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A sociedade dos vivos

The society of the living

Resumos

A pergunta: qual é o significado da experiência da morte na sociedade contemporânea? A hipótese: que existe uma faceta sombria e degradante da condição humana, associada à privatização institucional ou "pacificação" da morte que estamos assistindo em nossa época. Muitos teóricos sociais contemporâneos apostam em estratégias como a reflexividade para reconstruir a fragmentação do ser humano, porém essa reconstrução mal poderia vir sem procurar apoio em aspectos chaves da condição humana. Apontar alguns dos déficits da teoria social contemporânea e assinalar alguns caminhos para superar impasses da sociedade contemporânea resume a tentativa deste trabalho.

teoria social; modernidade; morte


The question: which is the meaning of the experience of death in contemporary society? The hypothesis: there is a somber and degrading facet in human condition, associated to institutional privatization, or "pacification" of death we see in our times. Several contemporary social theoreticians rely on strategies such as reflexivity in order to reconstruct human fragmentation. However, such reconstruction can hardly take place without seeking support in key aspects of the human condition. This works attempts to point at some of the deficits of contemporary social theory and underscore some of the ways to overcome contemporary society's dilemmas.

social theory; modernity; death


ARTIGO

A sociedade dos vivos1

The society of the living

Héctor Ricardo Leis

Doutor em Filosofia e Professor do Departamento de Sociologia e Ciência Política da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política e ao Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas

RESUMO

A pergunta: qual é o significado da experiência da morte na sociedade contemporânea?

A hipótese: que existe uma faceta sombria e degradante da condição humana, associada à privatização institucional ou "pacificação" da morte que estamos assistindo em nossa época.

Muitos teóricos sociais contemporâneos apostam em estratégias como a reflexividade para reconstruir a fragmentação do ser humano, porém essa reconstrução mal poderia vir sem procurar apoio em aspectos chaves da condição humana. Apontar alguns dos déficits da teoria social contemporânea e assinalar alguns caminhos para superar impasses da sociedade contemporânea resume a tentativa deste trabalho.

Palavras-chave: teoria social, modernidade, morte.

ABSTRACT

The question: which is the meaning of the experience of death in contemporary society?

The hypothesis: there is a somber and degrading facet in human condition, associated to institutional privatization, or "pacification" of death we see in our times.

Several contemporary social theoreticians rely on strategies such as reflexivity in order to reconstruct human fragmentation. However, such reconstruction can hardly take place without seeking support in key aspects of the human condition. This works attempts to point at some of the deficits of contemporary social theory and underscore some of the ways to overcome contemporary society's dilemmas.

Key words: social theory, modernity, death.

morrer

[Do lat. vulg. morrere, por mori.]

Perder a vida; falecer, finar-se, morrer-se, expirar, perecer [Sin., muitos deles bras., pop. ou de gíria: abotoar, abotoar o paletó, adormecer no Senhor, apagar, apitar, assentar o cabelo, bafuntar, bater a alcatra na terra ingrata, bater a(s) bota(s), bater a caçoleta, bater a canastra, bater a pacuera, bater com a cola na cerca, bater o pacau, bater o prego, bater o trinta-e-um, bater o trinta-e-um-de-roda, botar o bloco na rua, comer capim pela raiz, dar a alma a Deus, dar a alma ao Criador, dar à casca, dar à espinha, dar a lonca, dar a ossada, dar com o rabo na cerca, dar o couro às varas, dar o último alento, defuntar, desaparecer, descansar, descer à cova, descer a terra, descer ao túmulo, desencarnar, desinfetar o beco, desocupar o beco, desviver, dizer adeus ao mundo, embarcar, embarcar deste mundo para um melhor, empacotar, entregar a alma a Deus, entregar a alma ao Diabo, entregar a rapadura, espichar, espichar a canela, esticar, esticar a canela, esticar o cambito, esticar o pernil, estuporar(-se), expirar, fechar o paletó, fechar os olhos, fenecer, finar(-se), ir para a cidade dos pés juntos, ir para a Cacuia, ir para a Cucuia, ir para bom lugar, ir para o Acre, ir para o beleléu, ir para o outro mundo, ir-se, ir(-se) desta para melhor, largar a casca, passar, passar desta para melhor, passar desta para melhor vida, pifar, pitar macaia, quebrar a tira, render a alma ao Criador, render o espírito, vestir o paletó de madeira, vestir o pijama de madeira, virar presunto] (Verbete do Dicionário Aurélio Eletrônico - V.2.0).

Não se pode duvidar que as observações de Foucault (1981) sobre a sexualidade são de grande valor para pensar a vida social moderna. Aplicadas com abrangência, elas permitem afirmar que, para a modernidade, todos os aspectos de nossa condição humana emergem como problemas, como fonte de preocupações que merecem ser tratadas e solucionadas. Desta forma foi tratada a vida sexual no último século, e talvez seja da mesma forma que está sendo tratado o fenômeno da morte nas últimas décadas.

O sexo nunca foi algo desconhecido para os seres humanos, mas a civilização moderna o colocou no centro de um dispositivo que o transformou em "sexualidade". De acordo com Foucault, através desse mecanismo, o sexo acabou sendo um ponto denso das relações de poder na sociedade moderna. Sem eufemismo, hoje nos encontramos na época mais sexualizada de toda a História; do mesmo modo, a morte, que certamente nunca foi um fenômeno ignorado ou pouco central para a humanidade, está sendo alvo de um enorme dispositivo que a devassa sem piedade, transformando-a em outra coisa.

Assistimos todos os dias, nos jornais e seriados da TV, à exibição de numerosas mortes, algumas das quais são apresentadas em detalhe (geralmente bastante sanguinolentos). Nem por isso, para a maioria das pessoas, a morte transformou-se num fenômeno sobre o qual possuem alguma experiência ou domínio. Junto ao tradicional medo pela morte (que os humanos sentiram desde os albores da humanidade), soma-se agora uma estética da negação, que transforma em um banalizado e grotesco filme de horror qualquer referência séria a ela. Sabemos que, nas cidades modernas, quase ninguém morre em sua casa (a maioria das exceções é por acidente ou morte súbita). Mas será que em um hospital podemos realmente morrer? São vários os autores que chamam a atenção para o ocultamento da morte moderna nos hospitais, onde ela se torna quase invisível até o momento de finalmente ser empacotada (Ariès, 1986).

Sabemos que todas as grandes civilizações tiveram uma arte amatória, mas este não é o caso da sociedade ocidental moderna (que parece consolar-se desta carência, com a pornografia). Embora seja um fato menos conhecido, também se sabe que todas as culturas, exceto a cultura moderna, possuem uma ars moriendi (quem precisar uma prova acadêmica pode recorrer à Enciclopédia Britânica, onde, apesar do conhecido cuidado pela perspectiva histórica, da parte dos organizadores, não se encontrará nenhum verbete para apresentar a "arte de morrer", nem sequer em relação às culturas orientais).

Na maioria das culturas pré-modernas, a arte de morrer tem uma hierarquia não menor que a arte de viver. Existem textos que mostram até uma maior centralidade da primeira, como no caso de O Livro Tibetano dos Mortos ou O Livro Egípcio dos Mortos. Mas a leitura deste tipo de textos nem sempre foi uma exceção no Ocidente. Durante todo o Renascimento e nas primeiras fases da modernidade, conservaram-se os ensinamentos para aprender a morrer, através da leitura de textos e tratados medievais (Evans-Wentz, 1988). De fato, várias igrejas primitivas do Cristianismo (como, por exemplo, a grega, a siríaca, a armênia e a copta) incorporaram em seus rituais muitos princípios da arte de morrer. Mas que tipo de ensinamento sobre a morte poderíamos pretender hoje se, como acontece, todos os esforços parecem estar dirigidos a ocultar a morte? É obvio que qualquer que seja a cultura, a existência deste tipo de ensinamentos ou de uma arte de morrer, de modo geral, supõe dar um grande valor a esse momento. Certamente, a modernidade aponta em outra direção.

A propósito da morte detectamos um "buraco negro", uma zona obscura e mal resolvida da condição humana na sociedade moderna, talvez de maior importância que aquela referida à questão sexual. Pelo menos, com a saída da arte erótica, tivemos a entrada da ciência da sexualidade. Mas a saída da arte de morrer não foi substituída por nada, apenas pelo silêncio. Se queremos chamar "ciência da morte" a isto que se ensina aos pacientes nas salas dos hospitais, especialmente nas salas de terapia intensiva, certamente estaremos confundindo as coisas. Com dita ciência, aqueles que morrem são preparados a esperar sempre um pouco mais de vida, assim até o derradeiro minuto. Isto é, mal poderíamos chamar de "ciência da morte" a uma ciência médica que não tem nada a dizer sobre o fenômeno da morte, já que seu principal objetivo é encontrar a cura para todas as causas da morte.

Para comprovar o anterior, podemos ir a qualquer hospital e verificar que, por mais terminal que seja a condição do paciente, em qualquer circunstância, sempre se lhe fala sobre as alternativas de vida e nunca sobre as de morte (lembremos que o que acontece nos hospitais é decisivo para estudar este fenômeno, já que é aí onde morre a ampla maioria das pessoas - de acordo com Nuland (1995), nos Estados Unidos, por exemplo, morrem atualmente em hospitais mais de 80% da população, sendo que, na década dos 50 deste século, esse número não chegava a 50%). E, se alguém não gosta de visitar hospitais, pode comprovar o mesmo indo até um cartório para ler as causas de morte registradas nos certificados de óbito. Descobrirá então que ninguém morre de velho, que a sociedade se recusa a aceitar uma morte tão genérica como a chamada "morte natural", obrigando a colocar em todos os casos uma causa bem específica e determinada. Até na própria constatação da morte se mantém intacta a ilusão de que ela poderia eventualmente ter sido evitada, caso tivesse existido uma solução técnica para o problema específico que a causou. Como é obvio que a morte natural não poderia ser evitada, a "ciência médico-legal da morte" decidiu que os velhos nunca morrem de velhice, mas do coração, de insuficiência respiratória ou de qualquer outra coisa do tipo.

Não resta dúvida de que a sociedade moderna separou (ou dicotomizou) os fenômenos da morte e da vida. Mas esta operação não foi feita através de uma determinada filosofia ou religião. Expressa a singularidade da condição humana na sociedade contemporânea que dita separação foi realizada por meios tecnológicos. Vida e morte sempre caminharam juntas até que a técnica nos surpreendeu com a ilusão de que a vida pode ser estendida infinitamente, construindo a eternidade no tempo de nossa própria vida (Castells, 1996).

Existem basicamente três formas de enfrentar a morte (cf. Elias, 1987). Muitas religiões interpretam a morte como passagem para outra vida (circunstância que - é bom lembrar - não necessariamente deve ser interpretada como uma boa notícia). Podemos também fitar os olhos da morte, considerando nossa finitude um dado essencial da existência humana (o ser humano é um "ser-para-a-morte", definiu Heidegger (1951), e filosofar significa "aprender a morrer", nas palavras de Montaigne (1948)). Temos boas razões para suspeitar que os "secularizados" seres humanos que vivem na sociedade moderna tendem a acreditar cada vez menos na primeira visão. Do mesmo modo, se consultados, diriam que a segunda perspectiva é, pelo menos, depressiva e fora de época (uma prova indireta disto é que nos amplos questionários aplicados pela equipe de Inglehart (1997) em 43 países, para medir mudanças de valores, não aparece nenhuma pergunta sobre a morte; o mesmo tipo de sinal aparece nos bancos de dados dos departamentos de filosofia das universidades, nos quais comprovamos que atualmente nem os filósofos se ocupam deste tema).

A terceira possibilidade ou alternativa é simples, deduz-se por exclusão (ou abandono) das anteriores. Consiste em evitar todo pensamento sobre a morte, ocultando e reprimindo a presença do fenômeno da morte quanto seja possível. Elias desdobra esta perspectiva em um inesperado recurso à imortalidade, para o qual - segundo ele afirma - existe uma forte tendência na sociedade moderna. Assim, a morte seria evitada não apenas pela repressão de sua presença, mas também pela crença na imortalidade pessoal ("outros morrem, mas não eu"). Este insight de Elias (pouco aproveitado por ele mesmo) me parece de fundamental importância para entender a condição humana na sociedade atual. Talvez seja necessária uma pergunta óbvia: como é possível imaginar a existência de uma tendência significativa de indivíduos que acreditam na imortalidade pessoal, vivendo numa "sociedade reflexiva", numa sociedade que gira em torno da multiplicação constante de riscos que os indivíduos devem enfrentar com ajuda de sua própria razão, de uma forma ou de outra? Não encontramos, nas obras mais destacadas de autores importantes que pensam a modernidade (citemos o caso de Beck (1992) e Giddens (1991), por exemplo), alguma análise que possa explicar corretamente a hipótese de Elias.

Resulta curioso que não tenha sido observado antes este "buraco negro". Talvez, entre os autores contemporâneos, seja Melucci (1996) um dos poucos que tenha percebido este fenômeno. Nossos corpos - diz este autor - passaram de veículos cegos de necessidades biológicas a cenário de múltiplas possibilidades e escolhas construídas culturalmente. Segundo ele, a morte não podia escapar do mesmo destino. A rigor, os hospitais são muito menos lugares para ocultar a morte que para operar e fazer experimentos com ela. Nos hospitais, experimentam-se as técnicas que prolongam a vida e evitam a morte, em outras palavras, que transformam a morte de fato natural em fato artificial.

Recoloquemos a questão. Sabemos pelos teóricos da modernidade reflexiva que, na sociedade moderna, com o aumento das opções tecnológicas, aumentam também os riscos e a insegurança, dada a diminuição de nossa capacidade de prever ou de ter certeza sobre os acontecimentos futuros. Neste contexto de incertezas e inseguranças, seria lógico esperar uma maior centralidade ou atenção para o fenômeno da morte em si mesmo, mas não é isso o que acontece. Paradoxalmente a insegurança aumenta quase na mesma proporção que a morte perde importância. Ainda que existam bons argumentos em seu favor, não parece viável imaginar aqui algum tipo de "hipótese repressiva". O que se esconde é a morte como um fenômeno a ser enfrentado pelo próprio eu, mas não as representações da morte dos outros. Muito pelo contrário, encontramos na TV e nos meios de comunicação em geral todo tipo de mensagens que atravessam nossa vida cotidiana, trazendo-nos abundantes representações da morte. Permanentemente estamos "vendo" e "escutando" referências à morte, seja de grupos ou de indivíduos, aludindo a fatos reais ou simulados (nas chamadas "representações artísticas").

Que fique claro, então. Para a sociedade moderna contemporânea, a morte está sendo transformada numa representação externa a nosso eu (e pouco importa aqui que esta seja uma representação banalizada ou não). Nas sociedades pré-modernas, as pessoas sofriam, sentiam e refletiam sobre a própria morte, na ocasião da morte dos outros; então todo mundo tinha intimidade com a morte, ninguém precisava de uma representação simbólica para saber de que se tratava. Vale a pena lembrar que antigamente os moribundos, se esperavam por alguma coisa, esperavam por milagres vindo do além. Hoje, pelo contrário, não esperamos por milagres do além, mas sim por soluções mágicas vindas do aquém. Quando nossa vida enfrenta ameaças que podem levar-nos à morte corremos a pedir auxílio à ciência e à técnica, do mesmo modo que recorremos a esse show de representações sobre a morte dos outros para tentar enganar suas ameaças quando estas ainda não são visíveis ou não se fazem sentir. Todos estes fatores estão intimamente relacionados: a crescente falta de contato físico e espiritual dos seres humanos com a experiência da morte está certamente vinculada à não menos crescente necessidade de assistir à morte como um espetáculo, como uma representação simbólica.

Alguns dos corolários da afirmação anterior não resultam tão óbvios quanto pode parecer. Sabemos que fazer sexo, nascer e morrer foi, em qualquer época anterior à modernidade, um assunto muito mais público do que privado. Não resulta difícil entender que, por exemplo, tanto a vulgarização do amor romântico como da pornografia são fenômenos relacionados com este retiro da vida sexual para a esfera privada. Porem, não resulta igualmente fácil descobrir as conseqüências da relativamente recente "privatização institucional" da morte nos hospitais. De fato, a pornografia e o amor romântico se apresentam hoje como fenômenos menos misteriosos, muito mais fáceis de entender tanto para o leigo como para o estudioso, do que a "pornográfica" representação da morte que vemos em filmes e jornais e seu ocultamente no silêncio dos hospitais.

A sociedade da alta modernidade parece promover a morte "pornográfica" no mesmo grau que oculta a experiência direta da morte. Neste sentido, é um sintoma ilustrativo de nossa cultura a profunda rejeição que sentem os adultos de falar sobre a morte com seus filhos ou de permitir que tenham contato com a morte de familiares, a fim de evitar-lhes o conhecimento de algo que acreditam fazer-lhes mal. Concordo com Elias que a solidão dos moribundos está intimamente vinculada à solidão na qual vivem os indivíduos na sociedade contemporânea. É lógico pensar que seres que vivem isolados morram da mesma forma. O impulso individualizador da sociedade moderna pareceria ser então um elemento importante para caracterizar a morte moderna.

Sem discordar deste aspecto da análise de Elias, acredito que vale a pena ir um pouco além. A morte atual é algo mais que a morte de indivíduos numa sociedade altamente individualizada e reflexiva. Nada impede inverter os argumentos do senso comum e afirmar que o homem moderno encontra no silêncio dos hospitais a morte que ele "merece", à qual corresponde a sua impossibilidade de encontrar um sentido individual para ela. As análises de Heidegger (e dos movimentos românticos e existencialistas, de modo geral) nos ajudam a perceber que não é a solidão a que impede de pensar a morte, mas o contrário (Heidegger, 1951). É no meio da massa, vivendo uma existência inautêntica, que não podemos enfrentar a morte. O próprio Elias sabe que a morte está sempre acompanhada por uma determinada idéia da morte. Ninguém morre sem ter uma idéia do que ela significa. Tentando uma aproximação entre Elias e Heidegger (talvez algo filosófica e sociologicamente incorreto, mas que num trabalho como este deverá parecer normal) poderia ser dito que cada um tem que morrer sua própria morte, mas que isso só é possível no confronto com a cultura de uma época que transforma o autêntico em inautêntico, na luta contra uma cultura da massificação e do anonimato, na luta de uma cultura que, ainda gostando de chamar-se reflexiva, atenta permanentemente contra o desenvolvimento do self.

Não é por termos uma cultura altamente individualizada que a morte é "maltratada" na sociedade moderna atual. Isto se deve principalmente a que estamos vivendo no império de uma sociedade tão individualista quanto massificada, tão ignorante de aspectos essenciais da condição humana quanto possuidora de conhecimentos notáveis em todas as áreas técnicas. A morte contemporânea ilumina precisamente o caráter de uma sociedade que se permite não chamar muito a atenção sobre esses paradoxos aberrantes. O drama da morte na sociedade contemporânea não chama a atenção porque vem acompanhado pela prévia degradação do eu espiritual e pela exaltação de eu biológico.

Edgar Morin (1997) observa que tão cedo como em 1969, num colóquio sobre problemas humanos da biologia (organizado em Nova York pelo Salk Institute), já era possível ouvir alguém pedir a constituição urgente de um Comitê pela Abolição da Morte, sem provocar risos ou espanto no público. Bauman (1997) nos ajuda a lembrar, a propósito de um conto de Borges, o que estamos tentando esquecer: que ser imortal é coisa comum, que todas as criaturas são imortais, pois ignoram a morte. Na vida humana tudo conta, porque os seres humanos são mortais e sabem disso. Toda a cultura humana (incluindo aqui a arte, a ciência, a filosofia, a religião, a política, etc.) foi produzida na tensão trágica dos seres humanos com a morte. O conhecimento da morte supõe também a possibilidade de rebelar-se contra ela e, em certo modo, a história humana pode ser pensada como a história dessa rebelião. Bauman registra duas estratégias básicas que guiaram as lutas pela imortalidade. Uma primeira, que chama coletiva, na qual os seres humanos individuais são mortais, mas não aquelas totalidades humanas das quais fazem parte (a Igreja, a Nação, a Causa, etc.) e através das quais eles recebem sua dose de imortalidade. A segunda estratégia era individual: fisicamente todos os indivíduos devem morrer, mas alguns, aqueles que tiverem méritos suficientes para isso, podem ser preservados na memória de seus sucessores.

Curiosamente nenhuma das duas estratégias anteriores minimizava a experiência da morte, muito pelo contrário. Mas hoje estamos assistindo a uma coisa bem diferente já que, tal como verificamos antes, a experiência da morte está sendo ocultada e evitada sistematicamente. Salvo notáveis exceções, parecerá que, hoje, todos os seres humanos estamos servindo de cobaias para a implantação de uma outra estratégia. Em outras palavras, hoje se aceita a indignidade da não-morte no hospital porque cada vez os seres humanos acreditam menos na imortalidade que se deriva das entidades coletivas ou da memória coletiva e mais na própria imortalidade biológica. Minha hipótese é que os seres humanos começaram a acreditar na imortalidade biológica como possibilidade real. A morte agora é apenas representação, ela já não é mais "real".

A hipótese de eliminação da morte biológica que a atual modernidade está construindo me parece altamente destrutiva do próprio self. De um modo imprevisto, descobrimos hoje que a insistência tecnológica da modernidade foi um poderoso motor de evolução social, que está colocando em risco nossa morte, e, com ela, a própria dinâmica da evolução humana. Existem vários fatores, obviamente, mas a hipótese de imortalidade biológica está presente implicitamente quando as potências ocidentais idealizam guerras sem nenhum morto próprio (como foi o caso da guerra da OTAN em Kosovo). A morte não é um evento da vida (como diria Wittgenstein, entre muito outros), mas isto não acontece por nenhuma radicalização empiricista do ponto de vista, mas pela quase absoluta des-legitimação da morte com um ato que vale a pena ser vivido. No final das contas, morrer antes do tempo pode querer significar perder a chance de ganhar a imortalidade.

É neste ponto que arrisco a pensar que a teoria da reflexividade de autores como Giddens e Beck, por exemplo, deixa de ter sentido. Ou, pelo contrário, tem sentido pleno. Por trás da conveniência da reflexividade para a sociedade contemporânea, esconde-se a hipótese da imortalidade biológica. A reflexividade funciona como um grande mecanismo pacificador da sociedade precisamente porque, ao contrário do que imagina Giddens, facilita, ao invés de impedir, o seqüestro da experiência. Como opor-se, por exemplo, de modo reflexivo a internação dos pacientes nos hospitais e o seqüestro da experiência da morte derivado, se precisamente a expectativa não é de morte e sim de vida?

Devemos considerar algo mais que um paradoxo da modernidade que seja a ciência e não a religião quem promete a imortalidade, da forma mais convincente, na atualidade. Porém o balanço de perdas e ganhos não parece favorável à ciência, nem à reflexividade. Pode ser verdade que um mundo reconhecidamente estruturado por riscos humanamente criados deixa pouco lugar para influências divinas e muito para a reflexividade. Mas também é verdade que considerar os riscos à existência humana principalmente como riscos humanos leva necessariamente (e imperceptivelmente) a transformar nossa condição humana numa condição técnica. Aqui pergunto, pode-se evitar o seqüestro da experiência da morte nestas condições? Não será que o que acontece nos hospitais não é algo acidental, mas um dado essencial de nosso tempo?

A morte não é um problema técnico, não é algo a ser superado, mas, ainda que isto não seja reconhecido explicitamente pelos teóricos da reflexividade, será que eles podem considerar coerentemente alguma outra hipótese? Num mundo secularizado, a morte não pode ser o começo de nada, tal como acreditavam os primitivos (Eliade, 1996). Neste caso, a atitude mais "reflexiva" só pode ser seqüestrar a experiência da morte, tirar dela tudo o que impeça ampliar indefinidamente os confins da vida (em outras palavras, legitimar as salas de terapia intensiva). O verdadeiro desafio não é hoje tornar mais sustentável ou mais reflexiva a sociedade moderna. A rigor, isto é secundário em face da necessidade de nutrir o homem contemporâneo com as vivências dos tempos antigos, quando a vida era um campo de amor e morte, sincrético e mutável, entre os deuses, os homens e a natureza (Leis, 1999).

Trabalho apresentado na Mesa Redonda "Temas e Polêmicas da Sociologia Contemporânea", IX Congresso Brasileiro de Sociologia, SBS, 31 de agosto a 2 de setembro de 1999, Porto Alegre - RS.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Jan 2004
  • Data do Fascículo
    Jan 2003
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