívio com a cena descrita. Esse mar que é única e exclusivamente mar, cenário do canto, reconfigura-se como experiência partilhada a partir do canto. Tal como Daniel R. Schwarz (1993SCHWARZ, D. R. Narrative and representation in the poetry of Wallace Stevens. New York: St. Martin’s Press, 1993., p. 78) indica, as observações iniciais sobre o descompasso entre percepção e realidade cedem espaço para o surgimento de uma “atmosfera perceptiva aguçada”, de um campo atencional privilegiado, capaz de perfurar os acontecimentos sob um regime especial de leitura. Sem a manifestação artística que se volta para os movimentos das águas, esses talvez permanecessem “som apenas”, “mergulhos sem sentido de água e vento”; no entanto, o canto é capaz de animar a percepção do “céu em sua agonia”, ou seja, de sofisticar a capacidade humana de explorar criativa e provisoriamente os elementos de uma natureza que, de outro modo, sustenta-se inobservada ou inacessível.

Embora críticos como Joseph Hillis Miller (1995MILLER, J. H. Topographies. Stanford: Stanford University Press, 1995. ) e James Longenbach (1991LONGENBACH, J. Wallace Stevens: the plain sense of things. New York; Oxford: Oxford University Press, 1991. ) tenham razão ao afirmar que não há resposta definitiva para a pergunta “De quem é esse espírito?”, o mais importante aqui, na verdade, é observar que não estamos lidando com um elogio do “indizível”, do “indeterminável”, do “deslizamento” dos sentidos; a rigor, a luta do poema dirige-se precisamente para o ato de dar conta desse espírito, de torná-lo dizível, em que pese a vitória final da pergunta que volta a se impor e que deve ser reformulada “com frequência” [often], como lemos no verso final da terceira estrofe. Em outras palavras, se “The Idea of Order at Key West” demonstra com clareza a precariedade dos signos e significados que atribuímos às coisas, sua disposição básica não pode ser traduzida como a do inefável romântico ou da metafísica do silêncio respeitoso diante da realidade profunda e inacessível da natureza - tampouco devemos tomá-la como um jogo de gato e rato entre significante e significado. Considerar o poema uma encenação da mera desconfiança em torno do processo interpretativo seria um equívoco analítico. Antes, os versos de Stevens se contorcem para, num impulso afirmativo, projetar uma definição produtiva e permanente do confronto artístico e intelectual travado em nome da ordenação do que não pode ser ordenado. A falha da linguagem, incapaz de tocar as coisas como elas são, representa também uma conquista, talvez a única possível, afinal de contas, como nos dizem os versos finais da quinta estrofe, não há um outro mundo para a autora do canto - “there never was a world for her” -, “senão aquele que, ao cantar, ela criava”.

As estrofes seis e sete, as duas últimas do poema, produzem um giro inesperado e arrastam subitamente o leitor para um novo terreno dramático: saem de cena os sons do canto e do mar e surgem, em seu lugar, já a caminho da cidade, as luzes “das traineiras ancoradas”, dos barcos de pesca ali parados. Mais importante, os versos finais acrescentam uma informação essencial, um elemento até então encoberto: o “nós” [we] do poema revela ser bem mais literal do que a princípio imaginávamos, referindo-se a um interlocutor imediato do eu-lírico, Ramon Fernandez, a quem ele dirige, em tom de apelo, suas reflexões derradeiras sobre o evento recém partilhado. As palavras que abrem a penúltima estrofe correspondem precisamente ao nome desse ouvinte secreto que irrompe dos versos: “Ramon Fernandez, se souber, me diga / Por quê, ao fim do canto, quando íamos / Rumo à cidade, por que as luzes vítreas, / As luzes das traineiras ancoradas, / Pensas no ar do entardecer, dominavam / A noite e parcelavam todo o mar, fixando / Regiões feéricas, polos de fogo, / Dispondo, aprofundando, enfeitiçando a noite”. Ora, não sabemos quem é Ramon Fernandez, mas sabemos com clareza a explicação que é dele retoricamente solicitada: se mar é apenas mar e canto apenas canto, se a linguagem nos faz falhar no ato de apreensão da realidade, por que motivo o retorno para a cidade apresenta-se sob um efeito “ordenador” [arranging], “penetrante” [deepening] e “encantatório” [enchanting] de luzes que agora “fixam” [fixing] toda uma vida antes em desconcerto? A recorrência do gerúndio em inglês e a repetição do imperativo “diga” [tell] são aqui decisivos: estamos falando de um prolongamento dos efeitos da cena recém acompanhada, porém vislumbrados a partir da consciência urgente, dramática, profunda, de que se trata de um fixar momentâneo, de uma oportunidade analítica transitória que será prontamente reintegrada ao fluxo normal das coisas. A noite se ilumina e é preciso capturar e esquadrinhar essa disponibilidade efêmera que a eles se anuncia. Conforme James Longenbach (1991LONGENBACH, J. Wallace Stevens: the plain sense of things. New York; Oxford: Oxford University Press, 1991. , p. 160) comenta, “a magia inexplicável de ‘The Idea of Order’ não existe no mundo privado da cantora solitária, mas no fato de que outros seres humanos ouvem a música e sentem seu poder sobre suas mentes”. A canção ecoa no imaginário coletivo, partilhado, e não apenas no domínio privado, como saída solipsista para um mundo fechado ao sentido comunitário.

Muita tinta já foi gasta no intuito de buscar compreender a aparição do nome “Ramon Fernandez” nas duas últimas estrofes do poema. Trata-se de uma ocorrência que, embora sem localização específica no espaço interno dos versos, claramente estimula o desejo de elucidação, dado o seu aspecto particularizante - um nome espanhol num poema de língua inglesa. Além disso, se Stevens (1996STEVENS, W. Letters of Wallace Stevens. Selected and Edited by Holly Stevens. Los Angeles: University of California Press , 1996. , p. 798) insiste, por um lado, na casualidade da escolha do nome em diferentes ocasiões - “Ramon Fernandez não foi concebido como alguém em particular. Selecionei dois nomes comuns em espanhol” -, os críticos, por outro, não tardam a reconhecer a referência, que não seria outra senão o escritor e ensaísta francês de mesmo nome, Ramon Fernandez, cuja obra o próprio Stevens admite conhecer em uma de suas cartas: “Sei do Ramon Fernandez, o crítico, e já li algumas coisas dele, mas não o tinha em mente [ao redigir o poema]” (1996STEVENS, W. Letters of Wallace Stevens. Selected and Edited by Holly Stevens. Los Angeles: University of California Press , 1996. , p. 798). A coincidência e pontualidade da escolha, de todo modo, tendem a ser mais convincentes para a crítica do que a não confirmação dela pelo poeta: “Se Stevens desconhece Fernandez, então estamos testemunhando o caso mais impressionante de telepatia crítica na literatura [...]. Fernandez não foi um crítico menor; sua teoria, de modo geral, é precursora dos desdobramentos recentes da fenomenologia” (RIDDEL, 1991RIDDEL, J. N. The Clairvoyant Eye: the poetry and poetics of Wallace Stevens. Baton Rouge and London: Louisiana State University Press, 1991. , p. 117). Bart Eeckhout (2002EECKHOUT, B. Wallace Stevens and the limits of reading and writing. Columbia; London: University of Missouri Press, 2002., p. 225), por sua vez, resolve a contenda da seguinte maneira:

A introdução de um personagem chamado Ramon Fernandez neste ponto do poema tornou-se um elemento de considerável discórdia crítica nos estudos de Stevens. [...] Até agora, nenhum crítico foi capaz de demonstrar de forma convincente que o verdadeiro Ramon Fernandez é de relevância mais do que tangencial para a interpretação do texto. Isso só condiz com o fato de que, ao contrário de Eliot, Pound e Yeats, Stevens foi um poeta que raramente permitiu que a interpretação de sua obra dependesse do conhecimento de figuras históricas e alusões desfiladas no texto. (EECKHOUT, 2002EECKHOUT, B. Wallace Stevens and the limits of reading and writing. Columbia; London: University of Missouri Press, 2002., p. 225).

Interessante aqui perceber como um poeta não raro acusado de formalismo ou esteticismo consegue prontamente suspender, a partir da ocorrência de um simples nome, as fronteiras entre os espaços interno e externo do poema. A presença de Ramon Fernandez após cinco estrofes dedicadas ao escrutínio da relação entre canto e mar, entre arte e realidade, não deixa de ser uma súbita reaparição dessa mesma realidade material no poema, de modo a demonstrar a capacidade da literatura de rapidamente violar suas fronteiras, de colocar em crise os limites dos espaços interior e exterior, de interromper a imagem - uma imagem que os próprios versos insistentemente demonstram ser equivocada - de autossuficiência dos exercícios analíticos até então realizados. Ramon Fernandez é o nome daquilo que suga, para dentro de “The Idea of Order at Key West”, o que permanecia às margens da cena, mas que estava ali em potência; é o nome, em suma, da contextualização profunda, inevitável, do gesto artístico. Não por acaso, é exatamente essa reaparição do mundo concreto, introduzida pelo nome de Ramon Fernandez, que está sendo dramatizada com a aproximação da cidade, agora lida sob os efeitos prolongados e ordenadores do canto; Ramon Fernandez e a cidade são ocorrências simultâneas, coincidentes. A estrofe final do poema é inteiramente dependente tanto do movimento inicial de aparente separação e dedicação interpretativa à cena quanto da recomposição posterior do mundo partilhado na cidade, do retorno à vida em comum.

Mas o que revelam os versos finais de “The Idea of Order at Key West”? Em primeiro lugar, o impulso ordenador é nomeado como uma “fúria abençoada”, um “ímpeto sagrado” ou, na tradução de Paulo Henriques Britto, um “bendito afã” [Blessed rage for order]. Essa “raiva ordenadora”, sem delimitação exata, alimenta um efeito cascata: o canto da mulher pretende ordenar o mar; o eu-lírico e Ramon Fernandez dedicam-se a organizar os resultados do canto; os efeitos do canto se prolongam e, a partir dos dois interlocutores, produzem um alinhamento provisório das linhas que compõem a cidade; o leitor, finalmente, busca organizar o que acabou de ler. Sabe-se, contudo, que esse ímpeto “sagrado” advém de um ato rebelde, de uma “luta por ordem” que, como tal, não reside apenas no terreno de uma racionalidade sob controle, autocentrada; antes, como um ato apaixonado, o ímpeto ordenador arrasta consigo as próprias forças da desordem, jamais podendo permanecer por tempo suficiente em sintonia com os objetos para os quais se volta. O canto é interpretação, a leitura do canto é interpretação, o efeito do canto sobre as luzes é interpretação e, por fim, o trabalho do leitor é um exercício interpretativo; essa interpretação é política, uma luta, e nela se concentra a postura criativa sem a qual o ser humano se dissolve num nada nulificante, como dramatizado em diferentes poemas de Stevens, a exemplo de “The Snow Man”, “The Course of a Particular”, entre outros (CECHINEL, 2017CECHINEL, A. O caráter destrutivo da literatura. In: CECHINEL, A.; SALES, C. (org.). O que significa ensinar literatura? Florianópolis; Criciúma: Edufsc; Ediunesc, 2017. p. 185-206. ). O fracasso motivado pela “fúria ordenadora” constitui, paradoxalmente, a única conquista sobre a realidade que nos é possível. Para Stevens, isso não é pouco.

A palavra poética é, portanto, um utensílio especial, não por abarcar as coisas em si, nem por nos alçar ao terreno do inefável - muito menos por girar intransitivamente em torno de si mesma -, mas sim porque, em seus erros, em suas “demarcações espectrais” [ghostlier demarcations], em seus “sons pungentes” ou “afiados” [keener sounds], encontram-se as possibilidades mais intensas de modificação efetiva da nossa relação com o mundo material e, dessa forma, de transformação da realidade. A literatura paira espectralmente sobre o mundo concreto, misturando-se a ele. A última estrofe do poema encurta ainda mais a distância entre arte e realidade, desfazendo qualquer imagem do literário como algo que se esgota narcisisticamente em si mesmo. A cidade passa a ser extensão do canto, assim como o leitor se converte em subproduto do poema: “bendito afã / De ordem, afã do criador de ordenar / Palavras do mar / de portais fragrantes, / Estrelados, e de nós, de nossa origem / Em espectrais demarcações, em sons pungentes”. As palavras do mar depõem sobre nós, sobre nossas origens, alterando-as com uma bendita violência suprema, uma força compositiva a partir da qual a oposição entre poética e política, entre poesia e sociedade, perde o sentido e termina por dissipar-se. O engajamento do poeta é desdobramento imediato de suas palavras ordenadoras, não de palavras de ordem.

Considerações finais

O poema “The Idea of Order at Key West”, em sua estrofe inicial, lança o leitor repentinamente a um território desconhecido, a um episódio já em curso, sem oferecer detalhes anteriores ou elementos contextuais mais amplos para uma inspeção conclusiva do que ali se passa. Essa separação ou descontextualização inicial vem acompanhada de uma canção cujo funcionamento parece atender às regras de uma atividade autolegisladora, autodeterminada. Em outras palavras, assim como o mar não cede ao canto, não se adapta nem se mistura a ele, o canto é o sítio da construção de algo que está “para além do gênio do mar”, ou melhor, de um artefato que não se ajusta a algo prévio ou exterior, embora nasça de uma relação bastante particular, de fricção prolongada, com o que reside no entorno: “Pois era ela a autora de seu canto”; “O mar, capuz eterno, gestos trágicos, / Era cenário de seu canto, apenas”; “Ela era a artífice única do mundo / Em que cantava”; “Para ela nunca houve outro mundo / Senão aquele que, ao cantar, ela criava”. Essa autodeterminação, longe de perder seus efeitos no decorrer das estrofes, é arrastada posteriormente a um novo cenário, o espaço da cidade que surge, convertendo-se em ocasião oportuna para que os elementos ali dispostos se apresentem sob nova roupagem. A ideia de ordem em Wallace Stevens associa-se, pois, a esse movimento de separação e contágio, de reconfiguração da realidade como resultado de um “bendito afã” ordenador - isto é, da criação artística - que se lança criativa e provisoriamente sobre o mundo concreto, contaminando-o.

Para Stevens, o impulso ordenador só se materializa ao se estender para a totalidade da qual ele próprio, a fim de existir, preserva-se momentaneamente separado. A mesma desordem que o ameaça é o elemento que confere vida e caráter de urgência às suas “demarcações espectrais” e seus “sons pungentes”. Quão distantes estamos, então, desse mesmo conceito de ordem tal como empregado pela “nova crítica”? Ao contrário de Stevens, para o qual o artefato estético interfere permanentemente na constituição e suspensão das fronteiras que demarcam o dentro e o fora, para a nova crítica ordem significa fundamentalmente recusa da história e fechar-se a qualquer contexto que não aquele urdido pela internalidade da obra: “a principal preocupação da crítica dirige-se ao problema da unidade - o tipo de totalidade que a obra literária forma ou falha em formar, e a relação das várias partes entre si na construção desse todo” (BROOKS, 2008BROOKS, C. The formalist critic. In: DAVIS, G. (org.). Praising it new: the best of the new criticism. Athens: Ohio University Press, 2008. p. 84-91., p. 84). Na poesia de Stevens, a “relação das várias partes” ou a “totalidade formada” dependem diretamente tanto de variações obsessivas dos mesmos temas, cenários ou formas, quanto da relação de interpenetração ou de disputa entre as demandas da literatura e as exigências da sociedade. Nesse sentido, já não cabe falar em espaços interno e externo, em dentro e fora, em aspectos intrínsecos ou extrínsecos, mas sim em um mecanismo capaz de abalar toda essa nomenclatura opositiva, de refabricar o mundo ao tragá-lo para dentro de si.

Ordenar, então, já não significa produzir um todo autocoincidente, um espaço separado que se fecha em definitivo ao seu exterior; pelo contrário, qualquer ordenação poética só se torna viável a partir da consciência profunda de que a ânsia criativa produz “demarcações espectrais”, e que a única ordem possível “[...] é aquela em que toda ordem muda incessantemente” (STEVENS, 1996STEVENS, W. Letters of Wallace Stevens. Selected and Edited by Holly Stevens. Los Angeles: University of California Press , 1996. , p. 291-292).

Referências

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  • STEVENS, W. Collected poetry & prose New York: The Library of America, 1997.
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  • STEVENS, W. O imperador do sorvete e outros poemas Tradução e apresentação de Paulo Henriques Britto. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
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  • WORDSWORTH, W. William Wordsworth: 21st-Century Oxford authors. Edited by Stephen Gill. New York: Oxford University Press, 2010.
  • 1
    “A única ordem possível na vida é aquela em que toda ordem muda incessantemente” (STEVENS, 1996STEVENS, W. Letters of Wallace Stevens. Selected and Edited by Holly Stevens. Los Angeles: University of California Press , 1996. , p. 291-292, tradução nossa).
  • 2
    Entre os principais estudos da obra de Stevens no Brasil, cf. DURÃO, FabioDURÃO, F. A. A pressão da realidade e a válvula de escape da verdade. In: DURÃO, F. A. Modernismo e coerência: quatro capítulos de uma estética negativa. São Paulo: Nankin Editorial, 2012. p. 71-106. . “A pressão da realidade e a válvula de escape da verdade”. In: Modernismo e coerência: quatro capítulos de uma estética negativa. São Paulo: Nankin Editorial, 2012; SANTOS, A. C. dos. “A imaginação como metafísica: uma leitura do poema ‘O percurso de um particular’, de Wallace Stevens”. In: Texto Poético, 9 (15), 2013, p. 25-46.
  • 3
    A principal tradução da obra de Stevens para o português permanece o volume de Paulo Henriques Britto de 1987, atualizado e ampliado em edição de 2017. Cf. STEVENS, Wallace. O imperador do sorvete e outros poemas. Tradução e apresentação de Paulo Henriques Britto. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
  • 4
    Segundo a definição de Ivan Teixeira (1998TEIXEIRA, I. New criticism. Revista Cult: Fortuna Crítica, São Paulo, p. 34-37, set, 1998., p. 34), a “nova crítica” compreende a obra literária “[...] como uma entidade independente, livre das supostas relações determinantes da sociedade com o artista e deste com o texto”.
  • 5
    “Por pressão da realidade, refiro-me à pressão de um ou mais eventos externos quaisquer sobre a consciência, a ponto de excluir qualquer poder de contemplação” (STEVENS, 1997STEVENS, W. Collected poetry & prose. New York: The Library of America, 1997. , p. 654).
  • 6
    Segundo Stevens (1996STEVENS, W. Letters of Wallace Stevens. Selected and Edited by Holly Stevens. Los Angeles: University of California Press , 1996. , p. 820), a poesia explora “[...] a possibilidade de uma ficção suprema, reconhecida como uma ficção, em que os seres humanos pudessem propor a eles próprios uma realização [fulfillment]”.
  • 7
    “Ela cantava além do gênio do mar. / A água não formava mente ou voz, / Como um corpo todo corpo, agitando / As mangas ocas; essa mímica, no entanto, / Era um grito constante, sempre um grito / Que não era nosso, embora o entendêssemos, / Inumano, do verdadeiro oceano. // O mar não era máscara. Nem ela. / Canto e água não eram contraponto / Ainda que ela ouvisse o que cantava: / Seu canto era palavra por palavra. / Talvez em cada frase transpirasse / Água a ranger, vento a resfolegar; / Mas era ela e não o mar que ouvíamos. // Se fosse só a escura voz do mar / A se elevar, mesmo com a cor de muitas ondas; Se fosse só a voz exterior do céu / E nuvem, e coral murado em água, / Ainda que clara, seria ar profundo, / Fala arquejante de ar, som estival / A repetir-se num verão sem fim, Apenas som. Mas era mais que isso, / Mais que a voz dela até, e as nossas, entre / Mergulhos sem sentido de água e vento, / Distâncias teatrais, sombras de bronze / Apinhadas no horizonte, atmosferas / Montanhosas de céu e mar. // Era a voz dela / Que aguçava o céu em sua agonia. / Ela media-lhe da solidão a hora. / Ela era a artífice única do mundo / Em que cantava. E, ao cantar, o mar, / Fosse o que fosse antes, se tornava / O ser do canto dela, a criadora. E nós, / Ao vê-la esplêndida e sozinha, compreendemos / Que para ela nunca houve outro mundo /. Senão aquele que, ao cantar, ela criava. // Ramon Fernandez, se souber, me diga / Por quê, ao fim do canto, quando íamos / Rumo à cidade, por que as luzes vítreas, / As luzes das traineiras ancoradas, / Pensas no ar do entardecer, dominavam / A noite e parcelavam todo o mar, fixando / Regiões feéricas, polos de fogo, / Dispondo, aprofundando, enfeitiçando a noite. // Ah, pálido Ramon, bendito afã / De ordem, afã do criador de ordenar / Palavras do mar, de portais fragrantes, / Estrelados, e de nós, de nossa origem, / Em espectrais demarcações, em sons pungentes.”. (STEVENS, 2017STEVENS, W. O imperador do sorvete e outros poemas. Tradução e apresentação de Paulo Henriques Britto. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. , p. 89-93).
  • 8
    Conforme Frank Lentricchia (1968LENTRICCHIA, F. The gaiety of language: an essay on the radical poetics of W. B. Yeats and Wallace Stevens. Los Angeles: University of California Press, 1968., p. 180) observa, segundo a “[...] tradição clássica, ‘gênio’ significa um deus ou espírito ordenador ou tutelar que preside um determinado lugar”.
  • 9
    Seria este “grito” [cry], aliás, o barulho das ondas, aqui anunciado pela reverberação do fonema /c/, em seu ato de permanente composição e decomposição?
  • 10
    “Uma meditação me ocorreu naquela noite / Na Montanha solitária quando a cena / Havia terminado, e a mim apareceu / A imagem perfeita de uma Mente poderosa, / Uma Mente que se alimenta do infinito, / Que é exaltada por uma subpresença, / O sentido de Deus, ou o que quer que seja obscuro / Ou vasto em seu próprio ser;” (WORDSWORTH, 2010WORDSWORTH, W. William Wordsworth: 21st-Century Oxford authors. Edited by Stephen Gill. New York: Oxford University Press, 2010., p. 506-507, tradução nossa).
  • 11
    “E eu tenho sentido / Uma presença que me perturba com a alegria / De pensamentos elevados; um sentido sublime / De algo muito mais profundamente impregnado, / Cuja morada é a luz do sol poente, / E do oceano redondo, e do ar vivo, / E do céu azul, e da mente do homem, / Um movimento e um espírito, que impele / Todas as coisas pensantes, todos os objetos pensados, / E perpassa por todas as coisas.” (WORDSWORTH, 2010WORDSWORTH, W. William Wordsworth: 21st-Century Oxford authors. Edited by Stephen Gill. New York: Oxford University Press, 2010., p. 51, tradução nossa).

Editado por

Parecer Final dos Editores

Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    27 Ago 2022
  • Aceito
    15 Mar 2023
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