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A ética hacker do trabalho: rompendo com a jaula de ferro?

The hacker work ethic: breaking out of the iron cage?

RESENHA

A ética hacker do trabalho: rompendo com a jaula de ferro?

The hacker work ethic: breaking out of the iron cage?

Daniel Gustavo MocelinI

IDoutorando em Sociologia pelo Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: dmocelin@terra.com.br

RESUMO

O texto apresenta a resenha do livro The hacker ethic and the spirit of the information age, escrito pelo filósofo finlandês Pekka Himanen, com Prólogo de Linus Torvalds e Epílogo de Manuel Castells, originalmente publicado em 2001. O autor segue o modelo de análise desenvolvido por Weber na obra clássica da Sociologia A ética protestante e o espírito do capitalismo para investigar a ética do trabalho dos hackers informáticos. Himanen afirma que os hackers, mais do que possuírem valores diferentes daqueles dos protestantes, representam uma oposição à moral da era industrial em diversos sentidos. Segundo o autor, seu trabalho aborda um fato social de índole geral que põe em juízo a ética protestante do trabalho que, há muito tempo, vem regendo a vida dos indivíduos e ainda exerce uma poderosa influência sobre as pessoas. A natureza radical do hackerismo consiste em sua proposta de um espírito alternativo para a sociedade-rede, um espírito que finalmente questiona a ética protestante. O texto de Himanen consiste em um material essencial para os sociólogos e demais estudiosos interessados em interpretar a realidade social hoje, especialmente quando o debate é sobre as questões relacionadas ao trabalho.

Palavras-chave: Ética do trabalho; sociedade da informação; hacker.

ABSTRACT

The text presents a review of the book The hacker ethic and the spirit of the information age, written by Finnish philosopher Pekka Himanen, with foreword by Linus Torvalds and afterword by Manuel Castells, originally published in 2001. The author follows the method of analysis developed by Weber in his classic work of sociology, The Protestant ethic and the spirit of capitalism, to investigate the hackers' work ethic. Himanen states that the hackers, rather than have different values from those of the Protestants, represent an opposition to the morals of the industrial age in several ways. According to the philosopher, his work approaches a social fact of general nature that questions the Protestant work ethic that for a long time has been guiding the lives of individuals and still exerts a powerful influence on people. The radical nature of hackerism consists in proposing an alternative spirit for the network society, a spirit that will eventually question the Protestant ethic. Himanen's text represents essential material for sociologists and other scholars interested in interpreting the current social reality, especially when the discussion is about work related issues.

Keywords: work ethic, information society, hacker.

The hacker ethic and the spirit of the information age. Nova York: Random House, 2001. HIMANEN, Pekka, TORVALDS, Linus ("Prólogo") e CASTELLS, Manuel ("Epílogo").

Quando Max Weber propôs analisar a ação social na modernidade a partir da maneira de agir e de ser dos protestantes calvinistas, não se poderia imaginar que, um século depois, a conduta de outro grupo fosse ser tomada para reforçar sua abordagem. O ensaio que se tornou célebre serviu de modelo para o filósofo finlandês Pekka Himanen, que recuperou a abordagem de análise da ética do trabalho industrial desenvolvida por Weber para analisar a ética do trabalho na chamada Era da Informação, a partir da maneira de agir e de ser dos hackers. Na obra que ora se resenha, Himanen contrapõe os valores da ética dos hackers aos da protestante: transformar a monotonia da sexta-feira em um domingo, democratizar a informação, romper com a jaula de ferro da disciplina e da burocracia, realizar a paixão criativa através do computador, não se render à ganância, são alguns dos valores de um hacker, analisados pelo filósofo no livro The hacker ethic and the spirit of the information age1 1 Edição brasileira da obra: HIMANEN, Pekka. A ética dos hackers e o espírito da era da informação. Rio de Janeiro: Editora Campus, 2001. Edição espanhola: HIMANEN, Pekka. La ética del hacker y el espíritu de la era de la información. Barcelona: Destino, 2003. .

O filósofo finlandês Pekka Himanen nasceu em 1973 e se doutorou em Filosofia pela Universidade de Helsinki aos 20 anos de idade. Atualmente é professor das Universidades de Helsinque e Berkeley (EUA) e vem sendo assessor do Governo, do Parlamento e do Presidente da Finlândia em questões relacionadas com a sociedade da informação.

Como o próprio título indica, não há uma mera coincidência entre a obra de Weber e a de Himanen. A exposição do texto é original ao seguir estrutura semelhante à do ensaio weberiano, procedendo a uma justaposição de elementos que tornam a argumentação do texto e a estratégia metodológica próximas das da obra clássica. O que mudou foi o tempo, o espaço e os agentes da história. O ensaio está organizado em três partes, cada uma delas formada por dois capítulos, complementadas por um conjunto de notas explicativas ao final do volume. A obra ainda é constituída por um prólogo de autoria de Linus Torvalds, também de origem finlandesa, e do criador do sistema operacional de acesso gratuito Linux e, ainda, por um epílogo escrito por Manuel Castells, um dos principais sociólogos da atualidade e analista assíduo e respeitado da chamada Era da Informação. Ambos estão referidos nos agradecimentos do autor, especialmente Castells, com quem Himanen tem colaborado academicamente.

No clássico A ética protestante e o espírito do capitalismo, Weber afirmava que a doutrina protestante, da predestinação e da santidade do trabalho, na qual a noção de trabalho aparece como dever, como vocação, teria sido um fator cultural decisivo para a formação da mentalidade capitalista e teria potencializado os princípios éticos da Era Industrial. Em A ética dos hackers e o espírito da era da informação, Himanen afirma que os hackers, mais do que possuírem valores diferentes daqueles dos protestantes, representam uma oposição à moral industrial em diversos sentidos. O que nos convida à leitura desse texto é essa diferença: A ética dos hackers... Tem um caráter mais romântico do que o pessimismo implícito na obra original de Weber. De fato, os contextos dos autores são distintos: enquanto Weber demonstra angústia sobre as transformações socioeconômicas e políticas da expansão crescente da racionalização econômica sobre as sociedades capitalistas, Himanen mostra-se entusiasmado com as perspectivas que vinculam o desenvolvimento econômico e tecnológico à liberdade democrática, especialmente considerando o caso da Finlândia, um país que era "pobre" e que, em duas gerações, transformou-se em uma das economias mais competitivas do mundo, após pesados investimentos públicos e privados no mercado de tecnologia da informação e comunicação e o surgimento de uma cultura da inovação na sociedade civil.

A primeira investida do autor é a de definir quem são os hackers. Segundo Himanen, o termo hacker vem sendo empregado incorretamente, sendo relacionado a programadores que praticam atividades criminosas: esses "piratas" da Internet, que violam os sistemas de empresas e que roubam números de cartões de crédito ou contas bancárias, na verdade, não passariam de crackers. A palavra inglesa hacker, em seu sentido original, refere-se a programadores de computador entusiasmados, que compartilham seu trabalho técnico, científico ou artístico com outros. O termo hacker, que Himanen resgata, surgiu, no início dos anos 1960, como a autodenominação utilizada por um grupo de jovens programadores do Massachusetts Institute of Technology (MIT), que tinham em comum o gosto pelos estudos, o apurado conhecimento de informática e o jeito passional de lidar com os negócios.

Himanen busca provar a tese de que os valores dos hackers seriam, na verdade, a chave de trabalho obsessivo, dotado de ritmo próprio, fundado na crença em grandes realizações através da união de forças, de forma criativa e apaixonada. Como afirma o autor, seu interesse em realizar uma etnografia dos hackers foi tecnológico, relacionado com o fato de que os símbolos mais conhecidos da nossa era, a Rede, o computador pessoal e os softwares que fazem isso tudo funcionar não foram, na realidade, criados por empresas ou governos, mas por indivíduos entusiastas que se empenharam em pôr em prática suas idéias, com outros indivíduos de interesses afins e que trabalhavam a seu próprio ritmo. A intenção de Himanen foi a de compreender a lógica interna desta atividade, suas forças condutoras. Como afirma o autor, quanto mais ele pensava no modo de agir e de ser dos hackers informáticos, o que mais resultava interessante, em termos humanos, era o enorme "desafio espiritual" que supunham para nossa época. Como os próprios hackers relatam, sua maneira de agir e de ser tem maior alcance, não estando nem restrita aos interessados em informática nem restritas à Era da Informação. Em geral, o hacker seria um especialista ou entusiasta de qualquer tipo. Neste sentido, uma pessoa poderia ser um hacker sem ter nada que ver com o mundo dos computadores.

Segundo o autor, seu trabalho aborda um fato social de índole geral, que põe em juízo a ética protestante do trabalho que há muito tempo vem regendo a vida dos indivíduos e ainda exerce uma poderosa influência sobre as pessoas. A natureza radical do hackerismo consistiria em sua proposta de um espírito alternativo para a Era da Informação, um espírito que finalmente questionaria a ética protestante. Exclusivamente neste sentido caberia afirmar que todos os hackers seriam crackers, considerando sua pretensão em romper o ferrolho da jaula de ferro da modernidade.

No prólogo da obra, Linos Torvalds destaca que há três categorias básicas para a motivação dos hackers: a sobrevivência, a vida social e o entretenimento. Segundo Himanen, essa última categoria deve ser entendida com E maiúsculo, por tratar-se do tipo de estímulo que retira o hacker do tédio e do aborrecimento, fornecendo sentido à sua vida. Porém, este entretenimento significa trabalhar com prazer, e não, jogar Nintendo. O "Entretenimento" seria qualquer coisa intrinsecamente interessante, desafiante e fundamental na vida de cada indivíduo empenhando em realizar sua paixão criativa. Para Himanen, o sentido de "Entretenimento" deve ser paixão, ou seja, a dedicação a uma atividade que seja intrinsecamente interessante, inspiradora e que cause regozijo: uma relação apaixonada com o trabalho e que, historicamente, teria caracterizado o "mundo intelectual".

O ethos hacker nega a relação do trabalho com o tempo, da maneira estabelecida pela ética protestante. A ética protestante, como examinada por Weber, baseia-se no postulado "tempo é dinheiro" e coloca o tempo regulado do trabalho como o centro da vida das pessoas. O antigo trabalho-centrismo da ética protestante significou que já não havia espaço para o lúdico no laboral. A apoteose da ética protestante na Era da Informação se percebe no fato de que o ideal da otimização do tempo se tenha estendido hoje em dia, inclusive à vida fora do lugar de trabalho. As pressões que a otimização exerce na vida laboral seriam atualmente tão fortes que se empenham em eliminar o outro pólo da ética protestante, o tempo livre ou o domingo. Na Era da Informação, pretende-se não só a otimização do (tempo do) trabalho, mas também a "otimização da vida". Atualmente fala-se muito, por exemplo, de "tempo flexível", mas essa flexibilidade, embora pudesse contribuir para uma organização mais holística do tempo, estaria reforçando a centralidade do trabalho regulado, e as novas tecnologias estariam ajudando particularmente isso a acontecer. Neste sentido, o desenvolvimento dominante da economia da informação parece fortalecer ainda mais a organização da vida em função do trabalho. O tempo de lazer está diminuindo e se tornando apenas obrigação, um processo que poderia ser chamado de fridayzation of sunday. Pessoas estão constantemente correndo de um compromisso a outro, tentando sobreviver dentro dos prazos.

O hacker é também um indivíduo obcecado pelo trabalho, mas não pelos prazos. Seu compromisso não é com um emprego, mas com a expressão de sua realização como indivíduo; sua recompensa não é apenas o salário, mas o reconhecimento do seu trabalho pelos interessados neste trabalho. Os hackers crêem que a revolução digital deve ser traduzida também em um tempo lúdico para a humanidade. A plena realização de suas capacidades criativas depende de seus impulsos, não podendo ser heterodeterminada. Tratar-se-ia, portanto, de reverter o processo de otimização da vida, transformando a sexta-feira no domingo (the sundayization of friday).

Os hackers não subscrevem o adágio "o tempo é dinheiro" e sim, "o tempo é minha vida". Segundo Weber, na ética protestante, o valor mais alto era "ganhar mais e mais dinheiro". Na prática, tanto o trabalho como o dinheiro constituíram-se em fins em si mesmos. No "antigo capitalismo", argumenta Himanen, o trabalho como valor posicionava-se mais alto que o dinheiro e, por isso, foi entendido como ética do trabalho protestante. Na nova economia informacional, entretanto, mesmo que ainda possua um valor autônomo importante, o trabalho foi subordinado ao dinheiro. A nova economia informacional, assim, seria também uma prolongação da antiga ética protestante. O que é enfatizado como o valor supremo é justamente o dinheiro. Para os hackers, pelo contrário, o fator organizador básico da vida não é nem o trabalho, nem o dinheiro, mas é a paixão. Sua ética de trabalho enfatiza a atividade apaixonada e o ritmo livre do uso do tempo.

A motivação do hacker difere da motivação característica da ética protestante. "Sobreviver" ou "fazer algo para ganhar a vida" é a primeira resposta de muitos ao se perguntar por que trabalham. Porém, tais respostas não significam apenas sobreviver. Em geral, sobrevivência implica um estilo de vida determinado socialmente; os indivíduos não trabalham apenas para sobreviver, mas para estar em condições de satisfazer o tipo de necessidades sociais que caracterizam uma sociedade determinada. Em nossa sociedade, imbuída da ética protestante, o trabalho é, na realidade, uma fonte de aceitação social. Na Era da Informação, a aceitação social, mais além do mero sustento, continua sendo uma importante motivação social para trabalhar. Na comunidade hacker, as motivações desempenham um papel importante, porém de modo distinto. Como seria possível compreender por que alguns hackers dedicam seu tempo livre a desenvolver programas que acabam distribuindo gratuitamente aos demais, sem perceber os motivos sociais que têm para fazê-lo? Alguns afirmariam que estes hackers estariam motivados pela força que tem para eles o reconhecimento de seus pares. Para os hackers, o reconhecimento no seio de uma comunidade que comparte sua paixão é mais importante e mais satisfatório que o dinheiro por si mesmo, da mesma forma que sucede no caso dos cientistas da Academia. Contudo tem especial importância o fato de que o reconhecimento de seus pares não é um substituto da paixão, mas que deve produzir-se como resultado da ação apaixonada, da criação de algo que seja, desde um ponto de vista social, valioso para essa comunidade criativa. Este vínculo de união que os hackers estabelecem entre o plano social e o plano da paixão é o que faz o modelo tão atrativo.

Como destaca o autor, a busca de dinheiro e de trabalho por parte da ética protestante se baseia nessas mesmas motivações, porém, como nela, a satisfação das necessidades sociais é mediada pelo dinheiro e pelo trabalho e não se desprende diretamente da natureza da atividade e de suas criações, não pode produzir o mesmo efeito. Em conseqüência, quando as motivações sociais não encontram na paixão uma aliada, passam a aliar-se com a sobrevivência, e a vida acaba, então, reduzida a um "ganhar a vida". Há uma enorme diferença entre escolher um campo de estudo ou responder a um anúncio dos classificados buscando maximizar os ganhos com um emprego que paga melhor.

Himanen destaca, entretanto, que a ética hacker pode sofrer reversão de tendência na nova economia. Afirma o autor que os hackers não seriam ingênuos nem estariam cegos ante o fato de que, em uma sociedade capitalista, resulta difícil alcançar plena liberdade se não se conta com um capital individual suficiente. Seriam muitos os exemplos de hackers que têm optado pelo hackerismo capitalista. Alguns deles participam temporariamente no capitalismo tradicional. Outros mantêm uma atividade apaixonada, mesmo sem nunca conseguir livrar-se do marco do capitalismo tradicional. Porém há uma tensão inerente em considerar o hackerismo no seio do capitalismo tradicional. A meta suprema do capitalismo é o aumento de capital. A ética hacker do trabalho, por outro lado, fundamenta-se na atividade apaixonada, com plena liberdade de ritmos pessoais, mesmo que ela provenha, conseqüentemente, de muito capital. Tal tensão, muitas vezes, é resolvida deixando-se de lado o hackerismo e seguindo as direções da ética protestante. Neste sentido, o inimigo público número um do hacker informático é a companhia Microsoft, de Bill Gates. Com Paul Allen, Gates fundou a Microsoft com a intenção de criar linguagens de programação para computadores pessoais, um ponto de partida sumamente hacker. Entretanto, na história da Microsoft a partir de então, a motivação pelos ganhos tem tido prioridade sobre a paixão. A produção de softwares passou a ser padronizada e os códigos-fonte tornaram-se segredos industriais; Gates teria passado a construir um monopólio informacional para garantir o lucro de sua companhia, pagando muito pela criação dos hackers. Quando o dinheiro se converte no fim superior, por si mesmo, a paixão deixa de ser um critério essencial e a ética protestante passa a vigorar.

Himanen dedica um capítulo do livro a explorar a semelhança entre o trabalho hacker e o trabalho da Academia, demonstrando a contraposição entre esta instituição e o monastério, característico da ética protestante. Relata o autor que os acadêmicos fazem público seu trabalho para que este seja utilizado, verificado e desenvolvido: sua investigação se baseia em um processo aberto e autodepurador de erros. Robert Merton já havia sugerido esta idéia de que a autodepuração dos erros era uma das bases da ética científica. Para Himanen, os acadêmicos elegeram este modelo não só por razões de tipo ético, mas porque, ademais, demonstrou ser o modo mais satisfatório de gerar conhecimento científico. Nesse modelo, o ponto de partida consiste também em um problema ou em uma meta que os investigadores consideram interessante desde uma ótica pessoal; então oferecem sua própria solução. A ética acadêmica exige que qualquer um possa usar, criticar e desenvolver esta solução. Mais importante que qualquer resultado definitivo seria o desencadeamento de argumentações gerado pelo problema. Não obstante, a ética cientifica não comporta apenas direitos, incluindo também obrigações fundamentais: as fontes devem sempre ser citadas e a nova solução não deve manter-se em segredo, mas deve ser publicada em benefício da comunidade científica. Tanto os acadêmicos como os hackers sabem que a ausência de estruturas rígidas é uma das razões pelas quais seu modelo é tão poderoso.

Na sociedade industrial, a riqueza e o poder centrados em poucos indivíduos impuseram rígidos modos de produção. O que está em jogo na era da informação é a descentralização do poder, por intermédio da disseminação da informação. Os hackers acreditam que o conhecimento é uma arma poderosa, capaz de amenizar os efeitos excludentes da era da industrialização. O trabalho dos hackers visaria à liberdade de expressão, em contraste com a idéia de propriedade arraigada na era da economia industrial, que protege fortemente a informação como um segredo de Estado.

Hackers e acadêmicos empenham-se individualmente, dedicando-se à sua paixão e logo, passam a trabalhar em rede com outros indivíduos que dela compartilham. A criação do Linux, em 1991, é um exemplo dos valores hackers, pois revelaria paixão pelo trabalho e socialização do conhecimento. Este sistema operacional, desenvolvido por Torvalds quando era um jovem hacker que estudava em Helsinki, é um software gratuito, com código-fonte aberto e aplicativos compatíveis, que podem ser obtidos pela Internet. O Linux é um projeto que envolve milhares de programadores e milhões de usuários e continua a ser desenvolvido por eles mesmos em forma aberta e cooperativa. Atualmente o Linux é visto como a maior ameaça para a hegemonia da Microsoft. Contudo a criação de um sistema operacional aberto nunca teve o objetivo de quebrar o monopólio da Microsoft. A mais importante inovação do sistema aberto seria social e não técnica ou econômica: uma forma de trabalho coletivo em que as informações estão disponíveis livremente para todos e na qual todos os interessados participam da resolução de problemas.

Este espírito difere do que se fala não só no mundo dos negócios, mas também no do governo. Justificar-se-iam, portanto, as razões de por que se sentem profundamente irritados os acadêmicos e os hackers quando a Universidade se converte em um organismo burocrático governamental ou em um monastério. Considerando esse contexto, Himanen ainda destaca que a ausência relativa de estruturas não significa que não haja estruturas. Por exemplo, destaca que, tanto o modelo acadêmico como o hacker contam com uma estrutura especial de publicação para divulgar seus resultados. A investigação estaria aberta a todos, porém, na prática, as contribuições que aparecem nas publicações científicas de prestígio são selecionadas por um grupo mais reduzido de avaliadores. De todos os modos, este modelo está estruturado para garantir que, no longo prazo, seja a "verdade" que determine o grupo de avaliadores e não, o contrário. Essa estrutura está fundamentada no processo de aprendizagem característico do hackerismo, que começa como a sugestão de um problema interessante, segue com a busca de uma solução mediante o uso de diversas fontes e culmina com a comunicação do resultado. Aprender mais sobre um tema se converte na paixão do hacker. Uma força primordial dessa aprendizagem está em que um hacker, ao aprender, ensina os demais. O modelo hacker se assemelha, na opinião do autor, à Academia de Platão, onde os estudantes não eram considerados puros receptores do conhecimento transmitido, mas eram tratados como companheiros na aprendizagem. A tarefa do ensino consistia em fortalecer a capacidade do aluno para propor os problemas, desenvolver as argumentações e avançar críticas. A tarefa do mestre não era impor aos estudantes um conhecimento preestabelecido, mas ajudar a que eles mesmos o engendrassem, cada um desde o seu próprio ponto de partida.

Na trajetória laboral típica da sociedade industrial, uma pessoa era preparada para realizar um ofício no qual trabalharia durante o resto de sua vida produtiva, das nove às cinco. Na economia da informação, as características do profissional seriam diferentes, mas o sentido da trajetória laboral regulada seria semelhante. O novo profissional autoprogramavél precisa ter a capacidade de reciclar-se e adaptar-se às novas tarefas, novos processos e novas fontes de informação, à medida que a demanda de mercado acelere seu ritmo de mudança. Apenas uma parcela do saber e do conhecimento não se torna obsoleta, de modo que, para poder enfrentar os novos desafios, os trabalhadores autoprogramáveis necessitam reprogramar seu âmbito de competência de forma constante. Não é por acaso, então, que muitos deles buscam a literatura de "desenvolvimento pessoal". Himanen analisa as dicas e constata que essa literatura ensina as mesmas virtudes que a velha ética protestante ensinou através de Benjamin Franklin, constatando que essas virtudes têm seu precedente nas regras monásticas beneditinas. Afirma o autor que, tanto no mosteiro, como na literatura de desenvolvimento pessoal, o que se oferece é a promessa de uma experiência de claridade e certeza para a vida. A vida torna-se mais planejável, se reduzida a um objetivo, ou seja, cada pessoa só precisa concentrar-se em um ponto fixo e excluir todo o resto.

A estrutura burocrática do capitalismo tradicional, que racionaliza o uso do tempo, seria totalmente dispensável e negada pelos hackers. Assim como o protestante tinha uma vocação e buscava sua predestinação, ser um hacker é ter um título de honra, significa ter uma ética própria na qual o dinheiro é mera conseqüência e não, a causa do trabalho. Para um hacker, disciplina representa autopunição; dinheiro é para ser gasto; trabalho deve ser prazer e não, obrigação.

A conclusão do autor tem um caráter crítico e contundente. No mundo governado pela ética protestante, trabalhamos porque não sabemos que outra coisa fazer com nossas vidas, da mesma maneira que vivemos porque não sabemos quais outras coisas poderíamos fazer. Trabalhamos para viver uma vida que consiste em trabalhar. Mas a criatividade não se destaca de forma particular na ética protestante, cujas criações típicas são o funcionário e a empresa de estilo monástico. Nenhuma delas estimula o indivíduo para que se dedique à atividade criativa. No modelo hacker, o indivíduo simplesmente começa criando. A ética protestante celebra a sexta-feira; a pré-protestante santifica o domingo. A ética protestante está centrada no trabalho e poder-se-ia dizer que a ética pré-protestante está centrada no tempo livre. Desde o ponto de vista do hacker, o ócio-centrismo pode ser tão indesejável como o trabalho-centrismo. Os hackers querem fazer algo significativo, querem criar. Mesmo que evitem o trabalho que não deixa espaço para a criatividade, também consideram o puro ócio insuficiente como estado ideal. Um domingo dedicado ao ócio pode ser tão sofrível como uma sexta-feira. Os hackers não consideram que o tempo livre seja automaticamente mais importante que o tempo de trabalho. Numa vida plena de sentido, a dualidade trabalho/ócio deve ser abandonada por completo. Os hackers se situam entre a cultura da sexta-feira e a do domingo e, deste modo, representariam um espírito genuinamente novo.

A perspectiva de Himanen consiste em material essencial para os sociólogos e demais estudiosos interessados em interpretar a realidade social hoje, especialmente quando o debate é sobre as questões relacionadas ao trabalho. O elemento mais significativo da análise de Himanen consiste em discutir articuladamente mudanças econômicas com mudanças culturais. O autor propõe um diálogo consistente sobre algumas das grandes preocupações do contexto da chamada 'Era da Informação'. A bibliografia utilizada pelo autor perpassa Platão, Dante e Agostinho, chegando a Richard Stallman – um dos precursores do hackerismo, passando por Thomas Kuhn, Robert Merton, Martin Carnoy, Castells e Baudrillard. O autor conseguiu unir heterodoxas perspectivas filosóficas e sociológicas, apresentando um argumento convincente e otimista sobre uma ética do trabalho não apenas distinta, mas alternativa daquela predominantemente analisada no século XX. Além disso, deve-se destacar que algumas novidades teóricas, como a apresentada pelo autor, muitas vezes são ignoradas e custam muito a serem adotadas pela Academia, em prol de resgates das tradições teóricas, os quais, em grande parte, fracassam. Himanen propôs dialogar abertamente com uma abordagem tradicional e obteve sucesso nessa proposta.

Deve-se destacar, contudo, que o romantismo do texto de Himanen cativa o leitor menos crítico, que pode deixar-se impressionar por seu otimismo. É preciso ter presente que o texto trata de um grupo bastante reduzido de indivíduos entusiastas, localizados e atuantes em campos sociais não apenas específicos, mas privilegiados, e que, nem por isso, estão livres de serem coagidos. Além disso, a formação de um ethos hacker depende de diversos fatores como condições infra-estruturais para seu surgimento, políticas públicas orientadas para a valorização da criatividade, instituições e organizações abertas às potencialidades humanas, subsídio para que talentos sejam desenvolvidos e, talvez o mais importante, que seriam indivíduos socializados por uma cultura da inovação, consolidada na sociedade civil. O hackerismo é um modo de ser e agir que, de fato, pode ser encontrado nas mais diversas realidades, mas que tende a sofrer modificação ante as condições econômicas, culturais, políticas e institucionais em que se desenvolve. Em todos os lugares, poderão ser encontrados hacker no sentido anotado por Himanen, mas também serão encontradas formas incompletas ou corrompidas deste ethos: hackers capitalistas, hackers que se tornaram capitalistas, hackers que deixaram de ser hackers, crackers. Considerando-se essa dubiedade da atuação que os hackers poderiam desempenhar na realidade social, há a necessidade de uma apropriação mais prudente das análises do autor finlandês, especialmente para a análise de outros países ou regiões. Mesmo que limitado em muitos sentidos, talvez sequer fazendo sombra ao clássico que parafraseia, o livro é instigante e deve ser lido, analisado, criticado por todos os interessados em discutir as mudanças econômicas e culturais recentes.

Recebido: 23/08/2007

Aceite final: 25/09/2007

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    Edição brasileira da obra: HIMANEN, Pekka.
    A ética dos hackers e o espírito da era da informação. Rio de Janeiro: Editora Campus, 2001. Edição espanhola: HIMANEN, Pekka.
    La ética del hacker y el espíritu de la era de la información. Barcelona: Destino, 2003.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      24 Jun 2008
    • Data do Fascículo
      Jun 2008
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