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A alteridade em O sol se põe em São Paulo, de Bernardo Carvalho

Alterity in O sol se põe em São Paulo by Bernardo Carvalho

Resumo

Em O sol se põe em São Paulo, a escrita promove um exercício de alteridade, possibilita o contato com o outro e a consciência de si. O narrador, que recebeu a incumbência de narrar uma história que não lhe pertence, passa a refletir sobre seu próprio passado e identidade. Através do exercício narrativo, sua fratura linguística e cultural se expande, visto que, percebe em si a ausência de identificação com o repertório cultural que faz parte de suas origens. A partir desse espaço, de onde relata a origem do outro, sua consciência de não pertencimento é reforçada, o que intensifica sua angústia existencial. O esfacelamento do vínculo com as origens faz com que se eleja a instabilidade, a fragmentação, a hibridização e o jogo entre o ser e o parecer, como elementos constituintes de sua identidade. Logo, o narrador percebe que sua representação identitária, assim como a de tantos outros, se realiza através da narrativa do indivíduo em trânsito, do ser movente, da identidade em construção.

Palavras-chave:
alteridade; identidade; memória; narrador

Abstract

In o Sol se põe em São Paulo, Carvalho’s writing promotes an exercise of alterity, enabling contact with the other and self-awareness. The narrator, who has been given the task of narrating a story that does not belong to him, starts to reflect on his own past and identity. Through the narrative exercise, his linguistic and cultural fracture expands, since he perceives in himself the lack of identification with the cultural repertoire that is part of his origins. From this space, from where he reports the origin of the other, his awareness of not belonging is reinforced, which intensifies his existential anguish. The breakdown of the bond with his origins leads to instability, fragmentation, hybridization, a game between being and seeming to be chosen as constituent elements of his identity. Therefore, the narrator realizes that his identity representation, as well as that of so many others, takes place through the narrative of the individual in transit, of the moving being, of the identity under construction.

Keywords:
Alterity; identity; memory; narrator

Résumé

Dans o Sol se põe em São Paulo, l'écriture promeut un exercice d'altérité, permettant le contact avec l'autre et la conscience de soi. Le narrateur, chargé de raconter une histoire qui ne lui appartient pas, commence à réfléchir sur son passé et son identité. À travers l'exercice narratif, sa fracture linguistique et culturelle s'élargit, puisqu'il perçoit en lui-même le manque d'identification au répertoire culturel qui fait partie de ses origines. De cet espace, d'où il raconte l'origine de l'autre, sa conscience de non-appartenance se renforce, ce qui intensifie son angoisse existentielle. La rupture du lien avec les origines fait de l'instabilité, de la fragmentation, de l'hybridation, du jeu de l'être et du paraître éléments constitutifs de son identité. Dès lors, le narrateur prend conscience que sa représentation identitaire, ainsi que celle de tant d'autres, se réalise à travers le récit de l'individu en transit, de l'être en mouvement, de l'identité en construction.

Mots-clés:
Altérité; identité; mémoire; narrateur

Em O sol se põe em São Paulo, de Bernardo Carvalho, publicado em 2007CARVALHO, Bernardo. O sol se põe em São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., o narrador, descendente de japoneses, é um escritor frustrado que recebe de uma mulher - também de origem nipônica - dona de um restaurante japonês, situado no bairro da Liberdade em São Paulo, a incumbência de registrar seu relato, pois ela “precisava contar a história antes de morrer” (CARVALHO, 2007CARVALHO, Bernardo. O sol se põe em São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 30). À medida que desvenda e se aprofunda na história de Setsuko/Michiyo, Matsukichi e Jokichi, mais o narrador mergulha em suas próprias origens e evolui na feitura do livro. Nesse contexto, a posição do narrador não é distanciada e tampouco indiferente em relação à história que narra, visto que, através da literatura, ele é posto em contato com a alteridade e com a sua problemática herança nipônica. O registro de tal história, a literatura que advém, se configura como o instrumento que lhe possibilita seu desenvolvimento identitário. Seu drama é contado como se fosse o pano de fundo de outra história ou vice-versa, como num jogo de espelho no qual “tudo funciona por contaminação” (CARVALHO, 2007CARVALHO, Bernardo. O sol se põe em São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 58); o que aponta para a relação dialógica que atravessa não só a identidade dos personagens - indivíduos deslocados - como também o próprio texto, com suas referências à cultura e à literatura nipônicas.

Na obra, o narrador não se sente à vontade com suas raízes orientais devido à perda dos vínculos com a tradição, com a cultura e com a língua de seus ancestrais. Ele não idealiza suas origens orientais, visto que não se identifica com elas, o que lhe causa a sensação de deslocamento. Assim sendo, não há o desejo do retorno, já que “o pathos do exílio está na perda de contato com a solidez e a satisfação da terra: voltar para o lar está fora de questão” (SAID, 2003SAID, Edward. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. Tradução de Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2003., p. 52). O retorno às origens não se configura como uma possibilidade para o narrador. Entretanto, tal questão não atinge sua irmã, que refaz o caminho de seus antepassados, em um movimento inverso ao que eles fizeram, e parte para o Japão em busca de melhores condições de vida:

Durante muito tempo, eu tentei fugir como o diabo da cruz de tudo o que fosse japonês (vinha daí a minha repulsa e a minha ignorância da literatura japonesa). Eu podia nunca ter pisado no Japão, mas por muito tempo tentei acreditar que era onde ficava o inferno. Até minha irmã decidir se mudar para lá, apesar de todos os meus argumentos para dissuadi-la, refazendo em sentido contrário o caminho dos bisavós, porque ganharia mais como operária de uma fábrica de carros do que como professora universitária em São Carlos (o que lhe restava depois de termos perdido tudo com o negócio de luminosos do meu pai), e eu entender que uma maldição pairava sobre nós e não adiantava me debater nem tentar convencer ninguém (CARVALHO, 2007CARVALHO, Bernardo. O sol se põe em São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 29).

Os bisavós do narrador provavelmente eram de origem camponesa, que assim como os de sua geração, saíram de áreas rurais japonesas rumo ao Ocidente, influenciados pelas missões que incentivaram a imigração em decorrência dos efeitos das reformas socioeconômicas implementadas na Era Meiji (1868-1912). Grande parte desses imigrantes, que se instalaram no norte do Paraná ou nas áreas rurais de São Paulo, almejava acumular recursos para retornar ao Japão e garantir, assim, sua estabilidade no país de origem. Num movimento inverso, “o Japão é percebido hoje como uma ‘nova América’, uma nova terra da promissão” (WOORTMANN, 1995WOORTMANN, Ellen F. Japoneses no Brasil/brasileiros no Japão: tradição e modernidade. Revista de Antropologia. São Paulo, v. 38, n. 2, p. 7-36, 1995. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/ra/article/view/111557 . Acesso em: 20 mar. 2022.
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, p. 16) por seus descendentes. O narrador se refere negativamente a essa imigração, na qual os descendentes regressam ao Japão e “fecham um círculo iniciado por seus antepassados no começo do século” (WOORTMANN, 1995WOORTMANN, Ellen F. Japoneses no Brasil/brasileiros no Japão: tradição e modernidade. Revista de Antropologia. São Paulo, v. 38, n. 2, p. 7-36, 1995. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/ra/article/view/111557 . Acesso em: 20 mar. 2022.
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, p. 14). Para aqueles, o Japão se configura como uma alternativa à busca por melhores condições de vida:

Podíamos ter perdido os costumes e a língua, mas as origens nos chamavam de volta, como uma miragem, para concluir a humilhação da qual os bisavós fugiram, no início do século XX quando imigraram para o interior do Paraná (para uma nova humilhação de imigrantes, depois de ouvirem de uma autoridade qualquer à saída do porto de Kobe que deviam honrar a pátria no estrangeiro e mais valia se matar no país de desterro do que voltar como fracassados), a humilhação que estava à nossa espreita, para acabar com o sonho dos meus pais, os sanseis assimilados, para nos pôr de volta no nosso lugar de decasséguis1 1 Decasségui significa, literalmente, “trabalhar fora de casa”. No Japão, o termo é empregado para designar trabalhadores estrangeiros temporários que, em muitos casos, são considerados como mão-de-obra barata e não qualificada. analfabetos. Agora, era a literatura japonesa que (que eu não podia ler no original), que me assombrava como a alma penada de alguém que eu tivesse assassinado, a apontar a saída (ou a prisão) das minhas ambições pessoais (CARVALHO, 2007CARVALHO, Bernardo. O sol se põe em São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 29).

Para o narrador, o retorno se configura como um fracasso, uma comprovação de que o ideal de ascensão social, almejado pelos bisavôs, não obteve êxito. Para ele, regressar ao Japão nas mesmas condições - ou em condições piores, se considerarmos o espaço que os decasséguis ocupam nesta sociedade - em que tais antepassados vieram ao Brasil, corresponde a uma vergonha, a uma desonra, a uma maldição para a família na qual os descendentes não só deixam de atingir o objetivo familiar estabelecido como também reforçam o malogro da família. O narrador é consciente de tal condição e destaca a problemática questão identitária daqueles que não “retiveram integralmente os padrões éticos e estéticos da cultura japonesa”. Woortmann (1995WOORTMANN, Ellen F. Japoneses no Brasil/brasileiros no Japão: tradição e modernidade. Revista de Antropologia. São Paulo, v. 38, n. 2, p. 7-36, 1995. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/ra/article/view/111557 . Acesso em: 20 mar. 2022.
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) chama atenção para o fato de que os decasséguis brasileiros:

[...] embora aceitos como força de trabalho, não alcançam a cidadania plena (se é que o conceito ocidental, individualista, de cidadania é aplicável ao Japão).

[...] em meio a essas ambiguidades e submetidos a longas jornadas de trabalho, numa conjunção que pode explicar a alta taxa de suicídios entre os gaijin2 2 Gaijin: termo pejorativo para “estrangeiro”. nipo-brasileiros (WOORTMANN, 1995WOORTMANN, Ellen F. Japoneses no Brasil/brasileiros no Japão: tradição e modernidade. Revista de Antropologia. São Paulo, v. 38, n. 2, p. 7-36, 1995. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/ra/article/view/111557 . Acesso em: 20 mar. 2022.
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, p. 17).

Lidar com a ideia da perda da tradição, das raízes e do passado de um país que não conhece efetivamente, porém que sabe ser constituinte de sua identidade familiar, provoca o incômodo, o desconforto, no narrador, cuja “[...] aura de deslocamento, instabilidade e estranheza é inconfundível” (SAID, 2003SAID, Edward. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. Tradução de Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2003., p. 301). Ainda no Brasil, em uma de suas incursões para desvendar a história que se propôs a escrever, ele revisita sua infância ao encontrar uma cidade chamada “Promissão”, que reproduz em miniatura o mundo nipônico e traduz a angústia e o desajuste causados pela “[...] materialização impotente de querer se imaginar num outro lugar, mas já não saber como retornar a ele” (CARVALHO, 2007CARVALHO, Bernardo. O sol se põe em São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 28). Sua tarefa se torna mais difícil, a objetividade racional que deve constituir a ação do narrador se torna impossível, posto que, aquele lugar impele para o centro da atenção da narrativa ao gerar nele a percepção da semelhança, lançando luz sobre suas memórias afetivas e seus sentimentos controversos em relação à sua própria história familiar. Logo, a presença da subjetividade do narrador e suas incursões se entremeiam à história principal que pretende narrar. Desse modo, sua origem oriental lhe provoca conflitos internos e o assombra:

Foram quatro horas de estrada, até o pôr-do-sol. A estrada vicinal de acesso a Promissão é flanqueada por árvores robustas. Vinha distraído quando, de repente, num vislumbre, notei um monumento japonês na beira do caminho, virado para os carros que passavam. Freei, parei no acostamento e voltei a pé. Era um monumento em homenagem ao homem que mandou asfaltar a estrada e que ali era chamado de Pai da Imigração Japonesa no Brasil. Num instante, me vi de novo diante do mundo em miniatura que me perseguia desde a infância, os canteiros com as bordas de cimento caiado, os bancos de cimento, um mundo hesitante entre o parque de diversões de província e o cemitério. O aspecto fúnebre e macabro daquela pequena encenação tão simples e tão pobre me fez querer sair dali às pressas, sufocado, à procura de um pouco de ar. Entrei no carro e dei partida (CARVALHO, 2007CARVALHO, Bernardo. O sol se põe em São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 94).

Só me restava ir ao Japão [...]. Só me restava voltar para onde eu nunca tinha ido. Apesar de todas as prevenções (minhas e da minha irmã, que tentou me dissuadir de todas as maneiras quando lhe falei dos meus planos), vendi o carro e comprei uma passagem para Osaka (CARVALHO, 2007CARVALHO, Bernardo. O sol se põe em São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 104).

Ao ver-se obrigado a ir ao Japão para dar continuidade à história que começara a narrar, todos esses conflitos são intensificados. A ambição do narrador de se tornar escritor reflete o desejo de exprimir sua diferença, já que o seu mundo “é logicamente artificial e sua irrealidade se parece com a ficção” (SAID, 2003SAID, Edward. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. Tradução de Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2003., p. 54). Trata-se de se desvincular do passado e de não se restringir estritamente ao que é familiar. Adorno (2008ADORNO, Theodor. Mínima moralia: reflexões a partir da vida danificada. Tradução de Gabriel Cohn Rio de Janeiro: Azougue, 2008. ) afirma que “quem já não tem nenhuma pátria, encontra no escrever a sua habitação” (ADORNO, 2008ADORNO, Theodor. Mínima moralia: reflexões a partir da vida danificada. Tradução de Gabriel Cohn Rio de Janeiro: Azougue, 2008. , p. 83), crença que o narrador de O sol se põe em São Paulo parece ratificar ao se valer do não-pertencimento para expressar, através da escrita, sua condição e seus sentimentos, utilizando-os na construção de sua obra. Tornar-se escritor em língua portuguesa corresponde a uma ironia: ao passo em que foge da herança japonesa, mais se dá conta de sua alienação e de seu estranhamento em relação a suas origens, movimento que o aproxima e afasta destas. Ao querer se refugiar na escrita para escapar do desacordo entre sua vivência brasileira e sua herança ancestral, faz-se evidente o desconforto que sente em relação às diferenças nos costumes, na língua e no passado dessas culturas. A escrita, ao mesmo tempo em que representa sua insegurança, sua estranheza e a sua condição de deslocado, é o que lhe proporciona um espaço possível para sua reconciliação com o ethos ocidental e oriental:

A minha obsessão não era um capricho, era uma loucura. Se no início ainda podia parecer uma veleidade adolescente, com os anos acabou se revelando uma reação natural à constatação de que eu tinha esgotado todas as chances de fazer parte deste mundo, de me sentir integrado a ele, e que não bastava falar português, ter nascido e viver no Brasil, era preciso escrever também, para não correr o risco de algum dia ter de pisar no Japão, por necessidade, sem conseguir dizer mais que duas frases em japonês, como a minha irmã [...]. Voltar para o Japão como operário (apesar de nunca ter posto os pés lá antes) seria perpetuar o fracasso e o erro, a fuga apenas nos afundava ainda mais no inferno. A literatura podia ser a minha miragem, mas pelo menos era uma forma de abraçar o inferno como pátria. No fundo, era nisso que eu acreditava. Escrever em português era para mim uma forma de romper com a ilusão de imigrantes dos bisavós (que era possível escapar ou voltar atrás) e reconhecer de uma vez por todas que estamos todos amaldiçoados, onde quer que seja. Sempre. E que o Céu é aqui mesmo (CARVALHO, 2007CARVALHO, Bernardo. O sol se põe em São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 19-20).

A escrita lhe confere a possibilidade de viver no espaço do “entre-dois” ao ocasionar seu contato com o mundo ancestral, o inserindo na história narrada quase como um personagem secundário, ao mesmo tempo em que também promove o reconhecimento de que ele não pertence integralmente a esse mundo que descreve. Sabe que não se restringe a apenas uma conformação, o que resultará em uma posição existencial mais amadurecida. A vivência nesse “não-lugar” propiciado pela escrita se configura como um espaço privilegiado, de onde, como testemunha, relata o vivido, as experiências, os pensamentos e sentimentos traumáticos.

Ao ir para o Japão a fim de descobrir mais sobre o enredo que começara a escrever, o narrador rompe com “fronteiras e barreiras que nos fecham na segurança de um território familiar” (SAID, 2003SAID, Edward. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. Tradução de Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2003., p. 58). O que está em jogo é a transcendência dos limites de sua existência através do desapego e da independência do ideal de pátria. Condição essa que seria profícua para sua escrita, já que “ver o mundo inteiro como terra estrangeira possibilita a originalidade da visão” (SAID, 2003SAID, Edward. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. Tradução de Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2003., p. 59) e permite o sentimento de realização em detrimento da sensação de ruptura ou ausência. A noção de que não é possível pertencer completamente a ambas as culturas corresponderia a uma reconciliação com a sua conformação identitária, o que é possível observar na fala de um indivíduo de nipo-brasileiro:

Brasileiro ou japonês? Bom, eu sou descendente, eu sou brasileiro. Eu não saberia definir realmente. Acho que não existe uma definição, ou japonês ou brasileiro. Acho que deveria haver a integração de todos eles. Eu não saberia definir. Eu acho que não me encaixaria em nenhuma das categorias. Eu poderia ser brasileiro, poderia ser japonês, tá? Então, acho que não... No Japão, eu serei brasileiro; eu acho que no Brasil sou visto como japonês. Quer dizer, sou o meio termo. Eu não sei; eu não me definiria... é difícil definir (DINIZ, 1993, p. 1 apudWORTMANN, 1995WOORTMANN, Ellen F. Japoneses no Brasil/brasileiros no Japão: tradição e modernidade. Revista de Antropologia. São Paulo, v. 38, n. 2, p. 7-36, 1995. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/ra/article/view/111557 . Acesso em: 20 mar. 2022.
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, p. 17, grifos da autora).

A alteridade de tal relação fomenta “um modo de operar dialético, em função da situação de contraste permanente”, de forma que o indivíduo “se encontra constantemente a meio caminho entre duas referências” (CHIARELLI; OLIVEIRA NETO, 2016CHIARELLI, Stefania; OLIVEIRA NETO, Godofredo. Falando com estranhos: o estrangeiro e a literatura brasileira. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2016., p. 9). Tais referências são totalmente distintas; o Japão se configura como o outro radical devido a suas práticas, rituais e costumes que são completamente opostos aos da cultura brasileira. Assim, a dissonância entre o eu e o outro constitui a alteridade, que diz respeito ao movimento no qual o outro não é possível ser assimilado, já que “aquilo que se ignora ou se rejeita, se rechaça, é justamente o que difere de mim e poderia me fazer outro” (COELHO JUNIOR, 2008COELHO JUNIOR, Nelson . Da fenomenologia à ética como filosofia primeira: notas sobre a noção de alteridade no pensamento de E. Lévinas. Estudos e Pesquisas em Psicologia, v.8, n.2, p. 213-223, 2008. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/epp/v8n2/v8n2a07.pdf . Acesso em: 6 fev. 2017.
http://pepsic.bvsalud.org/pdf/epp/v8n2/v...
, p. 217), o que torna possível a sociabilidade, a relação. Coelho Junior (2008COELHO JUNIOR, Nelson . Da fenomenologia à ética como filosofia primeira: notas sobre a noção de alteridade no pensamento de E. Lévinas. Estudos e Pesquisas em Psicologia, v.8, n.2, p. 213-223, 2008. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/epp/v8n2/v8n2a07.pdf . Acesso em: 6 fev. 2017.
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) aponta que

A forma de experiência que reconhece a alteridade, que foge da adequação, adaptação e perfeito encaixe entre Eu e Outro, que reconhece que algo do outro excede sempre a mim, será por sua vez sempre traumática. Trauma e excesso que pedem, que exigem trabalho por parte do sujeito. Algo não poderá ser simplesmente assimilável. Deste modo, a experiência de contato com um outro, ou até mais, o contato original, primeiro com um outro, passa pelo inevitável impacto da não adaptação plena, da impossibilidade de adequação entre o outro e um Eu em constituição (COELHO, 2008COELHO JUNIOR, Nelson . Da fenomenologia à ética como filosofia primeira: notas sobre a noção de alteridade no pensamento de E. Lévinas. Estudos e Pesquisas em Psicologia, v.8, n.2, p. 213-223, 2008. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/epp/v8n2/v8n2a07.pdf . Acesso em: 6 fev. 2017.
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, p. 218).

Ao mesmo tempo em que a diferença permite a relação - visto que não unifica - ela gera um desconforto, um mal-estar diante da constatação da impossibilidade de assimilação ao grupo, ao outro. Tal experiência é traumática pois “implica, necessariamente, um certo deslocamento, uma certa cisão ou modificação do sujeito” (COELHO JUNIOR, 2008COELHO JUNIOR, Nelson . Da fenomenologia à ética como filosofia primeira: notas sobre a noção de alteridade no pensamento de E. Lévinas. Estudos e Pesquisas em Psicologia, v.8, n.2, p. 213-223, 2008. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/epp/v8n2/v8n2a07.pdf . Acesso em: 6 fev. 2017.
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, p. 217). Por isso, o narrador sofre diante da própria experiência do contato, mas principalmente com o isolamento e a indiferença pela recusa do outro à experiência da alteridade:

Esbarrei em dois ou três pedestres. Em geral, desviavam-se de mim como do demônio. Eu estava perdido. Resolvi pedir informação a alguém - não havia um único ocidental nas ruas. Me dirigi a um homem de terno em inglês. E, se num primeiro instante ele chegou a mostrar alguma boa vontade, fugiu de mim assim que percebeu que eu era estrangeiro. Eu tentava me aproximar das pessoas, em inglês, e todas fugiam de mim. Desviavam-se, olhavam para o chão, fingiam que não me viam, que não me ouviam. Uma mulher chegou a apertar o passo, como se eu fosse um mendigo bêbado a importuná-la, enquanto eu a acompanhava, repetindo “por favor, por favor”. Eu era a lepra. Comecei a rir sozinho na rua. Que é que eles tinham? Eu olhava para o alto, para deus, acho, e ria. As pessoas me evitavam (CARVALHO, 2007CARVALHO, Bernardo. O sol se põe em São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 106).

É esse o objetivo de toda discriminação, não é? Que cada um se contente com o que tem e se mantenha em seu lugar. Que as barreiras não sejam ultrapassadas (CARVALHO, 2007CARVALHO, Bernardo. O sol se põe em São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 143).

O ator que falava inglês não podia falar comigo: Tinha um compromisso. Precisou sair [...]. A primeira coisa que me veio à cabeça foi que o ator me evitava porque eu era ocidental, porque [...] eu era brasileiro (CARVALHO, 2007CARVALHO, Bernardo. O sol se põe em São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 126).

A condição do narrador é um paradoxo angustiante: estar numa terra que lhe é estranha e ao mesmo tempo familiar. O sentimento de estranhamento do narrador é intensificado quando esse pede auxílio a um japonês, que, num primeiro momento, se mostra solícito, provavelmente por reconhecer os traços orientais do narrador, porém, ao identificar a origem desse, se recusa a ajudá-lo ao constatar sua diferença. A ausência de compreensão e de abertura dessa sociedade reforça tal sentimento. Woortmann (1995WOORTMANN, Ellen F. Japoneses no Brasil/brasileiros no Japão: tradição e modernidade. Revista de Antropologia. São Paulo, v. 38, n. 2, p. 7-36, 1995. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/ra/article/view/111557 . Acesso em: 20 mar. 2022.
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), sobre os descendentes nipo-brasileiros que retornam para o Japão, destaca: “se no Brasil são pensados como ‘japoneses’, no Japão não passarão de gaijin” (WOORTMANN, 1995WOORTMANN, Ellen F. Japoneses no Brasil/brasileiros no Japão: tradição e modernidade. Revista de Antropologia. São Paulo, v. 38, n. 2, p. 7-36, 1995. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/ra/article/view/111557 . Acesso em: 20 mar. 2022.
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, p. 17), o que reflete o duplo deslocamento do narrador: no Brasil, é visto como alguém cuja origem é diferente, devido à identificação fenotípica, já no Japão, é visto como estrangeiro, pois não domina a língua. “Esta aparente contradição entre o ser e o parecer gera conflitos de adaptação dos migrantes e de aceitação pelos nativos.” (BELTRÃO; SUGAHARA, 2006BELTRÃO, Kaizô Iwakami; SUGAHARA, Sonoe. Permanentemente temporário: dekasseguis brasileiros no Japão. Revista Brasileira de Estudos de População, v. 23, n. 1, p. 61-85, 2006. Disponível em: https://www.rebep.org.br/revista/article/view/229 . Acesso em: 20 mar. 2022.
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, p. 61). É, portanto, a escrita que permite seu desenvolvimento acima de qualquer outra fronteira identitária. Coelho Junior (2008COELHO JUNIOR, Nelson . Da fenomenologia à ética como filosofia primeira: notas sobre a noção de alteridade no pensamento de E. Lévinas. Estudos e Pesquisas em Psicologia, v.8, n.2, p. 213-223, 2008. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/epp/v8n2/v8n2a07.pdf . Acesso em: 6 fev. 2017.
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), ao estudar Levinas, afirma que não é possível estar realmente em contato com o outro a não ser quando o indivíduo abandona o império de si e aceita ser outro, diferente de si mesmo. Através desse desalojamento, provocado pelo outro que é impossível de assimilar, se constitui a condição para o contato. Em O sol se põe em SãoPaulo, o narrador padece com um Japão que não deseja essa interação, cujo deslocamento é problemático devido à rigidez de suas relações:

Não havia nada que não estivesse escrito em japonês (CARVALHO, 2007CARVALHO, Bernardo. O sol se põe em São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 105).

[...] o mapa do hotel que a minha irmã tinha me mandado e no qual também não havia nenhuma palavra que não estivesse em japonês [...] (CARVALHO, 2007CARVALHO, Bernardo. O sol se põe em São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 106).

É dessa percepção de um país que, ao renegar a mobilidade, reivindica a identidade fixa, que o narrador parece fugir: “[...] mapa todo escrito numa língua de que sempre tentei escapar, por achar que ela pudesse me condenar a ir onde eu não queria” (CARVALHO, 2007CARVALHO, Bernardo. O sol se põe em São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 106). O envolvimento com a cultura brasileira tornou possível que o deslocamento se tornasse elemento constituinte da identidade do narrador e de sua irmã. Desse modo, eles conseguem analisar, avaliar de modo pragmático, “através da mobilidade entre proximidade e distância”, “as ideologias colocadas pelos seus ancestrais, e assim tentam compreender esse processo. Nessa análise, buscam a sua liberdade” (MIYAZAKI, 2008MIYAZAKI, Elza Luli. A assimilação dos descendentes japoneses no Brasil: Compreender a história para apreender o processo. 2008. (Monografia de Conclusão de Curso) - Universidade de São Paulo, São Carlos, 2008. Disponível em: http://www.nomads.usp.br/pesquisas/espacos_morar_modos_vida/concretos/abrigo_contemporaneo/MONOGRAFIAS/MODERNIDADE.pdf . Acesso em: 20 mar. 2022.
http://www.nomads.usp.br/pesquisas/espac...
, p. 24). Então, a partir de sua mobilidade, o narrador consegue se ver como um outro, o que lhe possibilita ter a distância necessária para criticar determinados aspectos do Brasil e do Japão:

No Japão, há sempre alguém pronto para mandar e pronto para obedecer. Eu ficava com as coreanas, as que obedeciam. Quem mandava não tinha tempo para fazer nada além de mandar. Tudo teria sido menos revoltante se ao menos alguém reagisse, se também não fosse tão deprimente (CARVALHO, 2007CARVALHO, Bernardo. O sol se põe em São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 37).

Quanto menor o país, menos as pessoas dizem o que pensam, e menor elas pensam e fazem. Porque também têm que ser pequenas para caber ali (CARVALHO, 2007CARVALHO, Bernardo. O sol se põe em São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 79-80).

O desajuste, o “conflito de identidade já existia no Brasil, mas a ida ao Japão só reforça o sentimento de não pertinência a este país e, consequentemente, reforça a identidade brasileira” (BELTRÃO; SUGAHARA, 2006BELTRÃO, Kaizô Iwakami; SUGAHARA, Sonoe. Permanentemente temporário: dekasseguis brasileiros no Japão. Revista Brasileira de Estudos de População, v. 23, n. 1, p. 61-85, 2006. Disponível em: https://www.rebep.org.br/revista/article/view/229 . Acesso em: 20 mar. 2022.
https://www.rebep.org.br/revista/article...
, p. 61). A adaptação no Japão é difícil, haja vista a barreira do idioma e dos costumes. A irmã do narrador, após dois anos vivendo no país, ainda não fala a língua nipônica. Continua na sua condição de estrangeira, visto que não aprendeu o idioma e não consegue integrar-se a essa sociedade. É interessante notar que em nenhum momento se faz referência a algum contato com parentes japoneses no país, o que reforça o resquício de pertencimento. O elo com o país é fraco e se dá somente por razões econômicas; sua socialização só é possível entre os colegas de trabalho que são brasileiros:

Disse que me ajudaria a decifrar o japonês na internet. Decifrar era bem o termo. Em dois anos no Japão, ela ainda não falava japonês. Conseguia se virar. Passava os dias na fábrica. Não conversava com ninguém além das colegas brasileiras (CARVALHO, 2007CARVALHO, Bernardo. O sol se põe em São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 109).

[...] minha irmã [...] magra, esquálida e pálida, como um fantasma. Também tinha se convertido na miniatura de uma promessa. Ela me abraçou. Dos dias debaixo do sol escaldante a caminho de Bastos e das cidades minúsculas, onde ninguém pode caber, só restava o silêncio entre nós dois. O corpo dela havia ficado tão pequeno. Também ia desaparecer no escuro, como todos os outros, para mostrar aos bisavós que de nada tinha adiantado fugir para o outro lado do mundo, para viver debaixo do sol e de toda aquela claridade ofuscante. A sombra sempre estaria no nosso encalço (CARVALHO, 2007CARVALHO, Bernardo. O sol se põe em São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 110).

Minha irmã só podia me encontrar à noite. Fez questão que eu não a visitasse em Nagóia. Não queria que eu visse como vivia - que confirmasse o meu pesadelo e a minha prognose de que viver no Japão, para nós dois pelo menos, seria pôr em marcha a engrenagem da qual fugiram os bisavós ao emigrar para o Brasil. Não queria que eu me impressionasse. Como sempre me protegia (CARVALHO, 2007CARVALHO, Bernardo. O sol se põe em São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 108).

De acordo com Sakurai (2007 apudMIYAZAKI, 2008MIYAZAKI, Elza Luli. A assimilação dos descendentes japoneses no Brasil: Compreender a história para apreender o processo. 2008. (Monografia de Conclusão de Curso) - Universidade de São Paulo, São Carlos, 2008. Disponível em: http://www.nomads.usp.br/pesquisas/espacos_morar_modos_vida/concretos/abrigo_contemporaneo/MONOGRAFIAS/MODERNIDADE.pdf . Acesso em: 20 mar. 2022.
http://www.nomads.usp.br/pesquisas/espac...
), o ethos nipônico marcado pelo ensimesmamento remonta aos tempos feudais. A prática visava à unificação do Japão, o que explicaria a mentalidade do povo: “houve um repúdio calculado das coisas estrangeiras. Desde livros, passando por artefatos e chegando, como vimos às pessoas e às religiões” (SAKURAI, 2007, p. 123 apudMIYAZAKI, 2008MIYAZAKI, Elza Luli. A assimilação dos descendentes japoneses no Brasil: Compreender a história para apreender o processo. 2008. (Monografia de Conclusão de Curso) - Universidade de São Paulo, São Carlos, 2008. Disponível em: http://www.nomads.usp.br/pesquisas/espacos_morar_modos_vida/concretos/abrigo_contemporaneo/MONOGRAFIAS/MODERNIDADE.pdf . Acesso em: 20 mar. 2022.
http://www.nomads.usp.br/pesquisas/espac...
, p. 7). Os valores culturais como a obediência e a submissão às autoridades “eram a base de todas as relações sociais no Japão” (SAKURAI, 2007, p. 108 apudMIYAZAKI, 2008MIYAZAKI, Elza Luli. A assimilação dos descendentes japoneses no Brasil: Compreender a história para apreender o processo. 2008. (Monografia de Conclusão de Curso) - Universidade de São Paulo, São Carlos, 2008. Disponível em: http://www.nomads.usp.br/pesquisas/espacos_morar_modos_vida/concretos/abrigo_contemporaneo/MONOGRAFIAS/MODERNIDADE.pdf . Acesso em: 20 mar. 2022.
http://www.nomads.usp.br/pesquisas/espac...
, p. 7)., por isso, durante muito tempo o país não se abria ao que vinha de fora e permaneceu isolado, o que deixou marcas na cultura dessa sociedade. A abertura ao Ocidente só teve início a partir das reformas implementadas na Era Meiji (1868-1912), citadas anteriormente. Segundo Beltrão e Sugahara (2006BELTRÃO, Kaizô Iwakami; SUGAHARA, Sonoe. Permanentemente temporário: dekasseguis brasileiros no Japão. Revista Brasileira de Estudos de População, v. 23, n. 1, p. 61-85, 2006. Disponível em: https://www.rebep.org.br/revista/article/view/229 . Acesso em: 20 mar. 2022.
https://www.rebep.org.br/revista/article...
), o fluxo contrário de migrantes saindo do Brasil em direção ao Japão, que teve início no final da década de 1980:

[...] intensificou-se com a crise econômica brasileira dos anos 80 e se tornou parte do movimento de globalização, com a incorporação de fluxos internacionais de mão-de obra aos crescentes fluxos de bens, serviços e capitais a nível mundial e, no caso do “fenômeno dekassegui”, obviamente fruto da posição do Japão entre as potências industrializadas. Em princípio, couberam aos dekasseguis os trabalhos de baixa qualidade, rejeitados pelos japoneses e por eles denominados de “3K”: kitanai (sujo), kiken (perigoso) e kitsui (penoso). “Os brasileiros incluem ainda outras duas características [a este tipo de trabalho]: exigente [kibishii] e detestável [kirai]” (BELTRÃO; SUGAHARA, 2006BELTRÃO, Kaizô Iwakami; SUGAHARA, Sonoe. Permanentemente temporário: dekasseguis brasileiros no Japão. Revista Brasileira de Estudos de População, v. 23, n. 1, p. 61-85, 2006. Disponível em: https://www.rebep.org.br/revista/article/view/229 . Acesso em: 20 mar. 2022.
https://www.rebep.org.br/revista/article...
, p. 62).

Tal condição da irmã do narrador reforça o sentimento de desajuste e de humilhação. Ela, que deixou o cargo de professora universitária para desempenhar um dos trabalhos acima relacionados, se configura como uma promessa não cumprida. Sua invisibilidade, nessa sociedade, destaca a ideia de falta, de falha, de ilusão do projeto ancestral e de uma vida desperdiçada num sistema - no qual passa a ser apenas mais uma engrenagem - que indetermina os vestígios de sua existência:

[...] eu não tinha meios de permanecer no Japão. A não ser que me afundasse, como ela, no mundo operário. Eu ainda lembrava dos dias que passamos juntos nos ônibus a caminho de Bastos e das cidades em miniatura, recordações de gente que já não cabia em lugar nenhum, a condição que herdamos. Quando minha irmã era pequena, todos imaginavam a mulher que um dia ela seria. Todos esperavam o cumprimento de uma promessa. Eu também esperava. Compreendi que tudo tinha terminado no dia em que ela me ligou para dizer que estava decidida, tinha conseguido um emprego no Japão, ia trabalhar numa fábrica de automóveis (CARVALHO, 2007CARVALHO, Bernardo. O sol se põe em São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 109).

O quadro acima aponta para o isolamento das identidades e ao mesmo tempo para sua inserção no território do outro, o que provoca uma “insegurança existencial” frente a “uma parte integrante dos processos de globalização” que “é a progressiva segregação espacial, a progressiva separação e exclusão” (BAUMAN, 1999BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Tradução de Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. , p. 6). O que reflete a relação de “proximidade e distância” inerente à globalização e à conformação identitária das personagens forjadas pela “indiferença e envolvimento” abordada por Simmel (1983SIMMEL, Georg. O Estrangeiro. In: MORAES FILHO, Evaristo (org.). Coleção Grandes Cientistas Sociais. São Paulo: Ática, 1983, p.182-188.).

O narrador “adepto da solidão, incluindo a que se sente no meio das multidões, [...] é fiel a uma sombra” (KRISTEVA, 1994KRISTEVA, Julia. Estrangeiros para nós mesmos. Tradução de Maria Carlota Carvalho Gomes. Rio de Janeiro: Rocco, 1994., p. 13). Sombra essa que não lhe impõe uma identidade fixa e reforça sua indistinção. Como metáfora para estes movimentos de atrair/repelir, indiferença/envolvimento, proximidade/distância, está a oposição entre luz e sombra, que pode ser lida como o símbolo do conflito, da contradição entre o Ocidente e o Oriente, entre o apelo ao novo e ao que dita a tradição, entre as diferenças culturais:

No elogio da sombra, Tanizaki escreveu a propósito dos orientais: “Não temos nenhuma repulsa pelo escuro; nós nos resignamos ao inevitável. [...] Os ocidentais, ao contrário, sempre à espreita, agitam-se sem parar à procura de um estado melhor do que o presente” (CARVALHO, 2007CARVALHO, Bernardo. O sol se põe em São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 130).

Uma outra leitura possível seria a de que a sombra se contrapõe à ideia de um mundo unitário, a relação entre a sombra e a luz inscreveria o diverso e romperia com a visão unificadora de uma identidade comum - universal - à toda existência humana. A inscrição da opacidade - termo empregado por Édouard Glissant em Poétique de la relation (1990) - permitiria a abdicação da identidade-raiz única e a afirmação da identidade-relação. O jogo de luz e sombra possibilitaria a interação, a duplicidade e, simbolicamente, significaria a não redução do outro a mim mesmo. Por isso, Glissant (1990 apudROCHA, 2002ROCHA, Enilce Albergaria. A noção de relação em Édouard Glissant. Ipotesi, Revista de Estudos Literários, v. 6, n. 2, p. 31-39, 2002. Disponível em: https://periodicos.ufjf.br/index.php/ipotesi/article/view/19272/ . Acesso em: 20 mar. 2022.
https://periodicos.ufjf.br/index.php/ipo...
) afirma que a opacidade é “o que nos reuniria para sempre nos singularizando para sempre” (GLISSANT, 1990, p. 208-209 apudROCHA, 2002ROCHA, Enilce Albergaria. A noção de relação em Édouard Glissant. Ipotesi, Revista de Estudos Literários, v. 6, n. 2, p. 31-39, 2002. Disponível em: https://periodicos.ufjf.br/index.php/ipotesi/article/view/19272/ . Acesso em: 20 mar. 2022.
https://periodicos.ufjf.br/index.php/ipo...
, p. 38):

No elogio da sombra, Tanizaki diz que a beleza oriental nasce das sombras projetadas no que em si é insignificante. O belo nada mais é do que um desenho de sombras. Os ocidentais são translúcidos; os orientais são opacos. Ninguém veria a beleza da lua de outono se ela não estivesse imersa na escuridão. Temos mais em comum do que podemos imaginar. O oposto é o que mais se parece conosco (CARVALHO, 2007CARVALHO, Bernardo. O sol se põe em São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 164).

A sombra - a qual o título da obra de Bernardo Carvalho faz referência - aponta para a indistinção, para o desejo de ser outro sem deixar de ser si-próprio, no qual: “eu me transformo trocando-me com o outro permanecendo eu mesmo, sem renegar-me, sem diluir-me [...]” (GLISSANT, 1995, p. 43-75 apudROCHA, 2002ROCHA, Enilce Albergaria. A noção de relação em Édouard Glissant. Ipotesi, Revista de Estudos Literários, v. 6, n. 2, p. 31-39, 2002. Disponível em: https://periodicos.ufjf.br/index.php/ipotesi/article/view/19272/ . Acesso em: 20 mar. 2022.
https://periodicos.ufjf.br/index.php/ipo...
, p. 36). Contra os mecanismos classificatórios e/ou discriminatórios há a alteridade eu no outro e outro em mim, num jogo de presença/ausência, de afastamento e proximidade.

Em O sol se põe em São Paulo, a escrita representa “um convite para o contato com a radical alteridade do outro, em sua potência traumática, porém também em sua vitalidade produtiva” (COELHO JUNIOR, 2008COELHO JUNIOR, Nelson . Da fenomenologia à ética como filosofia primeira: notas sobre a noção de alteridade no pensamento de E. Lévinas. Estudos e Pesquisas em Psicologia, v.8, n.2, p. 213-223, 2008. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/epp/v8n2/v8n2a07.pdf . Acesso em: 6 fev. 2017.
http://pepsic.bvsalud.org/pdf/epp/v8n2/v...
, p. 218). A alteridade provoca a consciência de si e da condição humana, além do reconhecimento de que não é possível caber em um só lugar: “De repente [...] tive vontade de chorar por todos no mesmo avião, indo para algum lugar, acreditando em alguma coisa, todos com um passado, com alguma coisa perdida e talvez pouca por encontrar” (CARVALHO, 2007CARVALHO, Bernardo. O sol se põe em São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 162-163).

Referências

  • ADORNO, Theodor. Mínima moralia: reflexões a partir da vida danificada. Tradução de Gabriel Cohn Rio de Janeiro: Azougue, 2008.
  • BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Tradução de Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
  • BELTRÃO, Kaizô Iwakami; SUGAHARA, Sonoe. Permanentemente temporário: dekasseguis brasileiros no Japão. Revista Brasileira de Estudos de População, v. 23, n. 1, p. 61-85, 2006. Disponível em: https://www.rebep.org.br/revista/article/view/229 Acesso em: 20 mar. 2022.
    » https://www.rebep.org.br/revista/article/view/229
  • CARVALHO, Bernardo. O sol se põe em São Paulo São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
  • CHIARELLI, Stefania; OLIVEIRA NETO, Godofredo. Falando com estranhos: o estrangeiro e a literatura brasileira. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2016.
  • COELHO JUNIOR, Nelson . Da fenomenologia à ética como filosofia primeira: notas sobre a noção de alteridade no pensamento de E. Lévinas. Estudos e Pesquisas em Psicologia, v.8, n.2, p. 213-223, 2008. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/epp/v8n2/v8n2a07.pdf Acesso em: 6 fev. 2017.
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  • KRISTEVA, Julia. Estrangeiros para nós mesmos Tradução de Maria Carlota Carvalho Gomes. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
  • MIYAZAKI, Elza Luli. A assimilação dos descendentes japoneses no Brasil: Compreender a história para apreender o processo. 2008. (Monografia de Conclusão de Curso) - Universidade de São Paulo, São Carlos, 2008. Disponível em: http://www.nomads.usp.br/pesquisas/espacos_morar_modos_vida/concretos/abrigo_contemporaneo/MONOGRAFIAS/MODERNIDADE.pdf Acesso em: 20 mar. 2022.
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  • ROCHA, Enilce Albergaria. A noção de relação em Édouard Glissant. Ipotesi, Revista de Estudos Literários, v. 6, n. 2, p. 31-39, 2002. Disponível em: https://periodicos.ufjf.br/index.php/ipotesi/article/view/19272/ Acesso em: 20 mar. 2022.
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  • SAID, Edward. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios Tradução de Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
  • SIMMEL, Georg. O Estrangeiro. In: MORAES FILHO, Evaristo (org.). Coleção Grandes Cientistas Sociais São Paulo: Ática, 1983, p.182-188.
  • WOORTMANN, Ellen F. Japoneses no Brasil/brasileiros no Japão: tradição e modernidade. Revista de Antropologia São Paulo, v. 38, n. 2, p. 7-36, 1995. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/ra/article/view/111557 Acesso em: 20 mar. 2022.
    » http://www.revistas.usp.br/ra/article/view/111557
  • 1
    Decasségui significa, literalmente, “trabalhar fora de casa”. No Japão, o termo é empregado para designar trabalhadores estrangeiros temporários que, em muitos casos, são considerados como mão-de-obra barata e não qualificada.
  • 2
    Gaijin: termo pejorativo para “estrangeiro”.
  • Parecer Final dos Editores

    Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    15 Jun 2022
  • Aceito
    15 Mar 2023
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