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Cotidianos de Manguinhos

Day-to-day routine of the Manguinhos Institute

Resumos

O artigo trata do dia-a-dia do Instituto de Manguinhos nas primeiras décadas do século 20, com destaque para as relações de trabalho no interior dos laboratórios. Aquele cotidiano revela que, apesar de sua pequenez, o quadro técnico-científico derivava sua extraordinária produtividade da diversidade de suas atividades. Tratava-se de pessoal dotado de excepcional flexibilidade tanto na ação quanto na eleição de seu objeto de estudo. Dito em bom português, o cientista de Manguinhos era um faz-tudo. Uma hipótese quanto à tamanha flexibilidade relaciona-se à compreensão da ciência local enquanto parte das práticas culturais locais. Seguindo a trilha aberta pelo conceito de homem cordial, conforme definido por Sergio Buarque de Holanda em seu Raízes do Brasil, pode-se perguntar se existiria em Manguinhos a ciência que lhe decorre, a saber, a ciência cordial. O artigo oferece algumas possibilidades de resposta a partir do exame das relações que se estabeleceram entre os cientistas e seus 'subalternos', os ajudantes de pesquisa, nas quais o rigor e o formalismo das práticas científicas de laboratório conviveram com relações patriarcais tipicamente brasileiras.

Manguinhos; ciência cordial; estudos de laboratório


This article examines the routine of the Manguinhos Institute during the first decades of the 20th Century, emphasizing the relationships of work inside the laboratories. This routine reveals that, despite the small size of its technical-scientific staff, the institute's extraordinary productivity resulted from its diversity of activities. They were professionals endowed with exceptional flexibility both in action and in the selection of the object of study. To put it simply, the scientist of Manguinhos did everything. One hypothesis about such flexibility is related to the comprehension of the local science as part of the local cultural practices. Following the path opened by the concept of cordial man, as defined by Sergio Buarque de Holanda in his book Raízes do Brasil (Roots of Brazil), this work wonders if there was in Manguinhos the science that follows him, i.e., the cordial science. The text presents some possible answers drawn from the analysis of the relationships established between the scientists and their `subordinates', the research assistants, in which the rigor and formalism of scientific laboratory practices coexisted with typically Brazilian patriarchal relationships.

Manguinhos; cordial science; laboratory studies


DOSSIÊ

Cotidianos de Manguinhos1 1 Uma versão deste artigo foi apresentada ao X Simpósio Nacional de História da Ciência e Tecnologia da SBHC (Sociedade Brasileira de História da Ciência), realizado em Belo Horizonte (2005).

Day-to-day routine of the Manguinhos Institute

Henrique Luiz CukiermanI; Márcia de Oliveira TeixeiraII

IPrograma de Engenharia de Sistemas e Computação - PESC - COPPE / UFRJ e do programa de pós-graduação em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia da UFRJ - hcukier@cos.ufrj.br

IIEscola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio - EPSJV - FIOCRUZ. marciat@fiocruz.br

RESUMO

O artigo trata do dia-a-dia do Instituto de Manguinhos nas primeiras décadas do século 20, com destaque para as relações de trabalho no interior dos laboratórios. Aquele cotidiano revela que, apesar de sua pequenez, o quadro técnico-científico derivava sua extraordinária produtividade da diversidade de suas atividades. Tratava-se de pessoal dotado de excepcional flexibilidade tanto na ação quanto na eleição de seu objeto de estudo. Dito em bom português, o cientista de Manguinhos era um faz-tudo. Uma hipótese quanto à tamanha flexibilidade relaciona-se à compreensão da ciência local enquanto parte das práticas culturais locais. Seguindo a trilha aberta pelo conceito de homem cordial, conforme definido por Sergio Buarque de Holanda em seu Raízes do Brasil, pode-se perguntar se existiria em Manguinhos a ciência que lhe decorre, a saber, a ciência cordial. O artigo oferece algumas possibilidades de resposta a partir do exame das relações que se estabeleceram entre os cientistas e seus 'subalternos', os ajudantes de pesquisa, nas quais o rigor e o formalismo das práticas científicas de laboratório conviveram com relações patriarcais tipicamente brasileiras.

Palavras-chave: Manguinhos, ciência cordial, estudos de laboratório.

ABSTRACT

This article examines the routine of the Manguinhos Institute during the first decades of the 20th Century, emphasizing the relationships of work inside the laboratories. This routine reveals that, despite the small size of its technical-scientific staff, the institute's extraordinary productivity resulted from its diversity of activities. They were professionals endowed with exceptional flexibility both in action and in the selection of the object of study. To put it simply, the scientist of Manguinhos did everything. One hypothesis about such flexibility is related to the comprehension of the local science as part of the local cultural practices. Following the path opened by the concept of cordial man, as defined by Sergio Buarque de Holanda in his book Raízes do Brasil (Roots of Brazil), this work wonders if there was in Manguinhos the science that follows him, i.e., the cordial science. The text presents some possible answers drawn from the analysis of the relationships established between the scientists and their `subordinates', the research assistants, in which the rigor and formalism of scientific laboratory practices coexisted with typically Brazilian patriarchal relationships.

Keywords:Manguinhos, cordial science, laboratory studies

Em 1908, o Instituto de Manguinhos, amparado por um novo arcabouço institucional que conferia autonomia ante a Diretoria Geral de Saúde Pública (DGSP) deixava definitivamente para trás os áureos tempos da casinha improvisada em laboratório. Ao alcançar sua maioridade nacional e internacional, esta última por conta do prêmio na Exposição de Higiene e Demografia em Berlim (1907) [CUKIERMAN, 2007], passava a vivenciar assumidamente o cotidiano de um centro de produção científica. Se ali se praticava a ciência brasileira, a análise desse cotidiano pode fornecer pistas valiosas para se entenderem a especificidade das práticas científicas locais e sua relação com a pretensa 'universalidade' da ciência internacional.

A tarefa é evidentemente complexa, de modo que, em nosso artigo, anotaremos algumas das possibilidades de análise. A partir da incursão de Jaime Benchimol aos arquivos de História oral da Casa de Oswaldo Cruz, registrada em seu artigo Retratos do Cotidiano em Manguinhos [1989],é possível antever o rico manancial para se pensar na hipótese de uma ciência cordial (adotamos a adjetivação proposta por Sergio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil, a ser examinada mais adiante) à luz do cotidiano dos homens de ciências daquela instituição. Nesta nossa primeira investida, reunimos relatos de episódios ocorridos em diferentes períodos da história de Manguinhos. Eles constituem um mosaico de referências, articuladas pelos trabalhos de Sérgio Buarque de Holanda, Beatriz Bitarello e Richard Morse.

Uma Ciência Cordial

O Decreto 1.812 que, como já vimos, propiciaria a Manguinhos sua autonomia financeira, traria também outras importantes conseqüências em relação ao seu perfil institucional, buscando torná-lo equivalente ao daqueles centros de produção científica mais avançados da Europa. Entre os dispositivos, agora mandatórios por força de seu estatuto legal, estava aquele que obrigava o Instituto a publicar o resultado das pesquisas nas suas Memórias. Finalmente, Manguinhos teria o seu próprio texto, esta espécie de atestado de maioridade perante a comunidade científica internacional, que agora poderia ter acesso à ciência ali produzida através das edições bilíngües da publicação oficial do Instituto. O mapa da ciência teria agora de incorporar mais um nó em sua rede, o daquele laboratório instalado no alto de uma colina do Rio de Janeiro, a saneada metrópole tropical.

O quadro de cientistas do Instituto foi circunscrito no mesmo decreto a um diretor, dois chefes de serviço e seis assistentes, cujas nomeações, salvo a do diretor, que era de livre escolha do Presidente da República, teriam que ser precedidas por aprovação em concurso público (exceto as primeiras nomeações). Todavia outra mudança viria por conta da prerrogativa, concedida ao diretor do Instituto, de poder sugerir o reforço do quadro técnico-científico, "quando as circunstâncias o exigirem (...)", mediante a contratação de profissionais, "durante o tempo que for necessário". Desta forma, abria-se o caminho para concretizar o velho sonho de inverter a mão do trânsito ultramarino de 'cérebros', e assim poder incorporar cientistas estrangeiros aos trabalhos de Manguinhos, reforçando ainda mais sua 'personalidade internacional'2 2 As tentativas anteriores de trazer gente de fora esbarraram em sérios entraves legais e burocráticos, que o Decreto 1.812 tratou de eliminar. . Em julho de 1908, desembarcaram no Rio de Janeiro dois professores da Escola de Medicina Tropical de Hamburgo. Stanislaw von Prowazeck e Gustav Giemsa haviam ficado encantados com os trabalhos apresentados na exposição de Berlim, e permaneceram no Instituto até fevereiro de 1909, onde ministraram cursos e os publicaram em primeira mão nas Memórias3 3 Prowazeck estudou com Henrique Aragão a etiologia da varíola, cuja epidemia recém assolara o Rio de Janeiro, chegando ambos à suposta descoberta do micróbio da varíola, publicada nas Memórias com grande repercussão à época. . Em maio de 1909, foi a vez da temporada de Max Hartmann, do Instituto de Moléstias Infecciosas de Berlim, e em 1912, Hermann Dürck também seria contratado para orientar os trabalhos de anatomia patológica.

Uma primeira entrada no cotidiano de Manguinhos revela, com a unanimidade de todas as fontes consultadas, que, apesar de sua pequenez, o quadro técnico-científico derivava sua extraordinária produtividade da diversidade de suas atividades. Não havia divisão técnica entre os trabalhos de pesquisa, de ensino e de produção, de forma que cada pesquisador ocupava-se, simultaneamente, da preparação de produtos biológicos, da investigação de um leque diversificado de temas, da orientação aos doutorandos que freqüentavam o Instituto e das aulas dos cursos de especialização. Portanto, era um pessoal dotado de excepcional flexibilidade tanto na ação como na eleição de seu objeto de estudo. Dito em bom português, o cientista de Manguinhos era um faz-tudo.

Todavia, flexibilidade não é uma dádiva dos deuses, nem surge assim do nada. Uma primeira hipótese relaciona-se à compreensão da ciência local como fazendo parte das práticas culturais locais relacionadas à flexibilidade, o que, a valer a hipótese, mobiliza toda a discussão a respeito da dificuldade brasileira em adotar padrões rigorosos e formalismos rígidos. Sergio Buarque de Holanda fornece alguma indicação a respeito quando, ao tecer comentários a respeito da cidade colonial engendrada pelo português na América, uma cidade que, a seu ver, "(...) não é produto mental, não chega a contradizer o quadro da natureza, e sua silhueta se enlaça na linha da paisagem", propõe que esta aceitação tácita dos limites impostos pela natureza seja entendida como certo tipo de "...) realismo fundamental, que renuncia a transfigurar a realidade por meio de imaginações delirantes ou códigos de posturas e regras formais (...) Que aceita a vida, em suma, como a vida é, sem cerimônias, sem ilusões, sem impaciências, sem malícia e, muitas vezes, sem alegria" [Holanda,1996: 110].

Assim, o atributo da flexibilidade já viria impresso na própria configuração urbana das cidades brasileiras, como se fora um instrumento cultural sub-reptício, destinado a registrar a partir da própria retina dos filhos daquelas cidades, desde a sua mais tenra idade, um determinado padrão de comportamento diante do mundo, o comportamento flexível. Se prosseguirmos na trilha de Raízes do Brasil, chegaremos inevitavelmente ao conceito de homem cordial. Com esta formulação, Sergio Buarque de Holanda procura definir o espaço de uma outra civilidade, a civilidade brasileira, "de um fundo emotivo extremamente rico e transbordante", levando-o a afirmar que "a contribuição brasileira para a civilização será de cordialidade - daremos ao mundo o 'homem cordial'" [idem:146-147], expressão do "predomínio constante das vontades particulares que encontram seu ambiente próprio em círculos fechados e pouco acessíveis a uma ordenação impessoal" [idem:146], do "desconhecimento de qualquer forma de convívio que não seja ditada por uma ética de convívio emotivo (...)" [idem:148]. Portanto, a existir o homem cordial, existirá a ciência que dele decorre, a ciência cordial?

Supondo a existência de tal ciência, a pergunta remonta a outra do mesmo formato, e que a antecede no tempo e na complexidade: a existir a ciência cordial, existirá sua matriz, a ciência ibérica? A resposta envereda necessariamente por uma discussão que nos é familiar, ou seja, a de que a Península Ibérica, por conta de seu conservadorismo religioso, teria ficado para trás em relação às revoluções científica e industrial. Não é à toa que ainda hoje se produzem estranhezas sempre que se pretende afirmar a moderna capacidade científica e tecnológica de países ibero-americanos e da própria Europa ibérica, como se nesta área estivéssemos condenados a um fracasso "congênito". Entretanto, este sentimento de inferioridade ante a nossa capacidade para a ciência e a técnica pode também nos defrontar com reflexões instigantes a respeito de si próprio e do mundo ao redor.

Modernidade singular

Beatriz Domingues Bitarello explora a temática, em sua tese de mestrado intitulada A modernidade ibérica e a revolução científica do século XVII [Bitarello, 1994], inspirada especialmente nas idéias preconizadas por Richard Morse em O Espelho de Próspero [Morse, 1995]. Nela, a autora manifesta o desejo de referir-se à nossa tradição ibérica "de uma forma positiva, não lamentatória" [Bitarello,1994: 4] e lança um desafio que nos libera irreversivelmente do fardo do 'atraso' : "E se a Ibero América, ao invés de ainda não modernizada, for imodernizável pelos padrões anglo-americanos?" [idem: 3].

Para respondê-lo, sua argumentação realiza uma outra aproximação à idéia de modernidade: "Se nós entendermos Modernidade como o mundo que emergiu da revolução científica, da reforma protestante e do individualismo e contratualismo modernos, um mundo no qual ciência e religião são perfeitamente separáveis um do outro e no qual as esferas pública e privada não se misturam, é inescapável concluir que não somos suficientemente modernos. Mas este fato não é bastante para concluirmos que perdemos o 'bonde da história': só que, ao invés do bonde moderno ocidental, nós tomamos um outro" [idem: 3-4]. O outro bonde que teríamos tomado refere-se à posição adotada pela tradição ibérica que, ante a ciência de Galileu e a filosofia de Descartes, teria optado por modernizar a ciência e a tradição filosófica medieval. Esta postura ibérica em relação à constituição da chamada Modernidade é o que Beatriz Bitarello denomina de Modernidade Medieval, por sua vez oriunda do mesmo berço da Modenidade Moderna, a saber, a modernidade cristã-racional medieval. Desta forma, sua sugestão é no sentido de "acrescentar aos modos de modernidade pensados linearmente no tempo, a possibilidade de diferentes modos de modernidade convivendo num mesmo período histórico – o moderno" [idem: 7], e assim liberar o caminho para a nossa Modernidade Medieval, sem que, com isso tenha-se de senti-la superior ou inferior ao desenvolvimento ocorrido na Europa Ocidental. "Não se trata de fazer apologia do atraso ou do exótico mas de afirmar a possibilidade de ser diferente". [idem: 40]. No entender de Richard Morse, essa diferença tem um sentido altamente pedagógico para a Anglo-América, desde que ela se disponha a aprender com "(...) a experiência histórica da Ibero-América, não mais como estudo de um caso de desenvolvimento frustrado, mas como a vivência de uma opção cultural" [Morse, 1995: 14].

Daqui em diante, o rumo a seguir é o do exame mais detalhado das opções filosóficas e culturais assumidas ao longo do período histórico, compreendido entre os séculos XII e XVII, nos quais se formou a matriz moral, intelectual e espiritual comum a ambas as modernidades, e dentro da qual "(...) foram feitas opções e construídos modelos conceituais que viriam a produzir os diferentes padrões do que chamamos 'civilização ocidental'" [idem: 22]. Um rumo um tanto quanto inesperado e complexo, embora necessário, para quem, preocupado com as questões concernentes ao dia-a-dia de Manguinhos, acabou deparando-se com a necessidade de realizar um salto enorme no espaço, no tempo, e na própria discussão, refratada pela construção do laboratório para a construção da modernidade.

Memórias de um cotidiano

No entanto existe outro rumo, mais singelo talvez, o de realizar o salto inverso, para dentro do tempo e do espaço daquele cotidiano. Um salto que se torna possível graças aos arquivos de História oral da Casa de Oswaldo Cruz, reunidos sob o título de 'Memórias de Manguinhos'. Elas contêm depoimentos que permitem vislumbrar com extraordinária clareza as situações cotidianas do Instituto e, embora se refiram em sua grande maioria, ao período posterior a 1920, são descrições que servem tranqüilamente para, da mesma forma representar a vivência dos anos anteriores. As 'Memórias de Manguinhos' já foram submetidas a uma primeira incursão de Jaime Benchimol, registrada em seu artigo Retratos do Cotidiano em Manguinhos [Benchimol,1989], cujo conteúdo permite antever o rico manancial para se pensar na hipótese de uma ciência cordial. Esta ousada especulação quase certamente carecerá de elementos que a comprovem, mas o leitor poderá testemunhar a existência de alguns traços 'perturbadores', de sorte que, se perdemos a hipótese, ao menos não perdemos a provocação.

O imbróglio cordial começa com o quadro de pessoal previsto pelo decreto 1.812, dividido em três grupos: o técnico-científico (um diretor, dois chefes de serviço, seis assistentes), o administrativo (um zelador, um almoxarife, um arquivista, um escriturário e um desenhista) e o pessoal subalterno (um chefe de cocheira, quatro serventes de primeira classe, quatro serventes de segunda classe, cinco ajudantes, um mestre, dois maquinistas e dois foguistas). Não havia nenhuma vaga para auxiliares de laboratório, de forma que estes foram recrutados pelos cientistas entre o pessoal subalterno. Assim, era corriqueiro que um técnico de laboratório fosse exímio em suas funções, apesar de analfabeto. Um dos 'subalternos', William Hamlet Aor, conta em seu depoimento que "o Dr. Costa Cruz, no Pavilhão da Peste, tinha um servente, um senhor totalmente analfabeto. Ele só comprava jornal quando tinha fotografia. (...) Mas tinha uma coisa: o que o homem quisesse, um meio de cultura, um repique, uma semeadura, podia confiar porque saía dentro do figurino" [idem:24].

Pode-se imaginar, portanto, o tipo de relação hierárquica que se estabelecia entre o cientista e seu 'subalterno', na qual o rigor e o formalismo prussianos das práticas de laboratório eram forçadas a conviver e a contrastar com relações patriarcais típicas dos trópicos. "Eu não era nada, mas era um auxiliar dileto. Isso já me satisfazia, compreendeu?" [idem: 23], revela em seu depoimento outro 'subalterno', Attílio Borrielo, deixando evidente a obediência e a hierarquia estabelecidas no cotidiano dos laboratórios do Instituto. Esta situação se torna ainda mais explícita pelo que ele mesmo declara em outro ponto a respeito dos uniformes e do ritual das refeições em Manguinhos: "Até o avental era de cor diferente. O indivíduo que tinha um avental pardinho era servente. Depois, quando ia subindo de posição, passava a usar um avental branco. E isto era um orgulho! Era uma categoria média. Tinha o refeitório dos humildes e o carramanchão. Eu saí daqui comendo no caramanchão. Era uma vaidade tola, mas a gente sentia-se bem..." [idem: 23] Atuando em conjunto com a obediência, subjazia o temor que impunha a figura do cientista em seu jaleco branco: "os cientistas só falavam com a gente quando tinham interesse num certo serviço. Fora disso, mão tinham razão de falar nada. E a gente quando via um homem daquele, tomava todo o cuidado" [idem: 23]. É o que se ouve do testemunho de William Hamlet.

A visão do 'subalterno' a respeito daquilo que se passa com o seu superior hierárquico é oferecida por Francisco Gomes, para quem "os pesquisadores da época eram formidáveis. Eles chamavam a gente, ensinavam o porquê, o como era, o como se fazia (...) eles tinham orgulho de que a gente aprendesse e se tornasse bons técnicos (...)" [idem: 25]. Desenvolvida neste ambiente de vínculos intensamente afetivos, a formação do 'subalterno', a exemplo do que ocorria com os cientistas, também contava com a extrema diversificação de suas atividades: "A formação do técnico era feita nos próprios laboratórios, porque revezávamos de laboratório para laboratório e se aprendia então todas as coisas, da microbiologia para a imunologia, da imunologia para a protozoologia, a entomologia, a bioquímica, a fisiologia... assim a gente acabava formando um técnico de conhecimento mais ou menos geral. Mas não havia curso assim específico para a formação de técnico de laboratório" [idem: 24], é o que nos conta Francisco Gomes, revelando que, ao invés de um curso formalizado, operava em Manguinhos uma escola tácita, informal e altamente eficiente para os seus técnicos de laboratório. Uma eficiência construída sobre o plano puramente afetivo e informal, uma eficiência cordial!

A contratação dos subalternos, de livre arbítrio do diretor do Instituto segundo facultava-lhe o Decreto 1.812, ensejava relações extremamente pessoais entre contratantes e contratados. Uma vez contratado um primeiro 'subalterno', este usufruía do compadrio com o seu chefe para tentar introduzir sua parentela, de forma que, com o passar do tempo, estabeleceram-se várias linhagens familiares entre os serventes de Manguinhos. Conseqüentemente, o recrutamento dos 'subalternos' ocorria sob a chancela de alguma forma de predileção pessoal. O recrutamento de Francisco Gomes, 'descoberto' por Carlos Chagas em Lassance, interior de Minas Gerais, quando este pesquisava o ciclo da doença que, mais tarde, tomou o seu nome, é um exemplo típico deste processo. Com apenas sete anos e muito magrinho, Chico foi levado ao acampamento de Chagas por um tio, para que pudesse melhorar seu estado de saúde ao 'mudar de ares'. Um dia, ao subir em uma árvore para laçar uma gambá que lhe atrapalhava o sono na rede, o garoto foi surpreendido pelo cientista que, ao mesmo tempo que pedia todo o cuidado com o bicho, rogava ao menino que não o deixasse fugir. "'Tem jeito de pegar?' 'Tem'. Aí foi quando ele correu para a barraca, foi apanhar a bandeja com o material – lâmina, tesoura, etc. Imprensei a cabeça do gambá com a forquilha no chão, consegui segurar as patas traseiras e ele veio correndo e deu um pique na orelha, tirou uma gota, botou na lâmina, saiu correndo para a barraca e foi para o microscópio. Quando olhou no microscópio, deu um tremendo berro, que aquilo ecoou, a ressonância, por aquele campo afora... Foi o segundo animal que tinha descoberto como hospedeiro do Trypanosoma Cruzi. O primeiro era o tatu, que ele já tinha descoberto, e o segundo foi esse gambá" [idem: 254].

A identidade de um novo hospedeiro, assunto tão vetusto da ciência universal, ocorria a partir da destreza de um garoto magrinho aboletado numa árvore. Como prêmio, Chagas 'contratou' o garoto, comprometendo-se a ensiná-lo a ler, a escrever e a levá-lo mais tarde ao Instituto (para onde foi com apenas doze anos). Em seguida, ainda de acordo com seu depoimento, o recrutamento de Francisco Gomes mergulha fundo na ambiência afetiva e na invocação da estrutura familiar, levando ao limite a magnificação da figura do cientista como pai, às custas do minguamento de sua estatura profissional. "Então começou a me ensinar a ler de noite (...) Isso tudo com aquele espírito paternal, porque, como eu perdi meu pai muito cedo, fui fazendo transferência de afeto para ele, né? Ele me ensinava, com aquela delicadeza de sempre, como sempre foi, uma delicadeza tremenda" [idem: 24].

Outro 'subalterno', Venâncio Bonfim, o Venancinho, sobrinho do lendário Joaquim Venâncio Fernandes, auxiliar de Adolpho Lutz e tido como o guru dos 'subalternos', dá um depoimento que não deixa margem a dúvidas quanto aos traços da existência de uma ciência cordial. Suas observações, extraídas das comparações entre as práticas locais e as norte-americanas, introduzidas em Manguinhos pela Fundação Rockfeller, dispensam maiores comentários: "(...) o auxiliar, ele não era assim tão importante que não pudesse limpar o piso, por exemplo. Coisa que o americano achou estranho. O auxiliar de laboratório da Rockfeller tinha um uniforme todo branco, sapato de borracha. Se não fosse assim, não podia. Deu para sentir que o povo lá tinha mais, assim, gabarito. Agora, de conhecimento intrínseco, isso é que o americano estranhou. Como é que um homem que está aqui limpando o piso, daqui a pouco pega aí uma lâmina, olha e vai dizer o que é? Porque lá o afiador de navalhas para a área de cortes só fazia isso. O esterilizador de material só esterilizava material" [idem: 27].

Faz-Tudo e subalternos à luz do século XXI

O pesquisador faz-tudo gradativamente foi cedendo diante do modelo taylorista, à medida que Manguinhos firmava-se como centro de produção científica. Mas um olhar mais atento sobre o cotidiano de Manguinhos lança dúvidas em torno da taylorização mais radical. "Aprender a fazer" e "fazer efetivamente um pouco de cada coisa" são expedientes corriqueiros para assistentes de pesquisa e auxiliares técnicos, ainda hoje, no primeiro quartel do século 21 [Martins et alii, 1997]. Em muitos laboratórios é possível observarmos uma prática correlata à prática de outros tempos. Adota-se, quase indiscriminadamente, a organização de escalas para a execução de atividades de rotina. Um elenco de técnicos, estudantes de graduação, mestrandos e doutorandos alternam-se na preparação de toda sorte de insumos para a experimentação [Teixeira, 1996]. Será a escala de trabalho uma atualização do faz-tudo e da flexibilização transvertida em tática de capacitação?

Os relatos dos subalternos, recolhidos por Jaime Benchimol (1989), não descrevem uma realidade totalmente estrangeira. Os laboratórios atualmente são povoados por técnicos certificados por escolas técnicas e contratados através de processos seletivos públicos ou por empresas de terceirização. Porém, em muitos casos o contato inicial (ou será iniciático?) guarda estreitas relações com uma complexa rede de relações de parentesco, compadrio e amizade. E ainda persiste, em muitas histórias de recrutamento para o trabalho em laboratório, o sentido da descoberta da vocação. Entre os trabalhadores de Manguinhos da segunda metade da década de 90, encontramos histórias como a do motorista que "tornou-se" técnico de laboratório. Eis a explicação dada pelo pesquisador que o recrutou e apadrinhou sua transferência definitiva das garagens para a bancada: "ele tinha jeito para o trabalho na pesquisa" [Teixeira, 1996]. Sua formação, totalmente empírica, apoiou-se na observação do pesquisador-tutor, na execução de atividades com o tutor e, finalmente, em fazer sob a supervisão do tutor. Esta sistemática também é utilizada para a formação dos estudantes de graduação quando iniciam seus estágios nos laboratórios. Curiosamente, em alguns laboratórios, o técnico assume o lugar de tutor para a aprendizagem de algumas técnicas.

Não obstante, há diferenças significativas. Não estamos propondo uma história de continuidades singelas. A captura para os laboratórios implica atualmente a busca da educação formal e do almejado diploma. Técnicos não acumulam suas novas rotinas nas bancadas com as funções anteriores. Todavia, as similitudes inquietam e persistem, mesmo quando relativizadas pelas diferenças entre a sociedade brasileira da primeira metade do século 20 e a desse primeiro quartel do século 21. Inquietam e interessam, conquanto sejam pistas para entendermos quais arranjos locais sustentaram uma produção científica aparentemente enformada pelos modos e fazeres do além-mar.

A observação dos espaços físicos é outra fonte de pistas. Laboratórios, ordenados de modo a deixar os traços da tropicalidade trancados do lado de fora, guardam vestígios da improvisação e da provisoriedade por todos os lados. Bancadas apinhadas de equipamentos importados funcionam, graças ao emaranhado de tomadas e fios conectados em uma única fonte. Em alguns corredores de Manguinhos, equipamentos ultramodernos convivem com geladeiras antiquadas. Há anos, estas geladeiras são mantidas graças à inventividade dos técnicos e ao canibalismo de peças. Manguinhos, centro científico tropical, parece sustentar-se graças ao equilíbrio precário entre uma ordem científica dita "racional e universal" e a flexibilidade da cultura local. O ponto aqui é saber como todos estes elementos se articulam e produzem diferenças com os modos, arranjos e fazeres dos laboratórios norte-americanos e europeus. E, ainda, como essas diferenças produzem uma ciência capaz de desejar circular com desenvoltura pelos salões de além-mar.

Outras histórias deste e do século passado ainda poderiam ser aqui mencionadas, nas quais as mãos do pesquisador aparecem encarnadas nas de seus serventes e auxiliares, em profundo contraste com as mãos 'taylorizadas' dos seus 'similares internacionais'. Em todas elas, por este ou aquele motivo, abundam os traços de práticas cordiais, as quais, se estão longe de fundamentar a plena existência de uma ciência cordial, ao menos indicam que a modernidade à brasileira distingue-se significativamente da modernidade moderna da ciência. Concluo, com a evidência neste sentido oferecida por outro dos 'subalternos', José Cunha, que, ao esboçar a autoridade do cientista de Manguinhos, utiliza uma reveladora metáfora religiosa, de fundo patriarcal e nobiliárquico: "Cada chefe era um deusinho. (...) Pequenos deuses, todos eles eram. Quase sem exceção" [idem: 30].

Recebido em 15/01/2008

Aceito em 15/02/2008

  • BENCHIMOL, Jaime. Retratos do Cotidiano em Manguinhos Cadernos da Casa de Oswaldo Cruz, v.1, n.1, novembro 1989.
  • BITARELLO, Beatriz Domingues. A modernidade ibérica e a revolução científica do século XVII Tese de Doutorado, COPPE/UFRJ, Programa de Engenharia de Produção, 1994.
  • CUKIERMAN, Henrique. Yes, Nós Temos Pasteur - Manguinhos, Oswaldo Cruz e a História da Ciência no Brasil. Rio de Janeiro, Relume Dumará/FAPERJ, 2007.
  • HOLANDA, Sergio Buarque. Raízes do Brasil. 19a. ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1996.
  • MARTINS, Carla e ali. Formação Técnica em Biotecnologia em Unidades de Produção. In: Formação Técnica em Biotecnologia Relatório Técnico Final. CNPq / PCDT, 1997. (mimeo)
  • MORSE, Richard. O Espelho de Próspero RJ. Companhia da Letras, 1995.
  • TEIXEIRA, Márcia de Oliveira. Processo de Trabalho em Laboratórios: Uma Análise da Condição dos Técnicos em Unidades de Pesquisa da FIOCRUZ. Relatório final Convênio Fiocruz-FAPERJ. RJ, 1996. (mimeo)
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    Uma versão deste artigo foi apresentada ao X Simpósio Nacional de História da Ciência e Tecnologia da SBHC (Sociedade Brasileira de História da Ciência), realizado em Belo Horizonte (2005).
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    As tentativas anteriores de trazer gente de fora esbarraram em sérios entraves legais e burocráticos, que o Decreto 1.812 tratou de eliminar.
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    Prowazeck estudou com Henrique Aragão a etiologia da varíola, cuja epidemia recém assolara o Rio de Janeiro, chegando ambos à suposta descoberta do micróbio da varíola, publicada nas
    Memórias com grande repercussão à época.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      24 Jun 2008
    • Data do Fascículo
      Jun 2008

    Histórico

    • Aceito
      15 Fev 2008
    • Recebido
      15 Jan 2008
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