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Alda Lara: um convite à poesia

Alda Lara: an invitation to poetry

Resumo

Apresentam-se percursos poéticos de Alda Lara, poeta natural de Benguela, Angola, que morou em Lisboa e Coimbra, Portugal, quando cursava Medicina. Os textos analisados compõem a antologia Poemas (2004), publicada postumamente. Opta-se, neste artigo, por apresentar a maioria dos poemas na íntegra, possibilitando que o leitor conheça poesias de Alda Lara, pois sua obra não está publicada no Brasil. Analisam-se os deslocamentos propostos por ela, “mulher em trânsito”, cujos percursos e temáticas são fundamentais para a criação da moderna poesia angolana e para a concepção de um projeto literário dessa colônia/país.

Palavras-chave:
Alda Lara; escrita feminina; percursos poéticos; poesia angolana

Abstract

This article presents the poetic trajectory of Alda Lara, a poet born in Benguela, Angola, who lived in Lisbon and Coimbra, Portugal, during her medical studies. The texts analyzed make up the anthology Poemas (2004), published posthumously. In this article we chose to present most of the poems in their entirety, allowing the reader to get to know Alda Lara's poetry, as her work has not yet been published in Brazil. This article analyzes the displacements proposed by her, “woman in transit”, whose paths and themes are fundamental for the creation of modern Angolan poetry and for the conception of a literary project of this colony/country.

Keywords:
Alda Lara; female writing; poetic paths; Angolan poetry

Resumen

Este articulo presenta los caminos poéticos de Alda Lara, poeta de Benguela, Angola, que vivió en Lisboa y Coimbra, Portugal, mientras estudiaba Medicina. Los textos analizados componen la antología Poemas (2004), publicada póstumamente. Preferimos presentar la mayoría de los poemas en su versión integral, permitiendo al lector conocer mejor la poesía de Alda Lara, ya que su obra no está publicada en Brasil. Analizamos los desplazamientos propuestos por ella, "mujer en tránsito", cuyos caminos y temas son fundamentales para la creación de la poesía angolana moderna y para la concepción de un proyecto literario de esta colonia/país.

Palabras clave:
Alda Lara; escritura feminina; recorridos poéticos; poesia angolana

Em 2018, participamos do Colóquio Internacional “Mulheres Africanas em Trânsito”,1 1 Fábio Mário da Silva, um dos organizadores desse colóquio, publicou, em 2019, na Revista Mulemba, o artigo “Entre Portugal de Angola: reflexões sobre a poética de Alda Lara”, que focaliza os trânsitos espaciais dessa autora e o seu desdobramento em sua escrita literária. Esse texto está disponível no portal literÁfricas, da UFMG, com acesso pelo link: http://www.letras.ufmg.br/literafro/literafricas/literatura-angolana/1533-fabio-mario-da-silva-entre-portugal-e-angola-reflexoes-sobre-a-poetica-de-alda-lara. Como afirma Silva (2019), Alda Lara viveu, por 17 anos, em Angola, e, em 1962, mudou-se para Portugal, onde residiu por 13 anos. Nesse período, ia, com frequência, a Angola. Segundo Silva, “[...] mesmo passando um período de tempo menor na Europa, podemos notar que a autora desenvolve a sua escrita e a sua formação intelectual em Portugal, influência europeia que, de fato, vamos encontrar em seus versos” (SILVA, 2019, p. 14). realizado na Universidade de Lisboa, Portugal, em homenagem à poeta e escritora Alda Lara, nascida em 1930, em Benguela, Angola. Irmã do conhecido poeta Ernesto Lara Filho, essa angolana estudou Medicina na Universidade de Coimbra, frequentou a Casa dos Estudantes do Império e, após se graduar, em 1962, retornou a Angola, que, naquele momento, ainda era colônia portuguesa. Publicou diversos poemas dispersos em antologias, como: Antologia de poesias angolanas(1958),Mostra de poesias (1959) e Anthologia da terra portuguesa(1960-1961). A sua única obra completa, Poemas, foi publicada em 1966 e reeditada em 1979, 1984 e 2004 - edição que consideramos para esta análise. A morte precoce de Alda Lara, aos 32 anos, coincide com o período dos movimentos de libertação nacional em Angola, o que incide sobre a sua obra e sua recepção dela, suscitando, em alguns momentos, leituras que excluem o caráter nacionalista de sua poesia. Alfredo Margarido, por exemplo, relativiza a sua feição mais comprometida com os contextos social e político da colônia portuguesa, quando afirma:

A poesia de Alda Lara está incompleta. É, antes de mais, uma poesia que vive no mundo da infância ou de uma primeira fase da adolescência [...] nas palavras entrevemos, implícito ou explícito, o sentimento do exílio e, algumas vezes, o suplício doloroso de que a sua angolanidade não se apoderou dos elementos mais significativos. (MARGARIDO, 1980MARGARIDO, Alfredo. Esboço de interpretação da poesia de Alda Lara. In: MARGARIDO, Alfredo. Estudos sobre literaturas das nações africanas de língua portuguesa. Lisboa: Regra do Jogo, 1980. p. 299-307., p. 301 apudSILVA, 2021SILVA, Fábio Mário da. Alda Lara: poesia, conto e trabalho acadêmico. Revista da Academia Mineira de Letras, ano 100, v. LXXXI, p. 41-28, 2021. , p. 42).

Essa “incompletude” poética é apontada e justificada por Alfredo Margarido quando observa que, na estética de Alda Lara, a “angolanidade” não perpassa temas mais específicos dessa colônia portuguesa. Nesta análise, entretanto, cumpre ressaltar diversas feições da poesia de Alda Lara a partir da antologia Poemas (2004LARA, Alda. Poemas. Luanda: Edições Maianga, 2004. ), reeditada pela Biblioteca de Literatura Angolana.

Maria Nazareth Soares Fonseca, em dossiê recentemente publicado pela Academia Mineira de Letras sobre as Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, inclui nomes de poetas e escritores(as) que contribuíram, em países africanos, para delinear “linhas mestras de propostas literárias que remetiam à quebra de padrões externos e um mergulho nas questões específicas de seus países” (FONSECA, 2021FONSECA, Maria Nazareth Soares. Apresentação [do Dossiè “Literaturas Africanas de Lingua Portuguesa”]. Revista da Academia Mineira de Letras, ano 100, v. LXXXI, p. 17-24, 2021., p. 18). Essa pesquisadora justifica a inclusão da escritora Alda Lara nesse dossiê por ela representar, em Angola, vozes que “cantam o sofrimento do povo subjugado pelo colonialismo e prenunciam a conquista da liberdade - como se mostra na poesia de Agostinho Neto e Alda Lara” (FONSECA, 2021FONSECA, Maria Nazareth Soares. Apresentação [do Dossiè “Literaturas Africanas de Lingua Portuguesa”]. Revista da Academia Mineira de Letras, ano 100, v. LXXXI, p. 17-24, 2021., p. 19).

Alda Lara é uma “mulher em trânsito”,2 2 Sávio Roberto Fonseca de Freitas (2020) retoma a proposta do Colóquio Internacional “Mulheres Africanas em Trânsito” quando apresenta alguns deslocamentos de Alda Lara em análise sobre as palavras “rio”, “mar” e “maternidade” na escrita dessa poeta angolana. tanto pelos seus deslocamentos espaciais e temporais quanto pelos temas que se sobressaem em sua estética. Sobre os esses deslocamentos dessa escritora, Fábio Mário da Silva explica que:

É exatamente por se sentir “exilada”, que essa sua existência em “trânsito” contribuiu para a produção temática e poética de Alda Lara. Ou seja, apesar de fronteiriça, a lírica de Alda Lara tende mais para o apreço a Angola e aos espaços africanos em detrimento do Europeu, que contribuiu com a sua formação intelectual. (SILVA, 2019SILVA, Fábio Mário da. Entre Portugal e Angola: reflexões sobre a poética de Alda Lara. Revista Mulemba, v. 11, n. 21, p. 12-21, 2019., p. 20).

Consideram-se aqui algumas das feições poéticas dessa escritora, tais como: trânsitos espaciais e temporais; elaboração de questões subjetivas e intimistas; composição de poemas metalinguísticos; interlocução com figuras femininas e masculinas - o que pressupõe diálogo com seus leitores -; e reflexões sobre temáticas sociais e políticas da colônia portuguesa - fato que a vincula, definitivamente, aos pressupostos estabelecidos pela geração da Revista Mensagem. Alda Lara promove a reescrita constante dos seus próprios textos, o que também se configura como um trânsito literário. Sobre essa reescrita dos poemas, especificamente, Silva afirma que esse trabalho durou anos, como é o caso do poema “Abandono”, que abre a seção homônima da antologia aqui estudada. Silva ressalta que, ao se comparar suas versões mais recentes com a sua primeira versão, constatam-se divergências entre elas “devido às constantes mudanças que Lara fez para atingir o apuramento que desejava” (SILVA, 2019SILVA, Fábio Mário da. Entre Portugal e Angola: reflexões sobre a poética de Alda Lara. Revista Mulemba, v. 11, n. 21, p. 12-21, 2019., p. 15).

Trânsitos espaciais, temporais e subjetivos: percursos marcados pela melancolia

Em “outros trânsitos”, Alda Lara conforma um gesto de escrita muito próprio, porque esses trânsitos são encenados de diversas maneiras, de formas subjetivas ou a partir da interlocução com figuras em constante movimento. No referido poema “Abandono”, temos estes versos:

Não ices as velas, marinheiro! Não vires o leme! Não lutes sequer... (Para quê, lutar?) Deixa-te ir, como o mar, ao sabor das marés de um dia... como corpo a rescender a maresia... o olhar embriagado de luz e a alma, embrulhada em algas, a flutuar... Deixa-te ir!... E se tormenta te quebrar os mastros, e te esfarrapar as velas e não parar de rugir, não grites! Não tenhas medo!... Nas noites-segredo do mundo, verás como é belo dormir tão vestido de vento e luar... Deixa-te ir, marinheiro! Deixa-te ir como o mar... Sereno e perdido na paz sem recurso do mar... (LARA, 2004LARA, Alda. Poemas. Luanda: Edições Maianga, 2004. , p. 11-12).

Esse poema tem como interlocutor a figura de um marinheiro, ser em constante condição de “chegadas” e “partidas”, a quem o eu lírico se dirige com versos imperativos. O deslocamento é uma condição inevitável e a direção não pode ser controlada. A sequência de verbos no imperativo negativo, “não ices as velas”, “não vires o leme!”, “não lutes sequer...”, é justificada, entre parênteses, no verso seguinte, com intervenção bem definida da voz poética: “(para quê, lutar?)”. Içar velas, virar o leme ou simplesmente lutar são ações desnecessárias, porque não interferem no curso do barco, metáfora da própria vida. O deslocamento, portanto, é imposto pelo próprio curso das marés, sem que haja qualquer intervenção possível. Há, então, nova sequência de imperativos: “Deixa-te ir!...”/“Deixa-te ir, marinheiro!”. O discurso poético prossegue em tom motivacional, com pontuação expressiva de caráter exclamativo e reticente: “Não tenhas medo!...”. Essa interlocução reforça a necessidade do deslocamento - no mar e na própria vida - e a impossibilidade de prever ou alterar suas condições.

Ana Paula Bernardo, a propósito, explica como a alegoria do mar é fundamental para a compreensão da poética lariana:

A água, que cobre grande parte da superfície terrestre, aparece sob a forma de mar-oceano ou embarcação, projecção de viagens reais, imaginadas, temidas mas muito desejadas. O insistente apelo à chegada do ‘bergantim’ (POE, 17), meio de transporte para, várias vezes repetido ao longo do texto, bem como o sentido anafórico do verbo ter no presente, juntamente com o querer, dão ênfase ao desejo de partir e marcam o estado de ansiedade do sujeito. Mas o Mar surge, por vezes, como destinatário/mensageiro, testemunho do lamento do ‘eu’. Elo de ligação ou obstáculo impeditivo da aproximação de dois pontos da terra e de concretização dos sonhos. (BERNARDO, 2010BERNARDO, Ana Paula. Em torno da poética de Alda Lara. In: BERNARDO, Ana Paula; CHORA, Dina Chainho; GOMES, Elisabete Ricardo; RODRIGUES, Ana Salgueiro (org.). Vozes de Cabo Verde e de Angola: quatro percursos literários. Lisboa: Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias - CLEPUL, 2010. p. 165-213., p. 194).

Essa pesquisadora portuguesa analisa a presença da água e outras metáforas desse campo semântico para se entender, na estética lariana, a projeção de viagens reais, desejadas e frustradas, na qual permanece o desejo de se evadir. As águas que permitem e determinam o deslocamento são as mesmas que impõem o exílio e a melancolia, como evidencia o poema “Apelo”:

Apelo Na outra margem do rio, (e eu vejo-a!) há campos verdes de esperança, abandonados ao calor de um sol eterno... Na outra margem do rio, onde não chega o inverno, há campos ondulantes de searas maduras, para os pobres matarem nelas todas as fomes do mundo... Na outra margem, tudo se começa de novo e não há dias passados que amargurem os desgraçados... [...] Nem raivas mal contidas,... nem agonias perdidas, nem dor... que na outra margem do rio, há Amor... ....................................................... E entre mim, e a outra margem, esta terrível viagem. Este rio caudaloso, imundo, sujo de todos os calhaus, que nele vomitou o mundo... Entre mim e a outra margem o rio... (LARA, 2004LARA, Alda. Poemas. Luanda: Edições Maianga, 2004. , p. 22-23).

Aí, a voz poética se enuncia de um lugar isolado pelo rio, de onde é possível ver a outra margem, mas prevalecem os percalços que a impedem de acessá-la. Na margem idealizada, não há “raivas mal contidas”, “nem agonias perdidas”, “nem dor”; os campos são “verdes de esperança”, há “searas maduras”, “tudo se começa de novo”; enfim, “há Amor”. No aspecto formal, o texto é marcado pelo tom exclamativo e reticente, expressão de subjetividade. Há, no poema em análise, uma plasticidade na qual as estrofes que descrevem a margem imaginada são separadas da última estrofe por uma sequência de pontos, em analogia ao próprio rio e aos seus percalços. O elemento líquido reaparece, nesse poema, de forma sintomática, porque as águas são sujas, imundas. O rio é caudaloso, mas está cheio de pedras, percalços que dificultam a sua transposição e impõem isolamento. Na última estrofe, o olhar do eu lírico volta-se para o seu lugar, não apenas espacial, “e entre mim e a outra margem”, em conotação que permite uma leitura mais subjetiva, em que a metáfora do rio pode ser lida como a da própria vida, atribuindo ao texto, em certa medida, um caráter autobiográfico, em que se sobressai uma visão conturbada e melancólica - “este rio caudaloso, imundo, / sujo de todos os calhaus”. Ana Paula Bernardo defende que, na poética de Alda Lara, encontra-se um tom de “caos interior” que “se mede pelos impulsos, desejos, inquietações, dúvidas, amores e desamores” (BERNARDO, 2010BERNARDO, Ana Paula. Em torno da poética de Alda Lara. In: BERNARDO, Ana Paula; CHORA, Dina Chainho; GOMES, Elisabete Ricardo; RODRIGUES, Ana Salgueiro (org.). Vozes de Cabo Verde e de Angola: quatro percursos literários. Lisboa: Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias - CLEPUL, 2010. p. 165-213., p. 194).

Fábio Mário da Silva e Paulo Geovane e Silva também interpretam a recorrência de metáforas aquáticas na estética de Alda Lara, indicando que as pulsões de sofrimento estão, de maneira recorrente, associadas a esse elemento. Após analisarem o “canto triste” de Alda Lara, concluem:

Há de se notar, em seus poemas, a constante alusão a imagens aquáticas - navios, barcos, mar, lagos, bergantins - que demonstram, através dos referidos lexemas, entre tantos motivos, uma barreira, o mar, que separa os continentes europeu e africano e se serve, por exemplo, para o eu lírico sair do “marasmo” em que se encontra, o que fez com que se conjecturassem a possibilidade de se entender essa insistência ao elemento aquoso como uma maneira de expressar “a melancolia angolana e africana, associando-a à água, cuja substância e fluidez não deixam de sinalizar também um discurso marcadamente feminino, porquanto catalizador de uma purificação pela qual as vozes líricas de Alda Lara têm de passar”. (SILVA; SILVA, 2018SILVA, Fábio Mário da; SILVA, Paulo Geovane e. Um canto triste de versos de maresia: uma leitura da poética de Alda Lara. Interfacis, v. 4, n.1, p. 20-34, 2018., p. 34).

No poema recém-citado, “Apelo”, nota-se que a metáfora do rio se desdobra em duas interpretações simultâneas: o rio impõe o isolamento espacial, impedindo acesso à margem sonhada, mas também sugere ou conduz a um movimento subjetivo, que Fábio Mário da Silva e Paulo Geovane e Silva nomeiam como “catalizador de uma purificação”, condição individual imposta à voz poética, o que autoriza a leitura aqui apresentada. Nesse e em outros poemas, prevalece a frustração, que é acentuada pela impossibilidade de se transpor o exílio, o que impede o deslocamento: “Do cais, partiram os navios / onde eu quis ir sempre, / e nunca fui...” (LARA, 2004LARA, Alda. Poemas. Luanda: Edições Maianga, 2004. , p. 71).

O tom melancólico associado à água marca o poema “Lago”, que, mais uma vez, evoca uma subjetividade encenada no discurso, marcada pelo pronome possessivo “meu” e pela prevalência do tom reticente. Percebe-se a aproximação semântica entre as palavras “lago” e “ser”, que desloca a leitura do poema de espaço físico para espaço subjetivo. A última estrofe evidencia que a tristeza não é apenas uma marca do eu-lírico, mas também “uma ansiosa indefinível aspiração”. Vejamos, a propósito, estes versos:

Lago Todo o meu ser é um lago fundo e doce... Por onde passeiam barcos com meninos... [...] Todo o meu ser é um lago doce e fundo onde a tristeza é uma ansiosa indefinível aspiração... (LARA, 2004LARA, Alda. Poemas. Luanda: Edições Maianga, 2004. , p. 15).

A metáfora de um lago “fundo e doce”/ “doce e fundo”, nesse poema, reitera essa melancolia em tons subjetivos. A voz lírica “deseja” a tristeza, em “uma ansiosa indefinível aspiração”, porque ela também conforma o “canto triste” de Alda Lara, conferindo-lhe cores mais específicas e particulares.

Sentimentos de perda e isolamento aparecem em “Poemas que eu escrevi na areia”, reforçando o tom intimista de um discurso em primeira pessoa. Esse longo poema, escrito em dezembro de 1949, tem como interlocutor o “bergantim”: “Meu bergantim, onde vens, / que te não posso avistar? / Bergantim! Meu bergantim! Quero partir, rumo ao mar...” (LARA, 2004LARA, Alda. Poemas. Luanda: Edições Maianga, 2004. , p.17). Nesse contexto, o bergantim não é apenas o meio de transporte que permitiria a evasão; há uma espécie de personificação do bergantim, permeada pelo desejo, pela espera, pela angústia e pela frustração. O desejo de evasão é reiterado e ganha tons de urgência. Prevalece o tom exclamativo: “Tenho pressa! Tenho pressa! Já vejo abutres voando além, por cima de mim...” (LARA, 2004LARA, Alda. Poemas. Luanda: Edições Maianga, 2004. , p. 17).

A interlocução é uma constante na poesia de Alda Lara, e se renova com figuras diversas: o barco, o barqueiro, o marinheiro... como nos versos:

[...] Ah! barqueiro... Por que tardas?... Não vês como faz frio?... Espero, mas desfaleço... Não tardes mais, barqueiro Não tardes!... que é tão longe ainda a outra margem do rio... (LARA, 2004LARA, Alda. Poemas. Luanda: Edições Maianga, 2004. , p. 23).

Nessas duas estrofes, o processo enunciativo faz entrever uma espera angustiada, em linguagem muito expressiva. O desejo de evasão permanece adiado ou frustrado, o que acentua o “canto triste” de Alda Lara.

Evocam-se, constantemente, os temas do exílio, solidão e saudade, que abrem frestas para uma possível leitura autobiográfica da voz lírica que está distante do seu lugar de origem. Para Fábio Mário da Silva, “notamos que estamos diante de um discurso saudoso, melancólico, deslocado” (SILVA, 2019SILVA, Fábio Mário da. Entre Portugal e Angola: reflexões sobre a poética de Alda Lara. Revista Mulemba, v. 11, n. 21, p. 12-21, 2019., p. 19). O eu-lírico os encena em versos que demonstram o afastamento da sua terra natal. Há, em “Quadras da minha solidão”, uso de advérbios/locuções adverbiais que marcam o exílio: “daqui/donde estou” e “do meu país”. Vejamos estes versos:

Quadras da minha solidão Fica longe o sol que vi, aquecer meu corpo outrora... Como é breve o sol daqui! E como é longa esta hora... Donde estou vejo partir quem parte certo e feliz. Só eu fico. E sonho ir. rumo ao sol do meu país... Por isso as asas dormentes, suspiram por outro céu. Mas ai delas! tão doentes, não podem voar mais eu... [...]. (LARA, 2004LARA, Alda. Poemas. Luanda: Edições Maianga, 2004. , p. 55-56).

Nesse poema, “Quadras da minha solidão”, o título pode se referir à composição das estrofes - de quatro versos cada - ou a uma medida espacial que mantém um sujeito deslocado do lugar onde gostaria de estar. As duas interpretações são congruentes e corroboram a melancolia já expressa no título, além imprimir nesse enunciado pulsões de solidão e descontentamento, metaforizados nos versos: “Fica longe o sol que vi” / “Como é breve o sol daqui”, alusões a dois espaços distintos - Angola e Portugal - com os quais a voz lírica, à moda da “Canção do Exílio” (de Gonçalves Dias), demarca os espaços “lá” e “cá”. A metáfora do pássaro que anseia ao voo mas tem asas “dormentes”, “doentes”, faz-se muito significativa, por acentuar a melancolia e a impossibilidade de partir. Há, nesse texto, a retomada dos trânsitos já expostos no poema “Abandono”; o eu-lírico observa as “partidas” e sonha com o regresso ao seu país.

O tema saudade, por sua vez, aparece, pulsante, no poema “Regresso”, que, desde o título, apresenta-se como aspiração e necessidade prementes, que se anuncia no verso: “Sede... Tenho sede dos crepúsculos africanos”. As cores e os sons da África modulam o texto e o discurso evidencia, como aponta Silva: “a saudade dessa paisagem, desse território, ainda a explorar pelo eu poético, que deseja ver essa paisagem e embriagar-se nela, quase como se estivesse fundindo a ela” (SILVA, 2019SILVA, Fábio Mário da. Entre Portugal e Angola: reflexões sobre a poética de Alda Lara. Revista Mulemba, v. 11, n. 21, p. 12-21, 2019., p. 18). Recursos estéticos permitem antever elementos da paisagem e evidenciam a falta, “tons quase irreais”, em verso que se refere à beleza impactante do cenário imaginado no poema, além de retomar o fato de a memória não ser linear e estar sempre contaminada pela imaginação. Na visão de Margarido, o retrato de Angola imaginado por Lara não é, propriamente, “um elemento de Angola, mas sim de sua Angola” (MARGARIDO, 1980MARGARIDO, Alfredo. Esboço de interpretação da poesia de Alda Lara. In: MARGARIDO, Alfredo. Estudos sobre literaturas das nações africanas de língua portuguesa. Lisboa: Regra do Jogo, 1980. p. 299-307., p. 303).

Fábio Mário da Silva evidencia, também, a presença das lembranças que remetem à África, explicando-as nestes termos:

As alusões a objetos e imagens que ativam lembranças da África - e, portanto, de tessitura da memória, da sua infância, do desejo do regresso - se tornaram os mais expressivos e eufóricos, contrastando com o cenário melancólico português, no conjunto de sua obra e, portanto, são mais constantemente abordados por sua crítica. (SILVA, 2019SILVA, Fábio Mário da. Entre Portugal e Angola: reflexões sobre a poética de Alda Lara. Revista Mulemba, v. 11, n. 21, p. 12-21, 2019., p. 19).

Trânsitos metalinguísticos: o poema como processo

O fato de Alda Lara ter frequentado a Casa dos Estudantes do Império - espaço de convivência e tertúlias literárias onde se reuniam jovens intelectuais de origem africana - permitiu que ela tivesse contato com temas do “retorno às fontes, a redescoberta do Eu africano, a reafricanização de assimilados que eles eram de facto, a tomada de consciência da total alienação” (ROCHA, 2003ROCHA, Edmundo. Angola: contribuição ao estudo da génese do nacionalismo moderno angolano (período de 1950-1964) (testemunho e estudo documental). Lisboa: Edição do Autor, 2003. , p. 89). Nesses encontros, difundiram-se, entre escritores africanos de língua portuguesa, os ideais do Movimento Negritude, que foi, na opinião de Pires Laranjeira, “a única corrente estético-literária que deu expressão ao homem negro considerado no seu conjunto e universalidade naquele período” (PIRES LARANJEIRA, 1995PIRES LARANJEIRA, José Luís. A negritude africana de língua portuguesa. Porto: Edições Afrontamento, 1995., p. 17).

Há sintomático trânsito na estética de Alda Lara, que conduz seu(sua) leitor(a) por veredas mais subjetivas e por aquelas que apresentam questões sociais e políticas, delineando uma transição de uma face mais intimista para uma feição comprometida com questões sociopolíticas.

Alda Lara compõe poemas metalinguísticos. Em “Apontamento”, por exemplo, a voz lírica apresenta pares de versos que definem o que é “ser Poeta”, com frestas de esperanças que não se viam nos poemas do seu primeiro livro, em que as metáforas traduziam expressa melancolia.

Ser Poeta... É ter sempre em cada mão a esmola de uma ilusão... É crer que a primavera há de voltar, mesmo que não volte para o nosso olhar!... É ver estrelas em cada noite morta, e felicidade em cada vida torta... É caminhar sobre espinhos, a sorrir, vaiado p’la descrença, sem ouvir... É ser soldado sem bandeira de uma luta traiçoeira... É crer ao fim do DIA concluído, que nada foi perdido... (LARA, 2004LARA, Alda. Poemas. Luanda: Edições Maianga, 2004. , p. 96).

Esses pares de versos têm rimas e semântica que prezam pela simplicidade. Não resultam de trabalho estético excessivo; ao contrário, a metalinguagem fica explícita pelas características da poeta, que são, sobretudo, as que a vinculam uma permanente utopia. Essas características estão em consonância com os ideais daqueles que lutaram pela libertação das colônias portuguesas, que participaram de movimentos anticolonialistas, acreditaram e sonharam com um futuro de esperança para os espaços africanos. Não é preciso rigor métrico, rimas raras ou um discurso inapreensível para se fazer poesia. A simplicidade dos versos citados associa a imagem do poeta ao “sonhador”, “aquele que colhe utopias”. Ser poeta, nesse contexto, é ser “soldado sem bandeira / de uma luta traiçoeira”. O exercício da metalinguagem permanece no poema “Para ti”, transcrito a seguir:

Para ti Ah!... Chamam-te POETA!... Chamam-te poeta, E sonhador, E idealista (que eu ouvi...) Mas acreditam em ti. (LARA, 2004LARA, Alda. Poemas. Luanda: Edições Maianga, 2004. , p. 102).

O jogo do texto acontece, também, no plano da enunciação, posto que a voz que se enuncia no discurso não é a voz da própria poeta, mas a do eu-lírico, que a descreve como uma interlocutora. A grafia da palavra “poeta” está em letras maiúsculas, conferindo importância e reconhecimento para essa importante função. Embora vista como “sonhadora” e “idealista”, suas palavras têm força e credibilidade. O poeta é a voz da revolução, embora, naquele momento, a libertação da imposição colonial pudesse parecer um sonho inapreensível. A enunciação prossegue, nestes termos:

[...] Só eu 1ue não te conheci menino, 1ue não sei que destino presidiu à tua infância... [...] O menino que a velha ama preta, não se cansou de embalar! [....] Que corria pelas ruas de Maxaquene feito capitão da meninada [...] Sim! Só eu que nada sei. Adivinhei!... Talvez por isso somos amigos!... (LARA, 2004LARA, Alda. Poemas. Luanda: Edições Maianga, 2004. , p. 84-85).

O olhar do eu lírico volta-se para o tempo da memória, focalizando a infância de um menino que, desde cedo, tem uma voz precursora, “que corria pelas ruas de Maxaquene / feito capitão da meninada”. Nos poemas metalinguísticos de Alda Lara, o que se percebe é um tempo de gestação de esperança. Os textos metalinguísticos da antologia Poemas precedem, temporalmente, os que apresentam a face mais militante da escritora, como os emblemáticos versos de “Prelúdio” e do conhecido “Presença Africana”. Os dados biográficos, temporais e mesmo poéticos demonstram uma gradativa consciência dessa poeta sobre a função da própria Poesia e da sua importância como arma de luta e libertação, além de espaço para se elaborar a esperança e o desejo de se evadir do cárcere subjetivo.

Trânsitos pelo feminino: voz de mulher que se enuncia e promove diálogos

Temas específicos do universo feminino, nos quais se percebe uma “intensa angolanidade implícita” (ALBUQUERQUE, 1984, p. 4, apudPEREIRA, 2010PEREIRA, Érica Antunes. De missangas e catanas: construção social do sujeito feminino em poemas angolanos, cabo-verdianos, moçambicanos e são-tomenses (análises das obras de Alda Espírito Santo, Alda Lara, Conceição Lima, Noémia de Sousa, Paula Tavares e Vera Duarte). 2010. Tese (Doutorado em Letras) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010., p. 104), são abordados em primeira pessoa, além de interlocuções com outras mulheres, representantes de vários contextos sociais. Marcas da subjetividade do eu-lírico estão presentes e coexistem com as consciências política e social. O tom confessional se sobressai em muitos textos de Alda Lara, o que é próprio do universo feminino, uma vez que as mulheres, historicamente confinadas ao âmbito doméstico, “teriam encontrado nesse tipo de escrita o veículo ideal para expressão de sua vida íntima, seus desejos, suas fantasias” (CASTELO BRANCO, 1991CASTELO BRANCO, Lúcia. O que é escrita feminina? São Paulo: Brasiliense, 1991., p. 30).

Inocéncia Mata avalia a escrita feminina de Alda Lara nos seguintes termos:

Na sua poesia, a mulher é sempre sujeito ou figura poética e na tematização do homem oprimido, Alda Lara concentra na mulher as direcções do sonho de libertação nos anos 50-60. E o sonho é portador de extrema esperança, mas e aí reside a diferença com a maior parte da poesia dos seus contemporâneos, nutrindo-se de ideais intemporais e universais como justiça, fraternidade/solidariedade, amor e paz, vão além da construção da nação... A força desse sonho percorre a sua poesia, em cuja enunciação discursiva não há espaço para as contradições e as aspirações de sentir individual. (MATA, 2001MATA, Inocéncia. Literatura Angolana: silêncios e falas de uma voz inquieta. Lisboa: Mar Além, 2001., p. 109-110 apudFREITAS, 2020FREITAS, Sávio Roberto Fonseca de. O mar, o rio e a maternidade na poesia de Alda Lara. Revista ECOS, v. 29, n. 2, p. 194-208, 2020. Disponível em: https://periodicos.unemat.br/index.php/ecos/article/view/5113 . Acesso em: 15 nov. 2022.
https://periodicos.unemat.br/index.php/e...
, p. 195).

Essa análise de Inocéncia Mata é retomada por Sávio Roberto Fonseca de Freitas, que, em coro com essa pesquisadora santomense, realça que na poiesis de Alda Lara “a mulher é sempre sujeito”. Freitas menciona “[...] um protagonismo feminino conciliado com temas que recorrem aos dilemas das mulheres” (FREITAS, 2020FREITAS, Sávio Roberto Fonseca de. O mar, o rio e a maternidade na poesia de Alda Lara. Revista ECOS, v. 29, n. 2, p. 194-208, 2020. Disponível em: https://periodicos.unemat.br/index.php/ecos/article/view/5113 . Acesso em: 15 nov. 2022.
https://periodicos.unemat.br/index.php/e...
, p. 196), em que se podem destacar, segundo ele, temas como o “mar”, o “rio” e a “maternidade”, sintagmas que são constantemente associados ao feminino, por sua simbologia de fertilidade. A força e a projeção da voz feminina tornam-se “grito!”, como o que é encenado no poema “Maternidade”:

Dentro de mim, é que trago a voz que se não cala, e a força que não mais se apaga Dentro de mim é que o caudal-anseio alaga, e correndo há-de rir, de mar em mar, levar a fim da terra, um sinal de infinito... Dentro mim, Do meu sangue nutrida, e sustentada, é que a voz não é soluço mas grito! Dentro de mim, eco de paz ou de alerta, dentro de mim, é que a eternidade é certa. (LARA, 2004LARA, Alda. Poemas. Luanda: Edições Maianga, 2004. , p. 90).

Esse poema é muito estudado pelos críticos literários da obra lariana porque nele sobressaem-se diversos temas que representam seus trânsitos: a subjetividade; a força do feminino; a resistência sob a ótica da mulher e, sobretudo, da mulher colonizada; a revolta; e um movimento surpreendente de gestação da esperança. A dicção do poema aproxima-se do que analisa Luíza Neto Jorge sobre a “identidade feminina”, à medida que a sua voz resgata “as suas realizações simbólicas, procurando encontrar uma linguagem própria para as experiências do corpo e da intersubjetividade, deixadas mudas pela cultura dominante” (JORGE, 1995JORGE, Luíza Neto. O sexo dos textos: traços da ficção narrativa de autoria feminina. In: MAGALHÃES, Isabel Allegro de. O sexo dos textos e outras leituras. Lisboa: Editorial Caminho, 1995. p. 15-54., p. 19). Como sabemos, nos espaços colonizados a mulher é duplamente subjugada, ficando exposta aos sistemas colonial e patriarcal.

A gestação do “grito” está na performance dessa mulher, cuja força da voz já não pode ser silenciada e terá alcance ultramarinho. Há um processo de “corporização” do feminino em sua propriedade mais específica, que é a maternidade. Nesse sentido, Alda Lara se expressa no feminino e pelo feminino, em escrita na qual se observa o que afirma Jorge (1995JORGE, Luíza Neto. O sexo dos textos: traços da ficção narrativa de autoria feminina. In: MAGALHÃES, Isabel Allegro de. O sexo dos textos e outras leituras. Lisboa: Editorial Caminho, 1995. p. 15-54.) sobre a escrita do corpo:

Observamos nestes textos a corporização da ideia de uma escrita feita com o próprio corpo, uma “body writing”, como lhe chamam algumas correntes críticas americanas. Essa escrita tem a ver, por um lado, com uma percepção interior em que o corpo, em vez de ser olhado de fora, é expresso a partir de dentro. (JORGE, 1995JORGE, Luíza Neto. O sexo dos textos: traços da ficção narrativa de autoria feminina. In: MAGALHÃES, Isabel Allegro de. O sexo dos textos e outras leituras. Lisboa: Editorial Caminho, 1995. p. 15-54., p. 31).

A escrita do corpo revela a percepção apurada dos diversos sentidos: a visão, o olfato, a audição, o tato e o paladar mostram-se como antenas igualmente importantes e nítidas para uma captação plural da vida. Essa percepção apurada pelos sentidos fica evidente no poema “Entardecer”, no qual se lê:

A hora medrosa do entardecer desfolha mariposas de sonho nos jardins... E vou de mãos dadas com ela, caminhando silenciosa e leve, p’ra não acordar os lilases que dormem, encostando as suas cabecinhas roxas sobre a almofada dos muros... Vou em bicos de pés silenciosa e breve... (maio de 1959, Coimbra) (LARA, 2004LARA, Alda. Poemas. Luanda: Edições Maianga, 2004. , p. 13).

Nesse texto, apresenta-se um contexto com tempo e espaço bem delimitados. Ao entardecer, a metáfora das transformações que ocorrem ao final do dia incide na subjetividade do eu lírico, que se apresenta como uma voz feminina, “silenciosa e leve” / “silenciosa e breve”, que caminha de mãos dadas com essa “hora medrosa”. Evidencia-se o tom de transformação que parte da natureza e incide na subjetividade. Frequentemente, poemas com temas sobre o entardecer são vinculados à velhice, à finitude da vida e à passagem do tempo. Há, no poema transcrito acima, características simbolistas marcadas por metáforas expressivas, sinestesias e aliterações - sobretudo, marcadas pela repetição do fonema /S/ - que conferem aos versos um tom de sussurro. As cores que pintam o poema, os “lilases” do fim do dia, sugerem, também, o tom melancólico que é próprio do crepúsculo.

Em “Dança de roda”, a voz poética elabora diferentes questões que pesam sobre as mulheres, evocando-as, também, pela interlocução presente no texto:

Teus olhos estão chorando? … - pois que chorem moreninha… Teus olhos estão esperando?... - pois que esperem moreninha… […] Mulher fez-se p’ra sofrer. para sofrer e esperar. Mulher fez-se p’ra sofrer e perdoar… (Há milênios que sofremos… não é tempo?...). (LARA, 2004LARA, Alda. Poemas. Luanda: Edições Maianga, 2004. , p. 105).

Nesses versos de “Dança de roda”, temos uma voz que expõe o processo histórico-social que impõe sofrimento às mulheres. Tem-se uma dança de roda, tema que remete a uma cantiga repetitiva, entoada e difundia ao sem limite. As mulheres estão fadadas ao sofrimento, à espera e à resignação (pois precisam perdoar). Estratégias que evidenciam a imposição dos discursos hegemônicos de forma irrestrita permanecem como as cirandas: ninguém sabe quem as cria ou difunde, mas todos as conhecem “de cor”. No texto, a proposta de resistência a esses discursos é muito sutil e aparece em forma de pergunta que reforça a interlocução entre mulheres “Há milênios que sofremos... / não é tempo?).

Reiterando as interlocuções implícitas e explícitas promovidas por Alda Lara com figuras femininas, temos o poema “Testamento”, escrito em Lisboa, em 1950, cujas duas primeiras estrofes trazem personagens femininas que recebem o legado da voz poética:

Testamento À prostituta mais nova, do bairro mais velho e escuro, deixo os meus brincos, lavrados em cristal, límpido e puro... E àquela virgem esquecida rapariga sem ternura, sonhando algures uma lenda, deixo o meu vestido branco, o meu vestido de noiva, todo tecido de renda... [...]. (LARA, 2004LARA, Alda. Poemas. Luanda: Edições Maianga, 2004. , p. 93).

É sintomático que a locutora escolha a “prostituta” e a “virgem”, sem distinção, metonímia de todas as mulheres, sem cometer as exclusões reforçadas pelo pensamento hegemônico. O canto feminista de Alda Lara é sutil e deixa antever, segundo Érica Antunes Pereira,

a assunção da micro-história a partir dos cotidianos das mulheres, nos contextos delineados, emergirão novas identidades sociais e culturais (como sistemas de representação cultural), as quais colocarão em questão os constructos e estereótipos estabelecidos num passado que se esforça por persistir para além do presente. (PEREIRA, 2010PEREIRA, Érica Antunes. De missangas e catanas: construção social do sujeito feminino em poemas angolanos, cabo-verdianos, moçambicanos e são-tomenses (análises das obras de Alda Espírito Santo, Alda Lara, Conceição Lima, Noémia de Sousa, Paula Tavares e Vera Duarte). 2010. Tese (Doutorado em Letras) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010., p. 68).

O poema “Prelúdio”, escrito em Lisboa em 1951, traz um jogo textual que, em um primeiro momento, pode confundir o(a) leitor(a). Embora haja, nele, referência à sua escrita em Portugal, o eu lírico resgata um lugar da memória com um poema-narrativa que apresenta a “Mãe-Negra”. As duas palavras que compõem esse substantivo composto se iniciam com letras maiúsculas, personificando-as, convocando a leitura que incide sobre a interpretação dessa personagem como “mãe” e como “África”. O título “Prelúdio” se refere à enunciação de uma história anterior ao tempo do enunciado, o que ratifica a ideia de espaço e tempo recobrados pela memória e revisitados pelas palavras. Há, no enunciado, um processo em que o eu-lírico interfere na cena, demonstrando conhecer a fundo o contexto apresentado e se envolver afetivamente com ele. Vejamos, a propósito, os versos desse “Prelúdio”:

Prelúdio Pela estrada desce a noite... Mãe-Negra desce com ela... Nem buganvílias vermelhas, nem vestidinhos de folhos, nem brincadeiras de guizos, nem suas mãos apertadas. Só duas lágrimas grossas, em duas faces cansadas. [...]. (LARA, 2004LARA, Alda. Poemas. Luanda: Edições Maianga, 2004. , p. 37-38).

Neles, uma cena cotidiana é descrita de forma simples, com ênfase ao que a Mãe-Negra não possui. A conjunção “nem”, que inicia os quatro versos da segunda estrofe, pressupõe outra falta: “os filhos dessa Mãe-Negra”. Restam apenas “duas lágrimas grossas em duas faces cansadas”. Sobressai-se, aí, um movimento muito interessante, em que a voz poética se coloca na cena enunciativa pela palavra. Ao evocar, pela memória, o contexto de dor e falta imposto à África e às suas mulheres, a “observadora” também se sensibiliza e, por isso, corre uma lágrima na face da “mãe” e outra na sua própria face:

Mãe-Negra tem voz de vento, voz de silêncio batendo nas folhas do cajueiro... Tem voz de noite, descendo, De mansinho, pela estrada... Que é feito desses meninos Que gostava de embalar?... Que é feito desses meninos Que ela ajudou a criar?... Quem ouve agora as histórias Que costumava contar?... (LARA, 2004LARA, Alda. Poemas. Luanda: Edições Maianga, 2004. , p. 37-38).

A descrição da personagem cuja voz fora silenciada se mistura à voz audível da poeta em perguntas repetidas nos versos, direcionadas aos “meninos”, que têm seu duplo nos(a) leitores(as), receptores(as) da materialidade do poema. Embora a Mãe-Negra e a voz lírica já tenham compartilhado as lágrimas e a voz, nesse momento o texto “Prelúdio” ainda se situa em dois tempos distintos: o da enunciação e o da memória:

Mãe negra não sabe nada... Mas ai de quem sabe tudo, Como eu sei tudo Mãe-Negra!... Os teus meninos cresceram E esqueceram as histórias Que costumavas contar... Meninos partiram pra longe, Quem sabe se hão-de voltar! (LARA, 2004LARA, Alda. Poemas. Luanda: Edições Maianga, 2004. , p. 37-38).

Os tempos da enunciação e do enunciado se encontram, a voz poética interfere na cena e reforça a interlocução com a “Mãe-Negra”. Conta-lhe que “seus” meninos partiram para longe, deixando-a em condição de espera e silêncio, como é imposta às mulheres:

Só tu ficaste esperando, Mãos cruzadas no regaço, Bem quieta bem calada. É tua a voz deste vento, desta saudade descendo, de mansinho pela estrada. (LARA, 2004LARA, Alda. Poemas. Luanda: Edições Maianga, 2004. , p. 37-38).

As últimas estrofes promovem um belo movimento performático e as estratégias literárias fundem o tempo da memória e o tempo da narrativa - “a voz deste vento / desta saudade descendo” -, com pronomes demonstrativos marcam tempo e espaço coincidentes. As interlocutoras de África e Lisboa se unem em um sentimento compartilhado de saudades: a Mãe-África sente saudades dos seus filhos que partiram e a filha dessa Mãe-África, a voz da enunciação, sente saudades de suas raízes, da sua terra natal.

Trânsitos temáticos: Alda Lara e a “presença africana” em seus versos

O poema “Noite” foi escrito em outubro de 1948; portanto, se considerarmos um viés cronológico, dentre os poemas que compõem a antologia citada, os primeiros são os que evocam temas africanos e as peculiaridades do espaço angolano. Em consonância com o movimento “Vamos descobrir Angola!”, podemos ler, nele, especificidades das noites africanas, suas crenças e seus mistérios. Vejamos seus versos:

Noite Noites africanas langorosas, esbatidas em luares...., perdidas em mistérios... Há cantos tungurúluas pelos ares!... ................................... Noites africanas endoidadas, onde o barulhento frenesi das batucadas, põe tremores nas folhas dos cajueiros... ................................... Noites africanas tenebrosas..., povoadas de fantasmas e de medos, povoadas das histórias de feiticeiros que as amas-secas pretas, contavam aos meninos brancos... E os meninos brancos cresceram, e esqueceram as histórias... Por isso as noites são tristes... endoidadas, tenebrosas, langorosas, mas tristes... como o rosto gretado, e sulcado de rugas, das velhas pretas... Como o olhar cansado dos colonos, como a solidão das terras enormes mas desabitadas... É que os meninos brancos,... esqueceram as histórias, com que as amas-secas pretas os adormeciam, nas longas noites africanas... Os meninos-brancos... esqueceram!... (outubro de 1948) (LARA, 2004LARA, Alda. Poemas. Luanda: Edições Maianga, 2004. , p. 72-73).

Há, nesse poema, muitos elementos que evocam o continente africano, suas culturas, suas histórias, suas memórias esquecidas e silenciadas. As noites africanas são “longorosas”, advérbio que evoca a pulsão amorosa e mística que faz mergulhar em estado de doce melancolia. Há um deslocamento temporal nesse poema; as primeiras estrofes são marcadas pelo tempo presente e, em seguida, o tempo se desloca para o passado. São memórias apresentadas pelo eu lírico que está deslocado, no tempo e no espaço, da cena que descreve. Os versos apresentam detalhes pormenorizados do espaço e da noite na África, com recursos expressivos que conferem ao discurso um tom afetivo. Prevalece a melancolia, ditada pelo esquecimento: “É que os meninos brancos... / esqueceram as histórias” (LARA, 2004LARA, Alda. Poemas. Luanda: Edições Maianga, 2004. , p. 73).

Ana Mafalda Leite observa que, na poesia da Revista Mensagem - e, de maneira geral, em poesias produzidas em Angola até a década de 1970 -, “verifica-se a presença de traços narrativos aliados ao modo lírico, ou conjugados com o dramático, que tornam possível contar as histórias angolanas, conservando nos textos, voluntariamente, um a radicação na oralidade” (LEITE, 2006LEITE, Ana Mafalda. Poesia angolana: percursos (des)contínuos. Poesia Sempre: Angola e Moçambique, ano 13, n. 23, p. 35-50, 2006. Disponível em: http://memoria.bn.br/pdf/501395/per501395_2006_0023.pdf . Acesso em: 15 nov. 2022.
http://memoria.bn.br/pdf/501395/per50139...
, p. 38).

Essa observação de Ana Mafalda Leite pode ser comprovada pelos dois longos poemas apresentados - “Prelúdio” e “Noite” -, em movimento que essa pesquisadora considera ser próprio da estética angolana. Segundo ela, “as estruturas narrativas ampliadas pela intromissão de falas, pela criação de personagens, espelham nestes poemas características vindas direta ou indiretamente da tradição oral africana, funcionando como marca de autenticidade literária e nacional” (LEITE, 2006LEITE, Ana Mafalda. Poesia angolana: percursos (des)contínuos. Poesia Sempre: Angola e Moçambique, ano 13, n. 23, p. 35-50, 2006. Disponível em: http://memoria.bn.br/pdf/501395/per501395_2006_0023.pdf . Acesso em: 15 nov. 2022.
http://memoria.bn.br/pdf/501395/per50139...
, p. 39).

O poema “Momento”, que abre a segunda seção do livro I da antologia de Alda Lara, traz uma conotação que se difere dos poemas apresentados na primeira seção deste artigo, em que prevalecem trânsitos espaciais, temporais, subjetivos e estéticos. No poema “Momento”, vê-se um retrato cruel de um cenário de guerra:

Momento Nos olhos dos fuzilados Dos sete corpos tombados De borco, no chão impuro, Eis! ...sete mães soluçando... Nas faces dos fuzilados, Nas sete faces torcidas De espanto ainda, e receio, ...sete noivas implorando... E do ventre de além-mundo, Sete crianças gritando Na boca dos fuzilados... Sete crianças gritando Ecos de dor e renúncia Pela vida que não veio... Na boca dos fuzilados Vermelha de baba e sangue, ...sete crianças gritando! (LARA, 2004LARA, Alda. Poemas. Luanda: Edições Maianga, 2004. , p. 31).

Essa dicção da violência permanece na terceira seção da antologia, que traz, no poema “Anúncio”, versos eivados de sangue, dor e retaliação. Cumpre ressaltar que “Anúncio” foi escrito em Benguela, em 1953, em uma das viagens que Alda Lara fez a Angola.

Anúncio Trago os olhos naufragados em poentes cor de sangue... Trago os braços embrulhados numa palma bela e dura, e nos lábios, a secura, dos anseios retalhados... Enroladas nos quadris, cobras mansas que não mordem, recém serenos abraços... e nas mãos, presas com fitas, azagaias de brinquedo vão-se fazendo em pedaços... Só nos olhos naufragados estes poentes de sangue... Só na carne rija e quente, este desejo de vida! Donde venho, ninguém sabe, e nem eu sei! Para onde vou, diz a lei tatuada no meu corpo... E quando os pés abram sendas, e os braços se risquem cruzes, quando nos olhos parados, que trazemos naufragados se entornarem novas luzes, Ah! Quem souber, há-de ver que eu trago a lei no meu corpo!... (LARA, 2004LARA, Alda. Poemas. Luanda: Edições Maianga, 2004. , p. 53-54).

A escritora Alda Lara fez parte da geração da Revista Mensagem (1951-1953), da qual se destacam, dentre outros: Maurício Gomes, Humberto da Sylvan, Agostinho Neto, Viriato da Cruz, António Jacinto, Antero Abreu Mário António e Mário Pinto Andrade, cujo primeiro número estabelece um compromisso social, político e estético da publicação:

MENSAGEM será a síntese de todas as mensagens de amor, de fraternidade e de esperança, que nós, os jovens de Angola, dirigimos a todos os nossos irmãos e a todos os jovens do Mundo, - porque é na generosidade da Juventude que fundamentamos os nossos anseios. E a mocidade, a despontar para a Vida, qual botão de rosa a desabrochar em mil promessas de carinho, saberá ouvir-nos; ouvir-nos e compreender-nos; compreender-nos e ajudar-nos. Porque será da compreensão da gente moça que resultará a Obra Mestra que nós desejamos. (MENSAGEM, 1951MENSAGEM: a voz dos naturais de Angola. Luanda: Departamento Cultural da Associação dos Naturais de Angola, 1 jul. 1951. número 1, p. 1).

A proposta desse periódico está em consonância com os ideais de fraternidade, solidariedade e esperança. Os jovens da “geração Mensagem” buscavam descobrir Angola por suas conotações próprias. A voz de Alda Lara ecoa de forma importante nesse cenário, apesar de, em muitos momentos, seus textos terem sido desconsiderados ou relativizados pela crítica literária. A atuação da geração de 1950 foi primordial para o processo de descolonização, embora a escritora não tenha visto esses ideais se concretizarem, devido à sua morte precoce, em 1968.

Segundo Ana Mafalda Leite, a busca por “modelos próprios” para a literatura angolana é movimento que se faz a partir de recursos como “frequentes evocações da infância, no protesto, no elogio da terra-mãe e em tantos outros motivos, com uma linguagem capaz de colorir com recurso de localismo de raiz crioula” (LEITE, 2006LEITE, Ana Mafalda. Poesia angolana: percursos (des)contínuos. Poesia Sempre: Angola e Moçambique, ano 13, n. 23, p. 35-50, 2006. Disponível em: http://memoria.bn.br/pdf/501395/per501395_2006_0023.pdf . Acesso em: 15 nov. 2022.
http://memoria.bn.br/pdf/501395/per50139...
, p. 36).

Quando transita pelas temáticas políticas, sociais e culturais de sua terra, colhendo marcas identitárias africanas, o eu-lírico o faz como um “Anúncio”, poema que traz, também, uma pulsão de violência e revolta.

O poema mais conhecido de Alda Lara, “Presença Africana”, tem, como aponta Silva (2019SILVA, Fábio Mário da. Entre Portugal e Angola: reflexões sobre a poética de Alda Lara. Revista Mulemba, v. 11, n. 21, p. 12-21, 2019.), três versões distintas, e teve o próprio título alterado em versões anteriores - fora intitulado “África” e “Presença”. A versão manuscrita de “Presença”, datada de 1952/1953, foi veiculada pelo Diário de Angola, em matéria intitulada “Alda Lara no segundo aniversário de sua morte”,3 3 Segundo Silva, um exemplar dessa edição do jornal foi exposto, durante o colóquio “Mulheres Africanas em Trânsito”, na Universidade de Lisboa, em uma exposição de documentos que estão sob a curadoria de Ana Paula Bernardo, que também participou da organização desse evento. Naquela ocasião, nós, participantes, pudemos apreciar memórias ali documentadas, como a citada versão do Diário de Angola, na qual se publicou o poema “Presença”. Para mais informações, acesse: http://mulheresafricanasemtransito.blogspot.com/. assinada por Alfredo Margarido em 31 de janeiro de 1964. Nos versos publicados na antologia Poemas (2004), tem-se:

PRESENÇA AFRICANA E apesar de tudo, Ainda sou a mesma! Livre e esguia, filha eterna de quanta rebeldia me sagrou. Mãe-África! Mãe forte da floresta e do deserto, ainda sou, a Irmã -Mulher de tudo o que em ti vibra puro e incerto… A dos coqueiros, de cabeleiras verdes e corpos arrojados sobre o azul… A do dendém nascendo dos abraços das palmeiras, … A do sol bom, mordendo o chão das Ingombotas… A das acácias rubras, Salpicando de sangue as avenidas, Longas e floridas… Sim!, ainda sou a mesma. A do amor transbordando pelos carregadores do cais suados e confusos, pelos bairros imundos e dormentes (Rua 11!… Rua 11!…) pelos negros meninos de barriga inchada e olhos fundos… (LARA, Presença Africana (excerto), 1953 in LARA, 2004, p. 157).

Nesse poema de cunho político e social, que evoca a liberdade e a resistência, a voz que se enuncia é feminina, filha da “Mãe África”. A voz poética se assume como protagonista em um cenário que rechaça as mulheres. Assim, intitula-se “mãe forte”, “irmã-mulher”, além de outros qualificadores poéticos que delineiam a plasticidade no texto de Alda Lara. As cores vibrantes da África aparecem em metáforas como “as acácias rubras”, “cabeleiras verdes”, “corpos arrojados sobre o azul”, e, também na imagem dos “negros meninos de barriga inchada e olhos úmidos”. Essas metáforas caracterizam uma poesia de “presença africana” para especificar a identidade da terra, “poetizando-a com imagens da flora e fauna características, reclamando a sua posse e filiação (Mãe/Minha terra)” (LEITE, 2006LEITE, Ana Mafalda. Poesia angolana: percursos (des)contínuos. Poesia Sempre: Angola e Moçambique, ano 13, n. 23, p. 35-50, 2006. Disponível em: http://memoria.bn.br/pdf/501395/per501395_2006_0023.pdf . Acesso em: 15 nov. 2022.
http://memoria.bn.br/pdf/501395/per50139...
, p. 37).

Érica Antunes Pereira, a propósito, analisa que “a aproximação da terra com a maternidade se mostra um recurso bastante utilizado para indicar a passagem do estado de submissão para o de resistência, ainda que se trate de um interstício” (PEREIRA, 2010PEREIRA, Érica Antunes. De missangas e catanas: construção social do sujeito feminino em poemas angolanos, cabo-verdianos, moçambicanos e são-tomenses (análises das obras de Alda Espírito Santo, Alda Lara, Conceição Lima, Noémia de Sousa, Paula Tavares e Vera Duarte). 2010. Tese (Doutorado em Letras) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010., p. 147). Estruturalmente, no texto, não há métricas e rimas; predominam as aliterações, as reticências e o tom exclamativo, que são traços formais importantes na escrita de Alda Lara. A voz feminina se enuncia, no presente, com expressões que se caracterizam como indicadores de resistência: “ainda sou”, “ainda sou eu mesma”. Aqui, novamente, percebe-se a gestação de um momento de resistência, quando o eu lírico se personifica como “Mãe África” e evoca a força da terra. A metáfora da mãe/mulher/pátria se funde em “Presença Africana”, texto muito importante na estética de Alda Lara, porque representa um marco e uma reverberação de ideais do Movimento Negritude nos poemas dessa escritora angolana.

Laura Cavalcante Padilha, por seu turno, interpreta os famosos versos desse poema de Alda Lara e conclui que:

emerge o corpo físico da terra, recuperado pelos seus traços naturais, ao mesmo tempo em que o local da cultura começa a emergir. Surgem bairros e ruas (Ingombotas, Rua 11); o dendém; os dongos; as acácias, etc. O eu-lírico tenta identificar-se com essa mesma terra, pelo viés da rebeldia. A emoção toma conta do ritmo do verso; as exclamações e reticências, ainda fortes presenças, ganham nova roupagem e dimensão. Rasura-se a previsibilidade e a terra do cantador [...] toma seu lugar na cena textual, começando a apresentar-se como diferença. (PADILHA, 2002PADILHA, Laura Cavalcante. Corpo e terra: um entrecruzamento simbólico em falas poéticas de mulheres africanas. In: PADILHA, Laura Cavalcante. Novos pactos: outras ficções: ensaios sobre literaturas afro-luso-brasileiras. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002. p. 219-228., p. 226).

A consciência social evidencia temas sobre o colonialismo e suas violências. Há uma sutileza na voz de Alda Lara que destoa, em certa medida, de seus contemporâneos, como, por exemplo, a voz pulsante e caudalosa própria da poeta moçambicana Noémia de Sousa. No cenário angolano, o compromisso nacionalista declarado em Vamos Descobrir Angola convoca a literatura em suas funções mais intrínsecas: promover a utopia e suscitar a revolução.

Como já exposto, Alda Lara morreu precocemente, aos 32 anos, em 1962. Pouco antes de falecer, estava reunindo e aprimorando seus poemas. Assim, desde seu primeiro texto publicado, datado de 1948, até o final da sua curta trajetória, ela se dedicou ao contínuo processo de reescrita de seus textos, reiterando mais um de seus trânsitos literários; talvez, o mais emblemático, no sentido metalinguístico: a busca incessante pela precisão da palavra poética.

A importância da voz de Alda Lara para a concepção do projeto literário de Angola, portanto, é indiscutível. Seus livros não estão publicados no Brasil, mas suas poesias circulam em nosso país, mediadas por textos acadêmicos, como um convite à leitura e à releitura da obra, dos trânsitos e das feições literárias dessa poeta angolana.

Referências:

  • BERNARDO, Ana Paula. Em torno da poética de Alda Lara. In: BERNARDO, Ana Paula; CHORA, Dina Chainho; GOMES, Elisabete Ricardo; RODRIGUES, Ana Salgueiro (org.). Vozes de Cabo Verde e de Angola: quatro percursos literários. Lisboa: Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias - CLEPUL, 2010. p. 165-213.
  • CASTELO BRANCO, Lúcia. O que é escrita feminina? São Paulo: Brasiliense, 1991.
  • FONSECA, Maria Nazareth Soares. Apresentação [do Dossiè “Literaturas Africanas de Lingua Portuguesa”]. Revista da Academia Mineira de Letras, ano 100, v. LXXXI, p. 17-24, 2021.
  • FREITAS, Sávio Roberto Fonseca de. O mar, o rio e a maternidade na poesia de Alda Lara. Revista ECOS, v. 29, n. 2, p. 194-208, 2020. Disponível em: https://periodicos.unemat.br/index.php/ecos/article/view/5113 Acesso em: 15 nov. 2022.
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  • JORGE, Luíza Neto. O sexo dos textos: traços da ficção narrativa de autoria feminina. In: MAGALHÃES, Isabel Allegro de. O sexo dos textos e outras leituras Lisboa: Editorial Caminho, 1995. p. 15-54.
  • LARA, Alda. Poemas Porto: Vertente, 1984.
  • LARA, Alda. Poemas Luanda: Edições Maianga, 2004.
  • LEITE, Ana Mafalda. Poesia angolana: percursos (des)contínuos. Poesia Sempre: Angola e Moçambique, ano 13, n. 23, p. 35-50, 2006. Disponível em: http://memoria.bn.br/pdf/501395/per501395_2006_0023.pdf Acesso em: 15 nov. 2022.
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  • MARGARIDO, Alfredo. Esboço de interpretação da poesia de Alda Lara. In: MARGARIDO, Alfredo. Estudos sobre literaturas das nações africanas de língua portuguesa Lisboa: Regra do Jogo, 1980. p. 299-307.
  • MATA, Inocéncia. Literatura Angolana: silêncios e falas de uma voz inquieta. Lisboa: Mar Além, 2001.
  • MENSAGEM: a voz dos naturais de Angola. Luanda: Departamento Cultural da Associação dos Naturais de Angola, 1 jul. 1951.
  • PADILHA, Laura Cavalcante. Corpo e terra: um entrecruzamento simbólico em falas poéticas de mulheres africanas. In: PADILHA, Laura Cavalcante. Novos pactos: outras ficções: ensaios sobre literaturas afro-luso-brasileiras. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002. p. 219-228.
  • PEREIRA, Érica Antunes. Secreta encruzilhada: duas vozes femininas que (se) (trans)formam (n)a poesia angolana. Revista Scripta, v. 13, n. 25, p. 127-144, 2009.
  • PEREIRA, Érica Antunes. De missangas e catanas: construção social do sujeito feminino em poemas angolanos, cabo-verdianos, moçambicanos e são-tomenses (análises das obras de Alda Espírito Santo, Alda Lara, Conceição Lima, Noémia de Sousa, Paula Tavares e Vera Duarte). 2010. Tese (Doutorado em Letras) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.
  • PIRES LARANJEIRA, José Luís. A negritude africana de língua portuguesa Porto: Edições Afrontamento, 1995.
  • ROCHA, Edmundo. Angola: contribuição ao estudo da génese do nacionalismo moderno angolano (período de 1950-1964) (testemunho e estudo documental). Lisboa: Edição do Autor, 2003.
  • SILVA, Fábio Mário da; SILVA, Paulo Geovane e. Um canto triste de versos de maresia: uma leitura da poética de Alda Lara. Interfacis, v. 4, n.1, p. 20-34, 2018.
  • SILVA, Fábio Mário da. Entre Portugal e Angola: reflexões sobre a poética de Alda Lara. Revista Mulemba, v. 11, n. 21, p. 12-21, 2019.
  • SILVA, Fábio Mário da. Alda Lara: poesia, conto e trabalho acadêmico. Revista da Academia Mineira de Letras, ano 100, v. LXXXI, p. 41-28, 2021.
  • 1
    Fábio Mário da Silva, um dos organizadores desse colóquio, publicou, em 2019, na Revista Mulemba, o artigo “Entre Portugal de Angola: reflexões sobre a poética de Alda Lara”, que focaliza os trânsitos espaciais dessa autora e o seu desdobramento em sua escrita literária. Esse texto está disponível no portal literÁfricas, da UFMG, com acesso pelo link: http://www.letras.ufmg.br/literafro/literafricas/literatura-angolana/1533-fabio-mario-da-silva-entre-portugal-e-angola-reflexoes-sobre-a-poetica-de-alda-lara. Como afirma Silva (2019SILVA, Fábio Mário da. Entre Portugal e Angola: reflexões sobre a poética de Alda Lara. Revista Mulemba, v. 11, n. 21, p. 12-21, 2019.), Alda Lara viveu, por 17 anos, em Angola, e, em 1962, mudou-se para Portugal, onde residiu por 13 anos. Nesse período, ia, com frequência, a Angola. Segundo Silva, “[...] mesmo passando um período de tempo menor na Europa, podemos notar que a autora desenvolve a sua escrita e a sua formação intelectual em Portugal, influência europeia que, de fato, vamos encontrar em seus versos” (SILVA, 2019SILVA, Fábio Mário da. Entre Portugal e Angola: reflexões sobre a poética de Alda Lara. Revista Mulemba, v. 11, n. 21, p. 12-21, 2019., p. 14).
  • 2
    Sávio Roberto Fonseca de Freitas (2020FREITAS, Sávio Roberto Fonseca de. O mar, o rio e a maternidade na poesia de Alda Lara. Revista ECOS, v. 29, n. 2, p. 194-208, 2020. Disponível em: https://periodicos.unemat.br/index.php/ecos/article/view/5113 . Acesso em: 15 nov. 2022.
    https://periodicos.unemat.br/index.php/e...
    ) retoma a proposta do Colóquio Internacional “Mulheres Africanas em Trânsito” quando apresenta alguns deslocamentos de Alda Lara em análise sobre as palavras “rio”, “mar” e “maternidade” na escrita dessa poeta angolana.
  • 3
    Segundo Silva, um exemplar dessa edição do jornal foi exposto, durante o colóquio “Mulheres Africanas em Trânsito”, na Universidade de Lisboa, em uma exposição de documentos que estão sob a curadoria de Ana Paula Bernardo, que também participou da organização desse evento. Naquela ocasião, nós, participantes, pudemos apreciar memórias ali documentadas, como a citada versão do Diário de Angola, na qual se publicou o poema “Presença”. Para mais informações, acesse: http://mulheresafricanasemtransito.blogspot.com/.
  • Parecer Final dos Editores

    Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação.
  • Luciana Brandão Leal. Doutora e mestra em Letras - Literaturas de língua portuguesa pela PUC Minas. Professora adjunto III da Universidade Federal de Viçosa, atuando no campus Florestal-MG. Bolsista de produtividade PQ2 do CNPq. Coordena os projetos de pesquisas “A produção poética dos países africanos de língua portuguesa” (financiado pelo CNPq 2022-2025) e “Mulheres de África: estudos sobre a poesia feminina dos países africanos de língua portuguesa” (financiado pela FAPEMIG 2022-2025).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    01 Set 2022
  • Aceito
    15 Mar 2023
Programa de Pos-Graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras -UFRJ Av. Horácio Macedo, 2151, Cidade Universitária, CEP 21941-97 - Rio de Janeiro RJ Brasil , - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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